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— Creio que já se terão corrigido, observei. É o infortúnio próprio que nos ensina a ter piedade dos outros.
— Deve ser isso, disse Maracot, remexendo nas cinzas. O deus continua a ser o mesmo, mas seguramente o culto se terá tornado menos cruel. Isto deve ser folhas queimadas ou coisa que o valha. Mas houve talvez uma época…
Nossas especulações, porém, foram interrompidas por uma voz ríspida ao nosso lado, e, voltando-nos, vimos ao nosso redor vários homens vestidos de amarelo e com chapéus altos, que deveriam ser os sacerdotes do templo. Pela expressão de seus rostos vi que estávamos muito perto de ser as últimas vítimas de Baal. Um deles chegou mesmo a sacar uma faca da cintura, e com gritos e gestos ferozes nos expulsaram rudemente de seu relicário sagrado.
— Com mil diabos! exclamou Scanlan. Se este sujeito continua a berrar desse modo eu dou uns murros nele! Largue o meu paletó, seu cara de coruja!
Por alguns momentos supus que iríamos ter o que Scanlan chamava um «tempo quente», dentro do recinto sagrado. Conseguimos, contudo, arrastar sem incidentes o colérico mecânico para o abrigo de nosso quarto, mas pela atitude de Manda e outros dos nossos amigos vimos que nossa excursão fora sabida e deplorada.
Havia porém outro santuário que nos foi mostrado espontaneamente, tendo tido esta visita um resultado dos mais inesperados para nós, pois proporcionou-nos um meio de comunicação com nossos amigos, embora imperfeito e ainda difícil. Era um salão que havia abaixo do templo, sem decorações nem ornamentos a não ser, numa extremidade, uma estátua de marfim amarelecida pelo tempo, representando uma mulher segurando uma espada e com uma coruja trepada no ombro. O guarda do santuário era um venerável velho, mas, apesar de sua idade, vimos logo que pertencia a uma raça muito diferente da dos sacerdotes do templo. Enquanto eu e Maracot admirávamos a estátua de marfim, meditando intrigados onde havíamos visto uma figura semelhante, o ancião nos dirigiu a palavra.
— Tea, disse ele apontando para a estátua.
— Por São Jorge! exclamei, ele está falando em grego!
— Tea! Atena! repetiu o ancião.
Não havia dúvida possível. «Deusa — Atena»: as palavras confundíveis. Maracot, cujo cérebro formidável havia absorvido um pouco de todos os conhecimentos humanos começou imediatamente a fazer perguntas em grego que eram apenas parcialmente compreendidas e respondidas num dialeto tão arcaico que era quase incompreensível. Mesmo assim obteve várias informações, e conseguimos desse modo um intermediário por meio do qual poderíamos com alguma dificuldade comunicar-nos com nossos novos amigos.
— Esta é uma prova notável, disse-nos Maracot, do fundo da verdade que geralmente existe nas lendas. Há sempre uma base de fatos, mesmo se com o decorrer dos anos surgem adulterações. Devem saber — ou provavelmente não saberão — («Não se fie muito!», havia gritado Scanlan) — que havia uma guerra entre os primitivos gregos e os atlantes da época da destruição desta grande ilha. Este fato está registrado na descrição feita por Sólon do que ficou sabendo por intermédio dos sacerdotes de Sais. Podemos conjeturar que havia prisioneiros gregos nas mãos dos atlantes neta época e que alguns deles haviam pertencido ao serviço do seu Templo, tendo levado sua religião consigo. Aquele homem é, ao que parece, o velho sacerdote hereditário do seu culto e talvez mais tarde possamos por seu intermédio aprender alguma coisa mais sobre este antigo povo.
— Pelo menos parecem gente de bom gosto, disse Scanlan. Acho que se se quer um deus de massa é muito melhor escolher-se uma bonita mulher do que aquela figura de olhos rubros e fogão nos joelhos.
— Felizmente eles não compreendem o que está dizendo, observei. Senão, você poderia muito bem acabar como um mártir do cristianismo.
— Enquanto eu os divertir com as minhas músicas estou garantido, replicou ele. Eles já se acostumaram comigo e por isso sentirão falta de mim.
Levávamos uma vida feliz no meio daquele povo alegre e acolhedor, contudo havia e há ocasiões em que nosso coração se volta saudoso para a terra que perdemos. Vem-me então ao espírito a lembrança dos velhos quarteirões de Oxford ou dos idosos olmos e gramados verdes de Harvard. Até há pouco eles me pareciam tão distantes como uma paisagem lunar, e só agora começa a se me insinuar vagamente no espírito a esperança de vê-los novamente.
