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Capítulo IV

Jeserac não foi de grande ajuda, muito embora não se mostrasse tão reticente quanto Alvin temia. Já escutara aquelas perguntas em sua longa carreira de mentor, e não acreditava que mesmo um Único pudesse causar muitas surpresas ou trazer-lhe problemas que não estivesse em condições de resolver.

Era bem verdade que Alvin começava a mostrar algumas pequenas excentricidades de conduta que mais cedo ou mais tarde poderiam exigir correção. Não participava, como seria de desejar, da vida social meticulosamente elaborada de Diaspar, nem dos mundos de fantasia dos companheiros. Não demonstrava grande interesse pelos domínios mais elevados do pensamento, o que era de admirar, sobretudo em sua idade. Mais estranha ainda era sua insólita vida amorosa. Não se esperava que ele viesse a formar uniões estáveis pelo menos antes de passado um século, mas a brevidade de seus romances já se tornara conhecida. Eram intensos enquanto duravam — mas nenhum deles ultrapassara algumas semanas. Segundo tudo indicava, Alvin só era capaz de se concentrar em uma coisa de cada vez. Em certas ocasiões, entregava-se de corpo e alma aos jogos eróticos dos companheiros, ou desaparecia por vários dias com a companheira escolhida. Contudo, uma vez cessada a animação, sobrevinham prolongados períodos em que se mostrava de todo alheio àquilo que deveria representar o maior interesse de sua idade. Sem dúvida, isso era ruim para ele, e pior ainda para suas amantes abandonadas, que se punham a vaguear pela cidade e gastavam tempo enorme até encontrar consolo. Conforme Jeserac percebera, Alystra chegara agora a essa situação deplorável.

Não que Alvin fosse frio ou leviano. Mas nas coisas do amor, como em tudo mais, tinha-se a impressão de que ele buscava uma meta que Diaspar não lhe poderia fornecer.

Contudo, nada disso preocupava Jeserac. Um Único estaria certamente sujeito a tais distorções. No momento apropriado, Alvin passaria a obedecer às normas gerais da cidade. Ninguém, por mais excêntrico ou brilhante que fosse, seria capaz de afetar a inércia colossal de uma sociedade que permanecera praticamente imutável durante aproximadamente um bilhão de anos. Jeserac não se limitava a acreditar em estabilidade, para ele, além da estabilidade, nada mais era concebível.

— O problema que o afeta é muito antigo — disse ele a Alvin —, mas você ficaria surpreso ao saber quantas pessoas aceitam o mundo passivamente. É verdade que a raça humana ocupou no passado um espaço infinitamente maior do que o desta cidade. Você já viu um pouco do que a Terra era, antes que os desertos se alastrassem e os oceanos desaparecessem. Essas lembranças que você projeta com tanto prazer são as mais remotas que possuímos, as únicas que mostram o planeta antes da chegada dos Invasores. Não acredito que muita gente tenha visto essas imagens antigas. Aqueles espaços ilimitados, abertos para o infinito, não podem ser suportados por todos.

«E mesmo a Terra, veja bem, não passa de um grão de areia no Império Galáctico. O vazio entre os abismos interestelares constitui um pesadelo que nenhum homem saudável tentaria imaginar. Nossos ancestrais cruzaram esses abismos na aurora da história, quando saíram para construir o Império. Cruzaram-nos novamente quando os Invasores os expulsaram da face da Terra.»

«A lenda diz (e trata-se apenas de uma lenda, veja) que celebramos um pacto com os Invasores. Poderiam ficar com o Universo que tanto desejavam, e nós nos contentaríamos com o mundo em que havíamos nascido.»

«Mantivemos o pacto e esquecemos os sonhos vãos de nossa infância, da mesma forma como você também esquecerá os seus, Alvin. Os homens que construíram esta cidade, e que planejaram a sociedade que ela gerou, eram senhores das mentes e da matéria. Colocaram dentro destas paredes tudo quanto a raça humana pudesse vir a desejar — e garantiram que jamais sairíamos daqui.»

«Ah, as barreiras físicas são as menos importantes. É possível que haja caminhos para fora da cidade, mas não creio que você os seguisse até o fim, caso os encontrasse. E mesmo que fosse bem sucedido, que vantagem obteria? Seu corpo não resistiria por muito tempo no deserto, quando a cidade o deixasse de proteger e nutrir.''

