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A noite já ia alta quando Alvin despertou. Alguma coisa o havia perturbado, algum sussurro que se infiltrara até o fundo de sua mente, apesar do trovão incessante das cachoeiras. Sentou-se, em meio à escuridão, fazendo força para enxergar a terra oculta, enquanto, sustendo a respiração, escutava o ruído das águas e os sons mais suaves, mais fugidios, das criaturas da noite.
Nada se via. A luz das estrelas era fraca demais para revelar os quilômetros de terras que se estendiam a dezenas de metros lá embaixo, apenas uma linha acidentada de noite mais escura, eclipsando as estrelas, revelava a presença das montanhas no horizonte meridional. Nas trevas, ao lado dele, Alvin percebeu que o companheiro rolava no leito e se sentava.
— O que foi? — ele ouviu uma voz sussurrante.
— Acho que ouvi um barulho.
— Que tipo de barulho?
— Não sei. Talvez seja apenas imaginação.
Houve silêncio, enquanto dois pares de olhos perscrutavam o mistério da noite. Então, de repente, Hilvar pegou Alvin pelo braço.
— Veja! — murmurou.
A distância, em direção ao sul, brilhava um ponto solitário de luz, baixo demais no céu para ser uma estrela. Era de um branco brilhante, manchado de violeta e, enquanto olhavam, a luz começou a escalar o espectro de intensidade, até que a vista não suportou mais contemplá-la. Então, explodiu — e foi como se o relâmpago houvesse atingido a Terra. Por um breve momento, as montanhas e a terra que elas encerravam ficaram gravadas a fogo contra o negrume da noite. Muito tempo depois ouviu-se o fantasma de uma explosão longínqua, e nas matas lá embaixo um vento súbito agitou as árvores, morrendo rapidamente, e uma a uma as estrelas dispersadas voltaram ao céu.
Pela segunda vez em sua vida, Alvin conheceu o medo. Não era uma sensação tão pessoal e iminente como a que o assaltara na câmara dos Caminhos Móveis, quando tomou a decisão que o levara a Lys. Talvez fosse mais um temor respeitoso, ele estava contemplando a face do desconhecido, e era como se já houvesse pressentido que para além das montanhas residisse alguma coisa que ele tinha de ver de perto.
— O que foi isso? — cochichou por fim.
— Estou tentando descobrir — disse Hilvar. calando-se outra vez. Alvin adivinhou o que ele estava fazendo, e não interrompeu mais a investigação silenciosa do amigo.
Daí a pouco Hilvar soltou um pequeno suspiro de desapontamento.
— Todos estão dormindo — disse. — Não há ninguém que pudesse informar. Teremos de esperar até de manhã, a menos que eu acorde um de meus amigos. E eu não gostaria de fazer isso a menos que se tratasse de alguma coisa realmente importante.
Alvin pensou com seus botões o que é que Hilvar consideraria um assunto de real importância. Estava para sugerir, com uma ponta de sarcasmo, que aquilo justificava interromper o sono de alguém. Mas antes que pudesse formular o comentário, Hilvar voltou a falar.
— Acabei de me lembrar — ele disse, num tom de desculpas. — Já faz muito tempo que não venho aqui, e não tenho plena certeza de minha posição. Mas ali deve ser Shalmirane.
— Shalmirane! Ainda existe?
— Existe. E eu tinha quase esquecido. Seranis já me contou que a fortaleza fica nessas montanhas. Está em ruínas há muito tempo, é claro, mas talvez ainda more alguém lá.
Shalmirane! Para aqueles filhos de duas raças, de cultura e história tão diferentes, aquele era realmente um nome mágico. Em toda a longa história da Terra, jamais houvera epopéia maior do que a defesa da Terra contra um invasor que havia conquistado todo o Universo. Ainda que os fatos reais estivessem irremediavelmente perdidos nas névoas que se haviam reunido tão densamente em torno das Eras do Alvorecer, as lendas nunca tinham sido esquecidas e perdurariam enquanto existisse o Homem.
A voz de Hilvar soou novamente na escuridão.
— A gente do sul poderia contar mais coisas. Tenho alguns amigos lá. Vou chamá-los pela manhã.
