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— Olhe, Bo, aquele gole de brande me salvou a vida, disse ele. Mas, diga-me; onde estaremos nós?
— Não sei melhor que você.
— Não faz mal, depois conheceremos melhor essa gente, disse ele em voz sonolenta, voltando-se para sua cama. Mas aquele vinho era mesmo bom. Graças a Deus, Volstead nunca desceu aqui!
Foram estas as últimas palavras ouvidas por mim antes de cair no sono mais pesado que me lembro de ter dormido.
Quando voltei a mim, a princípio não pude compreender onde me encontrava. Os acontecimentos do dia anterior me pareciam um pesadelo incrível, e não me podia convencer de que teria de aceitá-los como a expressão da realidade. Relanceei surpreendido aquela grande sala vazia e sem janelas, de paredes pardacentas, aquelas linhas de trêmula luz púrpura que jorrava das cornijas, aquelas parcas peças de mobiliário e finalmente os dois outros leitos, de um dos quais vinha um ressonar forte que eu a bordo do «Stratford» aprendera a associar com a pessoa de Maracot. Tudo aquilo era extravagante demais para ser verdadeiro e só quando tomei entre os dedos as cobertas de minha cama e examinei o curioso material de que eram feitas — fibras secas de alguma planta marinha — é que me convenci da realidade da inconcebível aventura que nos sucedera. Ainda estava refletindo sobre isso quando ouvi uma gargalhada estrondosa e Bill Scanlan se sentou na cama.
— Bom dia, Bo! gritou ele rindo, ao ver que eu estava acordado.
— Você me parece em boa disposição de espírito, disse eu, um tanto mal-humorado. Não vejo muitas razões para riso, meu amigo.
— Ah! eu também me achava com pouca disposição para rir quando acordei, replicou ele. Mas depois me veio à cabeça um pensamento engraçado e foi o que me provocou riso.
— Pois então me conte o que foi para que eu ria também.
— Pensei que estupendo não seria se todos nós nos tivéssemos amarrado àquela sonda. Acho que com aqueles aparelhos de vidro poderíamos respirar perfeitamente. Quando o velho Howie olhasse para baixo veria nós todos subindo numa penca através das águas. Decerto ele haveria de supor que nos tinha fisgado. Seria impagável!
Nossas risadas acordaram o doutor, que se sentou no leito tendo no rosto a mesma expressão de surpresa que antes houvera no meu. Cheguei até a esquecer nossas preocupações ao ouvir seus comentários volúveis que se alternavam entre uma alegria profunda ante a perspectiva de tal campo para estudos e a imensa tristeza de nunca poder esperar transmitir os resultados de suas pesquisas aos seus confrades da terra. Por fim voltou às necessidades do momento.
— São nove horas, disse ele olhando para o relógio. Todos os nossos relógios marcavam a mesma hora, mas não havia nada para nos indicar se seriam da noite ou da manhã.
— Devemos conservar nosso calendário, disse Maracot; descemos no dia 3 de outubro. Chegamos a este lugar na tarde do mesmo dia. Quanto tempo dormimos?
— Co'os diabos, poderia ter sido um mês! redargüiu Scanlan. Nunca dormi tão profundamente desde que Mickey Scott me pôs nocaute num encontro em seis assaltos lá nas obras.
Nós nos vestimos e lavamos, pois tínhamos à mão todos os confortos da civilização. A porta, porém, estava fechada e era evidente que por enquanto estávamos prisioneiros. Apesar da aparente ausência de ventilação, a atmosfera se conservava perfeitamente respirável, o que observamos ser devido a uma corrente de ar que penetrava, por pequenos orifícios da parede. Deveria também haver alguma fonte central de calor, pois, apesar de não se ver nenhum aquecedor, a temperatura era agradàvelmente cálida. Em dado momento observei um botão em uma das paredes e apertei-o. Era, como eu esperava, uma campainha, pois a porta se abriu imediatamente e apareceu um pequeno homem de tez escura, vestido com uma túnica amarela. Olhou-nos inquisidoramente com grandes olhos castanhos e amigos.
— Estamos com fome, disse Maracot; pode arranjar-nos algum alimento?
O homem abanou a cabeça e sorriu. Era evidente que aquelas palavras eram incompreensíveis para ele.
Scanlan tentou fazer-lhe compreender sua algaravia ianque que foi recebida com o mesmo sorriso pálido. Quando, porém, abri a boca e enfiei o dedo por ela a dentro, o homem sacudiu vigorosamente a cabeça em ar de compreensão e afastou-se rapidamente.
