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Jeserac caminhava em silêncio pelas ruas de uma Diaspar que ele nunca vira. Tão diferente, com efeito, da cidade onde passara todas as suas vidas, que não a teria reconhecido. No entanto, sabia tratar-se de Diaspar, embora não parasse para perguntar como o sabia.
As ruas eram mais estreitas, os edifícios mais baixos, e o Parque não existia mais, ou melhor, não existia ainda. Aquela era a Diaspar de antes da mudança, a Diaspar que estivera aberta ao mundo e ao Universo. O céu acima da cidade era de um azul-pálido, salpicado de nuvens esfiapadas, que lentamente se contorciam e giravam, levadas pelos ventos que sopravam sobre a face dessa Terra mais jovem.
Através das nuvens, assim como além delas, passavam viajantes mais concretos. Quilômetros sobre a cidade, marcando o azul com suas tênues esteiras, iam e vinham as naves que ligavam Diaspar com o mundo. Jeserac contemplou por longo tempo o mistério e a maravilha do céu aberto, e por um momento o medo roçou sua alma. Sentia-se nu e desprotegido, consciente de que aquela pacífica cúpula azul sobre sua cabeça não era mais do que o mais fino dos envoltórios — e que mais além se estendia o Espaço, com todo seu mistério e suas ameaças.
O medo não era bastante forte para paralisar-lhe a vontade. Em alguma parte de sua mente, Jeserac sabia que toda aquela experiência era um sonho, e um sonho não lhe podia fazer mal, até que acordasse novamente na cidade que conhecia.
Estava caminhando para o coração de Diaspar, em direção ao ponto onde, em sua própria era, situava-se o túmulo de Yarlan Zey. Não havia túmulo algum ali, naquela cidade antiga, apenas um edifício baixo e circular, em que se entrava por vários portais em arco. Junto de um desses portais, um homem esperava por ele.
Jeserac deveria ter ficado assombrado, mas agora já nada era capaz de surpreendê-lo. De alguma forma parecia certo e natural que ele devesse estar agora face a face com o homem que construíra Diaspar.
— Creio que você me reconhece — disse Yarlan Zey.
— Claro, já vi sua estátua mil vezes. Você é Yarlan Zey, e essa é Diaspar, tal como há um bilhão de anos. Sei que estou sonhando, e que nem eu nem você estamos realmente aqui.
— Nesse caso, não precisa ficar alarmado com nada que venha a acontecer. Siga-me, e lembre-se de que nada poderá fazer-lhe mal, pois, quando quiser, poderá despertar em Diaspar… em seu próprio tempo.
Obedientemente, Jeserac acompanhou Yarlan Zey, entrando no edifício. Seu espírito era uma esponja receptiva, incapaz de posicionamento crítico. Alguma lembrança, ou eco de lembrança, advertia-o de que alguma coisa iria acontecer em seguida, e ele sabia que no passado teria fugido daquilo, tomado de horror. Agora, entretanto, não sentia medo algum. Não só se sentia protegido pelo conhecimento de que aquela experiência não era real, como também a presença de Yarlan Zey parecia ser um talismã contra quaisquer perigos que pudessem confrontá-lo.
Havia poucas pessoas descendo pelas vias deslizantes que conduziam às profundezas do edifício, e ninguém lhes fazia companhia quando daí a momentos se colocaram, em silêncio, do lado do cilindro longo e aerodinâmico que, sabia Jeserac, era capaz de tirá-lo da cidade, numa jornada que outrora haveria de dilacerar-lhe a mente. Quando seu guia apontou a porta aberta, ele não fez mais que uma pausa momentânea antes de entrar.
— Viu? — disse Yarlan Zey, sorrindo. — Agora, acalme-se e lembre-se de que está em segurança… que nada pode fazer-lhe mal.
Jeserac acreditava nele. Sentiu apenas ligeiro estremecimento quando a entrada do túnel deslizou silenciosamente em sua direção e a máquina em que ele viajava começou a ganhar velocidade, arrojando-se pelas profundezas da terra. Quaisquer que fossem seus temores, haviam sido esquecidos em sua ansiedade de conversar com aquela figura quase mítica do passado.