Alvin mal o escutava, estava imerso em seus próprios pensamentos, tentando recordar tudo quanto ouvira falar de Shalmirane. Era pouca coisa, na verdade. Depois de todo aquele imenso lapso de tempo, ninguém podia separar a verdade da lenda. Tudo que se sabia ao certo era que a batalha de Shalmirane assinalou o fim das conquistas do Homem e o começo de seu longo declínio.
Entre aquelas montanhas, pensou Alvin, poderia estar a resposta para todos os problemas que o atormetaram por tantos anos.
— Quanto tempo levaríamos para chegar à fortaleza? — perguntou a Hilvar.
— Nunca estive lá, mas é muito mais longe do que eu pretendia ir. Duvido que possamos fazer a viagem em um dia.
— Não podemos usar o carro terrestre?
— Não. O caminho segue pelas montanhas e nenhum carro pode viajar por ali.
Alvin meditou. Estava cansado, tinha os pés doloridos e os músculos de suas coxas ainda doíam do esforço a que não estava habituado. Era muito tentador deixar aquilo para outra ocasião. No entanto, talvez não houvesse outra ocasião…
Sob a luz baça das estrelas, das quais não poucas haviam morrido desde a construção de Shalmirane, Alvin, após lutar com seus pensamentos, tomou sua decisão. Nada se havia modificado, as montanhas retomaram sua vigília sobre a terra adormecida. Mas um ponto crítico na história da Terra chegara e desaparecera, e a raça humana encaminhava-se para um futuro novo e estranho.
Alvin e Hilvar não dormiram mais, levantando acampamento logo ao romper da aurora. A colina estava encharcada de orvalho, levando Alvin a maravilhar-se com a ourivesaria refulgente que fazia pender cada lâmina de relva e cada folha. O farfalhar da erva molhada fascinava-o, e olhando de volta para o alto do monte, via suas pegadas estendendo-se atrás de si como uma fita negra sobre o chão reluzente.
O Sol tinha acabado de se erguer sobre a muralha oriental de Lys quando chegaram às cercanias da floresta. Ali, a natureza imperava livremente. Mesmo Hilvar parecia um tanto perdido entre as árvores gigantescas que bloqueavam a luz do Sol e lançavam sombras densas no leito da floresta. Felizmente, depois das cachoeiras, o rio corria numa linha reta demais para ser inteiramente natural, e acompanhando-o pela beirada conseguiam evitar a vegetação mais densa. Grande parte do tempo de Hilvar era dedicado a controlar Krif, que desaparecia de vez em quando na selva ou saía saltando loucamente sobre a água. Alvin, para quem tudo era tão novo, percebia que a floresta encerrava um fascínio ausente dos bosques menores e mais delicados na área setentrional de Lys. Poucas árvores eram iguais, a maioria se encontrava em vários estágios de involução e algumas haviam retornado, através das eras, quase às suas formas naturais originais. Muitas não eram obviamente da Terra — provavelmente não pertenceriam sequer ao sistema solar. Como sentinelas, pairando sobre as árvores menores, agigantavam-se sequóias descomunais, de noventa ou cento e vinte metros de altura. No passado haviam sido considerados os seres vivos mais antigos do planeta, e ainda eram um pouco mais velhas do que o Homem.
O rio começava a alargar-se. A todo momento abria-se em pequenos lagos, pontilhados por ilhotas. Havia insetos ali, criaturas de colorido brilhante que pululavam à flor d'água. De certa feita, desobedecendo às ordens de Hilvar, Krif disparou para juntar-se a seus parentes distantes. Desapareceu instantaneamente numa nuvem de asas fulgurantes, em meio ao som de murmúrios enraivecidos. Logo depois, a nuvem se abriu e Krif voltou sobre a água, quase que rápido demais para ser visto. Depois disso, ficou sempre junto de Hilvar e não se afastou novamente.
Ao cair da noite, começaram a perceber mais de perto as montanhas. O rio, até então guia fiel, fluía lentamente agora, como que se avizinhando do fim da jornada. Mas estava claro que não poderiam atingir as montanhas ao cair da noite, bem antes do ocaso, a floresta se tomara tão escura que impedia qualquer avanço. As grandes árvores ocultavam-se em poços de sombras, e um vento frio corria entre as ramagens. Alvin e Hilvar prepararam-se para passar a noite ao lado de uma sequóia gigantesca, cujos galhos mais altos ainda brilhavam ao Sol.
