120472.fb2
Alvin só se tranqüilizou ao chegar novamente à câmara das Vias Móveis. Havia ainda o perigo de que a gente de Lys pudesse deter ou até mesmo fazer retroceder o veículo em que viajava, trazendo-o para o ponto de partida. Mas sua volta foi uma repetição sem novidades da ida, quarenta minutos depois de haver deixado Lys, encontrava-se no Túmulo de Yarlan Zey.
Os do Conselho o esperavam, vestindo os formais mantos negros, que havia séculos não usavam. Alvin não sentiu qualquer surpresa, e muito pouco alarme, ante a presença da comissão de recepção. Havia vencido tantos obstáculos que um a mais não fazia muita diferença. Aprendera muito desde sua saída de Diaspar, e esse conhecimento fazia-se acompanhar de uma confiança que raiava a arrogância. Ademais, possuía agora um aliado poderoso, ainda que imprevisível. Os melhores cérebros de Lys não tinham sido capazes de interferir em seus planos, e por algum motivo Alvin não acreditava que os de Diaspar viessem a ter melhor sorte.
Havia bases racionais para essa convicção, mas em parte ela se fundava em alguma coisa que ia além da razão — uma fé em seu destino, que lentamente vinha se formando na mente de Alvin. O mistério de sua origem, seu êxito em lograr o que nenhum homem jamais conseguira, o modo como novos caminhos se lhe haviam descortinado — tudo isso aumentava sua autoconfiança. A fé no próprio destino contava-se entre as dádivas mais valiosas que os deuses poderiam conceder a um homem, mas Alvin ignorava quantos de seus antecessores tinham sido levados ao desastre por essa fé.
— Alvin — disse o líder dos supervisores da cidade —, temos ordens para acompanhá-lo onde quer que você vá, até que o Conselho tenha julgado seu caso e pronunciado o veredicto.
— De que crime sou acusado? — perguntou Alvin. Ainda se sentia tomado da excitação e da alegria da fuga de Lys, não conseguindo levar muito a sério os novos fatos. Provavelmente, Khedron falara, Alvin sentiu-se irritado com o Bufão por haver traído seu segredo.
— Ainda não se fez nenhuma acusação — foi a resposta. — Se necessário, será proclamada uma, depois que você for ouvido.
— E quando será isso?
— Muito cedo, imagino. — O supervisor estava visivelmente contrafeito, sem saber ao certo como se conduzir nessa missão constrangedora. Ora tratava Alvin como um concidadão, ora lembrava-se de seus deveres de guardião e assumia uma atitude de exagerado alheamento.
— Esse robô — disse ele de repente, apontando o companheiro de Alvin — de onde veio? É um dos nossos?
— Não — respondeu Alvin. — Encontrei-o em Lys, o país em que estive. Trouxe-o para que ele se encontre com o Computador Central.
Essa afirmativa clara produziu enorme agitação. Existir alguma coisa fora de Diaspar já representava surpresa bastante, mas Alvin ter trazido do exterior um de seus habitantes e tencionar apresentá-lo ao cérebro da cidade era pior ainda. Os administradores entreolharam-se com tal expressão de alarme, que Alvin não conseguiu reter o riso.
Enquanto caminhavam pelo Parque, a escolta seguindo discretamente atrás dele, e conversando entre si em sussurros agitados, Alvin ponderou sua próxima atitude. A primeira coisa a fazer era descobrir exatamente o que acontecera durante sua ausência. Khedron, segundo lhe dissera Seranis, estava desaparecido. Havia em Diaspar inúmeros lugares onde uma pessoa poderia esconder-se, e como o conhecimento que o Bufão tinha da cidade era inigualável, não era provável que fosse encontrado até que resolvesse reaparecer. Talvez, pensou Alvin, pudesse deixar uma mensagem em local onde Khedron fatalmente a veria, combinando um encontro. Contudo, a presença da escolha, poderia impossibilitar a concretização desse plano.
Tinha de admitir que a vigilância era das mais discretas. Ao chegar a seu apartamento, já quase se esquecera da existência dos supervisores. Imaginou que não interfeririam em seus movimentos, a menos que tentasse deixar Diaspar, e por enquanto não era sua intenção proceder assim. Na verdade, tinha quase certeza de que seria impossível voltar a Lys pelo caminho original. A essa altura, o sistema subterrâneo de transporte certamente já teria sido imobilizado por Seranis e sua gente.
Os supervisores não o seguiram a seu quarto. Sabiam que só havia uma saída, colocando-se do lado de fora. Como não tinham instruções com relação ao robô, deixaram que acompanhasse Alvin. Não tinham o menor desejo de se meter com aquela máquina, porquanto era óbvio que provinha de outro lugar. A julgar por seu comportamento, não podiam dizer se era um servo passivo de Alvin ou se operava por livre volição. Em vista dessa incerteza, acreditariam ser melhor deixá-la em paz.