Poucos dias depois de nossa chegada, nossos hóspedes ou nossos captores — ficávamos algumas vezes em dúvida de como chamá-los — levaram-nos para uma expedição sobre o fundo do oceano. Seis deles vieram conosco, inclusive Manda, o chefe. Reunimo-nos na mesma sala em que havíamos entrado da primeira vez, e estávamos agora em condições de examiná-la mais detidamente. Era um compartimento bem vasto, no mínimo de cem pés de lado e suas paredes baixas e seu teto eram úmidos e de cor esverdeada devido às vegetações marinhas que os cobriam. Uma longa fileira de ganchos, com marcas que presumo fossem números, estendia-se ao redor de toda a sala, e em cada um deles estava suspensa uma daquelas campanas semitransparentes de vidrina e um par daqueles pequenos aparelhos que, colocados nos ombros, asseguravam a respiração. O assoalho era coberto por lajes de pedra que os passos de numerosas gerações haviam escavado em muitos pontos, o que fazia com que aí se formassem poças rasas de água. Tudo era profusamente iluminado por tubos fluorescentes que se viam ao redor das cornijas. Vestiram-nos os invólucros de vidrina e um forte bastão pontudo, feito de algum metal leve, foi entregue a cada um de nós. Em seguida Manda nos ordenou por sinais que nos segurássemos a uma grade metálica que havia ao redor da sala, dando-nos o exemplo ele e seus companheiros. O fim disto logo se nos esclareceu, pois, quando se abriu a porta exterior, a água penetrou com tal força que seríamos atirados ao chão se não fosse este cuidado. Elevou-se rapidamente até acima das nossas cabeças, e seu impulso diminuiu. Manda tomou então o caminho da porta e nós o acompanhamos, e dali a um momento achávamo-nos novamente no leito do oceano, deixando a porta aberta atrás de nós para quando voltássemos.
Olhando ao nosso redor na luz frígida e espectral que iluminava a planície batíbica, podíamos ver pelo menos um quarto de milha em cada direção. O que mais nos surpreendeu foi observar no extremo limite de visibilidade, em dada direção, um clarão estranho. Foi nessa direção que o chefe se encaminhou, seguindo nosso pequeno grupo em fila atrás dele. Caminhávamos lentamente, pois, além de termos a vencer a resistência da água, nossos pés se enterravam profundamente no lodo a cada passada; mas logo vimos o que era aquela claridade que nos atraíra. Era nossa caixa de aço — a última recordação que tínhamos da vida terrestre — que continuava inclinada sobre uma das cúpulas do extenso edifício, com todas as suas luzes ainda acesas. Estava cheia de água até três quartos de sua altura, mas o ar aprisionado ainda preservava a parte em que se achava nossa instalação elétrica. Era realmente curioso, para nós, olhando o seu interior, vermos aquele ambiente familiar, com nossos bancos e instrumentos ainda na posição em que os deixáramos, povoados de peixes de vários tamanhos a nadar de um para outro lado no seu interior. Passando um após outro, nós três entramos pelo alçapão aberto. Maracot para salvar uma caderneta de notas que flutuava na superfície e Scanlan e eu para pegarmos alguns objetos que nos pertenciam. Manda entrou também conosco, com um ou dois de seus companheiros, examinando com o maior interesse o batímetro e o termômetro, assim como os outros instrumentos suspensos em suas paredes. Quanto ao termômetro, pode ser que interesse aos cientistas saber que é de quarenta graus Fahrenheit a temperatura da maior depressão marinha a que o homem já desceu, e que é mais elevada que a das camadas superiores do mar devido à decomposição química dos seus depósitos orgânicos.
Ao que parecia, nossa pequena expedição tinha um objetivo predeterminado, não se tratando apenas de um simples passeio pelo leito do oceano. Estávamos à caça de alimento. De vez em quando um de nossos companheiros lançava um golpe rápido com seu bastão pontudo, espetando de cada vez um grande peixe chato e escuro, pouco diferente de um rodovalho, que apesar de abundante se confundia tanto com o lodo que eram necessários olhos exercitados para conseguir distingui-lo. No fim de pouco tempo cada um dos nossos homens trazia já dois ou três dos mesmos suspensos ao lado. Eu e Scanlan logo aprendemos a técnica desta nova espécie de pescaria, conseguindo um par dos mesmos para cada um, mas Maracot caminhava como num sonho, perdido na admiração das belezas marinhas que o cercavam, e fazia longas e entusiastas dissertações que eram perdidas para o ouvido mas perceptíveis aos olhos pelas contorções de seu rosto.
Nossa primeira impressão fora de monotonia, mas logo verificamos que aquelas planícies acinzentadas apresentavam variadas formações devidas à ação de correntes marinhas profundas que derivavam aí como rios submarinos. Estas correntes cortavam canais na fraca consistência do lodo do fundo e expunham assim as formações que havia abaixo, que consistiam na argila vermelha do leito do oceano. Esta argila estava coberta de objetos brancos que supus serem conchas, mas que examinando mais de perto vimos serem constituídos por barbatanas de baleias e dentes de tubarões e outros monstros marinhos. Um destes dentes que peguei tinha quinze polegadas de comprimento, e era realmente uma grande felicidade que um monstro tão terrível freqüentasse camadas mais elevadas do oceano. Devia pertencer, segundo Maracot, a um gigantesco exemplar do gênero Grampus, ou a um Orca gladiador. Isto fazia lembrar a observação de Mitchell Hedges de que mesmo no corpo dos mais terríveis tubarões que pescara havia observado sinais que mostravam haverem eles encontrado animais maiores e mais fortes que eles próprios.