— Se existe um caminho para fora da cidade — disse Alvin devagar — o que me impede de ir embora?

— Essa é uma pergunta tola — respondeu Jeserac. — Acho que você já sabe a resposta.

Jeserac estava certo, mas de um modo diferente do que imaginava. Alvin realmente já sabia — ou melhor, adivinhara. Seus companheiros lhe haviam fornecido a resposta, tanto na vida consciente como nas aventuras oníricas que haviam compartilhado. Nunca tinham sido capazes de deixar Diaspar, o que Jeserac ignorava, entretanto, era que a compulsão que governava a vida deles não tinha nenhum poder sobre Alvin. Este não sabia se sua condição de Único havia sido causada por um acidente ou por desígnio antigo, mas uma de suas conseqüências tinha sido esta. E Alvin perguntava-se quantas dessas conseqüências ele teria ainda a desvendar.

Em Diaspar ninguém tinha pressa, e esta era uma regra que nem mesmo Alvin violava com freqüência. Durante várias semanas pensou cuidadosamente no problema, e gastou muito tempo repassando na memória histórias mais antigas da cidade. Passou horas a fio apoiado nos braços impalpáveis de um campo antigravitacional, enquanto o projetor hipnótico lhe abria a mente para o passado. Quando o registro terminava, a projeção vacilava e sumia, mas Alvin permanecia ali, deitado, olhando para o vazio, antes de regressar das épocas remotas e encarar a realidade. Via ainda as léguas infindas de águas azuis, mais vastas do que a própria terra, rolando em ondas contra as praias douradas. Em seus ouvidos ressoavam ainda o quebrar dos vagalhões desaparecidos havia um bilhão de anos. Recordava as florestas e as pradarias, bem como os estranhos animais que tinham dividido o mundo com o Homem.

Eram raros esses registros antigos. Aceitava-se pacificamente, embora ninguém soubesse a razão, que em certa ocasião, entre a chegada dos Invasores e a construção de Diaspar, todas as memórias dos tempos primitivos se tinham perdido. E essa destruição fora tão completa que era difícil atribuí-la a mero acidente. A humanidade perdera o seu passado, à exceção de algumas crônicas que podiam ser inteiramente lendárias. Antes de Diaspar tudo era simples — as Origens. Naquele limbo estavam mergulhados, juntos, os primeiros homens que haviam domesticado o fogo e os primeiros a libertar a energia atômica, os primeiros a construir uma canoa de madeira e os primeiros a alcançar as estrelas. No lado remoto desse deserto de tempo, todos eram vizinhos.

Alvin pretendia realizar suas experiências sozinho, mas solidão era coisa difícil de conseguir em Diaspar. Logo que saiu do quarto, deu com Alystra, que de modo algum procurou dar à sua presença ali um ar de casualidade.

Jamais ocorrera a Alvin que Alystra fosse bela, pois jamais vira a fealdade humana. Quando a beleza é universal, ela perde seu poder sobre o coração, e só a sua ausência é capaz de produzir qualquer efeito emocional.

Por um instante, Alvin aborreceu-se com o encontro, que trazia a lembrança de paixões já estéreis para ele. Ainda era por demais jovem e auto-suficiente para sentir necessidade de ligações duradouras, e quando a ocasião chegasse talvez viesse a ter dificuldade para mantê-las. Mesmo nos momentos de maior intimidade a barreira de sua singularidade se interpunha entre ele e suas amantes. Acontecia que, como demonstrava seu corpo bem proporcionado, ele ainda era uma criança, e assim permaneceria durante decênios, enquanto um a um, os companheiros recordariam as vidas anteriores e o deixariam para trás. Isso já acontecera antes e o impedira, por cautela, de entregar-se sem reservas a outra pessoa. Até mesmo Alystra, que por ora parecia tão cândida e simples, em breve se tornaria um inimaginável complexo de recordações e conhecimentos acumulados.

