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Não houve formalidades. O Presidente declarou aberta a sessão e virou-se para Alvin.
— Alvin — disse, com bastante cordialidade —, gostaríamos que nos contasse o que lhe aconteceu desde seu desaparecimento, dez dias atrás.
O emprego da palavra «desaparecimento», pensou Alvin, era altamente significativo. Ainda agora, o Conselho relutava em admitir que ele houvesse realmente saído de Diaspar. Duvidou que soubessem que estranhos vinham entrando na cidade. Nesse caso, teriam demonstrado muito mais alarme.
Alvin contou sua história com clareza e sem dramaticidade, já era bastante estranha aos ouvidos dos membros do Conselho e dispensava maiores embelezamentos. Somente num ponto afastou-se da rigorosa exatidão, pois nada disse a respeito da maneira como escapara de Lys. Parecia provável que tivesse de usar o mesmo método novamente.
Era fascinante observar como a atitude dos membros do Conselho se alterou durante o curso de sua narrativa. A princípio, mostraram-se céticos, recusando-se a aceitar a negação de tudo em que haviam acreditado, a violação de seus preconceitos mais profundos. Quando Alvin lhes falou de seu desejo passional de explorar o mundo que havia além da cidade, e de sua convicção irracional de que esse mundo realmente existia, fitaram-no como se ele fosse um animal estranho e incompreensível. Para suas mentes, com efeito, o era. Mas por fim viram-se obrigados a admitir que Alvin tivera razão, e que estavam enganados. A medida que a história se desenrolava, quaisquer dúvidas que pudessem ter tido lentamente se dissolveram. Poderiam não gostar do que Alvin lhes contara, mas já não podiam negar-lhe a veracidade. Caso se sentissem tentados a fazê-lo, bastava-lhes olhar o companheiro silencioso de Alvin.
Só houve um aspecto de sua história que lhes despertou indignação — e mesmo assim o sentimento não se dirigia contra ele. Um murmúrio de irritação percorreu a câmara quando Alvin explicou a ansiedade de Lys em evitar contaminação com Diaspar, e as medidas que Seranis tomara para evitar tal catástrofe. A cidade tinha orgulho de sua cultura, e com bons motivos. Que alguém pudesse considerá-los inferiores era mais do que os membros do Conselho podiam tolerar.
Alvin teve todo cuidado em não ofender ninguém, desejava até onde fosse possível, conquistar as boas graças do Conselho. Durante toda a exposição, tentou dar a impressão de não ter visto nada de errado no que fazia, e que esperava louvor, antes que censura, por suas descobertas. Era a melhor política a adotar, pois desarmava de antemão a maioria de seus possíveis detratores. Teve também o efeito — ainda que involuntário — de transferir toda culpa para o desaparecido Khedron. O próprio Alvin, fazia-se claro a seus interlocutores, era jovem demais para ver qualquer perigo no que estava fazendo. O Bufão, entretanto, deveria ter agido melhor, pois se comportara da maneira mais irresponsável possível. Ainda não sabiam o quanto o próprio Khedron havia concordado com eles.
O próprio Jeserac, como tutor de Alvin, merecia parte da censura, e de vez em quando vários dos conselheiros lançavam-lhe olhares significativos. Jeserac parecia não tomar conhecimento desses olhares, embora soubesse perfeitamente o que estava pensando. Havia uma certa honra em ter sido o preceptor do cérebro mais original surgido em Diaspar desde as Eras do Alvorecer, e nada podia roubar-lhe isso.
Não foi senão depois de ter findado o relato factual de suas aventuras que Alvin tentou um pouco de persuasão. De algum modo, teria de convencer esses homens das verdades que havia aprendido em Lys, mas como poderia fazer com que compreendessem realmente uma coisa que jamais tinham visto e dificilmente poderiam imaginar?
