120472.fb2 A Cidade e as Estrelas - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 14

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Capítulo X

Quando a porta se fechou, Alvin deixou-se cair na poltrona mais próxima. Toda a energia parecia ter abandonado de repente suas pernas, finalmente conhecia, como nunca antes, aquele medo do desconhecido que oprimia seus companheiros. Sentiu que tremia dos pés à cabeça, e sua visão tornou-se turva e incerta. Se pudesse, teria escapado, sem vacilar, da máquina veloz, mesmo que isso significasse a renúncia a seus sonhos.

Não era só o medo que o assaltava, mas também uma sensação de indizível solidão. Tudo quanto conhecia e amava estava em Diaspar, mesmo que a viagem não o conduzisse a perigos, era possível que nunca mais voltasse a seu mundo. Sabia, como nenhum homem tinha sabido, durante eras, o que significava deixar o lar para sempre. Naquele momento de desolação, não lhe parecia ter qualquer importância o que o aguardava, perigo ou segurança. Tudo que lhe importava agora era que a viagem o conduzia para fora de seu mundo.

Esse estado de espírito cedeu aos poucos, e as sombras deixaram sua mente. Começou a prestar atenção às coisas que o rodeavam, a ver o que podia aprender no veículo inacreditavelmente antigo em que estava viajando. Não lhe parecia particularmente estranho ou maravilhoso que aquele soterrado sistema de transporte ainda funcionasse perfeitamente após tantas eras. Não fora preservado nos circuitos de memória da cidade, mas em algum lugar deviam existir semelhantes preservando-o da ação do tempo e das mutações.

Pela primeira vez, notou o quadro indicador que fazia parte da parede anterior. Havia ali uma mensagem breve, mas tranqüilizadora:

LYS

35 MINUTOS

Enquanto a observava, o número mudou para «34». Isso pelo menos era uma informação útil, ainda que, como não dispunha de nenhuma informação sobre a velocidade da máquina, nada lhe dissesse sobre a extensão da viagem. As paredes do túnel eram contínuas manchas cinzentas, e a única sensação de movimento era fornecida por uma levíssima vibração que jamais teria observado se não a procurasse detectar.

Diaspar devia estar agora a muitos quilômetros dali, acima dele estaria o deserto com suas dunas ao sabor dos ventos. Talvez naquele exato momento Alvin estivesse a correr sob as colinas erodidas que havia observado tantas vezes da Torre de Loranne.

Sua imaginação disparou em direção a Lys, como se ansiosa por chegar lá antes do corpo. Que espécie de cidade seria? Por mais que tentasse, só conseguia concebê-la como uma versão menor de Diaspar. Imaginou se ainda existiria, depois, porém, deu-se conta de que, se não existisse, aquela máquina não estaria a levá-lo celeremente através da terra.

De repente, houve uma clara modificação na vibração. O veículo começou a diminuir sua velocidade — não havia dúvida quanto a isso. O tempo passara mais depressa do que ele havia imaginado. Um tanto surpreso, Alvin olhou para o indicador:

LYS 23 MINUTOS

Intrigado, e um tanto preocupado, colocou o rosto na parede da máquina. A velocidade ainda fazia com que as paredes do túnel fossem um cinzento sem maiores detalhes, embora agora, de vez em quando, ele conseguisse colher um lampejo de marcas que desapareciam quase tão depressa quanto eram percebidas. E a cada desaparecimento, pareciam persistir um pouquinho mais em seu campo de visão.

Então, sem qualquer aviso, as paredes do túnel reapareceram de ambos os lados. A máquina passava, ainda a grande velocidade, por um espaço enormemente vazio, até mesmo maior do que a sala das vias móveis.

Olhando pasmado através das paredes transparentes, Alvin podia perceber debaixo dele uma complexa rede de barras e canos que se cruzavam e recruzavam até desaparecerem num emaranhado de túneis laterais. Um jorro de luz azulada despenhava-se da cúpula arqueada do teto e, silhuetas contra o clarão, ele percebia os contornos de grandes máquinas. A luz era tão brilhante que ofuscava a vista, aquele lugar, pensou Alvin, não havia sido destinado a homens. Um momento depois, o veículo que o transportava passou velozmente por filas após filas de cilindros, inteiramente imóveis acima de seus carris. Eram maiores do que o seu, e Alvin supôs que se destinassem ao transporte de carga. Em torno deles agrupavam-se mecanismos incompreensíveis, imóveis e silenciosos, com inúmeras articulações.