A vacilação sentida por Alvin desapareceu quase imediatamente. Não havia motivo para que Alystra não o acompanhasse, se assim desejasse. Alvin estava longe de ser um egoísta, e não queria guardar a nova experiência para si mesmo, como um avarento. Na verdade, poderia até aprender muitas coisas observando as reações dela.

Alystra não fez perguntas, o que era de estranhar, quando o canal expresso os deixou fora do coração agitado da cidade. Juntos, encaminharam-se para a seção central de alta velocidade, indiferentes ao milagre que se consumava sob seus pés. Um engenheiro do mundo antigo chegaria à insanidade tentando compreender como um caminho aparentemente sólido movia-se com rapidez cada vez maior. Mas para Alvin e Alystra era natural a existência de matérias que acumulavam as propriedades dos sólidos, numa direção, e dos líquidos, em outra.

Ao redor deles, os edifícios agigantavam-se cada vez mais, como se a cidade procurasse fortalecer suas proteções contra o mundo exterior. Como seria estranho, pensava Alvin, se aquelas paredes verticais se tornassem transparentes como vidro e se pudesse observar a vida lá dentro! Espalhadas no espaço ao derredor havia pessoas conhecidas, pessoas que viria a conhecer ainda e pessoas estranhas que jamais encontraria — estas últimas, poucas, na verdade, pois no decurso de sua vida encontraria quase todos os habitantes de Diaspar. A maior parte dessas pessoas estaria sentada em seus próprios cômodos, mas não sozinha. Tinham apenas de formular o desejo para estarem, real, mas não fisicamente, na presença de qualquer pessoa que escolhessem. Não sofriam de tédio, pois dispunham de acesso a tudo quanto acontecera nos reinos da imaginação ou da realidade, desde a época da construção da cidade. Para homens cujas mentes estavam assim constituídas, a existência era absolutamente satisfatória, e também fútil, embora ainda longe da compreensão de Alvin.

A medida que ele e Alystra se afastavam do coração da cidade, o número de pessoas nas ruas diminuía gradativamente, e já não restava nenhuma à vista quando atingiram um ponto de descanso, após suave desaceleração, junto a uma longa plataforma de mármore. Caminharam através do frio remoinho de matéria onde a substância do caminho móvel refluía à origem, e defrontaram-se com uma parede cheia de túneis brilhantemente iluminados. Sem hesitar, Alvin escolheu um e penetrou nele, com Alystra logo atrás. O campo peristáltico os recolheu e os impulsionou para diante. Confortavelmente deitados, observavam os arredores.

Parecia incrível que estivessem num túnel tão profundamente cavado na terra. A arte que se ocupara de tudo quanto existia em Diaspar também atuara ali, e acima deles os céus davam a impressão de abertos aos ventos. Ao redor, elevavam-se as cúspides da cidade, reluzindo à luz solar. Não era aquela a cidade que Alvin conhecia, mas a Diaspar de uma era remotíssima. Embora a maior parte dos grandes edifícios fosse semelhante, diferenças sutis aumentavam o interesse do cenário. Alvin desejava ir mais adiante, mas nunca havia encontrado uma maneira de retardar seu avanço pelo túnel.

Daí a pouco eram depositados suavemente num amplo cômodo elíptico, completamente cercado de janelas, através das quais podiam perceber vislumbres tantalizantes de jardins ornamentados de flores brilhantes. Havia ainda jardins em Diaspar, mas só tinham existido na mente do artista que os concebera. Certamente não havia flores semelhantes no mundo de hoje.

Alystra estava encantada com a beleza das flores, e tinha naturalmente a impressão de que Alvin a levara ali para que as visse. Alvin ficou a observá-la por alguns momentos, correndo alegremente de um cenário a outro, gozando os prazeres de cada nova descoberta. Existiam centenas de locais idênticos nos edifícios meio vazios da periferia de Diaspar, mantidos em ordem perfeita pelos poderes ocultos que velavam por eles. Algum dias a maré da vida poderia chegar ali mais uma vez, mas até esse tempo o velho jardim constituía um segredo de que só eles partilhavam.

— Temos mais coisas pela frente — disse Alvin. — Isso é apenas o começo.

