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Por mais que tentasse, Alystra não conseguiu extrair maiores informações de Khedron. O Bufão havia-se recuperado rapidamente de seu choque inicial, bem como do pânico que o fizera subir correndo à superfície quando se viu só nas profundezas sob o Túmulo. Sentia-se também envergonhado de sua conduta covarde, e pensava consigo mesmo se algum dia teria forças para retornar à câmara das Vias Móveis e à rede de túneis que dali se irradiavam. Muito embora acreditasse que Alvin fora impaciente, senão temerário, não acreditava realmente que viesse a correr qualquer perigo. Estava certo de que mais cedo ou mais tarde voltaria. Isto é, quase certo, havia em seu espírito dúvida suficiente para fazer com que sentisse a necessidade de cautela. Decidiu que o mais sensato seria dizer o mínimo possível por enquanto, e tentar fazer com que tudo aquilo parecesse outro de seus gracejos.
Infelizmente, porém, não fora capaz de ocultar suas emoções quando Alystra o encontrou, ao voltar à superfície. Ela vira o medo inequivocamente gravado em seus olhos, interpretando-o desde logo como sinal de que Alvin corria perigo. Todas as garantias de Khedron de que isso não acontecia foram vãs, e ela se mostrava cada vez mais furiosa com ele enquanto voltavam pelo Parque. A princípio, Alystra manifestara desejo de permanecer no Túmulo, esperando que Alvin retornasse da mesma forma misteriosa que havia desaparecido. Khedron conseguira convencê-la de que isso seria perda de tempo, ficando aliviado quando ela resolveu acompanhá-lo de volta à cidade. Havia uma possibilidade de que Alvin voltasse quase logo, e Khedron não queria que outra pessoa descobrisse o segredo de Yarlan Zey.
Já ao chegarem à cidade, era patente a Khedron que suas táticas evasivas haviam fracassado redondamente e que a situação corria sério risco de escapar a seu controle. Era a primeira vez em sua vida que não sabia como proceder e que não se sentia capaz de resolver qualquer problema que surgisse. Seu medo imediato e irracional estava sendo aos poucos substituído por um alarme mais profundo e mais bem fundamentado. Até agora, Khedron sempre dera pouca atenção às conseqüências de seus atos. Seus próprios interesses, assim como uma leve, porém legítima, simpatia por Alvin, tinham sido suficientes para motivá-lo a fazer o que acabara de fazer. Conquanto tivesse dado ajuda e estímulo a Alvin, jamais acreditara que qualquer coisa daquele gênero pudesse de fato acontecer.
Apesar do abismo de anos e de experiência que os separava, a personalidade de Alvin sempre tinha sido mais forte do que a sua. Era tarde demais agora para remediar isso, para Khedron, os acontecimentos estavam levando-o de roldão para um clímax inteiramente além de seu controle.
Em vista disso, era um pouco injusto que Alystra obviamente o considerasse a ovelha-negra de Alvin e se mostrasse inclinada a culpá-lo de tudo quanto acontecera. Alystra não era realmente vingativa, mas estava transtornada e parte desse sentimento era descarregado sobre Khedron. Se qualquer ato seu causasse prejuízo ao Bufão, ela seria a última pessoa a lamentá-lo.
Despediram-se num silêncio pétreo quando chegaram ao grande caminho circular que circundava o Parque. Khedron viu a moça desaparecer na distância, imaginando com cansaço que planos estaria ela arquitetando.
Só havia uma coisa de que podia estar seguro. Durante muito tempo não correria qualquer perigo de tédio.
Alystra agiu rapidamente e com inteligência. Não se deu ao trabalho de procurar Eriston e Etania. Os pais de Alvin eram pessoas medíocres, por quem sentia afeição, mas nenhum respeito. Só perderiam tempo em discussões estéreis, e depois fariam exatamente o que Alystra estava fazendo agora.
Jeserac escutou-lhe a história sem qualquer emoção visível. Se estava alarmado ou surpreso, ocultou-o bem — tão bem, na verdade, que Alystra se sentiu desapontada. Parecia-lhe que nada tão importante como aquilo já havia acontecido no passado, e o comportamento sereno de Jeserac decepcionou-a. Quando acabou de falar, ele a interrogou prolongadamente, insinuando, sem dizer claramente, que ela poderia ter cometido um engano. Que razão teria para supor que Alvin havia realmente deixado a cidade? Talvez tudo aquilo não passasse de uma brincadeira às suas custas, o fato de Khedron estar envolvido naquilo tornava essa possibilidade altamente provável. Naquele exato momento, escondido em algum lugar de Diaspar, Alvin poderia estar rindo dela.