Quase tão depressa como havia aparecido, a vasta e solitária câmara desapareceu atrás dele. Sua passagem deixou uma sensação de medo na mente de Alvin, pois pela primeira vez compreendia realmente o significado daquele grande mapa obscurecido debaixo de Diaspar. O mundo estava mais cheio de maravilhas do que ele jamais sonhara.

Alvin relanceou os olhos novamente pelo indicador. Não mudara. A passagem pela grande caverna levara menos de um minuto. A máquina estava acelerando novamente, embora a sensação de movimento fosse mínima, as paredes do túnel passavam a uma velocidade, de ambos os lados, que ele não podia sequer estimar.

Após um tempo que pareceu um século, ocorreu novamente a indefinível modificação da vibração. Agora o indicador dizia:

LYS 1 MINUTO

e esse minuto foi o mais longo que Alvin já havia experimentado. A máquina diminuía de velocidade. Ela estava chegando a seu destino.

Sem solavancos e silenciosamente, o longo cilindro emergiu do túnel e entrou numa caverna que era a réplica da que havia em Diaspar. Por um momento, Alvin sentiu-se excitado demais para ver qualquer coisa com clareza, a porta permaneceu aberta por um tempo considerável antes que ele compreendesse que poderia deixar o veículo. Enquanto saía apressadamente, teve um último relance do indicador. A mensagem mudara e era infinitamente tranqüilizadora:

DIASPAR 35 MINUTOS

Enquanto se punha a procurar uma saída da caverna, Alvin teve o primeiro indício de que talvez estivesse numa civilização diferente da sua. O caminho para a superfície estendia-se claramente através de um túnel baixo e largo, numa das extremidades da caverna — e dele saía um lance de escadas. Escadas eram coisas extremamente raras em Diaspar. Os arquitetos da cidade haviam construído rampas ou corredores inclinados sempre que havia uma mudança de nível. Isso era um resquício dos tempos em que, em sua maioria, os robôs eram montados sobre rodas e por isso encontravam nos degraus uma barreira intransponível.

A escadaria era curta e terminava diante de portas que se abriram automaticamente ante a aproximação de Alvin. Entrou numa pequena câmara, semelhante à que o transportara pelo poço sob o Túmulo de Yarlan Zey, e não se surpreendeu quando, minutos depois, as portas se abriram de novo para revelar um corredor abobadado que subia até uma arcada que emoldurava um semicírculo de céu. Não havia nenhuma sensação de movimento, mas Alvin sabia que devia ter subido uma longa distância. Subiu correndo a rampa até a abertura ensolarada, esquecido de todos os temores na ânsia de verificar o que havia para ser visto.

Ele estava de pé no alto de uma colina baixa, e por um instante teve a impressão de que estava novamente no parque central de Diaspar. No entanto, se aquilo era um parque, era demasiado colossal para que sua mente o abarcasse. A cidade que ele tinha esperado ver não era visível em parte alguma. Até onde a vista alcançava, só havia florestas e planícies relvadas.

Então Alvin ergueu os olhos para o horizonte, e lá, acima das árvores, estendendo-se da direita para a esquerda num grande arco que abarcava o mundo, havia uma linha de pedra que teria reduzido a um nada os mais pujantes gigantes de Diaspar. Estava tão distante que seus detalhes confundiam-se numa mancha indistinta, mas alguma coisa em sua conformação intrigou Alvin. Por fim seus olhos se habituaram à escala daquela paisagem colossal, e ele percebeu que aquelas muralhas longínquas não eram construção humana.

O Tempo não havia conquistado tudo, a Terra ainda possuía montanhas de que se orgulhar.