Assim que a parede se fechou à suas costas, Alvin materializou seu divã predileto e atirou-se nele. Entregando-se ao prazer que lhe causava o ambiente familiar, invocou das unidades de memória seus últimos esforços de pintura e escultura, examinando-os com olho crítico. Se antes não haviam conseguido satisfazê-lo, agradavam-lhe agora menos ainda, não lhe despertando qualquer orgulho. A pessoa que os havia criado não existia mais, a Alvin parecia ter comprimido toda a experiência de uma vida nos poucos dias que passara fora de Diaspar.
Apagou todos esses produtos de sua adolescência, cancelando-os para sempre, não simplesmente devolvendo-os ao Banco de Memória. O aposento voltou a ficar vazio, tudo que havia nele era o divã em que estava deitado e o robô, que ainda olhava, com seus olhos largos e insondáveis. O que o robô pensaria de Diaspar? — imaginou Alvin. Depois, lembrou-se de que a cidade não lhe era estranha, pois ele a havia conhecido nos últimos dias em que Diaspar mantivera contacto com as estrelas.
Só quando se sentiu inteiramente tranqüilo em casa foi que Alvin começou a chamar seus amigos. Começou com Eriston e Etania, mais por um sentimento de dever do que por algum desejo real de vê-los e falar com eles novamente. Não ficou aborrecido quando os comunicadores dos pais adotivos lhe informaram que não estavam em casa, e Alvin deixou uma mensagem breve, informando-os sobre sua volta. Isso era inteiramente desnecessário, uma vez que a essa altura toda a cidade já estaria a par de seu regresso. Esperava, porém, que os pais apreciassem sua consideração, estava começando a aprender a cortesia, ainda que não houvesse compreendido que, como a maioria das virtudes, ela possui pouco mérito se não for espontânea e inconsciente.
Então, agindo por impulso, chamou o número que Khedron lhe dera na Torre de Loranne. Não esperava resposta, naturalmente, mas havia sempre a possibilidade de que Khedron houvesse deixado uma mensagem.
Seu palpite estava correto — só que a mensagem era assustadoramente inesperada.
A parede se dissolveu e Khedron estava de pé diante dele. O Bufão parecia cansado e nervoso, diferente da pessoa confiante e ligeiramente cínica que pusera Alvin no caminho de Lys. Havia em seus olhos uma expressão de animal caçado, e ele falava como se dispusesse de pouquíssimo tempo.
— Alvin — começou ele — isso é uma gravação. Só você pode recebê-la, mas pode utilizá-la como lhe aprouver. Nada me importará.
«Quando cheguei de volta ao Túmulo de Yarlan Zey, descobri que Alystra nos seguira. Ela deve ter avisado ao Conselho que você havia saído de Diaspar e que eu o ajudara. Logo os supervisores estavam à minha procura e resolvi esconder-me. Estou acostumado a isso… já o fiz antes, quando algumas de minhas brincadeiras não foram muito apreciadas. — (Aqui, pensou Alvin, estava um lampejo do velho Khedron.) — Não me encontrariam nem em mil anos… mas uma outra pessoa quase me encontrou. Há estrangeiros em Diaspar, Alvin, só podem ter vindo de Lys, e estão à minha procura. Não sei o que significa e não gosto nada disso. O fato de quase me terem apanhado, conquanto estejam numa cidade que lhes deve ser estranha, sugere que possuem poderes de telepatia. Eu seria capaz de lutar contra o Conselho, mas esse agora é um perigo desconhecido que prefiro não enfrentar.»
«Estou, por isso, antecipando-me a uma medida que acredito que o Conselho certamente se disporia a me aplicar, já que no passado houve ameaças disso. Estou indo para onde ninguém me pode seguir, e onde poderei escapar de todas as mudanças que estão para acontecer em Diaspar. Talvez seja tolice proceder assim, mas isso é uma coisa que só o tempo dirá. Um dia, saberei com certeza a resposta.»
«Você já imagina que voltei para a Casa da Criação, para a segurança dos Bancos de Memória. Aconteça o que acontecer, deposito minha confiança no Computador Central e nas forças que ele controla em benefício de Diaspar. Se alguma coisa afetar o Computador Central, estamos todos perdidos. Se isso não acontecer, nada tenho a temer.»
«Para mim, apenas um momento parecerá ter passado antes de eu pisar novamente nas ruas de Diaspar, daqui a cinqüenta ou cento e cinqüenta mil anos. Que espécie de cidade encontrarei? Será estranho se você estiver lá, algum dia, suponho, voltaremos a nos encontrar. Não sei dizer se espero com ansiedade esse encontro ou se o temo.»