A única reação positiva que ela obteve junto a Jeserac foi a promessa de que faria investigações e entraria em contato com ela novamente no dia seguinte. Nesse ínterim, que ela não se preocupasse, ademais, seria melhor não comentar nada com ninguém a respeito do caso. Não havia por que semear o alarme com relação a um incidente que provavelmente estaria resolvido dentro de poucas horas.
Alystra saiu de seu encontro com Jeserac sentindo-se ligeiramente frustrada. No entanto, teria ficado mais satisfeita se visse o comportamento do ancião assim que ela saiu.
Jeserac tinha amigos no Conselho, ele próprio havia participado da junta em sua longa vida, e poderia voltar a fazê-lo se não tivesse sorte. Chamou três de seus colegas mais influentes e, cautelosamente, despertou-lhes o interesse. Como tutor de Alvin, estava ciente de sua própria posição, bastante delicada, e estava ansioso por salvaguardar-se. Por ora, quanto menos pessoas soubessem o que havia acontecido, melhor.
Houve concordância unânime em que a primeira coisa a fazer era entrar em contacto com Khedron e pedir-lhe explicações. Só havia um problema nesse plano. Khedron previra que isso aconteceria e não podia ser encontrado em parte alguma.
Se havia alguma ambigüidade com relação à situação de Alvin, seus anfitriões tiveram todo cuidado de não deixar que ele a percebesse. Tinha liberdade para ir onde quisesse em Airlee, a pequena aldeia governada por Seranis — embora governar fosse palavra forte demais para definir sua função. As vezes parecia a Alvin que ela era uma ditadora benevolente, às vezes parecia-lhe que ela não exercia absolutamente poder algum. Até agora não havia compreendido nada do sistema social de Lys, fosse por ser simples demais ou por ser de tal modo complexo que suas ramificações lhe escapavam. Tudo que ele havia descoberto com certeza era que Lys estava dividida em inúmeras vilas, das quais Airlee era exemplo bastante típico. No entanto, em certo sentido não havia exemplos típicos, pois haviam garantido a Alvin que cada vila procurava ser o mais diferente possível da vizinha. Tudo era extremamente confuso.
Conquanto fosse muito pequena, possuindo menos de mil habitantes, Airlee encerrava muitas surpresas. Não havia praticamente um só aspecto da vida que não diferisse de seu equivalente em Diaspar. As diferenças chegavam mesmo a coisas tão básicas como a linguagem. Apenas as crianças usavam a voz para a comunicação normal, os adultos praticamente nunca falavam, e depois de algum tempo Alvin concluiu que quando o faziam era por deferência a ele. Tratava-se de experiência curiosamente frustrante sentir-se enredado numa enorme teia de palavras sem som e indetectáveis, mas após algum tempo Alvin habituou-se. Parecia surpreendente até que a fala vocal houvesse sobrevivido, uma vez que já não tinha qualquer serventia, mais tarde, porém, Alvin descobriu que a gente de Lys amava o canto e, na verdade, todas as formas de música. Sem esse incentivo, era bastante provável que há muito tivessem ficado inteiramente mudos.
Estavam todos sempre ocupados, empenhados em tarefas ou problemas que em geral Alvin não compreendia. Quando entendia o que estavam fazendo, grande parte desse trabalho lhe parecia inteiramente desnecessário. Por exemplo, parte substancial de seus alimentos era cultivada, e não sintetizada de acordo com padrões determinados remotamente no passado. Quando Alvin comentou a esse respeito, explicaram-lhe pacientemente que a gente de Lys gostava de ver as coisas crescerem, realizar complicadas experiências genéticas, adquirir gostos e paladares cada vez mais sutis. Airlee era famosa por suas frutas, mas quando Alvin provou algumas, não lhe pareceram melhores do que as que ele poderia obter em Diaspar sem esforço maior do que levantar um dedo.
A princípio, imaginou se o povo de Lys teria esquecido — ou se nunca possuíra — os poderes e as máquinas que ele tomava como naturais e sobre as quais se baseava toda a vida em Diaspar. Logo percebeu não ser esse o caso. As ferramentas e o conhecimento existiam, mas só eram usados quando essenciais. O exemplo mais notável disso era proporcionado pelo sistema de transportes, se é que merecia tal nome. Para distâncias curtas, as pessoas andavam, e pareciam gostar. Se tinham pressa ou precisavam transportar pequenas cargas, usavam animais que obviamente tinham sido desenvolvidos para esse fim. A espécie de carga era um animal baixo, de seis pernas, muito dócil e forte, mas carente de inteligência. Os animais de corrida pertenciam a uma raça totalmente diferente, normalmente andavam sobre as quatro patas, mas utilizavam somente seus musculosos membros traseiros quando ganhavam forte velocidade. Podiam atravessar toda a extensão de Lys em poucas horas, e o passageiro viajava num assento dotado de eixo e atado ao lombo da criatura. Nada no mundo teria induzido Alvin a se arriscar a uma viagem dessas, ainda que tais corridas representassem esporte dos mais populares entre os rapazes. Seus corcéis eram os aristocratas do mundo animal, e tinham plena consciência disso. Possuíam um vocabulário bastante extenso e Alvin entreouviu-os conversando jactanciosamente entre si sobre vitórias passadas e futuras. Mas, quando procurava ser cordial e tomar parte na conversa, fingiam não ser capazes de compreendê-lo e, se persistia, saíam marchando aos solavancos, com ar de ofendida dignidade.