Por muito tempo Alvin permaneceu à boca do túnel, procurando adaptar-se àquele mundo estranho. Sentia-se um tanto atônito pelo impacto das dimensões e do espaço, aquele anel de montanhas nevoentas poderia conter cerca de uma dezena de cidades do tamanho de Diaspar e, no entanto, Alvin não percebia nenhum vestígio de vida humana, muito embora a estrada que descia a colina parecesse bem conservada. Não havia coisa melhor a fazer senão seguir por ela.

Ao pé do outeiro, a estrada desaparecia entre grandes árvores, que quase ocultavam o sol. Quando penetrou na sombra, foi saudado por uma estranha mistura de aromas e sons. Alvin já conhecia o rumorejar do vento nas folhas, mas não daquele jeito, sublinhado por um milhão de vagos ruídos que nada significavam para ele. Assaltavam-no cores desconhecidas, bem como odores há muito perdidos na memória de sua raça. O calor, a profusão de perfumes e cores, bem como a presença invisível de um milhão de seres vivos o atingiam com uma violência quase física.

Alvin deu com o lago sem qualquer aviso. A direita, as árvores terminaram de repente, e diante dele surgiu uma enorme massa de água interrompida por ilhotas. Jamais em sua vida vira tanta água, as maiores piscinas de Diaspar não passavam de poças, comparadas com aquela massa de água. Alvin caminhou devagar até a margem do lago e colheu a água morna entre as mãos, deixando que ela lhe escorresse entre os dedos.

O grande peixe prateado que repentinamente forçou passagem entre os juncos aquáticos foi a primeira criatura não humana que Alvin viu. O peixe deveria ter-lhe parecido inteiramente estranho, mas no entanto sua forma feriu-lhe a mente com uma singular familiaridade. Pairando ali, no pálido vazio verde, onde suas nadadeiras formavam uma esmaecida mancha de movimento, o peixe parecia a verdadeira corporificação de força e velocidade. Ali, incorporadas em carne viva, estavam as linhas graciosas das poderosas naves que um dia haviam dominado os céus da Terra. A evolução e a ciência tinham chegado às mesmas respostas. E o trabalho da natureza durara mais.

Por fim, Alvin quebrou o encantamento que lhe provocava o lago e continuou a caminhar pela estrada batida pelo vento. Mais uma vez a floresta fechou-se a seu redor, mas apenas por um curto espaço, pois a estrada não demorou a desembocar numa grande clareira de quase um quilômetro de largura e cerca de dois quilômetros de comprimento — e Alvin compreendeu por que não havia percebido até então nenhum vestígio humano.

A clareira estava repleta de edifícios baixos, de dois pavimentos, pintados com cores suaves, que descansavam a vista mesmo ao clarão do sol. A maioria era de arquitetura simples, porém muitos apresentavam um complexo estilo arquitetônico, que envolvia a utilização de colunas esfriadas e pedras graciosamente engastadas. Naqueles edifícios, que pareciam muito antigos, repetia-se o invento incomensuravelmente remoto da ogiva.

Enquanto se aproximava da vila, Alvin ainda lutava por compreender aquele novo ambiente. Nada lhe era familiar. Até mesmo o ar mudara, com sua insinuação de vida palpitante e desconhecida. E as pessoas altas que passavam entre os prédios, com graça inconsciente, eram obviamente de uma raça diferente da dos homens de Diaspar.

Não tomaram conhecimento de Alvin, o que não deixava de ser estranho, pois as roupas que ele usava eram completamente diferentes das deles. A temperatura em Diaspar jamais se modificava e por isso as roupas eram puramente ornamentais e muitas vezes extremamente complicadas. Ali, os trajes pareciam sobretudo funcionais, projetados mais para serem usados do que exibidos, e freqüentemente consistiam, por isso, em um único pedaço de pano envolvendo o corpo.

Só quando Alvin já se encontrava dentro da vila é que a população de Lys reagiu à sua presença. E então a reação assumiu uma forma um tanto inesperada. De dentro de uma das casas saiu um grupo de cinco homens, que se puseram a caminhar diretamente para ele — como se, na verdade, o estivessem esperando: Alvin sentiu uma excitação súbita e violenta. O sangue quase se congelou em suas veias. Pensou em todos os encontros fatídicos que os homens deviam ter tido com raças diferentes em mundos distantes. Aqueles seres que se aproximavam dele agora eram obviamente de sua própria espécie, mas até que ponto teriam divergido nas eternidades que os separavam de Diaspar?