— Parece uma enorme tragédia — ele disse — que os dois ramos sobreviventes da raça humana se tenham separado durante período tão vasto. Um dia, talvez, poderemos vir a saber como isso se deu, porém mais importante agora é remediar o rompimento… evitar que ocorra novamente. Quando em Lys, protestei contra a concepção local, de que nos são superiores, podem ter muito o que nos ensinar, mas também temos muitas coisas para lhes dar. Se nossos povos acreditarem que nada temos a aprender uns com os outros, não será óbvio que ambos estamos errados?
Alvin olhou os rostos à sua frente e sentiu-se encorajado a prosseguir.
— Nossos ancestrais — continuou — construíram um império que alcançou as estrelas. Os homens percorriam à vontade esses mundos… e hoje seus descendentes receiam aventurar-se além das muralhas de sua cidade. Terei de dizer-lhes por quê? — Alvin fez uma pausa, não havia nenhum movimento no salão.
— E porque temos medo, medo de uma coisa que aconteceu nos primórdios da história. Contaram-me a verdade em Lys, embora eu a houvesse adivinhado há muito tempo. Deveremos para sempre nos ocultar como covardes, fingindo que nada mais existe… porque há um bilhão de anos os Invasores nos expulsaram de volta para a Terra?
Pusera o dedo no medo secreto que sentiam — o medo que ele jamais compartilhara e cujo poder, portanto, jamais entendera plenamente. Agora, que fizessem o que desejassem, ele proclamara a verdade, pelo menos tal como a via.
O Presidente olhou-o gravemente.
— Tem mais alguma coisa a dizer — perguntou — antes de considerarmos o que devemos fazer?
— Só uma coisa. Gostaria de levar esse robô à presença do Computador Central.
— Por quê? Você sabe que o Computador já está informado de tudo quanto aconteceu nesta sala.
— Ainda assim, quero ir — respondeu Alvin, polido, mas com obstinação. — Peço permissão tanto ao Conselho como ao Computador.
Antes que o Presidente pudesse responder, uma voz clara e calma soou pela câmara. Alvin jamais a escutara em sua vida, mas sabia quem falava. As máquinas de informação, que não passavam de fragmentos de vanguarda dessa grande inteligência, podiam falar aos homens — mas não possuíam esse tom inequívoco de sabedoria e autoridade.
— Que ele venha até mim — disse o Computador Central.
Alvin olhou o Presidente. Diga-se, a seu crédito, que não tentou explorar sua vitória. Simplesmente perguntou:
— Tenho permissão do Conselho para sair?
O Presidente olhou em torno, não viu sinal de discordância e respondeu um tanto contrafeito:
— Muito bem. Os supervisores o acompanharão e o trarão de volta, quando tivermos terminado nossa discussão.
Alvin fez uma ligeira mesura de agradecimento, as grandes portas se abriram e ele saiu lentamente da Câmara. Jeserac o havia acompanhado e, quando as portas se fecharam mais uma vez, ele se virou para encarar o tutor.
— O que pensa que o Conselho fará agora? — perguntou ansiosamente.
Jeserac sorriu.
— Impaciente como sempre, não? Não sei o quanto vale meu palpite, mas imagino que decidirão selar o Túmulo de Yarlan Zey, de modo que ninguém possa voltar a fazer a viagem. Então Diaspar poderá continuar como antes, sem ser perturbada pelo mundo lá fora.
— É disso que tenho medo — disse Alvin amargamente.
— E você ainda tenciona evitar que isso aconteça?
Alvin não respondeu imediatamente. Sabia que Jeserac adivinhara suas intenções, mas pelo menos seu tutor não lhe podia prever os planos, pois que não os tinha. Chegara ao estágio em que só podia improvisar e enfrentar cada nova situação quando ela surgia.
— Acha que tenho culpa? — perguntou daí a pouco, e Jeserac ficou surpreso com o novo tom de sua voz. Havia nele um quê de humildade, uma tênue sugestão de que pela primeira vez buscava a aprovação de seus conterrâneos. Aquilo comoveu Jeserac, mas ele era arguto demais para levá-lo muito a sério. Alvin achava-se sob considerável tensão, e não seria seguro supor que qualquer melhoria em seu caráter fosse permanente.