Esses dois tipos de animal bastavam a todas as necessidades comuns, e proporcionavam a seus proprietários grande soma de prazer que nenhum artifício mecânico poderia ter sobrepujado. Mas quando se faziam necessárias altas velocidades, ou quando era preciso movimentar cargas enormes — então entravam em cena as máquinas, usadas sem hesitação.
Ainda que a vida animal de Lys apresentasse a Alvin todo um mundo novo de interesses e surpresas, eram os dois extremos da população humana que mais o fascinavam. Os muito jovens e os muito velhos — ambos eram igualmente estranhos e igualmente assombrosos. O habitante mais idoso de Airlee não teria atingido seu segundo século — e dispunha apenas de mais alguns anos de vida. Quando ele tivesse chegado àquela idade, lembrou-se Alvin, seu corpo quase não se teria alterado — ao passo que aquele velho, que não podia consolar-se, como compensação, na esperança de vidas futuras, já havia quase esgotado suas forças físicas. Os cabelos estavam completamente brancos e seu rosto era uma massa inacreditavelmente intrincada de rugas. Parecia passar a maior parte do tempo sentado ao Sol, ou caminhando vagarosamente em torno da vila, trocando saudações com todos quanto encontrava. Até onde Alvin podia perceber, mostrava-se inteiramente satisfeito, não pedindo mais da vida, nem se mostrando aflito com o fim que se avizinhava.
Ali estava uma filosofia tão discrepante da de Diaspar que escapava inteiramente ao entendimento de Alvin. Por que haveria uma pessoa de aceitar a morte, se ela era tão desnecessária, quando se tinha a opção de viver mil anos e depois saltar adiante, através dos milênios, e começar de novo num mundo que havia ajudado a formar? Isso era um mistério que ele estava resolvido a desvendar tão logo tivesse oportunidade de discuti-lo com franqueza. Era dificílimo para ele acreditar que Lys houvesse feito essa opção por livre vontade, no caso de saber que havia alternativa.
Parte da resposta ele a encontrava entre as crianças, aquelas criaturinhas que lhe eram tão estranhas quanto os animais de Lys. Passava muito tempo entre elas, vendo-as brincar e sendo por fim aceito por elas como amigo. Por vezes lhe parecia que não fossem absolutamente humanas, uma vez que seus motivos, sua lógica e até mesmo sua linguagem eram tão exóticas. Alvin olhava incredulamente para os adultos e se perguntava como era possível que houvessem brotado daquelas criaturas extraordinárias que pareciam passar a maior parte da vida em seu mundo privado.
Ainda assim, embora não as compreendesse, despertavam em seu coração um sentimento que jamais havia conhecido. Quando rompiam em lágrimas de frustração ou desespero — o que não era comum, mas às vezes acontecia —, seus insignificantes desapontamentos pareciam-lhe mais trágicos do que toda a longa retirada do Homem após a perda de seu Império Galático. Isso era algo por demais grandioso e remoto para sua compreensão, mas o choro de uma criança era capaz de transpassar o coração de uma pessoa.
Alvin havia encontrado amor em Diaspar, mas agora estava aprendendo uma coisa igualmente preciosa, e sem a qual o próprio amor jamais conseguiria alcançar a suprema realização, permanecendo para sempre incompleto — estava aprendendo a conhecer a ternura.
Se Alvin estava estudando Lys, esta também o estudava, sem insatisfação com o que havia descoberto. Alvin já estava há três dias em Airlee quando Seranis lhe sugeriu que fosse um pouco mais longe e visse mais coisas. Foi uma proposta que ele aceitou imediatamente — sob a condição de não ter de viajar num dos tão admirados animais de corrida da vila.
— Posso garantir-lhe — disse Seranis, numa rara demonstração de humor — que ninguém aqui sonharia em arriscar um de seus preciosos animais. Como este é um caso excepcional, providenciarei uma forma de transporte na qual você se sinta mais à vontade. Hilvar será seu guia, mas é claro que você poderá ir aonde quiser.
Alvin perguntou a si mesmo se isso seria rigorosamente verdade. Imaginou se não haveria objeção se tentasse voltar ao outeiro de cujo topo vira Lys pela primeira vez. Contudo, isso não o preocupava por ora, uma vez que não tinha pressa em voltar para Diaspar, na verdade, pouca atenção dedicara ao problema de sua volta desde seu encontro inicial com Seranis. A vida ali era tão interessante e diferente, que ainda estava satisfeito em viver o presente.