A delegação deteve-se a alguns passos de Alvin. O líder do grupo sorriu, estendendo a mão no remoto gesto de amizade.

— Achamos melhor recebê-lo aqui — disse. — Nossas moradias são muito diferentes das de Diaspar e a caminhada desde a estação dá aos visitantes oportunidade de… se aclimatarem.

Alvin aceitou a mão estendida, mas por um instante não pôde responder, tomado de surpresa. Agora compreendia por que todos os outros aldeões o haviam ignorado tão completamente..

— Sabiam que eu estava vindo? — perguntou por fim.

— Claro. Sempre sabemos quando os veículos se põem em movimento. Diga… Como foi que descobriu o caminho? Tanto tempo já passou desde a última visita, que tínhamos medo de que o segredo se houvesse perdido.

O orador foi interrompido por um de seus companheiros.

— Creio que seria melhor refrear nossa curiosidade, Gerane. Seranis está esperando.

O nome «Seranis» foi precedido de uma palavra desconhecida que Alvin supôs ser alguma espécie de título. Não teve dificuldade para compreender as outras, e em momento algum ocorreu-lhe pudesse haver alguma coisa de surpreendente nisso. Diaspar e Lys partilhavam a mesma herança lingüística, e a remota invenção da gravação dos sons congelara há muito a fala num modelo inquebrável.

Gerane encolheu os ombros, num gesto de fingida resignação:

— Muito bem — sorriu. — Seranis goza de poucos privilégios… Não devo privá-la deste.

Enquanto caminhavam pela vila, Alvin estudava os homens que o acompanhavam. Pareciam bondosos e inteligentes, mas essas eram virtudes que ele havia considerado como naturais durante toda a vida, e o que ele estava procurando eram maneiras de distingui-los dos habitantes de Diaspar. Existiam diferenças, mas era difícil defini-las. Os homens dali eram um pouco mais altos do que Alvin, e dois deles mostravam marcas inequívocas de idade física. Tinham a pele bem morena, e em todos seus movimentos pareciam irradiar um vigor e uma alegria que Alvin achava agradáveis, ainda que, ao mesmo tempo, um tanto desconcertantes. Sorriu ao se lembrar da profecia de Khedron — a de que, se jamais chegasse a Lys, veria que era exatamente igual a Diaspar.

A população da vila olhava-o agora com franca curiosidade, enquanto Alvin acompanhava seus guias, já não havia nenhuma pretensão de encará-lo naturalmente. De repente, partiram gritos altos e estridentes das árvores à direita, e um grupo de criaturas pequenas e excitadas irrompeu do bosque e cercou Alvin. Ele parou, espantadíssimo, não acreditando em seus olhos. Ali estava uma coisa que seu mundo havia perdido há tanto tempo que agora era uma coisa relegada ao domínio da mitologia. Era assim que a vida começava, antigamente, aquelas criaturas barulhentas e fascinantes eram crianças humanas.

Alvin as olhava com meditativa incredulidade — e com uma outra sensação que lhe fazia disparar o coração, mas que ainda não era capaz de identificar. Nenhum outro sinal faria com que ele sentisse tão profundamente a distância do mundo que ele conhecia. Diaspar havia pago, e plenamente, o preço da imortalidade.

A comitiva deteve-se diante do maior edifício que Alvin já vira ali. Erguia-se no centro da aldeia e, de um mastro na pequena torre circular, uma flâmula verde balançava ao vento.

Todos, menos Gerane, se deixaram ficar para trás quando ele penetrou no edifício. Dentro, havia silêncio e frescor, a luz do sol filtrando-se através de paredes translúcidas banhava todas as coisas com um fulgor macio e repousante. O chão era liso e resistente, recoberto de belos mosaicos. Nas paredes, um artista de grande habilidade e força pintara um conjunto de cenas florestais. Juntamente com essas pinturas havia outros murais que nada significavam para Alvin, embora fossem atraentes e agradáveis à vista. Numa parede estava embutida uma tela cheia de um labirinto de cores em contínua mutação — provavelmente um receptor de visifonia, ainda que pequeno.