— Essa é uma pergunta muito difícil de responder — ele disse lentamente. — Sou tentado a dizer que todo conhecimento é valioso, e não há como negar que você acrescentou muito ao nosso conhecimento. Contudo, você aumentou também os nossos perigos, e a longo prazo o que será o mais importante? Quantas vezes você parou para pensar nisso?
Por um momento, mestre e aluno encararam-se em silêncio, cada qual talvez vendo o ponto de vista do outro mais claramente do que antes. Então, num impulso, viraram-se juntos e entraram no longo corredor de saída da Câmara do Conselho, com a escolta ainda os seguindo pacientemente na retaguarda.
Aquele mundo, percebeu Alvin, não fora feito para o homem. Sob o esplendor de intensas luzes azuis — tão brilhantes que feriam a vista — os longos e largos corredores pareciam estender-se até o infinito. Por aquelas grandiosas passagens os robôs de Diaspar deviam transitar durante todas as suas vidas intermináveis, sem que nunca, em séculos, ouvissem o som de passos humanos.
Ali estava o subterrâneo da cidade, a cidade de máquinas sem as quais Diaspar não podia existir. A algumas centenas de metros, o corredor abria-se numa câmara circular com mais de quilômetro e meio de diâmetro, o teto suportado por colossais colunas que tinham também de arcar com o peso inimaginável do Centro de Força. Ali, segundo os mapas, o Computador Central conjecturava eternamente sobre o destino de Diaspar.
A câmara ali estava, e era ainda mais vasta do que Alvin ousara imaginar — mas onde estava o Computador? Por alguma razão esperara encontrar uma única máquina gigantesca, por mais ingênua que fosse tal concepção. O panorama fantástico, mas despido de significado, à sua frente, fez com que se detivesse, tomado de assombro e incerteza.
O corredor, pelo qual tinham chegado ali, terminava no alto da parede da câmara — certamente a maior cavidade jamais construída pelo homem — e de ambos os lados longas rampas desciam para o piso distante. Toda aquela expansão brilhantemente iluminada achava-se coberta por centenas de grandes estruturas brancas, algo tão inesperado, que por um momento Alvin pensou que estivesse contemplando uma cidade subterrânea. A impressão era acentuadamente vívida, e por toda sua vida jamais a perderia. Em parte alguma havia o que esperava ver — o familiar brilho de metal que desde o começo do tempo o Homem aprendera a associar com seus servos.
Ali estava o fim de uma evolução quase tão longa quanto a do Homem. Seus primórdios perdiam-se nas brumas das Eras do Alvorecer, quando a humanidade aprendera o emprego da força e enviara seus motores ruidosos por todo o mundo. Vapor, água, vento — tudo tinha sido mobilizado por algum tempo e depois abandonado. Por séculos, a energia da matéria havia também movido o mundo, até ser por seu turno descartada, e a cada mudança as máquinas antigas eram esquecidas e outras novas ocupavam-lhes o lugar. Vagarosamente, no decurso de milhares de anos, aproximava-se do ideal da máquina perfeita — aquele ideal que fora primeiramente um sonho, depois uma perspectiva distante, e por fim uma realidade:
Nenhuma máquina pode conter qualquer parte móvel.
Ali estava a expressão suprema daquele ideal. Sua realização custara ao Homem talvez cem milhões de anos, e no momento de seu triunfo ele voltara as costas à máquina para sempre. A máquina atingira a perfeição, doravante poderia manter-se eternamente, enquanto o servia.