Apreciou o gesto de Seranis, oferecendo-lhe o filho como guia, conquanto não restasse dúvidas de que Hilvar recebera instruções precisas no sentido de evitar que ele criasse problemas. Alvin havia levado algum tempo para se acostumar com Hilvar, por um motivo que não lhe podia explicar muito bem sem melindrá-lo. A perfeição física era tão universal em Diaspar que a beleza pessoal perdera totalmente o significado, não era mais notada do que o ar que se respirava. O mesmo não ocorria em Lys e a qualificação mais lisonjeira que se poderia aplicar a Hilvar era «sem graça». Segundo os padrões de Alvin, ele era simplesmente feio, e durante algum tempo deliberadamente o evitou. Se Hilvar percebeu, não deu qualquer demonstração, não tardando que sua cordialidade amena rompesse a barreira entre eles. Chegaria um dia em que Alvin de tal modo se acostumaria ao sorriso largo e mais torto de Hilvar, à sua força e à sua cordura, que mal acreditaria que jamais o tivesse achado repelente, e não gostaria que ele se modificasse por nenhum motivo.
Deixaram Airlee logo ao romper da aurora, num pequeno veículo que Hilvar chamava de carro terrestre e que aparentemente funcionava segundo o mesmo princípio que a máquina que trouxera Alvin de Diaspar. Flutuava no ar alguns centímetros sobre a relva e, embora não houvesse nenhum sinal de canil, Hilvar lhe disse que os carros só podiam correr em rotas predeterminadas. Todos os centros populacionais estavam ligados dessa maneira, mas durante toda sua estada em Lys, Alvin nunca viu outro carro terrestre em funcionamento.
Hilvar dedicara muito esforço na organização daquela expedição, e evidentemente estava tão ansioso por tomar parte nela quanto Alvin. Havia planejado o trajeto tendo em mente seus próprios interesses, pois a história natural era a paixão de sua vida, e ele nutria esperanças de encontrar novos tipos de insetos nas regiões relativamente pouco habitadas de Lys pelas quais passariam. Pretendia chegar ao ponto mais meridional que a máquina os levasse, o resto da viagem teria de ser feito a pé. Sem compreender as implicações disso, Alvin não opôs objeção.
Tinham com eles, na viagem, um companheiro — Krif, o mais espetacular dos animais de estimação de Hilvar. Quando estava descansando, as seis asas diáfanas de Krif permaneciam dobradas sobre o seu corpo, o qual reluzia através delas como um cetro cravejado de gemas. Se alguma coisa o incomodava, elevava-se no ar com um adejar iridescente e um ligeiro rumorejar de asas invisíveis. Ainda que o grande inseto atendesse quando chamado e atendesse — às vezes — a ordens simples, era quase totalmente desprovido de cérebro. No entanto, possuía decididamente personalidade própria e, por algum motivo, suspeitava de Alvin, cujas tentativas esporádicas de ganhar sua confiança sempre terminavam em fracasso.
Para Alvin a viagem por Lys tinha algo de sonho. Silenciosa como um espectro, a máquina deslizava pelas planícies ondulantes e contornava florestas, jamais se desviando de seu trilho invisível. Viajava a uma velocidade de aproximadamente dez vezes a de um homem caminhando sem pressa: na verdade, raramente um habitante de Lys experimentava maior velocidade.
Passaram por muitas vilas, algumas maiores do que Air-lee, mas a maioria construída de modo bastante análogo. Alvin interessou-se em notar as diferenças sutis, mas substanciais, no vestuário e até mesmo no aspecto físico entre uma comunidade e outra. A civilização de Lys compunha-se de centenas de culturas distintas, cada uma das quais contribuía com algum talento especial para a totalidade. O carro terrestre levava bom estoque do mais famoso produto de Airlee, um minúsculo pêssego amarelo que era recebido com gratidão sempre que Hilvar distribuía algumas amostras. Muitas vezes parava para conversar com amigos e apresentá-los a Alvin, que nunca deixava de ficar impressionado pela cortesia simples com que todos usavam a voz tão logo ficavam a par de quem era ele. Isso devia ser-lhes muitas vezes bastante incômodo, mas, ao que lhe era dado perceber, sempre resistiam à tentação de usar a telepatia e Alvín jamais se sentia excluído da conversa.