«Nunca o compreendi, Alvin, embora houvesse uma época em que a vaidade me levou a crer que o compreendia. Só o Computador Central conhece a verdade, tal como sabe a verdade a respeito dos demais Únicos que têm aparecido de vez em quando, no decurso das eras, e que depois nunca mais foram vistos. Descobriu o que lhes aconteceu?»
«Suponho que um dos motivos pelos quais estou fugindo para o futuro é a minha impaciência. Desejo ver os resultados daquilo que você começou, mas estou ansioso por perder os estágios intermediários que, suspeito, poderão ser desagradáveis. Será interessante ver, num mundo que estará à minha volta apenas daqui a alguns minutos de tempo aparente, se você é lembrado como um criador ou como um destruidor… ou ver se você foi inteiramente esquecido.»
«Adeus, Alvin. Pensei em lhe dar alguns conselhos, mas creio que você não os aceitaria. Você seguirá seu próprio caminho, como sempre fez, e seus amigos serão apenas instrumentos a serem usados ou abandonados, conforme a ocasião.»
«Isso é tudo. Não me lembro de mais nada a dizer.»
Por um momento, Khedron — o Khedron que já não existia, salvo como um padrão de cargas elétricas nas células de memória da cidade — olhou Alvin com resignação e, aparentemente, tristeza. Depois a tela esvaziou-se.
Alvin permaneceu imóvel por muito tempo após a imagem de Khedron ter desaparecido. Estava sondando sua própria alma, como raramente havia feito em toda a vida, pois não podia negar a verdade de muito do que Khedron acabara de dizer. Quando foi que fizera uma pausa, em todos os seus planos e aventuras, para considerar o efeito do que estava fazendo sobre algum dos amigos? Havia-lhes trazido ansiedade e, em breve, poderia trazer coisas piores — tudo por causa de sua insaciável curiosidade e do impulso de descobrir o que não era conhecido.
Jamais fora muito amigo de Khedron, a personalidade ácida do Bufão impedia qualquer relacionamento mais estreito, mesmo que Alvin o houvesse desejado. No entanto, ao se lembrar das palavras com que Khedron se despedira, sentia-se tomado de remorso. Em decorrência de seus atos, o Bufão fugira do presente para o futuro ignoto.
Evidentemente, porém, pensou Alvin, não havia por que se culpar disso. O fato só provava o que ele já sabia — que Khedron era um covarde. Talvez não fosse mais covarde do que qualquer outra pessoa em Diaspar, mas tivera o infortúnio adicional de possuir fértil imaginação. Alvin podia assumir uma parte da responsabilidade por seu destino, mas de modo algum toda ela.
A quem mais em Diaspar causara mal ou sofrimento? Pensou em Jeserac, seu tutor, tão paciente com um pupilo dos mais difíceis. Lembrou-se de todas as pequenas gentilezas que os pais lhe haviam dispensado durante anos, agora percebia que tinham sido maiores do que imaginara.
E lembrou-se de Alystra. Ela o amara, e ele aceitara aquele amor ou o ignorara, segundo a ocasião. No entanto, que mais poderia ter feito? Teria ela sido mais feliz se a desdenhasse completamente?
Compreendia agora que jamais amara Alystra, como nenhuma das mulheres que conhecera em Diaspar. Essa era outra lição que Lys lhe ensinara. Diaspar esquecera-se de muitas coisas, e entre elas estava o verdadeiro significado do amor. Em Airlee vira as mães embalando os filhos no colo e sentira ele próprio aquela ternura protetora por todas as criaturas pequenas e desamparadas, ternura que é a desprendida irmã gêmea do amor. No entanto, não havia agora em Diaspar uma só mulher que conhecesse ou amasse aquilo que fora outrora a meta final do amor.
Não existiam emoções reais, paixões profundas, na cidade imortal. Talvez essas coisas só vicejassem devido à sua própria fugacidade, porque não podiam durar eternamente e jaziam sempre sob a sombra que Diaspar havia banido.
Foi esse o momento, se tal momento jamais existiu, em que Alvin compreendeu qual tinha de ser o seu destino. Até agora, havia sido o agente inconsciente de seus próprios impulsos. Se pudesse conceber uma analogia tão arcaica, poderia ter-se comparado ao montador de um cavalo que houvesse tomado o freio nos dentes. O animal levava-o a muitos lugares estranhos, e o mesmo poderia voltar a acontecer, mas em seu louco galope lhe mostrara seus poderes e lhe ensinara onde ele, Alvin, realmente desejava ir.