Subiram uma curta escadaria circular, que os deixou no terraço plano do edifício. Dali, podia-se ver toda a vila e Alvin observou que ela consistia em aproximadamente cem prédios. A distância, as árvores abriam-se para circundar amplas campinas, onde pastavam animais de várias espécies diferentes. Alvin não sabia imaginar que animais seriam aqueles. A maioria era formada de quadrúpedes, mas alguns pareciam possuir seis ou mesmo oito pernas.

Seranis aguardava-o na sombra da torre. Alvin ficou a imaginar quantos anos ela teria, seus longos cabelos dourados começavam a encanecer, o que, supunha ele, devia ser alguma indicação de idade. A presença de crianças, com todas as conseqüências que isso implicava, deixara-o confuso. Onde havia nascimento, seguramente devia haver morte, e o período de vida ali em Lys devia ser bastante diferente do de Diaspar. Ser-lhe-ia difícil dizer que Seranis tinha cinqüenta, quinhentos ou cinco mil anos, mas olhando dentro de seus olhos, percebeu aquela sabedoria e aquela maturidade que ele às vezes sentia quando estava com Jeserac.

Ela lhe indicou uma banqueta, e embora seus olhos sorrissem acolhedoramente, nada disse até Alvin ter-se instalado à vontade — coisa um tanto difícil em face daquele intenso escrutínio, ainda que cordial. Depois suspirou e dirigiu-se a ele em voz baixa, gentil:

— Esta é uma ocasião que não surge muitas vezes, e por isso queira me desculpar se eu não conhecer a conduta correta. Há certos direitos e deveres que se prestam a um hóspede, mesmo inesperado. Antes de começarmos a conversar, preciso adverti-lo de uma coisa. Posso ler seu pensamento.

Sorriu ao notar a consternação de Alvin, e acrescentou rapidamente:

— Não há por que se preocupar. Nenhum direito é mais respeitado aqui do que o da intimidade mental. Só poderei entrar em sua mente se você me convidar. Mas não seria justo ocultar-lhe esse fato, e isso explica por que achamos a fala um meio de comunicação um tanto lento e difícil. A palavra é coisa pouco utilizada entre nós.

A revelação, embora um tanto alarmante, não chegou a surpreender Alvin. No passado, tanto os homens como as máquinas tinham possuído esse poder, e as máquinas, imutáveis, ainda eram capazes de ler as ordens de seus senhores. Mas em Diaspar o homem perdera esse dom que antes compartilhara com seus escravos.

— Não sei o que foi que o trouxe de seu mundo para o nosso — continuou Seranis —, mas, se o que você procura é vida, sua busca chegou ao fim. À exceção de Diaspar, só existe deserto além de nossas montanhas.

Foi estranho que Alvin, que com tanta freqüência havia contestado crenças universais no passado, não duvidasse das palavras de Seranis. Sua única sensação foi de tristeza pelo fato de as coisas que ele havia aprendido serem quase totalmente verdadeiras.

— Fale-me de Lys — ele pediu. — Por que permaneceram afastados de Diaspar por tanto tempo, se parecem saber tantas coisas a nosso respeito?

Seranis achou graça de sua ânsia.

— Daqui a pouco — ela disse. — Primeiro eu gostaria de saber alguma coisa de você. Diga-me como descobriu o caminho para cá e por que veio.

Vacilante a princípio, e depois com crescente segurança, Alvin contou sua história. Jamais tinha falado com tanta liberdade, afinal encontrava alguém que não ria de seus sonhos, por sabê-los verdadeiros. Por uma ou duas vezes Seranis o interrompeu com rápidas perguntas, quando ele se referia a algum aspecto de Diaspar desconhecido para ela. Era difícil para Alvin imaginar que coisas que faziam parte de sua vida diária não tivessem sentido para alguém que nunca vivera na cidade e que nada sabia de sua complexa cultura e organização social. Seranis o ouvia com tal simpatia que ele tomava sua compreensão como pacífica, não foi senão mais tarde que ele compreendeu que muitas outras mentes, além da dela, estavam ouvindo suas palavras.