Fizeram pausa mais longa numa vila minúscula, quase oculta por um mar de altos ervais dourados que subiam bem acima de suas cabeças e ondulavam à brisa como se dotados de vida. Ao passarem por eles, eram continuamente afagados por ondas incessantes, enquanto lâminas incontáveis curvavam-se em uníssono sobre eles. A princípio, isso era ligeiramente aborrecido, pois Alvin teve a fantasia tola de que a erva curvava-se a fim de olhá-lo, depois de algum tempo, porém, verificou que o movimento contínuo era bastante tranqüilizador.
Alvin logo entendeu por que haviam feito a pausa. No meio da pequena multidão que já se reunira antes que o carro deslizasse para a aldeia, havia uma moça morena e tímida, que Hüvar lhe apresentou como Nyara. Mostraram-se obviamente muito satisfeitos por se rever, e Alvin invejou-lhes a evidente felicidade causada pelo breve encontro. Hüvar estava claramente dividido entre seus deveres como guia e o desejo de não ter outra companhia senão a de Nyara, Alvin salvou-o do dilema saindo sozinho para um giro de exploração. Não havia muito o que ver na aldeia, mas aproveitou bem o passeio.
Ao reiniciarem a viagem, estava ansioso por fazer muitas perguntas a Hüvar. Não imaginava como poderia ser o amor numa sociedade telepática e, após um intervalo discreto, abordou o assunto. Hüvar dispôs-se de bom grado a explicar-lhe tudo, embora ele suspeitasse haver obrigado o amigo a interromper uma prolongada e terna despedida mental.
Em Lys, ao que parecia, todo amor começava com contato mental, podendo-se passar meses ou anos antes que um casal efetivamente se encontrasse. Assim, explicou Hüvar, era impossível haver falsas impressões, bem como fraudes de ambas as partes. Duas pessoas cujas mentes estavam abertas uma para a outra não podiam ocultar segredos. Se uma delas tentasse, a outra logo saberia que alguma coisa estava sendo escondida.
Apenas as mentes muito amadurecidas e equilibradas podiam-se permitir tal honestidade, apenas o amor baseado numa absoluta falta de egoísmo poderia sobreviver a ela. Alvin entendia bem que tal amor seria mais profundo e mais rico do que qualquer coisa que sua própria gente podia conhecer, seria tão perfeito, na verdade, que julgou difícil acreditar que pudesse realmente ocorrer…
Entretanto, Hilvar garantiu que ocorria, seus olhos brilharam e ele perdeu-se em devaneios quando Alvin o incitou a ser mais explícito. Havia certas coisas que não podiam ser comunicadas, ou uma pessoa as conhecia, ou não conhecia. Alvin chegou tristemente à conclusão de que jamais seria capaz de atingir o tipo de mútuo entendimento que aquelas felizes criaturas haviam transformado em base de suas vidas.
Quando o carro emergiu da savana, que terminou abruptamente, como se houvesse sido traçada uma fronteira além da qual a relva não poderia crescer, havia uma zona de colinas baixas e arborizadas à frente deles. Tratava-se de um posto avançado, explicou Hilvar, da principal fortaleza que protegia Lys. As verdadeiras montanhas achavam-se mais além, mas para Alvin até mesmo aquelas diminutas colinas representaram uma imponente e colossal visão.
O carro deteve-se num vale estreito e abrigado, ainda banhado pelo calor e pela luz do poente. Hilvar olhou para Alvin com uma espécie de franqueza direta que, poder-se-ia jurar, era inteiramente despida de qualquer má fé.
— É aqui que começamos a caminhar — disse jovialmente, pondo-se a descarregar equipamentos do veículo. — Não podemos mais continuar de carro.
Alvin olhou as colinas que os circundavam, e depois o assento confortável em que estivera viajando.
— Não há maneira de contorná-las? — perguntou sem muitas esperanças.
— Claro que há — replicou Hilvar. — Mas não vamos contorná-las. Vamos subir ao alto, o que é muito mais interessante. Vou pôr o carro no automático, de modo que ele estará esperando por nós quando descermos do outro lado.
Resolvido a não ceder sem luta, Alvin fez uma tentativa final.
— Daqui a pouco estará escuro — protestou. — Não conseguiremos percorrer todo o caminho antes do pôr-do-sol.
— Exatamente — anuiu Hilvar, arrumando pacotes e equipamentos com incrível rapidez. — Vamos passar a noite no topo e terminar a viagem de manhã.
Alvin reconheceu a derrota.
O equipamento que estavam transportando parecia imenso, mas, embora volumoso, não pesava praticamente nada.
Tudo estava embalado em recipientes polarizadores de gravidade que neutralizavam o peso, deixando apenas a força de inércia. Ao mesmo tempo que se movia em linha reta, não tinha consciência de estar transportando carga alguma. O manejo daqueles recipientes exigia certa prática, pois se tentava uma súbita mudança de direção, a carga parecia adquirir personalidade obstinada e fazia todo o possível para mantê-lo em seu rumo original, até que ele vencesse o impulso.