Quando, finalmente, o Sol escondido desapareceu, a luz continuou ainda sobre as águas saltitantes. Os dois exploradores — pois era assim que se consideravam agora, e realmente o eram — deitaram-se em meio à escuridão, olhando o rio e pensando em tudo que haviam visto. Daí a alguns momentos, Alvin sentiu novamente correr por ele aquela sensação de deliciosa sonolência que havia conhecido pela primeira vez na noite anterior, e de bom grado resignou-se ao sono. Dormir era algo que podia ser desnecessário na vida sem esforços de Diaspar, mas era bem vindo ali. No último momento, antes da inconsciência apoderar-se dele, deu consigo imaginando quem teria sido a última pessoa a caminhar por ali e há quanto tempo isso acontecera.
O Sol já ia alto quando deixaram a floresta e se viram finalmente diante das muralhas montanhosas de Lys. À frente deles, o chão erguia-se ingrememente até o céu, em ondas de rochedos estéreis. Ali, o rio chegava a seu fim, tão espetaculoso quanto no início, pois o chão abria-se em seu caminho e ele desaparecia de vista num turbilhão de águas. Alvin imaginou o que lhe acontecia, e por quais cavernas subterrâneas ele viajava, antes de emergir novamente à luz do dia. Talvez ainda existissem os oceanos perdidos da Terra, nas profundezas da treva eterna, e aquele rio antigo ainda atendesse ao chamado e fosse atraído para o mar.
Por um momento, Hilvar contemplou o turbilhão e a terra acidentada. Depois apontou para a abertura entre as montanhas.
— Shalmirane fica naquela direção — disse, confiante. Alvin não perguntou como ele sabia, supôs que Hilvar tivesse feito contato mental com um amigo a muitos quilômetros dali, e que a informação houvesse sido transmitida silenciosamente.
Não demoraram muito a chegar à abertura, e depois de a transporem «viram-se diante de um curioso planalto, com encostas muito suaves. Alvin já não sentia qualquer cansaço, nem medo — apenas uma expectativa tensa e uma sensação de aventura próxima. Não imaginava o que estava por descobrir. Mas não tinha dúvida alguma de que descobriria alguma coisa.
Ao se aproximarem do cume, a natureza do terreno alterou-se abruptamente. Mais abaixo, as encostas tinham consistido em pedra porosa, vulcânica, amontoada aqui e ali em grandes pilhas de escória. Agora a superfície transformava-se subitamente em lençóis duros e vítreos, lisos e traiçoeiros, como se a rocha houvesse escorrido em rios fundidos encosta abaixo.
A borda do planalto estava quase a seus pés. Hilvar alcançou-o primeiro, e daí a alguns segundos Alvin chegou, permanecendo sem voz a seu lado. Estavam de pé sobre a orla, não do planalto que esperavam, mas de uma depressão colossal, de quase um quilômetro de profundidade e quase cinco de diâmetro. À frente deles, o terreno precipitava-se para baixo, aplainando-se lentamente no fundo do vale e levantando-se outra vez, cada vez mais ingrememente, até a orla do outro lado. A parte mais baixa da depressão era ocupada por um lago circular, cuja superfície estremecia continuamente, como se agitada por ondas incessantes.
Conquanto exposta à luz radiante do Sol, toda aquela gigantesca depressão era negra como ébano. O material que formava a cratera era desconhecido por Alvin e Hilvar, mas era negro como a rocha de um mundo que jamais houvesse conhecido um sol. E isso não era tudo, pois debaixo de seus pés, e circundando toda a cratera, havia, sem emendas, uma faixa de metal com algumas dezenas de metros, manchada pelo tempo incomensurável mas ainda livre de qualquer sinal de corrosão.