Alvin já não se perguntava mais quais daquelas silentes presenças brancas era o Computador Central. Sabia que eram todas — e que ele se estendia para muito além daquela câmara, incluindo em seu ser todas as incontáveis máquinas de Diaspar, móveis ou não. Da mesma forma que seu próprio cérebro era a soma de muitos bilhões de células separadas, organizadas num volume de espaço de alguns centímetros, também os elementos físicos do Computador central estavam espalhados por toda a extensão de Diaspar. Aquela câmara poderia não encerrar mais do que o sistema pelo qual todas essas unidades dispersas se mantinham em contacto recíproco.
Inseguro quanto ao caminho a tomar, Alvin contemplou as grandes rampas e a arena silenciosa. O Computador Central deveria saber que ele se encontrava ali, uma vez que sabia tudo quanto acontecia em Diaspar. Só lhe cabia aguardar instruções.
A voz agora familiar, mas ainda assustadora, soou tão serena e tão perto dele, que Alvin não acreditou que sua escolta pudesse também ouvi-la.
— Siga pela rampa da esquerda — disse. — Depois darei novas instruções.
Alvin desceu lentamente pela rampa, com o robô a flutuar sobre sua cabeça. Nem Jeserac nem os supervisores o seguiram, Alvin ficou a pensar se teriam recebido ordens para lá permanecerem, ou se haviam concluído que poderiam exercer vigilância sobre ele do ponto onde estavam, no alto, sem se darem ao trabalho de empreender a longa descida. Ou talvez já houvessem chegado o mais próximo que se atreviam do santuário central de Diaspar.
Ao pé da rampa, a voz serena deu novas instruções, e ele pôs-se a caminhar entre uma avenida de adormecidas formas titânicas. Por três vezes a voz falou-lhe novamente, até que daí a momentos entendeu que chegara ao destino.
A máquina diante da qual se encontrava era menor do que a maioria das companheiras, mas ainda assim se sentiu minúsculo em comparação a ela. Os cinco pavimentos, com suas amplas linhas horizontais, davam a impressão de um animal agachado e, desviando o olhar para seu próprio robô, Alvin achou difícil acreditar que ambos fossem produtos da mesma evolução, sendo ambos designados pela mesma palavra.
A cerca de um metro do chão, um largo painel transparente percorria toda a extensão da estrutura. Alvin premiu a testa contra o material liso e curiosamente morno, perscrutando as entranhas da máquina. De início, nada viu, depois, protegendo os olhos, distinguiu milhares de tênues pontos de luz pairando no vazio. Estavam dispostos um após o outro, numa treliça tridimensional, tão estranha e sem sentido para ele como as estrelas certamente teriam sido para o homem antigo. Embora olhasse por muitos minutos, esquecido da passagem do tempo, as luzes coloridas nem uma vez se moveram nem seu brilho se alterou.
Se pudesse contemplar o interior de seu próprio cérebro, percebeu Alvin, nada entenderia tampouco. A máquina parecia inerte e imóvel porque ele não podia ver seus pensamentos.
Pela primeira vez, começou a ter um remoto entendimento dos poderes e das forças que mantinham a cidade. Por toda a vida aceitara sem discussão o milagre dos sintetizadores, que era após era proviam o fluxo incessante das necessidades de Diaspar. Milhares de vezes assistira àquele ato de criação, raramente se lembrando de que em algum lugar deveria existir o protótipo daquilo que ele via chegar ao mundo.
Da mesma forma que o cérebro humano pode demorar-se um instante sobre um único pensamento, também os cérebros infinitamente maiores, que não representavam senão uma porção do Computador Central, podiam apreender e aguardar para sempre as mais complexas idéias. Os padrões de todas as coisas criadas estavam congelados naquelas mentes eternas, carecendo apenas do toque de uma vontade humana para torná-las realidade.
O mundo percorrera longo caminho desde que, hora após hora, os primeiros cavernícolas haviam talhado pacientemente suas pontas de flechas e suas facas na pedra obstinada..