O devaneio de Alvin foi rudemente interrompido pelo carrilhão da tela. O timbre do som avisou-o de que não se tratava de um chamado, mas que chegara uma pessoa que desejava vê-lo. Deu o sinal de admissão e daí a um instante estava diante de Jeserac.
O tutor mostrava-se grave, mas não inamistoso.
— Pediram-me que o conduzisse à presença do Conselho, Alvin — ele disse. — Estão à sua espera. — Jeserac viu então o robô e examinou-o com curiosidade. — Quer dizer que este é o companheiro que você trouxe de suas viagens! Creio que seria melhor ele vir conosco.
Isso vinha a calhar para Alvin. O robô já o livrara de uma situação perigosa e possivelmente teria de ser-lhe novamente útil. Imaginou o que a máquina teria pensado a respeito das aventuras e vicissitudes em que tinha sido envolvida, e pela milésima vez desejou poder compreender o que se passava em sua mente hermeticamente lacrada. Alvin tinha a impressão de que por ora o robô decidira-se a ver, analisar e tirar suas próprias conclusões, nada fazendo por livre vontade até chegar o momento oportuno. Depois, talvez bem depressa, se resolvesse a agir, e o que então fizesse talvez não se coadunasse com os planos de Alvin. O único aliado que possuía estava ligado a ele por tênues laços de interesse, e poderia deserdá-lo a qualquer momento.
Alystra esperava-os na rampa que levava à rua. Mesmo que Alvin houvesse desejado culpá-la pelo papel que desempenhara na revelação de seu segredo, não teve coragem de fazê-lo. A aflição dela era palpável, seus olhos estavam rasos d'água quando se aproximou para saudá-lo.
— Oh, Alvin — ela disse. — O que vão fazer com você?
Alvin tomou-lhe as mãos com uma ternura que surpreendeu a ambos.
— Não se preocupe, Alystra — disse. — Tudo vai sair bem. Afinal, a pior coisa que o Conselho poderia fazer seria mandar-me de volta para os Bancos de Memória… e por algum motivo não creio que isso venha a acontecer.
A beleza e a infelicidade dela eram tão gritantes que, mesmo naquele momento, Alvin sentiu o corpo respondendo à sua presença, tal como nos velhos tempos. Mas era apenas atração física, Alvin não a desdenhava, mas aquilo já não bastava. Suavemente soltou as mãos e virou-se para acompanhar Jeserac em direção à Câmara do Conselho.
Alystra sentiu o coração magoado, mas não despedaçado, ao vê-lo partir. Percebeu que não o perdera, pois ele jamais lhe pertencera. E com a aceitação desse fato, começou a colocar-se além do poder das lamentações vãs.
Alvin mal notou os olhares curiosos ou horrorizados de seus concidadãos, enquanto ele e seus acompanhantes atravessavam as ruas familiares. Repassava os argumentos que poderia ter de usar e dispunha sua narrativa na forma que lhe fosse mais favorável. De vez em quando, assegurava a si mesmo que não estava absolutamente alarmado e que ainda era senhor da situação.
Esperaram apenas alguns minutos na ante-sala, mas foi tempo suficiente para que Alvin imaginasse por que, se não tinha medo, as pernas lhe tremiam tanto. A única vez em que havia conhecido essa sensação foi quando se obrigara a transpor as últimas encostas daquele monte distante de Lys, onde Hilvar lhe mostrara a cachoeira, de cujo topo avistara a explosão de luz que os atraíra a Shalmirane. Pensou no que Hilvar estaria fazendo naquele momento e em se algum dia voltariam a encontrar-se. De repente, pareceu-lhe muito importante que se revissem.
As grandes portas se abriram e ele seguiu Jeserac à Câmara do Conselho. Os vinte membros já se achavam em seus lugares, à mesa em forma de crescente, e Alvin sentiu-se lisonjeado ao perceber que não havia lugares vagos. Aquela devia ser a primeira vez, em muitos séculos, que o Conselho se reunia sem uma única abstenção. Em geral, suas raras reuniões eram apenas uma total formalidade, uma vez que todos os negócios rotineiros se resolviam com chamados de visifone e, se necessário, por uma entrevista entre o Presidente e o Computador Central.
Alvin conhecia de vista a maioria dos membros do Conselho, e sentiu-se reconfortado pela presença de tantos rostos familiares. Tal como Jeserac, não se mostravam hostis — apenas ansiosos e perplexos. Eram, afinal, homens razoáveis. Poderiam estar irritados com o fato de alguém haver provado que laboravam em erro, mas Alvin não acreditava que lhe votassem qualquer ressentimento. No passado isso teria sido suposição temerária, mas a natureza humana havia melhorado em certos aspectos.
Eles o ouviriam com justiça, mas o que pensariam não era o mais importante. Seu juiz não seria o Conselho. Seria o Computador Central.