Ao penetrar ele por uma das janelas, a ilusão se desfez, não havia jardim algum além do vidro, mas apenas uma passagem circular, em curva ascendente. Alvin avistou Alystra um pouco abaixo dele, embora soubesse que ela não poderia vê-lo. A moça, porém, não hesitou e logo depois achava-se ao lado dele, na passagem.

O chão que pisavam começou a deslizar lentamente para a frente, como se ansioso por levá-los a um destino. Caminharam um pouco sobre o caminho, até que a velocidade da via tomou-se tão grande que qualquer esforço se fazia desnecessário.

O corredor inclinou-se um pouco para cima e cerca de trinta metros adiante fez uma volta, em ângulo reto. Mas somente a lógica levava a essa conclusão. Para os sentidos, era como se fossem conduzidos por um corredor inteiramente plano. O fato de eles estarem movendo-se, na realidade, para o alto, através de um poço vertical, a uma grande profundidade, não lhes provocava qualquer sensação de insegurança, uma falha no campo de polarização era simplesmente impossível.

O corredor começou a «baixar» novamente, até descrever um novo ângulo reto. O movimento do chão diminuiu um pouco, até deter-se ao fim de um longo pórtico decorado com espelhos. Alvin sabia muito bem que ali não tinha como apressar Alystra — não só porque algumas características femininas haviam-se mantido, desde Eva, como também porque ninguém seria capaz de resistir ao fascínio de um lugar daqueles. Devido a algum truque do artista, apenas alguns espelhos refletiam a cena como era na realidade, e mesmo aqueles, como Alvin já se convencera, mudavam constantemente de posição. Os espelhos restantes decerto refletiam alguma coisa, mas era desconcertante para uma pessoa ver-se movimentando entre cenários cambiantes e imaginários.

Às vezes viam-se pessoas indo e vindo nos limites do mundo atrás dos espelhos, e por mais de uma vez Alvin dera com rostos conhecidos. No entanto, concluiu que não estivera olhando para amigos que houvesse conhecido em sua existência. Através da mente do artista desconhecido, ele estivera olhando para dentro do passado, observando as encarnações anteriores de pessoas que trilhavam os caminhos do mundo em que ele próprio vivia. Entristeceu-se ao recordar sua condição de Único, ao pensar que, por mais que esperasse diante daqueles cenários, jamais encontraria qualquer eco remoto de si próprio.

— Você sabe, por acaso, onde estamos? — perguntou ele a Alystra, quando terminaram o giro dos espelhos.

Alystra sacudiu a cabeça.

— Perto dos limites da cidade — respondeu, descuidadamente. — Parece que andamos bastante, mas não faço idéia do espaço que percorremos.

— Estamos na Torre de Loranne — respondeu Alvin. — É um dos pontos mais altos de Diaspar. Venha, vou mostrar-lhe.

Segurando a mão de Alystra, conduziu-a para fora do corredor. Não havia saídas visíveis na parede, mas em vários pontos se viam sinais da existência de corredores laterais. Quando alguém se aproximava dos espelhos nesses pontos, os reflexos pareciam fundir-se numa arcada de luz, e podia-se penetrar por ela em outro corredor. Alystra perdeu toda noção consciente dos desvios e voltas, e por fim saíram num túnel longo, pelo qual penetrava um vento frio e constante. O túnel estendia-se horizontalmente por mais de cem metros, em várias direções, e seus últimos confins eram débeis círculos luminosos.

— Não gosto desse lugar — queixou-se Alystra. — É frio.

Era provável que ela jamais tivesse experimentado frio de verdade em sua vida, e Alvin sentiu-se culpado. Deveria ter aconselhado que ela trouxesse uma capa, uma capa eficiente, pois todas as roupas em Diaspar eram ornamentais e não serviam para proteger o corpo.

Considerando que o desconforto de Alystra era por culpa dele, Alvin ofereceu-lhe sua própria capa, sem uma palavra. Não havia no gesto traço algum de galanteria. A igualdade entre os sexos, estabelecida havia muito tempo, destruíra esses convencionalismos. Se a culpa fosse de Alystra, ela lhe teria dado a capa, que ele teria aceito automaticamente.