Alvin esperava, não ousando falar até receber algum outro sinal de reconhecimento. Imaginava como o Computador Central tinha ciência de sua presença, podia vê-lo e ouvir sua voz. Em parte alguma viam-se indícios de órgãos sensonais — nada dos gradis, telas ou impassíveis olhos de cristal através dos quais os robôs normalmente tomavam conhecimento do mundo que os rodeava.
— Exponha seu problema — disse a voz serena a seu ouvido. Parecia estranho que aquela esmagadora massa de maquinaria resumisse seus pensamentos com tamanha suavidade. Alvin entendeu então que estava sendo presunçoso, talvez nem mesmo uma milionésima parte do Computador Central estivesse tratando com ele, que não passava de um dos inumeráveis incidentes que chegavam à sua atenção simultânea enquanto vigiava Diaspar.
Era difícil falar com uma presença que enchia todo o espaço ao redor. As palavras de Alvin como que morriam no ar vazio assim que ele as pronunciava.
— O que sou? — perguntou.
Houvesse ele colocado tal pergunta a uma das máquinas de informação da cidade, sabia qual teria sido a resposta. Com efeito, várias vezes o tinha feito, e sempre lhe haviam respondido: «Você é um homem». Mas agora estava lidando com uma inteligência de ordem totalmente diversa, e não havia necessidade de dificultosa precisão semântica. O Computador Central saberia o que ele queria dizer, o que, porém, não significava que estivesse disposto a responder-lhe.
Na verdade, a resposta foi exatamente a que Alvin temera.
— Não posso responder a essa pergunta. Fazê-lo representaria revelar o objetivo de meus construtores e, portanto, anulá-lo.
— Então meu papel foi planejado quando a cidade foi construída?
— Isso pode ser dito de todo e qualquer ser humano.
Essa resposta obrigou Alvin a fazer uma pausa. Era verdadeira, sem dúvida. Os habitantes de Diaspar tinham sido projetados com o mesmo cuidado que suas máquinas. O fato de ser um Único transformava Alvin em raridade, mas não havia necessariamente virtude alguma nisso.
Sabia que ali não poderia aprender nada mais com relação ao mistério de sua origem. Era inútil tentar ludibriar aquela vasta inteligência, ou esperar que ela revelasse informações que, pelas ordens recebidas, devia ocultar. Alvin não se sentiu exageradamente desapontado, achava que já começara a vislumbrar a verdade, e de qualquer maneira não era esse o principal objetivo de sua visita.
Olhou o robô trazido de Lys e ficou a pensar como proceder a seguir. O robô poderia reagir violentamente se soubesse o que estava planejando, de modo que era essencial não entreouvir ele o que pretendia dizer ao Computador Central.
— Pode-se obter uma zona de silêncio? — perguntou.
Instantaneamente, sentiu a inequívoca sensação «morta», o amortecimento total de todos os sons, que ocorria quando uma pessoa se encontrava dentro de uma dessas zonas. A voz do Computador, agora curiosamente sem expressão e sinistra, falou:
— Ninguém pode ouvir-nos agora. Diga o que quer. — Alvin olhou de relance para o robô, não havia mudado de posição. Talvez de nada suspeitasse, e ele cometesse erro ao imaginar que a máquina tivesse planos próprios. Talvez ela o houvesse acompanhado a Diaspar como um servo fiel e digno de confiança e nesse caso o que ele estava agora planejando parecia um golpe particularmente baixo.
— Você deve estar a par de que encontrei esse robô — começou Alvin. — Ele deve possuir conhecimentos inestimáveis do passado, que remontam aos dias anteriores à cidade tal como a conhecemos. Poderá até ser capaz de nos falar sobre outros mundos além da Terra, uma vez que acompanhou o Mestre em suas viagens. Infelizmente, seus circuitos de fala acham-se bloqueados. Não sei até onde vai a eficácia desse bloqueio, mas peço-lhe que o anule.
Sua voz soava morta e oca na zona de silêncio, que absorvia cada palavra antes que pudesse formar um eco. Esperou, dentro daquele vazio invisível e sem reverberações, que seu pedido fosse deferido ou rejeitado.