— Não lhe parece estranho — começou Yarlan Zey — que, embora os céus estejam abertos para nós, tenhamos tentado soterrar-nos na Terra? É o começo da doença cujo fim você viu em sua época. A humanidade está tentando esconder-se, está assustada com aquilo que jaz lá fora, no espaço, e em breve terá fechado todas as portas que levam ao Universo.
— Mas eu vi naves espaciais sobre Diaspar — disse Jeserac.
— Não serão vistas por muito tempo ainda. Perdemos contacto com as estrelas, e em breve até os planetas estarão desertos. Levamos milhões de anos para realizar a jornada para o espaço, mas apenas alguns séculos para retornar às bases. E dentro de pouco tempo teremos abandonado quase toda a própria Terra.
— Por que fizeram isso? — perguntou Jeserac. Ele conhecia a resposta, mas por algum motivo sentiu-se impelido a formular a pergunta.
— Precisávamos de um refúgio onde nos abrigássemos de dois medos: o medo da Morte e o medo do Espaço. Éramos uma raça doente e não queríamos mais ter nada a ver com o Universo… e por isso fingimos que ele não existia. Já vimos o caos reinar entre as estrelas, e desejávamos paz e estabilidade. Por isso, Diaspar tinha de ser fechada, para que nada de novo jamais pudesse entrar na cidade.
«Projetamos a cidade que você conhece e inventamos um falso passado para ocultar nossa covardia. Ah, não fomos os primeiros a fazer isso… mas fomos os primeiros a fazê-lo completamente. E redesenhamos o espírito humano, retirando-lhe a ambição e as paixões mais violentas, de modo que se satisfizesse com o mundo que agora possuía.»
«Foi preciso mil anos para construir a cidade e todas as suas máquinas. A medida que cada um completava sua tarefa, eram lavadas as memórias de sua mente, implantando-se um padrão cuidadosamente planejado de falsas recordações, sendo sua identidade armazenada nos circuitos da cidade até que fosse necessário chamá-la de volta à existência.»
«Assim, chegou finalmente o dia em que já não restava em Diaspar um único homem vivo. Só havia o Computador Central, obedecendo às ordens com que fora alimentado e controlando os bancos de memória em que estávamos dormindo. Não havia ninguém que tivesse qualquer contacto com o passado… Assim, nesse ponto, a história começou.»
«Então, um a um, numa seqüência predeterminada, fomos convocados dos circuitos de memória e ganhamos carne outra vez. Como uma máquina recém-terminada e posta a funcionar pela primeira vez, Diaspar começou a desempenhar as tarefas para que fora projetada.»
«No entanto, alguns nutriam dúvidas desde o começo. A eternidade era muito longa, percebíamos os riscos envolvidos em não deixar nenhuma válvula de escape e em tentar fechar-nos completamente do Universo. Não podíamos desafiar os desejos de nossa cultura, de modo que trabalhamos em segredo, impondo as modificações que supúnhamos necessárias.»
«Os Únicos foram invenção nossa. Apareceriam a longos intervalos e, se as circunstâncias lhes permitissem, descobririam se haveria além de Diaspar qualquer coisa que valesse os riscos do contacto. Jamais imaginamos que seria preciso tanto tempo para que um deles tivesse êxito… nem imaginamos que esse êxito seria tão grande.»
Apesar da suspensão das faculdades críticas, que constitui a própria essência de um sonho, Jeserac surpreendeu-se, fugazmente, com a maneira como Yarlan Zey era capaz de falar com tamanha segurança de coisas acontecidas um bilhão de anos após o tempo em que ele vivera. Era tudo muito confuso… e ele não sabia mais em que ponto do espaço ou do tempo se encontrava.
A viagem estava chegando ao fim, as paredes do túnel já não ficavam para trás a uma velocidade tão estonteante. Yarlan Zey começou a falar com uma rapidez e uma autoridade que não havia demonstrado antes.