Ao habituarem a vista à cena alienígena, Alvin e Hilvar perceberam que o negrume da depressão não era tão absoluto como haviam pensado. Aqui e ali, tão fugazes que não podiam vê-las senão indiretamente, minúsculas explosões de luz pontilhavam as paredes de ébano. Ocorriam irregularmente, sumindo tão logo nasciam, como os reflexos de estrelas num mar encapelado.
— É maravilhoso! — arfou Alvin. — Mas o que é isso?
— Parece uma espécie de refletor.
— Mas é tão negro!
— Apenas para os nossos olhos, lembre-se. Não sabemos que radiações eles usavam.
— Mas certamente deve haver mais do que isso! Onde fica a fortaleza?
Hilvar apontou para o lago.
— Olhe com cuidado — disse.
Alvin fitou a superfície trêmula do lago, tentando sondar os segredos que se ocultavam em suas profundezas. A princípio, nada pôde ver, depois, nos baixios perto da margem, divisou uma apagada retícula de luzes e sombras. Pôde acompanhar o desenho em direção ao centro do lago, até que as águas mais profundas esconderam todos os detalhes.
O lago escuro havia tragado a fortaleza. Em seu fundo jaziam as ruínas de edifícios outrora poderosos, vencidos pelo tempo. No entanto, nem todos tinham sido submergidos, pois na extremidade mais distante da cratera Alvin notava agora pilhas de pedras amontoadas, bem como grandes blocos que no passado deviam ter feito parte de paredes sólidas. As águas as lambiam, mas ainda não se haviam erguido o suficiente para completar sua vitória.
— Vamos rodear o lago — disse Hilvar, falando baixo, como se a desolação majestosa houvesse infundido um respeitoso temor em sua alma. — Talvez encontremos alguma coisa nas ruínas daquele lado.
Nas primeiras centenas de metros, as paredes da cratera eram tão lisas e íngremes que se tornava quase impossível manter o equilíbrio, mas após certo tempo chegaram às encostas mais suaves e puderam caminhar sem dificuldade. Perto da borda do lago, a lisa superfície de ébano estava oculta por uma fina camada de solo, ali depositado certamente pelos ventos de Lys durante eras sem conta.
A cerca de quatrocentos metros dali, titânicos blocos de pedra amontoavam-se uns sobre os outros, como brinquedos abandonados de uma criança gigantesca. Aqui, ainda se podia reconhecer um pedaço de uma muralha maciça, ali, dois obeliscos esculpidos marcavam um lugar que fora uma entrada imponente. Por toda parte cresciam musgos e trepadeiras, bem como minúsculas árvores raquíticas. Até o vento era abafado.
Foi assim que Hilvar e Alvin chegaram às ruínas de Shalmirane. Contra aquelas muralhas, e contra as energias que abrigavam, forças capazes de transformar um mundo em poeira haviam sido lançadas em meio a chamas e trovões, sendo inteiramente derrotadas. Outrora aqueles céus pacíficos haviam ardido com fogueiras arrancadas dos núcleos de sóis, e as montanhas de Lys deviam ter balouçado como coisas vivas sob a fúria de seus senhores.
Ninguém jamais lograra capturar Shalmirane. Agora, porém, a fortaleza, o reduto inexpugnável, havia finalmente sucumbido — capturada e destruída pelas pacientes gavinhas da era, por gerações de vermes cegamente obstinados e pelas águas do lago em lenta ascensão.
Subjugados por sua majestade, Alvin e Hilvar caminharam em silêncio em direção às ruínas colossais. Entraram na sombra de uma muralha destruída e seguiram por um desfiladeiro onde as montanhas de pedra se haviam rendido. Diante deles estendia-se o lago, e daí a pouco estavam bem junto dele, as águas batendo-lhes nos pés. Ondas minúsculas, com menos de um palmo de altura, quebravam incessantemente sobre a praia estreita.
Hilvar foi o primeiro a falar, sua voz tinha um quê de insegurança que levou Alvin a olhá-lo com súbita surpresa.
— Há alguma coisa aqui que não compreendo — disse lentamente. — Se não há vento, o que causa essas marolas? A água deveria estar perfeitamente imóvel…
Antes que Alvin pudesse pensar em alguma resposta, Hilvar abaixou-se, virou a cabeça de lado e mergulhou o ouvido direito na água. Alvin perguntou a si mesmo o que pretenderia ele descobrir em posição tão estranha, depois percebeu que estava escutando alguma coisa. Com certa repugnância — pois as águas escuras pareciam singularmente repelentes — seguiu o exemplo de Hilvar.