Há uma peculiaridade das profundezas do oceano que chama a atenção do observador. Como já disse, existe aí uma perene luz frígida que se desprende do solo, devida à fosforescência resultante da decomposição de grandes massas de matéria orgânica. Mas acima tudo é negro como a noite. Tudo isto contribui para relembrar o aspecto de um dia sombrio de inverno sobre a terra, com uma nuvem pesada e negra de tempestade, suspensa ameaçadoramente. Deste palio negro cai lentamente uma chuva incessante de pequenos e brancos flocos luminescentes, realçando contra o fundo obscuro. São os restos de caracóis do mar e outros pequenos seres que vivem e morrem nas cinco milhas de água que nos separam da superfície, e se bem que boa parte dos mesmos se dissolva na queda, a parte restante vai no decurso dos séculos formar aquele depósito que enterrou a grande cidade cuja parte superior habitávamos agora.
Deixando para trás aquela última coisa que nos lembrava a terra, penetramos na obscuridade do mundo submarino, deparando logo com um espetáculo completamente inesperado. Apareceu à nossa frente uma confusa massa movediça que, ao nos aproximarmos, vimos ser formada por uma multidão de homens, cada um com seu invólucro de vidrina, que arrastava grandes trenós cheios de carvão. Era um trabalho pesado e os pobres diabos curvavam-se para a frente puxando com todas as forças as cordas de pele de tubarão que serviam de tirantes. Com cada grupo de homens ia um que parecia chefiá-los, e o que mais nos chamou a atenção foi ver que os chefes e os operários pertenciam a raças visivelmente diversas. Os últimos eram homens altos, vistosos, de olhos azuis e corpos vigorosos. Os outros, como já descrevi, eram de tez escura, quase negra, atarracados de corpo. Não podíamos naquele momento penetrar o mistério, mas pareceu-me que uma raça deveria ser escrava hereditária da outra, e Maracot era mesmo de opinião que aqueles bem poderiam ser os descendentes dos prisioneiros gregos cuja deusa havíamos visto no templo.
Encontramos em nosso caminho antes de chegarmos à mina vários magotes destes homens, cada um com carregamento de carvão. Neste ponto os depósitos orgânicos e as formações arenosas que havia logo abaixo haviam sido removidos, deixando aberta uma imensa cova em que se viam estratos alternados de argila e carvão, representando camadas sucessivas do solo daquele antigo continente que desaparecera nas águas do Atlântico. Em vários níveis desta imensa escavação podíamos ver grupos de homens a talhar o carvão, enquanto outros o reuniam em montes e colocavam em cestos que eram içados em seguida. A mina era tão funda que nem podíamos ver a outra extremidade daquele enorme poço, que certamente havia sido escavado aos poucos por numerosas gerações de operários. Era este carvão que, transformado em força elétrica, ia produzir a energia que movimentava todos os maquinismos dos atlantes. É interessante, contudo, assinalar que o nome da velha nação fora conservado corretamente nas lendas, pois quando o mencionamos a Manda e a outros, eles primeiro mostraram-se grandemente surpreendidos pelo fato de o conhecermos, sacudindo em seguida vigorosamente a cabeça para mostrar que compreendiam.
Contornando a abertura da mina pela direita chegamos a um aglomerado de rochedos pouco elevados de basalto, de superfície tão clara e luzidia, como quando se haviam projetado das entranhas da terra, cujos ápices, que se elevavam algumas centenas de metros acima de nossas cabeças, tinham um brilho sombrio contra aquele fundo de trevas. A base destas rochas de origem vulcânica estava afogada num denso matagal de altas plantas marinhas, que se elevavam dentre massas intricadas de corais crinóides. Caminhamos por algum tempo ao redor desta densa massa de vegetação, que nossos companheiros açoitavam com seus bastões, fazendo sair para nosso divertimento uma extraordinária variedade de estranhos peixes e crustáceos e apanhando de vez em quando um ou outro exemplar para suas mesas. Vagueamos deste modo despreocupado por uma milha ou duas, mas repentinamente vi Manda parar e olhar ao seu redor com gestos de alarma e surpresa. Estes gestos deveriam formar uma linguagem, pois num momento seus companheiros compreenderam a causa de sua agitação; nós também, assustados, demos com a razão de todo aquele alvoroço. O Dr. Maracot desaparecera.
Não tínhamos dúvidas de que estivera conosco na mina de carvão e nos acompanhara até os rochedos de basalto. Não era concebível que se houvesse adiantado de nós, por isso deveria ter ficado em algum lugar para trás. Apesar da inquietação de nossos amigos, Scanlan e eu, que conhecíamos a distração do bom homem, confiávamos em que não haveria causa para alarma e que logo o encontraríamos a examinar absorto qualquer ser marinho que lhe teria atraído a atenção. Todos nós voltamos sobre nossos passos, mas mal havíamos caminhado uma centena de jardas quando o avistamos.