— Seu pedido envolve dois problemas — respondeu o Computador. — Um deles é moral, o outro é técnico. Esse robô foi projetado para obedecer às ordens de um determinado homem. Que direito tenho de passar sobre elas mesmo que possa fazê-lo?
Essa era uma pergunta que Alvin previra e para a qual havia preparado várias respostas.
— Não sabemos a forma exata que tomou a proibição do mestre — respondeu. — Se você puder falar ao robô, poderá talvez persuadi-lo de que as circunstâncias nas quais o bloqueio foi imposto acham-se agora alteradas.
Isso representava, naturalmente, a abordagem óbvia ao problema. O próprio Alvin a tentara, sem êxito, mas esperava que o Computador Central, com seus recursos mentais infinitamente maiores, fosse capaz de ter sucesso onde ele falhara.
— Isso depende inteiramente da natureza do bloqueio — foi a resposta. — É possível criar um bloqueio que se modificado, fará com que o conteúdo das células de memória seja cancelado. Contudo, creio ser improvável que o Mestre possuísse perícia suficiente para fazer isso, pois tal procedimento envolve técnicas altamente especializadas. Perguntarei à sua máquina se um circuito de cancelamento foi acoplado em suas unidades de memória.
— Mas suponhamos — interpôs Alvin, com súbito alarme — que o cancelamento da memória seja causado por uma mera pergunta a respeito da existência desse circuito?
— Há um procedimento padrão para tais casos, e vou segui-lo. Darei instruções secundárias, dizendo à máquina que ignore minha pergunta se tal situação existir. Será simples então assegurar o seu envolvimento num paradoxo lógico, de modo que, quer ela me responda, quer não diga nada, será forçada a desobedecer às instruções recebidas. Nesse casos, todos os robôs agem da mesma maneira, para sua própria proteção. Eles limpam seus circuitos de entrada e agem como se não tivesse sido feita pergunta alguma.
Alvin quase se arrependeu de ter levantado a questão, e depois de um momento de luta mental decidiu que ele também adotaria a mesma tática, fingindo que jamais tinha feito a pergunta. Pelo menos estava tranqüilo com relação a uma coisa — o Computador Central estava plenamente preparado para lidar com quaisquer armadilhas que pudessem existir nas unidades de memória do robô. Alvin não tinha desejo algum de ver a máquina reduzida a uma pilha de sucata, preferia vê-la voltar para Shalmirane com seus segredos ainda intactos.
Esperou com o máximo de paciência que pôde, enquanto ocorria o silencioso e impalpável encontro de intelectos. Ali se processava um encontro entre duas mentes, ambas criadas pelo gênio humano na idade áurea, há muito perdida, de sua realização suprema. Agora ambas se achavam além da compreensão total de qualquer homem vivo.
Minutos depois, ouviu-se de novo a voz sem eco do Computador Central.
— Estabeleci contato parcial — disse. — Pelo menos conheço a natureza do bloqueio, e creio saber porque foi imposto. Só há uma maneira pela qual ele pode ser suspenso. Antes que os Grandes voltem à Terra, esse robô jamais falará novamente.
— Mas isso é absurdo! — protestou Alvin. — O outro discípulo do Mestre também acreditava neles, e tentou explicar-nos como eram. Durante a maior parte do tempo, falava coisas sem sentido. Os Grandes nunca existiram e nunca existirão.
Parecia um impasse completo, e Alvin sentiu um amargo desapontamento. Fora afastado da verdade pelos desejos de um homem que enlouquecera e que morrera havia um bilhão de anos.
— Talvez você tenha razão — disse o Computador Central — ao dizer que os Grandes nunca existiram. Mas isso não significa que nunca existirão.
Houve outro longo silêncio enquanto Alvin considerava o significado dessa observação e enquanto as mentes dos dois robôs refaziam seu delicado contacto. Então, sem qualquer aviso, ele se viu em Shalmirane.