O primeiro choque do frio durou apenas um segundo, quando passou, ele pôde ouvir, leve, mas clara, uma pulsação firme e bem ritmada. Era como se pudesse escutar, das profundezas do lago, as batidas de um coração gigante.
Sacudiram a água de seus cabelos, olhando um para o outro com um único e silencioso pensamento. Nenhum deles se, atrevia a dizer o que estava pensando — que o lago era vivo.
— Seria melhor — disse Hilvar daí a momentos — investigarmos essas ruínas e nos mantermos longe do lago.
— Você acha que existe alguma coisa lá embaixo? — perguntou Alvin, apontando para as inexplicáveis marolas que continuavam a quebrar contra seus pés. — Poderia ser perigoso?
— Nada que possua mente é perigoso — respondeu Hilvar. (Isso seria verdade? pensou Alvin. O que dizer dos Invasores?) — Não consigo detectar pensamentos de espécie alguma aqui, mas não acredito que estejamos sozinhos. É muito estranho.
Voltaram lentamente para as ruínas da fortaleza, cada qual levando no espírito o som daquela pulsação firme e abafada. Parecia a Alvin que os mistérios se acumulavam e que, apesar de todos os seus esforços, ele se estava afastando cada vez mais da compreensão das verdades que buscava.
Não era crível que as ruínas pudessem informar-lhes qualquer coisa, mas exploraram cuidadosamente as pilhas de entulho e os montes de pedras. Ali, talvez, estivessem os túmulos de máquinas sepultas — a maquinaria que havia realizado sua tarefa há tanto tempo. Seriam inúteis agora, pensou Alvin, se os Invasores retornassem. Por que nunca teriam voltado? Mas isso era ainda outro mistério. Ele já tinha enigmas suficientes para desvendar, e não havia por que procurar novos.
A alguns metros do lago encontraram uma pequena clareira entre o refugo. Tinha sido recoberta por ervas, mas as plantas estavam agora enegrecidas e chamuscadas por um calor tremendo, desfazendo-se em cinzas quando se aproximaram, sujando-lhes as pernas com carvão. No centro da clareira havia um tripé de metal, firmemente preso ao chão e suportando um aro inclinado em seu eixo de maneira a apontar para um ponto no céu. A primeira vista, parecia que o arco nada continha, mas, quando Alvin o examinou mais detidamente, viu que estava cheio de uma névoa diáfana que atormentava a vista, por se localizar fugidiamente no limite do espectro visível. Era o brilho da força, e daquele mecanismo, não duvidava, viera a explosão de luz que os havia atraído a Shalmirane.
Não se aventuraram a aproximar-se mais, observando a máquina de uma distância segura. Estavam no caminho certo, pensou Alvin. Só restava descobrir quem — ou o que — havia montado aquele aparelho ali, e com que finalidade. Aquele aro inclinado estava obviamente apontado para o Espaço. Seria o clarão que tinham visto alguma espécie de sinal? Essa idéia acarretava implicações assustadoras.
— Alvin — disse Hilvar de repente, com a voz serena, mas transmitindo preocupação —, temos visitantes.
Alvin girou nos calcanhares e deu consigo fitando um triângulo de olhos sem pálpebras. Essa, pelo menos, foi sua primeira impressão. Então, por trás dos olhos fixos, percebeu os contornos de uma máquina complexa, posto que pequena. Estava suspensa no ar, a pouca distância do chão, e não se assemelhava a nenhum robô que ele já tivesse visto.
Assim que passou a surpresa inicial, sentiu-se inteiramente senhor da situação. Durante toda a sua vida dera ordens a máquinas, e o fato de não conhecer aquela não tinha importância. Aliás, jamais vira senão uma pequena parte dos robôs que atendiam às suas necessidades diárias em Diaspar.
— Poder falar? — perguntou. Houve silêncio.
— Há alguém controlando você?
Ainda silêncio.
— Vá embora. Venha cá. Levante-se. Caia.