Ele vinha correndo — correndo com uma agilidade que julgaria impossível a um homem de seus hábitos. Mesmo a pessoa menos atlética deste mundo sabe correr quando movida pelo medo. Suas mãos estavam estendidas a pedir socorro e precipitava-se cegamente para a frente, aos tropeções, com grotesca energia. Tinha aliás boas razões para isso, pois três animais horripilantes o seguiam de perto. Eram caranguejos-tigres listrados de preto e branco do tamanho de um cão terra-nova. Felizmente eles não eram também muito bons corredores e adiantavam-se pelo fofo leito do oceano numa curiosa corrida de lado que era pouco mais rápida que a do atemorizado fugitivo.
Sua resistência, porém, devia ser melhor e provavelmente teriam em poucos minutos caído sobre ele com suas temíveis tenazes se nossos amigos não houvessem intervindo. Eles se precipitaram ao seu encontro com seus varões pontudos e Manda lançou a luz de uma poderosa lanterna elétrica que trazia no cinto sobre os olhos dos repulsivos monstros, que se internaram no matagal, perdendo-se de vista. Nosso companheiro deixou-se cair sobre uma elevação coralina e via-se pelo seu rosto que aquela aventura o deixara exausto. Contou-nos depois que havia penetrado naquela jângal marinha na esperança de apanhar o que lhe parecera ser um exemplar raro das grandes profundidades de um peixe do gênero Chimoera, mas fora dar exatamente na toca daqueles ferozes caranguejos-tigres, que imediatamente se haviam precipitado ao seu encalço. Só depois de um longo descanso é que pôde continuar a caminhada.
Logo depois de contornarmos as rochas de basalto é que vimos qual era nosso verdadeiro objetivo. A planície acinzentada que se estendia ante nós estava neste ponto recoberta de saliências irregulares e altas colunas, que nos mostravam que a grande cidade de outrora se achava à nossa frente. Teria sido enterrada para sempre pelos depósitos oceânicos como Herculanum o foi pelas lavas ou Pompéia pelas cinzas, se uma entrada para' ela não houvesse sido escavada pelos sobreviventes do templo. Esta entrada era um longo declive que terminava em uma larga rua com edifícios descobertos de cada lado. Aqui e além viam-se as paredes dos mesmos fendidas ou em ruínas, pois não eram tão sòlidamente construídos como o templo, mas as decorações interiores achavam-se na maioria dos casos no mesmo estado que quando a catástrofe ocorrera, excetuando-se as inovações de toda sorte, algumas vezes belas e outras horripilantes, trazidas pelo mar. Nossos guias não nos encorajaram a examinar as primeiras que encontramos, caminhando apressadamente até chegarmos a um prédio que deveria certamente ter sido o grande palácio ou cidadela central, ao redor da qual toda a cidade se achava edificada. Os pilares, colunas, as enormes cornijas recamadas de esculturas, os frisos e as escadas deste edifício excediam em beleza tudo o que já havia visto sobre a terra. Chegando mais perto pareceram-me semelhantes aos restos do Templo de Karnak, em Luxor, no Egito, e o que é mais estranho é que aquelas decorações e aquelas esculturas em relevo se assemelhavam mesmo em detalhe às da grande ruína das margens do Nilo, o mesmo sucedendo com os capitéis em forma de loto das colunas. Era um espetáculo impressionante estar-se naqueles vastos saguões pavimentados de mármore, com grandes estátuas torrejando a cada lado, e ver-se como vimos naquele dia grandes enguias prateadas serpejando acima de nossas cabeças e outros peixes desfechando em todas as direções, afugentados pelo jacto de luz que lançávamos à nossa frente. Erramos de sala em sala, observando por toda parte os sinais daquele requinte de fausto a que haviam chegado, e, ocasionalmente, daquela doida lascívia que, segundo a lenda, fora o que atraíra a maldição divina sobre a nação. Vimos um pequeno quarto maravilhosamente ornamentado de nácar, que ainda agora luzia com matizes opalescentes à luz de nossas lâmpadas. Uma plataforma lavrada de um metal amarelo e um leito da mesma natureza se achavam a um canto, e sentia-se que ali bem poderia ter sido o quarto de uma rainha, mas ao lado do leito se achava agora uma repugnante lula negra, levantando e deixando cair o corpo num ritmo lento, como se fosse algum coração mau que ainda pulsasse bem no centro daquele palácio maldito. Senti-me satisfeito, e depois soube que o mesmo sucedera aos meus companheiros, quando nossos guias se retiraram conosco, levando-nos por alguns momentos a um anfiteatro arruinado e em seguida a um dique com um farol numa extremidade, o que indicava que aquela cidade fora um porto de mar. Dali a pouco saíamos daqueles lugares de mau agouro e entrávamos novamente na já familiar planície batibiana.