Quando Hilvar terminou de ajustar todas as correias e verificou que estava tudo em ordem, começaram a caminhar lentamente pelo vale. Alvin olhou para trás com tristeza, vendo o carro terrestre voltar atrás e desaparecer de vista, imaginou quantas horas transcorreriam antes que ele pudesse repousar mais uma vez em seu conforto.
Não obstante, era muito agradável a escalada, com o Sol suave às suas costas e em meio a paisagens magníficas. Havia uma trilha parcialmente obliterada que desaparecia de vez em quando, mas que Hilvar era capaz de seguir mesmo quando Alvin não percebia o menor sinal dela. Perguntou a Hilvar quem fizera a trilha, e soube que havia muitos animais pequenos naquelas colinas — alguns solitários, outros vivendo em comunidades primitivas que repetiam muitos aspectos da civilização humana. Alguns deles haviam descoberto, ou lhes fora ensinado, o uso de ferramentas e fogo. Jamais ocorreu a Alvin que tais criaturas pudessem deixar de ser benignas, tanto ele como Hilvar consideravam a idéia indiscutível, pois já estavam distantes as eras em que qualquer coisa houvesse contestado a supremacia do Homem na Terra.
Fazia meia hora que subiam quando Alvin observou o murmúrio fraco e reverberante no ar em torno. Não podia detectar seu rumo, mas não parecia provir de nenhuma direção determinada. Nunca cessava e tornava-se cada vez mais forte à medida que a paisagem se abria em torno deles. Teria perguntado a Hilvar do que se tratava, mas tornara-se necessário poupar o fôlego para outras finalidades.
Alvin tinha saúde perfeita. Na verdade, em toda sua vida nunca passara por um momento de doença. Contudo, o bem-estar físico, por mais importante e necessário que fosse, não bastava para a tarefa que enfrentava agora. Ele possuía o corpo, mas não a habilidade necessária. As passadas largas de Hilvar, a força serena que o fazia superar todas as encostas, enchiam Alvin de inveja — e de determinação de não ceder enquanto fosse capaz de ainda pôr um pé diante do outro. Sabia perfeitamente que Hilvar testava-o e não se aborrecia com isso. Tratava-se de um jogo sem malícia e ele entrou no espírito da brincadeira, ainda que a fadiga se espalhasse lentamente por seus membros.
Hilvar sentiu pena dele ao terem completado dois terços da escalada, descansaram por um momento apoiados num barranco que dava para oeste, deixando seus corpos serem banhados pelo Sol suave. O trovão palpitante era fortíssimo agora, e embora Alvin lhe perguntasse o que era aquilo, Hilvar recusou-se a responder. Disse que a surpresa ficaria estragada se Alvin soubesse o que esperava ao fim da subida.
Estavam agora correndo contra o Sol, mas felizmente o resto da ascensão era suave e serena. As árvores que cobriam a parte inferior do monte já rareavam, como se cansadas demais para lutar contra a gravidade, e nas últimas centenas de metros o chão era atapetado de relva curta e espinhenta, sobre a qual a caminhada era agradabilíssima. Hilvar deu vazão a um repentino assomo de energia e pôs-se a correr. Alvin resolveu ignorar o desafio, na verdade, não lhe restava outra alternativa. Bastava-lhe poder continuar, a duras penas, e quando atingiu Hilvar caiu exausto a seu lado.
Só quando recuperou o fôlego é que pôde apreciar o panorama que se abria a seus pés, e ver a origem do trovão incessante que agora enchia o ar. Dali em diante a encosta precipitava-se ingrememente, desde o topo do monte — tão íngreme, na verdade, era a descida, que logo se tornava um penhasco quase vertical. E da extremidade mais distante da face do penhasco saltava uma possante fita de água, que se curvava no espaço para rebentar nos rochedos trezentos metros abaixo. Ali, perdia-se numa névoa reluzente de vapor, enquanto das profundezas subia aquele trovão incessante e ribombante, reverberando em ecos surdos nas colinas do outro lado.
A maior parte da cachoeira estava agora envolta em sombras, mas a luz solar, caindo obliquamente na montanha, ainda iluminava a terra lá embaixo, adicionando um toque final de magia à cena — pois, estremecendo, numa evanescente beleza sobre a base daquela espécie de catadupa, via-se o último arco-íris que restava na Terra.
Hilvar abriu os braços, num gesto que abarcava todo o horizonte.
— Daqui — disse, erguendo a voz para que pudesse ser ouvido sobre o troar da cachoeira — você pode contemplar toda Lys.