Dali a dez minutos a porta se abria e dois criados de tez amorenada como o primeiro apareceram, empurrando uma pequena mesa de rodas à sua frente. Mesmo que estivéssemos no Biltmore Hotel não teríamos uma refeição mais agradável. Havia café, leite quente, pão, delicioso peixe e mel. Por meia hora permanecemos ocupados demais para nos importarmos em indagar o que comíamos ou como era obtido. No fim deste tempo os dois criados apareceram novamente, levaram a mesa e fecharam cuidadosamente a porta atrás de si.
— Estou mesmo sem saber o que pensar, disse Bill Scanlan. Será um sonho ou não? O senhor que nos trouxe até aqui, doutor, diga-me o que é que acha disto tudo.
O Doutor Maracot abanou a cabeça.
— Também a mim me parece um sonho, mas é um sonho maravilhoso! Se pudéssemos fazer chegar nossa história ao conhecimento do mundo!
— Uma coisa, disse eu, parece-me certa: era verdadeira a lenda dos Atlantes e uma parte deste povo conseguiu sobreviver até hoje.
— Mesmo se for isso, disse Bill Scanlan cocando a cabeça, macacos me mordam se posso compreender como é que eles conseguem ar, água fresca e tudo o mais. Talvez aquele engraçado pato de barba que vimos na noite passada nos possa dar depois algumas explicações.
— Como o poderia fazer se não temos uma linguagem comum?
— Utilizemos nossa própria observação, nesse caso, disse Maracot. Uma coisa pelo menos já posso compreender. É que o mel que comemos no almoço é mel sintético, como já aprendemos a fazer sobre a terra. Mas se o mel é sintético, por que não o seriam também o café e o trigo? As moléculas dos elementos são como tijolos que se acham ao nosso redor. Temos apenas de aprender como deslocar determinados tijolos — às vezes mesmo um único tijolo — a fim de fabricar substâncias novas. Por um simples deslocamento desses tijolos o açúcar torna-se amido, ou então álcool.
O que é que produz estes deslocamentos? O calor. A eletricidade. Talvez outras causas que ainda desconhecemos. Algumas substâncias transformam-se espontaneamente, como o rádio tornando-se em chumbo ou o urânio tornando-se rádio, sem que toquemos nelas.
— Supõe então que possuam uma química muito adiantada?
— Estou certo disso. Também não existem tijolos elementares que não estejam ao alcance de suas mãos. Hidrogênio podem obtê-lo da água do mar. Azoto e carbônio, dos vegetais marinhos e fósforo e cálcio devem existir em abundância no depósito batíbico do fundo do oceano. Com processos adequados e os conhecimentos necessários, o que não poderiam eles produzir?
O doutor começara uma dissertação sobre a química quando Manda entrou, saudando-nos amistosamente. Vinha com ele o mesmo velho de aparência venerável que havíamos visto na noite anterior. Ele deveria ter reputação de erudito, pois dirigiu-nos a palavra em várias línguas diferentes, mas que nos eram todas igualmente ininteligíveis. Encolheu os ombros então e falou com Manda, que deu uma ordem aos dois criados que ainda esperavam na porta. Imediatamente estes desapareceram, voltando dali a pouco com uma curiosa tela suportada por dois postes laterais. Tinha grande semelhança com nossas telas de cinema, mas era recoberta de um material brilhante que cintilava à luz. Colocaram-na de encontro a uma das paredes. O ancião afastou-se dela um número certo de passos e marcou o lugar no chão. Daí ele se voltou para Maracot e tocou sua testa, apontando para a tela.
Maracot abanou a cabeça para mostrar nossa perplexidade. Pareceu por um momento que o ancião ficara no mesmo estado. Mas subitamente pareceu ter uma idéia. Apontou para a sua própria pessoa, e voltando-se em seguida para a tela fixou nela os olhos parecendo concentrar a atenção. Quase imediatamente surgiu na tela, à nossa frente, a figura dele próprio. Apontou em seguida para nós e dali a um momento surgia a imagem do nosso pequeno grupo em lugar da sua. Não se parecia muito conosco, é verdade. Scanlan tinha a aparência de um cômico chinês e Maracot a de um cadáver, mas via-se claramente que deveríamos ser nós mesmos, tais como aparecíamos aos olhos do operador.
— É uma projeção do pensamento! exclamei.
— Exatamente, concordou Maracot. É sem dúvida uma invenção das mais maravilhosas e afinal não passa de uma engenhosa combinação de telepatia e televisão, que apenas agora começamos vagamente a compreender sobre a terra.
— Nunca pensei que me veria como artista de cinema, se é que aquele chinês de cara de queijo representa mesmo a minha pessoa, disse Scanlan. Se pudéssemos levar estas notícias para o editor do «Ledger» poderíamos ganhar com que viver folgadamente o resto da vida. Seria um negocião se fosse possível.
— Nisso é que está a dificuldade, observei. Por São Jorge, viraríamos o mundo de pernas para o ar se conseguíssemos voltar. Mas que é que eles querem dizer com esses gestos?