Nossas aventuras, porém, ainda não se haviam encerrado, pois iríamos encontrar mais uma que causou tanto alarma a nossos companheiros como a nós mesmos. Já estávamos perto de nossa morada quando um dos guias apontou para cima em sinal de alarma. Olhando para essa direção, vimos um espetáculo extraordinário. Da obscuridade das águas que nos cobriam vinha emergindo um vulto enorme e escuro, que se avolumava à proporção que se aproximava em sua queda rápida. A princípio víamo-lo apenas como uma massa indistinta, mas quando a luz o iluminou melhor pudemos ver que era o corpo monstruoso de um animal morto, com o ventre de tal modo rompido que suas entranhas se agitavam acima dele, enquanto caía. Sem dúvida os gases o haviam feito flutuar por algum tempo nas camadas mais altas do oceano, até que, libertado pela putrefação ou pelas devastações dos tubarões se reduzira a um peso morto que o arrastara volteando, para o fundo do oceano. Em nosso trajeto já havíamos observado vários grandes esqueletos de animais marinhos que os peixes haviam devorado até aos ossos, mas o corpo do que agora víamos, embora tivesse as entranhas de fora, conservava ainda a mesma aparência que tinha quando vivo. Nossos guias seguraram-nos com a intenção de nos arrastar para fora do seu caminho, mas vendo que ele não nos atingiria permaneceram no mesmo lugar. Nossos elmos de vidrina nos impediram de ouvir o estrondo daquele corpo enorme batendo no leito do oceano, mas este deveria ter sido ensurdecedor, a se julgar pela altura a que se elevou o limo do fundo. Era uma baleia de uns setenta pés de comprimento e pelos gestos alegres daquele povo submarino depreendi que para eles deveria ter grande utilidade o espermacete e a gordura da mesma. Deixaram-na contudo provisoriamente e dali a pouco nos achávamos de coração alegre em frente da porta esculpida do teto, pois, como não estávamos acostumados a tal exercício, sentíamo-nos cansados e com os membros doloridos. Finalmente, sãos e salvos, retiramos nossos invólucros de vidrina, sobre o chão lamacento da câmara de ingresso.
Alguns dias depois — contando o tempo pelo relógio — de termos feito a descrição cinematográfica de nossas aventuras, presenciamos uma exibição muito mais solene e augusta da mesma natureza, que nos mostrou de um modo claro e admirável a história passada deste notável povo. Não posso jactar-me de que tenha sido projetada exclusivamente em nossa honra, pois creio antes que tais acontecimentos eram rememorados publicamente de tempos a tempos a fim de transmitir a tradição, e que a parte à qual fomos admitidos era apenas um intervalo numa longa cerimônia religiosa. Seja o que for, porém, descrevê-la-ei o mais exatamente possível.
Fomos conduzidos ao mesmo grande salão ou teatro onde o Dr. Maracot havia projetado nossas aventuras sobre a tela. Estava lá reunida toda a comunidade e haviam-nos reservado, como antes, lugares de honra em frente da grande tela luminosa. Em seguida, após um longo canto que bem poderia ter sido uma espécie de hino patriótico, um ancião de cabelos alvos, que deveria ser o historiador ou cronista da nação, adiantou-se entre muitos aplausos e projetou sobre a superfície polida da tela uma série de aspectos para representar a ascensão e o declínio da sua gente. Desejaria poder reproduzir aqui esse espetáculo em todo o seu vigor e dramaticidade. Meus dois companheiros e eu perdemos toda noção do tempo e do lugar em que estávamos, arrebatados pelas cenas que se apresentavam ante nossos olhos, enquanto o auditório, movido no mais íntimo de sua alma, suspirava ou chorava à proporção que se desenrolava a tragédia que descrevia a ruína de sua pátria e a destruição do seu povo.
Nas primeiras cenas vimos o velho continente no apogeu de sua glória, como sua lembrança fora transmitida de pais e filhos. Tivemos uma visão rápida de campinas férteis, imensas em extensão, cortadas de cursos de água e sabiamente irrigadas, com grandes plantações de gramíneas, pomares ondulantes, rios pitorescos, colinas cobertas de matas, lagos e montanhas. Era salpicada de aldeias e coberta de herdades e belos edifícios residenciais. Em seguida surgiu a capital, uma cidade de extraordinária beleza, à beira-mar, de porto coalhado de galeras e cais atulhado de mercadorias, protegida por altas muralhas, torres e fossos circulares, tudo de proporções gigantescas. As casas se estendiam terra a dentro por muitas milhas e no centro da cidade havia um castelo ou cidadela ameada tão desmesurada e portentosa que parecia a criação de um sonho. Mostraram-se-nos em seguida imagens daqueles que viviam nessa idade de ouro, anciãos sábios e veneráveis, nobres guerreiros, sacerdotes virtuosos, mulheres belas e respeitáveis, crianças encantadoras — uma apoteose da espécie humana.