— O passado terminou. Fizemos nosso trabalho para o bem ou para o mal, e isso não está mais em discussão. Quando você foi criado, Jeserac, foi-lhe inoculado aquele medo do mundo exterior, bem como aquela compulsão de permanecer dentro dos limites da cidade, medo e compulsão que você compartilha com todos em Diaspar. Você sabe agora que o medo era infundado, que ele lhe foi imposto artificialmente. Eu, Yarlan Zey, que lhe gerei esse medo, agora o liberto. Compreende?
Com essas últimas palavras, a voz de Yarlan Zey alteou-se cada vez mais, até parecer reverberar através de todo o espaço. O túnel através do qual se precipitavam como que se esfumou e estremeceu ao redor de Jeserac, parecendo indicar que o sonho estava chegando ao fim. No entanto, enquanto a visão desaparecia, ele ainda escutava aquela voz imperiosa, tronitruando em seus ouvidos:
— Você não tem mais medo, Jeserac. Você não tem mais medo.
Jeserac esforçou-se para despertar, tal como um mergulhador sobe das profundezas oceânicas para a superfície do mar. Yarlan Zey desaparecera, houve, porém, um interregno estranho em que vozes que ele conhecia, mas não podia reconhecer, lhe falaram encorajadoramente e ele se sentiu apoiado em braços amigos. Então, como uma rápida aurora, tomou consciência da realidade.
Abriu os olhos e viu Alvin, Hilvar e Gerane de pé a seu lado, com expressões de ansiedade. Mas não lhes prestou atenção, sua mente estava excessivamente ocupada em receber as maravilhas que se estendiam agora diante dele — o panorama de rios e florestas e a abóbada azul do céu aberto.
Ele estava em Lys. E não sentia medo.
Ninguém o perturbou naquele momento fora do tempo que se gravava para sempre em seu espírito. Por fim, quando se convenceu de que tudo aquilo era realmente real, voltou-se para os companheiros.
— Obrigado, Gerane — disse. — Nunca acreditei que você tivesse sucesso.
O psicólogo, demonstrando grande satisfação consigo mesmo, estava fazendo ajustes delicados numa pequena máquina que pairava no ar, a seu lado.
— Você nos causou alguns momentos de ansiedade — admitiu. — Por duas ou três vezes começou a fazer perguntas que não podiam ser respondidas logicamente, e fiquei com medo de ter de quebrar a seqüência.
— Suponhamos que Yarlan Zey não me houvesse convencido… o que você teria feito nesse caso?
— Teríamos de mantê-lo inconsciente e o levaríamos de volta a Diaspar, onde você poderia ter despertado naturalmente, sem jamais saber que estivera em Lys.
— E quanto àquela imagem de Yarlan Zey que você injetou em minha mente… até onde o que ele disse era verdade?
— Quase tudo, creio. Eu estava muito mais interessado em que minha pequena Saga fosse convincente do que em que tivesse exatidão histórica, mas Callitrax examinou-a e não achou erro algum. Está de acordo com tudo que sabemos sobre Yarlan Zey e as origens de Diaspar.
— Agora, então, podemos realmente abrir a cidade — disse Alvin. — Isso pode levar muito tempo, mas algum dia poderemos neutralizar esse medo, de modo que todos quantos queiram possam sair de Diaspar.
— Levará muito tempo — respondeu Gerane secamente. — E não se esqueça de que Lys não é suficientemente grande para receber várias centenas de milhões de pessoas a mais, se todo seu povo resolver vir aqui. Não creio que isso seja provável, mas é possível.
— Esse problema se resolverá por si mesmo — respondeu Alvin. — Lys pode ser pequena, mas o mundo é grande. Por que haveríamos de deixá-lo todo para o deserto?
— Com que então, Alvin, você ainda está sonhando — disse Jeserac, com um sorriso. — Eu estava pensando o que você estaria disposto a fazer agora…
Alvin não respondeu. Aquela era uma questão que se vinha impondo a ele, com insistência cada vez maior, nas últimas semanas. Ficou ensimesmado, caminhando atrás dos outros, enquanto desciam a colina em direção a Airlee. Seriam os séculos vindouros um longo período de tédio e ociosidade?
A resposta estava em suas próprias mãos. Ele se havia desincumbido de seu destino. Agora, talvez pudesse começar a viver.