Não era desagradável caminhar com o vento soprando atrás deles, e logo depois atingiram o fim do túnel. Uma treliça de pedra os impedia de prosseguir, o que era de esperar, pois estavam à beira do nada. O grande conduto de ar abria-se na face escarpada da torre, abaixo de Alvin e Alystra despenhava-se um declive de pelo menos trezentos metros. Estavam no alto das muralhas externas da cidade. Diaspar estendia-se a seus pés. Poucas pessoas a tinham visto ali.

A visão era a inversão da cena que Alvin contemplara do centro do Parque. Acompanhava com os olhos as ondas concêntricas de pedra e metal que desciam em extensões de um quilômetro e meio em direção ao coração da cidade, mais além, divisava campos e bosques, parcialmente encobertos pelas torres, bem como o Rio, correndo eternamente em círculo. Ainda mais longe, os remotos baluartes de Diaspar voltavam a elevar-se para o céu.

A seu lado, Alystra gozava a paisagem com prazer, mas sem surpresa. Já tinha visto a cidade vezes sem conta, de outros mirantes bem situados e quase tão belos — e com muito mais conforto.

— Aí está o nosso mundo. Inteiro — disse Alvin. — Agora, quero mostrar-lhe outra coisa.

Alvin afastou-se da treliça e começou a caminhar para o distante círculo de luz na extremidade do túnel. O vento soprava frio contra seu corpo envolto em luz, mas ele mal se dava conta do desconforto de assim penetrar na corrente de ar.

Dera apenas alguns passos quando verificou que Alystra não mostrava intenção de segui-lo. Ela o observava, com a capa emprestada adejando ao vento e uma das mãos protegendo o rosto. Alvin viu que seus lábios se moviam, mas não conseguiu entender o que ela dizia. Olhou-a primeiramente com surpresa, e depois com impaciência mesclada de certa piedade. O que dissera Jeserac era verdade. Ela não podia segui-lo. Aprendera o significado daquele distante círculo luminoso, pelo qual o vento penetrava em Diaspar. Atrás de Alystra ficava o mundo conhecido, cheio de maravilhas, mas desprovido de surpresas, flutuando como uma bolha brilhante mas fechada pelo rio do tempo. Adiante, a poucos passos dela, estendia-se a imensidão vazia, o mundo dos Invasores.

Alvin voltou atrás, surpreendendo-se ao encontrar Alystra trêmula.

— Por que está com medo? — perguntou. — Ainda estamos em segurança. Você olhou por aquela janela atrás de nós. Nesse caso, por que não olha também por essa outra?

Alystra olhava-o como se ele fosse um monstro estranho. E para seus padrões, ele realmente era.

— Eu não seria capaz disso — respondeu afinal. — Só de pensar nisso sinto um frio mais forte do que o deste vento. Não vá além, Alvin!

— Mas não há lógica nisso! — protestou Alvin, sem remorsos. — Que mal lhe poderia fazer ir até o fim deste corredor e olhar para fora? O mundo lá fora é estranho e deserto, mas nada tem de horrível. Na verdade, quanto mais o olho, mais belo ele me parece.

Alystra não esperou que terminasse. Fez meia volta e deslizou pela rampa que os trouxera ao túnel. Alvin não fez nenhum gesto para detê-la, pois isso implicaria sua vontade sobre outra pessoa. A persuasão, ele via, seria inteiramente inútil. Sabia que Alystra não iria parar até chegar de volta à sua casa. E não havia perigo de que se perdesse nos labirintos da cidade, pois não havia dificuldade em reconstituir de volta seus próprios passos. A habilidade instintiva de escapar mesmo ao mais emaranhado dos labirintos não passava de uma das muitas conquistas do Homem desde que começara a viver em cidades. O rato, há muito extinto, tinha sido forçado a adquirir a mesma capacidade quando abandonara os campos para viver em contato com a humanidade.

Alvin aguardou um momento, meio esperançoso de que Alystra mudasse de idéia e voltasse. Não fora colhido de surpresa pela reação da amiga — somente por sua violência e irracionalidade. Embora lamentasse sinceramente que tivesse ido embora, não podia deixar de pensar que ela bem poderia ter deixado a capa.