Alvin podia realmente acreditar nele. Ao norte, estendiam-se quilômetros e quilômetros de florestas, quebradas aqui e ali por clareiras, campos, e pelos fios tortuosos de uma centena de rios. Oculta em algum ponto do vasto panorama estava a vila de Airlee, mas era inútil tentar achá-la. Alvin imaginou ter um vislumbre do lago pelo qual havia passado ao chegar a Lys, mas chegou à conclusão de que seus olhos o enganavam. Ainda mais ao norte, árvores e clareiras se perdiam num tapete mosqueado de vários tons de verde, interrompido ocasionalmente por linhas de serras. E ainda mais além, até onde a vista alcançava, jaziam as montanhas que separavam Lys do deserto, como um banco de nuvens distantes.
A leste e oeste, a vista pouco diferia, mas ao sul as montanhas pareciam estar a apenas alguns quilômetros. Alvin as via com toda clareza, e percebeu que se elevavam muito mais alto do que o pequeno pico sobre o qual se encontravam. As montanhas estavam separadas deles por uma região muito mais selvagem do que aquela pela qual tinham acabado de passar. De algum modo indefinível, parecia deserta e vazia, como se o Homem não houvesse ali habitado por muitos anos.
Hilvar respondeu à pergunta silenciosa de Alvin.
— No passado, essa parte de Lys era habitada — disse.
— Não sei por que foi abandonada e talvez um dia voltemos a viver nela. Hoje, só os animais habitam ali.
De fato, em parte alguma se via sinais de vida humana — nenhum indício das clareiras e rios disciplinados que proclamavam a presença do Homem. Somente em um ponto se percebia indicação de que ele jamais habitara a área, pois a muitos quilômetros dali uma ruína branca se projetava sobre o teto da floresta como uma presa quebrada. Em todos os demais lugares, a floresta voltara a dominar.
O Sol já caía bem abaixo das muralhas ocidentais de Lys. Por um momento grandioso, as montanhas distantes como que arderam entre labaredas douradas, depois, a terra que guardavam foi rapidamente tragada pelas sombras e a noite chegou.
— Devíamos ter feito isso antes — disse Hilvar, prático como sempre, ao começar a descarregar o equipamento. — Dentro de cinco minutos estará escuro como breu… e frio também.
Curiosas peças de equipamento começaram a cobrir a relva. De um tripé esguio saía uma haste vertical, tendo na extremidade superior uma protuberância periforme. Hilvar elevou a haste até a pêra estar um pouco acima de suas cabeças, e fez algum sinal mental que Alvin não pôde interceptar. Imediatamente, o pequeno acampamento inundou-se de luz, fazendo fugir as trevas. Da pêra emanava não somente luz, como também calor, pois Alvin sentia um brilho acariciante e suave que parecia penetrar até seus ossos.
Carregando o tripé com uma das mãos, e levando a mochila na outra, Hilvar desceu a encosta enquanto Alvin se apressava a acompanhá-lo, fazendo todo o possível para se manter dentro do círculo de luz. Por fim, Hilvar fixou o acampamento numa pequena depressão a algumas centenas de metros abaixo dali e começou a montar o resto do equipamento.
Em primeiro lugar, surgiu um grande hemisfério de material rígido e quase invisível que os encobriu completamente, protegendo-os da brisa fria que havia começado a soprar do alto do monte. A cúpula parecia ser gerada por uma pequena caixa retangular que Hilvar dispôs no chão e depois deu mostras de ignorar totalmente, chegando ao ponto de soterrá-la sob o restante das coisas. Talvez essa caixa projetasse também as camas de campanha confortáveis e semitransparentes em que Alvin repousou. Era a primeira vez que ele via mobiliário ser materializado em Lys, onde lhe parecia que as casas eram terrivelmente atulhadas de artefatos permanentes que melhores serviços prestariam se mantidos fora da vista nos bancos de memória.
A refeição que Hilvar tirou de outro de seus receptáculos era também o primeiro alimento sintético que Alvin havia experimentado desde sua chegada a Lys. De algum orifício na cúpula sobre suas cabeças soprava um vento contínuo, enquanto o conversor de matéria colhia matéria-prima para realizar seu milagre cotidiano. De modo geral, Alvin apreciava muito mais o alimento sintético. A maneira como o outro tipo era preparado lhe parecia incrivelmente anti-higiênica e, pelo menos, com os conversores de matéria ele sabia exatamente o que estava comendo…
Acomodaram-se para fazer a refeição enquanto a noite se aprofundava ao redor deles e as estrelas começavam a nascer. Quando terminaram, estava completamente escuro fora do círculo de luz, e na fímbria daquele círculo Alvin podia ver vagos vultos se movendo — criaturas da floresta que saíam de seus esconderijos. De vez em quando, percebia o brilho da luz refletida em olhos pálidos que o miravam, mas, quaisquer que fossem, os animais não se aproximavam muito, de modo que não pôde ficar sabendo como eram exatamente.