Nenhum dos pensamentos convencionais de controle produziu qualquer efeito. A máquina permaneceu desdenhosamente inativa. Isso sugeria duas possibilidades. Ou a máquina era obtusa demais para entendê-lo, ou, na verdade, era inteligente demais com seus próprios poderes de opção e volição. Nesse caso, deveria tratá-la como a um igual. Mesmo assim, poderia vir a subestimá-la — mas ela não teria nenhum ressentimento com relação a ele, pois a presunção não era vício de que as máquinas sofressem.
Hilvar não pôde deixar de rir da óbvia perplexidade de Alvin. Estava para sugerir que ele assumisse a tarefa de comunicação, quando as palavras morreram em seus lábios. O sossego de Shalmirane foi despedaçado por um som pressago e totalmente inconfundível — o espadanar de água, provocado por um corpo de grandes dimensões que emergia do lago.
Pela segunda vez desde que saíra de Diaspar, Alvin desejou estar em casa. Depois lembrou-se que não era com esse espírito que devia afrontar as aventuras, e começou a caminhar lenta, mas deliberadamente em direção ao lago.
A criatura que emergia das águas escuras parecia uma paródia monstruosa, em matéria viva, do robô que ainda os submetia a seu silencioso escrutínio. Aquela mesma disposição eqüilateral dos olhos não podia ser coincidência, até mesmo a disposição dos tentáculos e dos pequenos membros articulados tinha sido reproduzida aproximadamente. Além disso, contudo, a semelhança cessava. O robô não possuía — evidentemente não tinha necessidade daquilo — a franja de palpos delicados e frágeis que batiam na água com um ritmo constante, as pernas múltiplas e curtas sobre os quais o animal se punha agora de pé na margem, ou as aberturas de ventilação, se eram isso, que agora se abriam e fechavam espasmodicamente no ar rarefeito.
A maior parte do corpo da criatura permanecia na água, apenas os três metros superiores emergiam para um elemento que evidentemente lhe era estranho. O animal teria seus quinze metros de comprimento, e mesmo uma pessoa desprovida de qualquer conhecimento de biologia teria compreendido que havia algo inteiramente errado nele. Aparentava um extraordinário ar de improvisação e desenho descuidado, como se suas partes tivessem sido fabricadas sem muito planejamento e reunidas de qualquer maneira quando surgiu a necessidade de fazê-lo.
Apesar de seu tamanho e de suas dúvidas iniciais, nem Alvin nem Hilvar sentiram o menor nervosismo assim que olharam mais claramente o habitante do lago. Havia naquela criatura um desajeitamento simpático que tornava de todo impossível considerá-la uma ameaça séria, mesmo que houvesse qualquer razão para se tê-la na conta de perigosa. A raça humana havia há muito tempo superado seu terror infantil de tudo o que apresentasse aspecto estranho. Tratava-se de um medo que não poderia sobreviver após o primeiro contato com raças extraterrestres amistosas.
— Deixe-me tratar disso — disse Hilvar tranqüilamente. — Estou acostumado a lidar com animais.
— Mas isso não é um animal — sussurrou Alvin. — Tenho certeza de que é inteligente, e é dono do robô.
— Pode ser que o robô seja dono dele. De qualquer maneira sua mentalidade deve ser muito estranha. Ainda não consigo detectar nenhum indício de pensamento. Ei… O que está acontecendo?
O monstro não modificara sua posição meio erguida na beira do lago, que parecia estar mantendo com considerável esforço. Mas no centro do triângulo dos olhos começara a formar-se uma membrana semitransparente — uma membrana latejante que logo começou a emitir sons audíveis. Eram ruídos graves e ressonantes que não criavam quaisquer palavras inteligíveis, conquanto fosse evidente que a criatura estava tentando falar com eles.
Era doloroso assistir àquela tentativa desesperada de comunicação. Por vários minutos, a criatura esforçou-se em vão, então, de repente, como se percebesse que cometera um engano, a membrana palpitante contraiu-se, diminuiu de tamanho e começou a emitir sons de freqüência várias oitavas mais alta, até chegar ao espectro da fala normal. Começaram a formar-se palavras inteligíveis, ainda que misturadas com algaravias. Era como se a criatura estivesse recordando um vocabulário que conhecera há muito tempo mas que não tivera ocasião de usar durante muitos anos.