Além do frio, era desagradável também marchar contra o vento que penetrava nos pulmões da cidade. Alvin lutava ao mesmo tempo contra a corrente de ar e contra a força que a mantinha em movimento. Só ao atingir a treliça de pedra e ao lançar os braços em torno de suas barras é que ele pôde relaxar o corpo. Havia espaço suficiente para ele introduzir a cabeça, e mesmo assim o panorama apresentava-se algo restrito, pois a entrada do conduto de ar estava em parte fixada à parede da cidade.

Contudo, o que ele via era suficiente. Centenas de metros abaixo, a luz do sol varria o deserto. Os raios quase horizontais incidiam sobre a grade e lançavam desenhos fantásticos de ouro e de sombra pelo interior do túnel. Alvin apertou os olhos para não ser ofuscado pelo clarão e examinou a terra pela qual nenhum homem havia caminhado durante eras sem conta.

Parecia um mar eternamente gelado. Quilômetro após quilômetro, dunas de areia ondulavam na direção do oeste, com os contornos grosseiramente exagerados pela luz oblíqua. Aqui e ali algum capricho do vento formara curiosos sorvedouros e ravinas na areia, tornando-se difícil, às vezes, sustentar que nenhuma daquelas obras de escultura fosse obra de seres inteligentes. A uma grande distância, tão grande que Alvin não podia julgar até onde se estendia, elevava-se uma fileira de colinas suavemente arredondadas. Essas colinas tinham sido uma decepção para Alvin, ele teria dado tudo para ver ao vivo as montanhas alcantiladas de que falavam os antigos registros e seus próprios sonhos.

O sol alteava-se sobre o cume das colinas, com sua luz enfraquecida e avermelhada pelas centenas de quilômetros de atmosfera que havia atravessado. Havia duas grandes manchas pretas em seu disco. Alvin tinha aprendido, em seus estudos, que essas coisas existiam, mas ficava surpreso de poder vê-las com tanta facilidade. Pareciam quase um par de olhos a espreitá-lo, enquanto ele, agachado em seu solitário buraco de espia, sentia o vento perpassar-lhe os ouvidos.

Não houve crepúsculo. Com o cair do sol, os poços de sombra entre as dunas reuniram-se velozmente num único e vasto lago de escuridão. A cor fugiu do céu, as estrias vermelhas e douradas desvaneceram-se, dando lugar a um azul ártico que mergulhou na noite, cada vez mais profundamente. Alvin esperou por aquele momento emocionante que só ele, de toda a humanidade, chegara a conhecer — o momento em que a primeira estrela reluz e ganha vida.

Muitas semanas haviam-se passado desde que ele viera pela primeira vez àquele lugar, e ele sabia que a configuração do céu noturno devia ter mudado nesse intervalo. Contudo, não se achava preparado para o primeiro olhar aos Sete Sóis.

Não poderiam ter outro nome. As palavras lhe afloraram espontaneamente aos lábios. Formavam um pequeno grupo compacto e surpreendentemente simétrico contra o poente. Seis deles estavam dispostos numa elipse levemente achatada, a qual, Alvin percebia, era na realidade um círculo perfeito, um pouco inclinado em direção à linha de visão. Cada estrela tinha cor diferente, Alvin podia identificar a vermelha, a azul, a dourada e a verde, mas as de outros matizes enganavam-lhe a vista. No centro exato da formação achava-se um único gigante branco — a estrela mais brilhante de todo o céu visível. Em conjunto, o grupo assemelhava-se a uma peça de joalheria, parecia incrível, e contra todas as leis da probabilidade, que a natureza houvesse jamais projetado composição tão perfeita.

À medida que seus olhos se acostumavam à escuridão, Alvin pôde localizar o grande véu de poeira que tinha sido chamado de Via Láctea. Estendia-se do zênite até o horizonte, com os Sete Sóis incrustados em suas dobras. As outras estrelas já haviam surgido agora, para desafiá-los, mas seus agrupamentos desiguais apenas reforçavam o enigma daquela simetria perfeita. Era quase como se alguma força se houvesse deliberadamente oposto às desordens do universo natural, deixando seu sinal entre as estrelas.