— Aquele velho quer ver sua habilidade para a coisa, doutor.
Maracot tomou o lugar indicado e projetou suas imagens com perfeição. Vimos uma imagem de Manda e em seguida uma outra do «Stratford», tal como o havíamos deixado.
Tanto Manda como o velho sábio exprimiram por sinais a sua aprovação à vista do navio e Manda fez com as mãos um largo gesto, apontando primeiro para nós e em seguida para a tela.
— Querem que lhes conte tudo a respeito de nossas aventuras, exclamei. Querem saber por meio de imagens quem somos nós e como viemos até aqui.
Maracot curvou-se para Manda para mostrar que compreendia, e começara a projetar uma imagem de nossa viagem, quando Manda levantou a mão e o interrompeu. A uma ordem sua os criados removeram a tela e os dois atlantes acenaram-nos para que os seguíssemos.
Era um prédio imenso e atravessamos corredor após corredor até chegarmos finalmente a um enorme salão. A um lado havia uma grande tela da mesma natureza que aquela que havíamos visto. Em frente da mesma achava-se reunido um auditório no mínimo de mil pessoas, que nos receberam com um sussurro de boas-vindas. Era composto de pessoas dos dois sexos e de todas as idades. Os homens, trigueiros e de barba longa; as mulheres, belas na juventude e de aspecto venerável em idade mais avançada. Tivemos pouco tempo para observá-los, pois conduziram-nos logo para os lugares reservados para nós na fileira da frente e Maracot foi então colocado em frente da tela; por uma manobra qualquer a claridade das luzes diminuiu de intensidade e ele recebeu um sinal para começar.
E representou magnificamente o seu papel. A princípio vimos nosso navio saindo do Tâmisa e um sussurro de admiração perpassou pelo auditório àquele autêntico espetáculo de uma cidade moderna. Em seguida surgiu um mapa indicando o seu percurso. Apareceu depois a caixa de aço com seus aparelhos, que foi saudada com um murmúrio de reconhecimento. Vimo-nos a nós mesmos novamente descendo e atingindo as bordas do abismo. Em seguida mostrou o aparecimento do monstro que nos atacara. «Marax», «Marax!» exclamou o povo ao vê-lo. Era evidente que eles já haviam aprendido a conhecê-lo e temê-lo. Houve um silêncio de emoção quando o monstro empolgou nosso cabo'e um sussurro de horror quando os fios se partiram e caímos na voragem. Num mês de explicações não poderíamos ter dado uma idéia tão clara de nossa aventura como naquela meia hora de demonstração visual.
Ao se dissolver o auditório eles procuraram demonstrar-nos sua simpatia, aglomerando-se ao redor de nós e batendo amistosamente em nossas costas para mostrar que éramos bem-vindos. Fomos apresentados a vários chefes sucessivamente, mas a única coisa que os diferençava dos demais deveria ser a sabedoria, pois todos pareciam pertencer à mesma categoria social e estavam vestidos aproximadamente do mesmo modo. Os homens usavam túnicas cor de açafrão que lhes desciam até os joelhos, cintos e altas botas de um material escamoso e resistente, que deveria ter antes servido de proteção a algum animal marinho. As mulheres estavam graciosamente trajadas no estilo clássico; suas vestes flutuantes, de todas as tonalidades do róseo, azul e verde, eram enfeitadas com fileiras de pérolas ou lâminas opalescentes de conchas. Muitas delas eram de uma beleza incomparável. Uma principalmente… Mas para que envolver nesta narrativa os meus sentimentos particulares? Apenas direi que Mona é filha única de Manda, o chefe supremo daquele povo, e que desde aquele primeiro encontro eu li nos seus olhos escuros uma mensagem de compreensão e simpatia que me veio direita ao coração, assim como o meu reconhecimento e admiração podem ter ido ao dela. Não preciso por enquanto dizer mais nada a seu respeito. Basta saber-se que desse momento em diante uma influência nova e poderosa penetrou em minha vida. Quando vi Maracot a gesticular com desusada animação para uma senhora de aspecto bondoso e Scanlan a exprimir por gestos sua admiração no centro de um grupo risonho de moças, vi que meus companheiros também haviam começado a ver nossa situação por uma face menos trágica. Se estávamos mortos para o mundo, pelo menos havíamos encontrado uma outra vida que nos prometia alguma compensação pela que havíamos perdido.