Hilvar tentou dar a ajuda possível.
— Podemos entendê-lo agora — disse, falando devagar e com toda clareza. — Podemos ajudá-lo? Vimos a luz que você fez. Ela nos trouxe aqui. de Lys.
A palavra Lys. a criatura pareceu murchar, como se tomada de amargo desapontamento.
— Lys — repetiu. Não conseguia pronunciar o «s» muito bem, de modo que a palavra saía mais parecida com «Lyd». — Sempre de Lys. Nunca vêm outras pessoas. Chamamos os Grandes, mas eles não atendem.
— Quem são os Grandes? — perguntou Alvin, debruçando-se avidamente para frente. Os palpos delicados, em constante movimento, agitaram-se rapidamente em direção ao céu.
— Os Grandes — disse a criatura. — Dos planetas do dia eterno. Eles virão. O Mestre nos prometeu.
Isso não tornava as coisas mais claras. Antes que Alvin pudesse prosseguir seu interrogatório, Hilvar interveio novamente. Suas perguntas eram tão pacientes, tão compassivas, mas ainda assim tão penetrantes que Alvin achou melhor não interromper, apesar de sua ânsia. Não lhe agradava admitir que Hilvar lhe fosse superior em inteligência, mas não restavam dúvidas de que sua capacidade de lidar com animais estendia-se até aquele ser fantástico. Sobretudo, a criatura parecia reagir bem a ele. Sua fala fez-se mais clara à medida que a conversa prosseguiu e, ao passo que no começo mostrara brusquidão que raiava a rudeza, em breve começou a explicitar mais as respostas e até se dispôs a dar informações espontaneamente.
Alvin perdeu consciência da passagem do tempo, enquanto Hilvar juntava os fios da história incrível. Não conseguiram descobrir toda a verdade, havia muita margem para conjecturas e debate. À medida que a criatura respondia às perguntas de Hilvar, com boa vontade cada vez maior, sua aparência começou a mudar. Escorregou de volta ao lago e as pernas curtas pareceram dissolver-se no restante do corpo, ocorrendo logo depois uma mudança ainda mais extraordinária: os três olhos imensos fecharam-se lentamente, reduziram-se a dimensões de cabeças de alfinetes e desapareceram. Era como se a criatura tivesse visto tudo quanto desejava ver por ora, não tendo, pois, mais necessidade de olhos,
Outras alterações, mais sutis, continuavam a ocorrer, e por fim tudo que restava sobre a superfície da água era quase apenas o diafragma vibrante através do qual a criatura falava. Sem dúvida essa membrana se dissolveria na massa amorfa original de protoplasma quando não fosse mais necessária.
Para Alvin, era difícil acreditar que pudesse haver inteligência numa forma tão instável — mas a maior surpresa ainda estava por acontecer. Conquanto parecesse evidente que a criatura não era de origem terrestre, passou-se algum tempo antes que Hilvar, apesar de todo seu conhecimento de biologia, compreendesse o tipo de organismo com que estavam lidando. Não se tratava de uma única entidade, em todos seus pronunciamentos, a criatura sempre se referia a si como «nós». Na verdade, não era outra coisa senão uma colônia de criaturas independentes, organizadas e controladas por forças desconhecidas.
Animais de um tipo remotamente semelhante — as medusas, por exemplo — haviam florescido outrora nos grandes oceanos da Terra. Alguns deles eram de grandes dimensões, arrastando seus corpos translúcidos e as florestas de tentáculos peçonhentos por dezenas de metros. Mas nenhum desses seres havia atingido sequer o nível mais ínfimo de inteligência, além da capacidade de reagir a estímulos simples.
Ali, porém, havia inteligência, conquanto vacilante e em degeneração. Jamais Alvin se esqueceria desse encontro — Hilvar juntando os pedaços da história do Mestre, enquanto o pólipo protéico tateava em busca de palavras pouco familiares, o lago escuro lambia as ruínas de Shalmirane e o robô trióptico os vigiava com olhos fixos.