Quando terminou, houve alguns momentos de silêncio. Depois, Seranis olhou-o e disse rapidamente:

— Por que você veio a Lys?

Alvin surpreendeu-se com a pergunta.

— Eu lhe disse — respondeu. — Eu queria explorar o mundo. Todos me diziam que só havia o deserto além da cidade, e eu queria ver com meus próprios olhos.

— E foi essa a única razão?

Alvin hesitou. Quando respondeu, afinal, não era o explorador indômito quem falava, mas a criança perdida nascida num mundo alienígena.

— Não — disse lentamente. — Não foi essa a única razão… Ainda que não soubesse disso até agora, sentia-me solitário.

— Solitário? Em Diaspar? — Seranis sorria, mas havia compreensão em seus olhos, e Alvin percebeu que ela não esperava maiores explicações.

Agora que havia contado toda sua história, esperou que ela cumprisse o prometido. Seranis então levantou-se e começou a andar de um lado para outro.

— Sei quais são as perguntas que você quer fazer — ela disse. — Algumas eu posso responder, mas seria cansativo fazê-lo em palavras. Se você abrir-me sua mente, eu lhe direi o que precisa saber. Pode confiar em mim. Nada tirarei de você sem sua permissão.

— Que quer que eu faça? — perguntou Alvin cautelosamente.

— Que aceite minha ajuda… olhe para meus olhos… e esqueça-se de tudo — ordenou Seranis.

Alvin não saberia nunca dizer o que lhe aconteceu. Houve um eclipse total de seus sentidos, e embora não se lembrasse de havê-lo adquirido, quando olhou para dentro de sua mente o conhecimento estava lá.

Ele pôde olhar o passado, não de maneira clara, mas como um homem do alto de uma montanha veria uma planície nevoenta. Compreendeu que o Homem nem sempre havia sido um habitante de cidades e que, desde que as máquinas o haviam libertado do trabalho, surgira uma rivalidade entre dois tipos diferentes de civilização. Nas Eras do Alvorecer tinham existido milhares de cidades, mas grande parte da humanidade preferira viver em comunidades relativamente pequenas. O transporte universal e as comunicações instantâneas lhe davam todo o contato necessário com o resto do mundo, e não sentiam nenhuma necessidade de viver amontoados com milhões de seres de sua espécie.

Lys pouco diferia, nos primeiros dias, de centenas de outras comunidades. Mas gradualmente, no transcurso das eras, adquirira uma cultura diferente, uma das mais altas que a humanidade jamais conhecera. Era uma cultura baseada fundamentalmente no uso direto do poder mental, e isso a apartou do resto da sociedade humana, que passava a confiar cada vez mais nas máquinas.

Através das eras, e à medida que seguiam caminhos diferentes, ampliou-se o abismo entre Lys e as outras cidades. Esse hiato só se fechava em épocas de grande crise, quando a Lua começou a cair, sua destruição foi empreendida pelos cientistas de Lys. O mesmo aconteceu com a defesa da Terra contra os Invasores, os quais foram detidos na batalha final de Shalmirane.

A grande provação havia exaurido a humanidade. Uma a uma, as cidades morreram e o deserto rolou sobre elas. Ao reduzir-se a população, teve início a migração que faria de Diaspar a última e a maior de todas as cidades.

A maioria dessas mudanças não afetou Lys, mas ela tinha sua própria batalha a ser travada — a luta contra o deserto. A barreira natural das montanhas não era suficiente, e muitas eras se passaram antes que o grande oásis fosse tornado seguro. Nesse ponto, as imagens se borravam, talvez por expressa deliberação. Alvin não podia ver o que dera a Lys a virtual eternidade que Diaspar havia conseguido.

A voz de Seranis parecia vir de grande distância — mas não era apenas sua voz, pois ela parecia fundida com uma sinfonia de palavras, como se muitas outras línguas falassem em uníssono com a dela.

— Essa, muito resumida, é nossa história. Você verá que mesmo nas Eras do Alvorecer tínhamos muito pouco em comum com as cidades, ainda que seus habitantes viessem muitas vezes à nossa terra. Nunca os impedimos, pois muitos de nossos maiores homens vieram do Exterior, mas, quando as cidades começaram a morrer, não quisemos ser envolvidos em sua derrocada. Com o fim do transporte aéreo, só restou um caminho para Lys — o sistema subterrâneo que parte de Diaspar. Esse caminho foi fechado lá, com a construção do Parque… e vocês nos esqueceram, embora nunca nos tenhamos esquecido de vocês.