Dez vezes, não mais, a Galáxia havia girado em torno de seu eixo desde que o Homem pisara a Terra pela primeira vez. Segundo seus próprios termos, um simples momento. Mas nesse curto período, ela mudara completamente, mudara mais do que tinha o direito de fazer no curso natural dos acontecimentos. Os grandes sóis que em certa época haviam ardido com violência, no orgulho da juventude, caminhavam agora para a decadência. Mas Alvin não vira os céus em sua antiga glória e, por isso, ignorava o que perdera.

O frio penetrando em seus ossos, obrigou-o a voltar depressa para a cidade. Alvin livrou-se da treliça e esfregou o corpo, ativando a circulação. À sua frente, no túnel, a luz que emanava de Diaspar era tão fulgurante que por um momento ele teve de proteger os olhos. Fora da cidade havia coisas como dia e noite, mas em seu interior o dia era eterno. Ao descer o sol, o céu sobre Diaspar se enchia de luz e ninguém podia perceber quando a iluminação natural havia desvanecido. Mesmo antes de os homens perderem a necessidade de dormir, já haviam banido a escuridão das cidades. A única noite que chegava a Diaspar era uma rara e imprevisível obscuridade que às vezes visitava o Parque e o transformava num local de mistério.

Alvin voltou lentamente pelo corredor de espelhos, ainda com o cérebro tomado pela noite e pelos espelhos. Parecia-lhe não haver maneira de escapar para aquele vazio enorme — e nenhum objetivo racional para essa idéia. Jeserac tinha dito que um homem não demoraria a morrer no deserto, e Alvin bem podia acreditar nisso. Talvez algum dia ele chegasse a descobrir algum modo de deixar os limites físicos de Diaspar, mas mesmo que o fizesse estava seguro de que teria de retornar logo à cidade. Atingir o deserto seria façanha divertida, mas nada mais. Seria um jogo que não poderia compartilhar com ninguém, mas nada mais. Ainda assim, teria de aceitá-lo, se isso ajudasse a apaziguar o anseio que lhe ia na alma.

Relutando em voltar ao seu mundo familiar, Alvin demorou-se entre os reflexos do passado. Diante de um dos grandes espelhos, observou as cenas que iam e vinham. O mecanismo de aparecimento dessas imagens era controlado por sua presença, e até certo ponto por seus pensamentos. Os espelhos permaneciam sempre vazios até ele entrar na sala, mas agitavam-se assim que ele se punha a caminhar entre eles.

Alvin achava-se agora em pé num largo pátio que na realidade nunca vira, mas que com toda probabilidade existia em algum lugar de Diaspar. O pátio estava cheio de gente, numa epécie de reunião pública. Dois homens discutiam cortesmente numa plataforma, enquanto seus seguidores os rodeavam, levantando indagações ocasionais. O total silêncio aumentava a sedução da cena, pois a imaginação supria imediatamente a ausência de sons. Que estariam aqueles homens debatendo? Talvez não se tratasse de uma cena real do passado, mas sim de um episódio engendrado pela sua imaginação. O cuidadoso equilíbrio das figuras, os movimentos levemente formais, tudo isso parecia bem arrumado demais para ser verdadeiro.

Alvin observou os rostos na multidão, à procura de alguém que ele reconhecesse. Não conhecia ninguém, mas pensou que poderia estar olhando para amigos que não encontraria no decorrer de séculos. Quantos padrões possíveis de fisionomia humana existiriam? O número era enorme, mas ainda finito, sobretudo porque todas as variações pouco estéticas já haviam sido eliminadas.

As pessoas no espelho continuavam sua discussão de há muito esquecida, ignorando a presença de Alvin entre elas. Às vezes era-lhe difícil não acreditar que estivesse fora da cena, pois a ilusão parecia perfeita. Um dos fantasmas do espelho pareceu caminhar para trás de Alvin e desapareceu imediatamente, da mesma forma como teria feito um objeto real. E quando um outro se movimentou à sua frente, foi a vez do próprio Alvin eclipsar-se.

Já se preparava para ir embora quando notou um homem com estranha indumentária, um pouco à margem do grupo principal. Seus movimentos, suas roupas, tudo nele parecia ligeiramente deslocado naquela reunião. Ele não obedecia ao padrão, tal como Alvin, um anacronismo.

O homem era, porém, muito mais do que isso. Era real e olhava para Alvin, com um sorriso ligeiramente enigmático.