Vieram em seguida cenas de outra sorte. Vimos guerras, guerras contínuas por terra e por mar. Vimos povos inofensivos e nus espezinhados e esmagados por grandes carros de batalha ou pela investida de cavaleiros cobertos de armaduras. Vimos os tesouros acumulados pelos vencedores, mas à proporção que as riquezas aumentavam, as fisionomias que apareciam na tela tornavam-se progressivamente mais bestiais e cruéis. Víamo-las torvar-se cada vez mais de uma geração para outra. Mostraram-se-nos sinais de dissolução de costumes e degeneração moral, de predomínio da matéria e declínio do espírito. Esportes brutais à custa de outrem haviam tomado o lugar dos salutares exercícios de outrora. Não havia mais a simples e tranqüila vida de família nem o cultivo do espírito, mas tínhamos o espetáculo de um povo volúvel, precipitando-se irrequieto em busca do prazer e deixando sempre de encontrá-lo e a imaginar, todavia, ser possível encontrá-lo de algum modo mais complexo ou menos natural. Por um lado, havia-se erguido uma classe arqui-rica que unicamente buscava o deleite sensual e, por outro, havia-se criado uma escória humana menos que pobre, cuja única função na vida era atender às necessidades de seus amos, por malignas que fossem tais necessidades.
Mas, de repente, passou-se a um novo assunto. Havia reformadores em ação, a procurar desviar a nação dos maus rumos e a fazê-la retornar às sendas mais elevadas que abandonara. Vimo-los, esses graves e austeros homens, a argumentar e a defender suas idéias em meio do povo, mas desprezados e escarnecidos por aqueles mesmos a quem tentavam salvar. Vimos, principalmente, hostilizar a esses reformadores os sacerdotes de Baal, os quais gradualmente permitiram que os rituais e pompas externas se substituíssem ao altruístico desenvolvimento espiritual. Mas aqueles não eram de tempera a se atemorizar com ameaças nem temer humilhações. Continuavam a pugnar pela salvação do povo, e assumiam seus rostos um aspecto mais grave e, mesmo, mais aterrador, como os de homens que tivessem terríveis coisas a comunicar, que se apresentavam mesmo aos seus próprios espíritos como temerosas visões. Alguns de seus ouvintes pareciam prestar atenção e mostrar-se apavorados com suas palavras, mas outros voltavam-lhes, rindo, as costas, mergulhando-se, cada vez mais, em seu pântano de pecados. Veio, por fim, um tempo em que os reformadores se retraíram, também, como homens que nada mais podiam fazer, deixando esse povo degenerado entregue a seu destino.
Vimos então uma estranha cena. Surgiu um reformador, homem de singular vigor de espírito e de corpo, que sobrepujou a todos os demais. Tinha ele riquezas, influência e poderes que mais tarde pareceram não ser inteiramente deste mundo. Vimo-lo numa espécie de êxtase, comunicando-se com espíritos superiores. Fora ele quem utilizara toda a ciência de seu povo — uma ciência que ultrapassava tudo o que modernamente se conhece — na construção de uma arca de refúgio contra a catástrofe que se aproximava. Vimos miríades de operários ocupados neste trabalho e as paredes lentamente se elevando, enquanto multidões de cidadãos ociosos observavam motejando este excesso inútil de precauções. Vimos outros que pareciam discutir com ele e dizer-lhe que se tivesse quaisquer receios ser-lhe-ia mais fácil fugir para uma terra mais segura. Sua resposta, ao que parecia, foi que havia alguns que deveriam ser salvos no último momento e que por sua causa ele deveria permanecer no novo templo de segurança. Enquanto isso ele reunia ali aqueles que o haviam seguido e aí os conservava, pois ele próprio não sabia o dia nem a hora em que se dariam estes sucessos, se bem que forças sobrenaturais o houvessem assegurado da sua proximidade. Por isso, quando a arca ficou pronta e as portas foram experimentadas com êxito, pôs-se pacientemente à espera do castigo, com sua família, seus amigos, seus discípulos e seus servos. E o castigo veio finalmente. Era um espetáculo amedrontador, mesmo visto numa tela. Só Deus sabe o que poderia ter sido na realidade. Primeiro vimos uma tremenda montanha de água elevar-se a incrível altura acima de um mar tranqüilo. Em seguida vimos aquela colina rebrilhante de espumas progredir milha após milha, numa velocidade cada vez maior. O que nos parecia serem duas pequeninas embarcações oscilando no topo daquela onda gigantesca, vimos ao se aproximar mais serem duas galeras desarvoradas. Vimo-la bater na praia e varrer a cidade, e as casas abaterem-se à sua frente como um campo de trigo diante de um furacão. Vimos o povo sobre os tetos das casas a olhar a morte que se avizinhava, com os rostos contorcidos de terror, os olhos dilatados, as bocas contraídas, mordendo os punhos e lamentando-se num pavor insano. Os mesmos homens e mulheres que haviam zombado dos avisos clamavam agora aos céus por piedade, arrastando os rostos no chão ou ajoelhando-se com os braços estendidos numa súplica desesperada. Não havia tempo para se chegar à arca, que ficava para fora da cidade, mas milhares de pessoas refugiaram-se na cidadela, que ficava num plano mais elevado, e as paredes do imenso edifício ficaram apinhadas de gente. Mas subitamente o castelo começou a afundar. Tudo começou a afundar. A água penetrara nos remotos recessos da terra e o fogo central a transformara em vapores, cuja enorme força de expansão havia abalado os próprios fundamentos do continente. Cada vez mais mergulhava a cidade e um grito de horror escapou-se de nossos peitos e de todo o auditório, à vista do terrível espetáculo. O dique quebrou-se em dois e desapareceu. O alto farol sumiu-se nas ondas. Por algum tempo ainda, viram-se os tetos como séries de recifes, até que finalmente estes também mergulharam. Só ficara a cidadela na superfície, como um navio monstruoso, que finalmente também mergulhou no abismo, obliquamente, com uma cabelugem de mãos agitando-se desesperadamente no ar. O terrível drama se consumara e um lençol ininterrupto de águas cobria agora todo o continente, águas que não traziam um ser vivo em sua superfície e que nos seus gigantescos turbilhões e redemoinhos mostravam ainda destroços da tragédia jogados de um para outro lado; homens e animais mortos, cadeiras, mesas, artigos de vestuário, chapéus flutuando e fardos de mercadorias, tudo agitando-se e turbilhonando em desordem. Lentamente, porém, voltou a tranqüilidade, e apenas uma extensão de água lisa e brilhante como mercúrio vivo, iluminada por um sol pálido e baixo, nos indicava agora o túmulo da nação que Deus condenara.