«Diaspar surpreendeu-nos. Esperávamos que ela seguisse o destino das demais cidades, mas ao invés disso ela conseguiu formar uma cultura estável, capaz de ter a mesma duração da Terra. Não é uma cultura que conte com nossa admiração, mas ficamos felizes com o fato de que aqueles que desejaram escapar o tenham conseguido. Muito mais gente do que você imagina empreendeu a viagem, e quase sempre foram homens extraordinários, que trouxeram consigo alguma coisa de valor quando vieram para Lys.»

A voz desvaneceu-se, a paralisia dos sentidos de Alvin diminuiu e ele voltou a si. Viu com espanto que o Sol havia mergulhado sob as árvores, e que a leste o céu já tinha sombras da noite. Em algum lugar vibrou um grande sino, com uma pulsação que morreu lentamente, deixando o ar tenso de mistério e premonições. Alvin deu consigo tremendo de leve, não por causa do primeiro toque do frio da noite, mas em conseqüência do assombro que lhe causava tudo aquilo que acabara de aprender. Já era muito tarde e estava longe de casa. Sentiu súbita necessidade de rever seus amigos e achar-se entre os aspectos e as cenas familiares de Diaspar.

— Tenho de voltar — disse. — Khedron… meus pais… eles estão me esperando.

Isso não era exatamente verdade. Khedron com toda certeza estaria pensando no que lhe acontecera, mas Alvin tinha plena certeza de que ninguém mais sabia que havia abandonado Diaspar. Não podia explicar o motivo da pequena fraude de que lançara mão, e sentiu-se ligeiramente envergonhado tão logo pronunciou as palavras.

Seranis olhou-o pensativamente.

— Receio que as coisas não sejam assim tão fáceis — disse.

— O que quer dizer? — perguntou Alvin. — O veículo que me trouxe não pode levar-me de volta? — Ele ainda se recusava a enfrentar o fato de que poderia ser mantido em Lys contra a vontade, ainda que essa idéia tivesse passado rapidamente por sua mente.

Pela primeira vez, Seranis parecia ligeiramente embaraçada.

— Nós estivemos conversando a seu respeito — explicou, sem especificar quem faria parte do «nós», nem exatamente como haviam conferenciado. — Se você voltar para Diaspar, toda a cidade ficará sabendo de nós. Mesmo que você prometesse não dizer nada, seria impossível manter o segredo.

— E por que desejam que isso fique em segredo? — perguntou Alvin. — Evidentemente, seria ótimo para ambos os povos se voltassem a se encontrar.

Seranis mostrou desagrado.

— Não pensamos assim. Se os portões fossem abertos, nossa terra seria invadida por curiosos indolentes e caçadores de sensações. Da maneira como as coisas estão, só os melhores dentre sua gente chegaram até aqui.

Essa resposta irradiava tanta superioridade inconsciente, posto que baseada em falsas premissas, que Alvin sentiu um aborrecimento que prontamente superava seu alarme.

— Isso não é verdade — disse secamente. — Não creio que vocês encontrassem outra pessoa em Diaspar disposta a deixar a cidade, mesmo que pudesse… mesmo que soubesse que há outro lugar para onde ir. Se eu voltasse, isso não causaria nenhuma diferença a Lys.

— Essa decisão não é minha — explicou Seranis — e você está subestimando os poderes da mente, se julga que as barreiras que isolam seu povo nunca poderão ser quebradas. Não desejamos mantê-lo aqui contra sua vontade, mas se você regressar a Diaspar teremos de cancelar de sua mente todas as lembranças de Lys. — Hesitou por um instante. — Essa questão nunca surgiu antes. Todos os seus antecessores que vieram, foi para ficar.