Mais tarde, naquele mesmo dia, fomos guiados por Manda e outros amigos por algumas seções do imenso edifício. Os depósitos acumulados pelo tempo o haviam enterrado tanto no leito do oceano que só era acessível pelo teto, e deste ponto descia-se através de corredores e mais corredores até atingir-se o nível do primeiro pavimento, várias centenas de pés abaixo da câmara de ingresso. O chão deste por sua vez fora escavado e viam-se em todas as direções corredores que se aprofundavam pelas entranhas da terra. Mostraram-nos os aparelhos de fabricação de ar, com as bombas que o faziam circular através do edifício. Maracot fez-nos observar cheio de espanto que não era só o oxigênio e o azoto que eles fabricavam, mas que retortas menores produziam outros gases que só podiam ser o argônio, neônio e outros elementos pouco conhecidos da atmosfera que só agora estamos começando a compreender. As caldeiras destiladoras para a fabricação de água fresca e as poderosas instalações elétricas constituíam outros curiosos objetos de interesse, mas grande parte dos mecanismos era tão complicada que era difícil para nós acompanhar em detalhe o seu funcionamento. Apenas posso dizer que vi com meus próprios olhos e provei com minha boca substâncias diversas em estado gasoso ou líquido que eram conduzidas a aparelhos especiais, aí submetidas à ação de calor, pressão e eletricidade, obtendo-se como produto farinha de trigo, chá, café ou vinho.
Uma consideração se impunha desde logo a nosso espírito ao examinarmos tudo aquilo. Era que aquela submersão fora prevista muito antes que a terra fosse tragada pelo oceano. Era desde logo evidente e não necessitava provas o fato de que estas precauções não poderiam ter sido tomadas depois do fato consumado, mas ficamos mesmo convictos de que todo aquele vasto edifício fora desde o princípio construído com o único objetivo de constituir uma arca de refúgio. As enormes retortas e caldeiras em que o ar, alimentos, água destilada e outros produtos necessários eram obtidos, eram todas embutidas nas paredes e constituíam evidentemente parte integrante da construção original. O mesmo sucedia com as câmaras de saída, as seções de trabalhos em sílica onde fabricavam as bolas de vidrina e as gigantescas bombas que regulavam a entrada e saída da água. Cada uma destas coisas havia sido cuidadosamente preparada pela sabedoria e previsão daquele extraordinário povo, que parecia haver estendido um poderoso braço até a América Central e outro até o Egito, de modo a deixar sinais seus sobre a terra até muito tempo depois de sua pátria se submergir no Atlântico. Quanto a estes seus descendentes, julgamos que provavelmente teriam degenerado, o que aliás seria muito natural, e que se haviam limitado apenas a conservar parte da ciência de seus antepassados, sem ter a energia de acrescê-la. Eles possuíam forças poderosas ao seu dispor, mas pareciam estranhamente faltos de iniciativa, nada havendo adicionado ao maravilhoso legado que haviam recebido. Estou certo de que se Maracot utilizasse estes conhecimentos obteria logo resultados dos mais admiráveis. Quanto a Scanlan, seu espírito vivo logo arranjou meios de distrair nossos hóspedes com habilidades que decerto lhes pareciam tão surpreendentes como sua ciência para nós. Ele tinha no bolso uma gaita quando fizemos nossa descida e tocava-a sempre agora, para perpétua alegria de nossos hóspedes, que escutavam arrebatados, como o faríamos com um Mozart, as canções populares de sua terra natal.
Já disse antes que nem todo o edifício estava aberto à nossa inspeção e devo acrescentar mais alguns detalhes sobre este assunto. Havia um corredor descendente pelo qual víamos continuamente gente passando e que era sempre evitado pelos guias em nossas excursões. Como era natural, nossa curiosidade foi aguçada por essa circunstância e resolvemos uma tarde tomar o risco de fazer algumas explorações por nossa própria conta. Em conformidade com isto, numa hora em que havia pouco movimento deslizamos para fora de nosso quarto e tomamos o caminho da região desconhecida.
Aquele corredor nos conduziu a uma alta porta em forma de arco, que parecia ser feita de ouro maciço. Empurrando-a encontramo-nos em um vasto salão, formando um quadrado de duzentos pés de lado, no mínimo. As paredes que o limitavam eram pintadas de cores vivas e ornadas com estranhas pinturas e estátuas de entes grotescos, com enormes toucados semelhantes aos dos trajes de cerimônia dos nossos índios americanos. No outro extremo deste grande salão via-se uma enorme figura sentada, com as pernas cruzadas como um Buda, mas sem nada daquela aparência benévola que se vê nas suas plácidas feições. Muito pelo contrário, esta era uma divindade feroz, de boca semi-aberta e olhos rubros e cruéis, cujo aspecto terrível era ainda mais exagerado pelo efeito de lâmpadas elétricas colocadas atrás dos mesmos. Em seu regaço achava-se um grande forno, que, aproximando-nos, vimos estar cheio de cinzas.
— Moloc! disse Maracot. Moloc ou Baal — o velho deus das raças fenícias.
— Céus! exclamei, cheio de horror com a lembrança da velha Cartago diante dos olhos. Será que um povo tão acolhedor como este sacrifica vítimas humanas?