A história era completa. Não podíamos exigir mais, pois nossos próprios cérebros poderiam imaginar o resto. Concebíamos a descida lenta e progressiva daquela grande cidade nas profundidades abissais do oceano, entre convulsões vulcânicas que elevavam ao seu redor picos submarinos. Vimos com os olhos da imaginação a enorme cidade estendida no fundo do Atlântico ao lado da arca de refúgio, em que um punhado de sobreviventes se reunia pávido. E finalmente compreendemos como decorrera sua vida depois, como haviam aprendido a utilizar os numerosos recursos com que a previsão e sabedoria de seu grande chefe os havia provido; de como este lhes transmitira toda a sua ciência antes de morrer e como de cinqüenta ou sessenta sobreviventes se originara toda uma comunidade, que fora obrigada a escavar as entranhas da terra a fim de conseguir espaço para se expandir. Nenhuma biblioteca informativa nos poderia dar de tudo uma idéia mais clara que aquela série de aspectos e as deduções que deles podíamos inferir. Tais foram a sorte da grande Atlântida e as causas que motivaram sua ruína. Num dia distante em que este lodo já se terá transformado em calcário, esta grande cidade sairá novamente das águas por algum outro movimento sísmico, e o geologista do futuro, escavando o solo, exumará não rochas e conchas, mas sim as ruínas de uma civilização desaparecida e os sinais de uma catástrofe remota.
Só um ponto ficara duvidoso; o tempo que decorrera desde que a tragédia tivera lugar. O Dr. Maracot, porém, descobriu um método grosseiro de se avaliar este tempo. Entre as numerosas dependências do grande edifício havia um grande sepulcro onde se enterravam os chefes. Como no Egito e em Yucatán, também eles tinham o costume de mumificar os mortos, e em nichos nas paredes viam-se inúmeras fileiras dessas relíquias fúnebres do passado. Manda apontou-nos orgulhosamente o primeiro nicho desocupado, dando a entender que havia sido especialmente preparado para a sua pessoa.
— Se se tomarem por base os reinos da Europa, disse Maracot — ver-se-á que em média se sucedem cinco reis por século. Podemos tomar essa circunstância como base para calcular a época da submersão da Atlântida. Não podemos esperar uma exatidão científica do resultado, mas teremos uma aproximação aceitável. Contei as múmias e vi que eram em número de quatrocentas.
— Teria sido então há oito mil anos?
— Exatamente. E isto concorda até certo ponto com a estimativa de Platão. Certamente ocorreu antes das narrações escritas dos egípcios, e estas sobem a seis ou sete mil anos antes da data atual. Sim, creio que poderemos dizer que nossos olhos viram a reprodução de uma tragédia que ocorreu no mínimo há oito mil anos. Além disso, construir uma civilização tal como aquela cujos restos tivemos ocasião de ver, deveria por sua vez ter exigido muitos milhares de anos.
«Assim — concluiu ele, e eu te transmito suas palavras — aprofundamos os horizontes da história humana como nenhum conseguiu fazê-lo desde que a História nasceu.»
Foi cerca de um mês após nossa visita à cidade submersa, conforme nossos cálculos, que nos surpreendeu um sucesso dos mais contristadores e inesperados. Pensávamos por aquela época que estávamos a salvo de tais abalos e que nada mais nos conseguiria sobressaltar, mas este fato ultrapassava tudo o que nossa imaginação poderia esperar.
Foi Scanlan quem trouxe a notícia de que algo sensacional ocorrera. Bem podes imaginar que por este tempo já nos sentíamos até certo ponto à vontade naquele grande edifício. Já sabíamos onde estavam situados os salões de descanso e diversões, assistíamos a concertos (tinham uma música original mas agradável) e espetáculos teatrais, onde a linguagem ininteligível era traduzida pela gesticulação expressiva e dramática. Falando de um modo geral, já nos integráramos na comunidade. Visitávamos várias famílias em seus aposentos particulares e a vida que levávamos — pelo menos na minha opinião — era tornada mais agradável pelo cativante trato daquele estranho povo e especialmente daquela mui cara senhorita a que já me referi. Mona era filha de um dos chefes e encontrei em sua família um acolhimento cordial e amistoso, que anulou todas as diferenças de raça e língua. No que se refere à mais terna das linguagens, não creio que haja muita diferença entre a velha Atlântida e a moderna América. Creio que aquilo que agradaria a uma colegial de Brown's College de Massachusetts é justamente o que agradaria à minha dama de sob as águas.