Aquela era uma opção que Alvin se recusava a aceitar. Ele queria explorar Lys, desvendar todos os segredos daquele mundo novo, descobrir em que ele se distinguia de Diaspar. Entretanto, estava igualmente resolvido a voltar, a fim de mostrar a seus amigos que não sonhara com coisas inexistentes. Não podia compreender as razoes que levavam a esse desejo de segredo, e mesmo que compreendesse, isso não teria feito diferença alguma em seu comportamento.

Compreendeu que devia ganhar tempo, ou então convencer Seranis de que aquilo que ela lhe pedia era impossível.

— Khedron sabe onde estou — disse. — Vocês não podem apagar as memórias dele.

Seranis sorriu. Era um sorriso agradável, que em outras circunstâncias teria sido bastante cordial. Contudo, por trás dele, Alvin divisou, pela primeira vez, a presença de um poder irresistível e implacável.

— Você nos subestima, Alvin — ela respondeu. — Isso seria facílimo. Posso chegar a Diaspar em menos tempo do que preciso para atravessar Lys. Outros homens já vieram aqui antes e disseram aos amigos para onde iam. No entanto, esses amigos esqueceram-se deles e eles desapareceram da história de Diaspar.

Fora tolice de Alvin ignorar essa possibilidade, bastante óbvia depois que Seranis a apontara. Pensou quantas vezes, nos milhões de anos decorridos desde a separação das duas culturas, homens de Lys não haveriam penetrado em Diaspar a fim de preservar o segredo ciosamente protegido. E imaginou até onde não iriam as forças mentais daquela gente estranha, forças que não hesitavam em utilizar.

Seria seguro fazer planos? Seranis prometera respeitar sua mente, mas Alvin imaginava se não haveria circunstâncias em que essa promessa não fosse cumprida…

— Evidentemente, vocês não esperam que eu tome uma decisão imediata — disse ele. — Posso conhecer o país antes de me decidir?

— Claro — respondeu Seranis. — Pode ficar quanto tempo quiser e retornar à sua cidade, se assim preferir. Mas se você se resolver dentro de poucos dias, as coisas serão muito mais fáceis. Você não quer que seus amigos fiquem preocupados, e quanto mais tempo você demorar mais difícil para nós será tomarmos as providências necessárias.

Alvin entendia isso, gostaria de saber exatamente que «providências» eram essas. Provavelmente alguém de Lys entraria em contato com Khedron — sem que o Bufão percebesse — e influenciaria sua mente. O desaparecimento de Alvin não poderia ser ocultado, mas as informações que ele e Khedron possuíam seriam obliteradas. Com o passar do tempo, o nome de Alvin se juntaria ao de outros Únicos que haviam desaparecido misteriosamente, sem deixar vestígios, e que agora estavam esquecidos.

Havia muitos mistérios em Lys, e ele não parecia perto de solucionar nenhum deles. Haveria algum propósito por trás da curiosa relação unilateral entre Lys e Diaspar, ou tratava-se apenas de um acidente histórico? Quem e o que eram os Únicos, e se a gente de Lys podia entrar em Diaspar, por que não cancelava os circuitos de memória que guardavam indícios de sua existência? Talvez fosse essa a única pergunta a que Alvin poderia dar resposta plausível. O Computador Central era adversário teimoso demais para ser manejado e dificilmente seria afetado mesmo pelas mais avançadas técnicas mentais…

Alvin pôs esses problemas de lado. Um dia, depois de ter aprendido muito mais coisas, poderia vir ter oportunidade de elucidá-los. Era ocioso especular, construir pirâmides de conjecturas sobre alicerces de ignorância.

— Muito bem — disse, embora a contragosto, pois ainda estava aborrecido com o surgimento daquele obstáculo inesperadamente posto em seu caminho. — Vou dar-lhe minha resposta assim que possível… se você me mostrar como é o seu mundo.

— Ótimo — respondeu Seranis, e dessa vez seu sorriso não encerrava qualquer ameaça oculta. — Temos orgulho de Lys è será um prazer mostrar como os homens podem viver sem a ajuda de cidades. Entrementes, não há necessidade de você se preocupar, seus amigos não ficarão alarmados com sua ausência. Cuidaremos disso, quando mais não seja para nossa própria proteção.

Era a primeira vez em sua vida que Seranis fazia uma promessa que não poderia cumprir.