Tudo era muito pacífico, e Alvin sentia-se tomado de alegria. Por um momento, ficaram deitados, conversando sobre as coisas que tinham visto, sobre o mistério que prendia ambos em suas teias, e sobre as muitas coisas em que as duas culturas diferiam. Hilvar mostrava-se fascinado pelos Circuitos de Eternidade, que haviam posto Diaspar além do alcance do tempo, e Alvin achava difícil responder algumas de suas perguntas.
— O que não entendo — disse Hilvar — é como os planejadores de Diaspar asseguraram que nada jamais aconteceria de errado com os circuitos de memória. Você me diz que as informações que definem a cidade e todas as pessoas que vivem ali são conservadas como padrões de carga elétrica no interior de cristais. Bem, os cristais durarão eternamente… mas, e todos os circuitos que estão ligados a eles? Não existem defeitos de nenhuma espécie?
— Fiz a mesma pergunta a Khedron e ele me respondeu que os Bancos de Memória são praticamente triplicados. Qualquer um dos três bancos pode manter a cidade, e se alguma coisa sair errada num deles, os outros dois automaticamente corrigem o defeito. Só se o mesmo problema acontecesse simultaneamente em dois dos bancos é que haveria dano permanente… e as chances de isso acontecer são infinitesimais.
— E como é que se mantém a relação entre o padrão armazenado nas unidades de memória e a estrutura real da cidade? Entre o plano, por assim dizer, e a coisa que ele descreve?
Isso era uma pergunta que estava inteiramente fora da capacidade de Alvin. Ele sabia que a resposta envolvia tecnologias que se relacionavam com a manipulação do próprio espaço — mas o modo como se poderia encerrar um átomo na posição definida por dados armazenados em outro lugar era coisa que não saberia nem começar a explicar.
Tomado de súbita inspiração, apontou para a cúpula invisível que os protegia da noite.
— Diga-me como é que esse teto sobre nossas cabeças é criado por aquela caixa sobre a qual você está sentado — respondeu — e depois eu lhe explico como funcionam os Circuitos de Eternidade.
Hilvar riu.
— Acho que é uma comparação justa. Você teria de perguntar a um dos técnicos de teoria de campos para entender isso. Eu não seria capaz de explicar.
A resposta fez Alvin pensar. Então, havia ainda em Lys homens que entendiam o funcionamento de máquinas, o mesmo não se poderia dizer de Diaspar.
Continuaram a conversar e discutir, até que Hilvar disse:
— Estou cansado. E você?… Vai dormir? — Alvin esfregou o corpo ainda fatigado.
— Gostaria — confessou —, mas acho que não conseguirei. Dormir ainda me parece um costume estranho.
— É muito mais do que um costume — disse Hilvar sorrindo. — Eu soube que no passado era uma necessidade para todos os seres humanos. Ainda gostamos de dormir pelo menos uma vez por dia, mesmo se por poucas horas. Durante o sono o corpo se revigora, e a mente também. Ninguém dorme nunca em Diaspar?
— Só de raro em raro — disse Alvin. — Jeserac, meu tutor, já dormiu uma ou duas vezes, depois de ter feito algum esforço mental excepcional. Um corpo bem constituído não deve ter necessidade desses períodos de descanso. Eliminamos isso há milhões de anos.
Mas, enquanto pronunciava essas palavras perpassadas de jactância, seus atos as desmentiam. Alvin sentiu um cansaço como jamais havia experimentado, parecia-lhe que se espalhava a partir dos calcanhares e das coxas, fluindo depois por todo o corpo. Não havia nada de desagradável na sensação… muito pelo contrário. Hilvar o observava com um sorriso divertido, e a Alvin ainda sobravam faculdades suficientes para imaginar que seu companheiro talvez estivesse exercendo sobre ele algum de seus poderes mentais. Mesmo que assim fosse, não faria nenhuma objeção.
A luz que fluía da pêra de metal sobre suas cabeças transformou-se num brilho baço, mas o calor que ela irradiava continuou igual. O último bruxuleio de luz registrou na mente de Alvin um fato curioso sobre o qual teria de fazer perguntas na manhã seguinte.
Hilvar havia-se despedido e, pela primeira vez, Alvin viu até que ponto os dois ramos da raça humana haviam divergido. Algumas das mudanças eram meramente de ênfase e proporção, as outras, como a genitália externa e a presença de dentes, unhas e pêlos, eram mais básicas. Contudo, o que mais o espantou foi o curioso buraquinho na boca do estômago de Hilvar.
Alguns dias mais tarde, ao lembrar-se subitamente do assunto, ouviu muitas explicações. Depois que Hilvar deixou bem claras as funções do umbigo, já havia pronunciado milhares de palavras e desenhado meia dúzia de diagramas.
E tanto ele como Alvin tinham dado um largo passo no sentido de compreender a base de suas respectivas culturas.