Mas, como dizia, Scanlan entrou em nosso quarto com notícias de que algo sensacional ocorrera.
— Acaba de chegar um deles tão agitado que se esqueceu completamente de tirar sua roupa de vidro e levou falando vários minutos antes de compreender que ninguém o poderia escutar. Depois foi só tá-tá-tá-, tá-tá-táp, tá-tá-tá, até perder o fôlego e agora todos o estão seguindo para a câmara de saída. Eu é que vou também para a água, pois deve haver alguma coisa lá digna de ser vista.
Precipitando-nos para fora, vimos nossos amigos caminhando apressadamente pelo corredor a gesticular agitada-mente e juntando-nos à procissão fazíamos dali a pouco parte da multidão que se adiantava apressadamente pelo fundo do mar, conduzida pelo agitado mensageiro. Caminhavam com uma pressa tal que se nos tornava difícil segui-los mas como traziam consigo suas lanternas elétricas mesmo se ficássemos para trás poderíamos orientar-nos pela claridade das mesmas. Seguimos como da outra vez ao longo dos rochedos de basalto até chegarmos a um ponto em que uma série de degraus gastos pelo uso conduzia ao seu cimo. Subindo por eles, encontramo-nos numa região acidentada, cheia de elevações de pedra e profundos abismos que embaraçavam o caminho. Atravessando esta região atravancada de formações vulcânicas, chegamos a uma planície circular que rebrilhava à luz fosforescente do fundo do oceano, e bem no meio dela deparamos com um espetáculo que me imobilizou de espanto. Olhando para meus companheiros, pude ver pela expressão de seus rostos que partilhavam plenamente da minha emoção.
Semi-enterrado no lodo via-se um vapor de grande calado. Estava ligeiramente adernado, com a chaminé quebrada e uma das extremidades levantada; seu mastro de traquete fora arrancado, mas quanto ao resto o navio estava intato e tão polido que parecia ter acabado de deixar os estaleiros. Corremos para ele e dali a pouco nos achávamos sob a proa. Podes bem imaginar qual não teria sido nossa emoção quando lemos o nome «Stratford, London» aí escrito. Nosso navio nos seguira ao Pélago de Maracot.
Afinal, depois do primeiro choque, o caso não nos pareceu tão incompreensível. Lembramo-nos do aviso do comandante, das velas colhidas do experiente veleiro norueguês e da ameaçadora nuvem negra que víramos no horizonte. Deveria ter-se desencadeado um súbito ciclone de enorme violência, que pusera a pique o «Stratford». Era evidente que toda a sua tripulação deveria estar morta, pois a maioria dos escaleres ainda pendia das serviolas em diferentes estados de destruição. De qualquer modo, qual o escaler que resistiria a tal furacão? A tragédia deveria ter ocorrido uma ou duas horas após nosso próprio desastre. Talvez a sonda que víramos tivesse sido lançada pouco antes de o temporal desabar. Era terrível e ao mesmo tempo extravagante que ainda estivéssemos vivos, enquanto que os mesmos que haviam lamentado nossa perda já estivessem mortos. Não podíamos saber se o navio se achava ali há muito tempo ou se o atlante o encontrara pouco tempo depois que fora aí ter.
O pobre Howie, o capitão, ou pelo menos o que restava dele, estava ainda em seu posto sobre a ponte de comando, firmemente seguro ao peitoril por suas mãos crispadas. Seu corpo e o de três foguistas eram os únicos que haviam afundado com o navio. Fizemos removê-los um por um sob nossa direção e enterrá-los sob o lodo, com uma coroa de flores marinhas sobre suas sepulturas. Dou estes detalhes para que possam servir de algum conforto à Sra. Howie em sua dor. Os nomes dos foguistas eram-nos desconhecidos.
Enquanto cumpríamos este dever, os atlantes enxameavam sobre o navio. Olhando para cima vi-os por toda parte, como camundongos sobre um queijo. Sua agitação e curiosidade bem mostravam que este era o primeiro navio moderno que viam — ou possivelmente o primeiro vapor. Descobrimos mais tarde que o aparelho que renovava o ar no interior de suas campanas de vidrina não lhes permitia ficar fora do edifício mais que algumas horas, e assim suas possibilidades de fazer reconhecimentos sobre o leito do oceano estava limitada a um restrito número de milhas de sua base central. Puseram imediatamente mãos à obra, tratando de aproveitar do navio tudo o que lhes poderia ser de utilidade. O longo tempo, contudo, que este trabalho exigia, fez com que até hoje ainda não esteja concluído. Ficamos também satisfeitos por podermos voltar às nossas cabinas e trazer de lá os artigos de vestuário e livros que não se achassem irremediavelmente estragados.