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— Não, ele não terá interferência nenhuma. A questão será entregue ao Conselho. É um caso muito sério, pois, pelo que Manda me disse, compreendi que o sacerdote está nos seus direitos e que é um velho costume estabelecido na nação. Diz ele que não poderiam depois distinguir uma raça da outra se houvesse entre ambas toda uma série de intermediários. Se nascem crianças nessas condições elas devem morrer. É essa a lei.
— Sim, mas esta criança não morrerá.
— Espero que não. Ele disse que faria tudo o que pudesse junto ao Conselho. Mas até que este se reúna decorrerá uma ou duas semanas. Desse modo ela está por enquanto em segurança e quem sabe o que poderá suceder neste intervalo de tempo!
Sim, quem poderia prever o que sucederia? Quem poderia sequer sonhá-lo? E é disso que trataremos no próximo capítulo das nossas aventuras.
Já disse que, a pequena distância da morada subterrânea dos atlantes, construída propositalmente para resistir ao cataclismo que destruíra sua terra natal, encontravam-se as ruínas da grande cidade que seus antepassados haviam habitado. Descrevi também a visita que fizemos a esse lugar com as campanas de vidrina carregadas de oxigênio sobre as cabeças, e tentei reproduzir a profunda emoção que experimentamos ao percorrê-las. Não há palavras que possam exprimir a tremenda impressão produzida em nossos espíritos por aquelas colossais ruínas, com seus pilares esculpidos e gigantescos edifícios, perfilados silenciosamente à luz fosforescente das profundezas batibianas, sem nenhum movimento a animá-los a não ser o lento balouço das algas gigantes às correntes marinhas profundas ou os vultos rápidos de grandes peixes que desfechavam através das portas escancaradas ou dos salões desmantelados. Era um de nossos passeios favoritos, e guiados pelo nosso amigo Manda passamos muitas horas agradáveis a examinar sua estranha arquitetura e todos os outros restos daquela civilização desaparecida, que, a se julgar pelos vestígios materiais que deixara, parecia haver-se adiantado muito mais que a nossa.
Falei de vestígios materiais, mas logo tivemos a prova de que em cultura espiritual um vasto abismo os separava de nós. A lição que podemos tirar de sua ascensão e sua queda é que o maior mal que pode sobrevir a uma nação é a inteligência dominar o sentimento. Foi isto que destruiu esta velha civilização e que ainda poderá ser a ruína da nossa. Havíamos observado que numa parte da antiga cidade havia um grande edifício que se deveria encontrar situado sobre uma colina, pois ainda se achava consideràvelmente acima do nível dos outros. Uma longa série de grandes degraus de mármore negro conduzia até ele e o mesmo material se via utilizado na maior parte do edifício, sendo porém que se achava agora quase totalmente mascarado por uma horrível profusão de fungos amarelos, que pendiam como postas pútridas de carne de todas as cornijas e saliências. Acima da porta principal, esculpida também em mármore negro, via-se uma medonha cabeça donde se irradiavam serpentes, como a cabeça de Medusa, e mesma figura se reproduzia aqui e além sobre as paredes. Várias vezes havíamos querido explorar este sinistro edifício, mas em todas elas Manda mostrara a mais viva agitação e por gestos desesperados implorara que nos afastássemos. Era claro para nós que enquanto ele estivesse em nossa companhia nunca permitiria que o fizéssemos, mas uma grande curiosidade nos impelia a desvendar o segredo daquele palácio misterioso. Uma manhã eu e Bill Scanlan tivemos uma conversa sobre o assunto.
— Olhe Bo, disse-me ele, há aí alguma coisa que Manda não quer que vejamos, mas quanto mais ele no-la oculta mais vontade tenho de saber o que é. Acho que nós dois não precisamos mais de guias. Creio que poderemos vestir nossas campanas de vidro e sair como qualquer outro cidadão. Vamos até lá explorar a casa.
— Tem razão, disse eu. Vê nisso algum inconveniente, doutor? perguntei a Maracot, que havia entrado no quarto. Quererá vir conosco também para destrinçarmos o mistério do Palácio do Mármore Negro?
— É muito possível que seja também o Palácio da Magia Negra, disse ele. Já ouviu falar no Senhor do Torvo Semblante?
Confessei que não. Não sei se já terei dito antes que o professor era uma autoridade mundial em assuntos de Religião Comparada e antigas crenças primitivas. Mesmo a longínqua Atlântida não escapara totalmente aos seus estudos.
— Nossos conhecimentos a este respeito nos vêm principalmente por intermédio do Egito, disse ele. Aquilo que os sacerdotes do Templo de Sais disseram a Sólon é que constitui o núcleo sólido ao redor do qual tudo o mais, parte realidade e parte ficção, se veio condensar.
— E que foi que esses sacerdotes disseram de interessante? perguntou Scanlan.
— Muitas coisas. Entre outras referiram-se à lenda do Senhor do Torvo Semblante. Não me posso impedir de pensar que possa ter sido o morador do Palácio do Mármore Negro. Alguns dizem que havia vários Senhores do Torvo Semblante mas Sólon apenas se refere a um único.
— E que espécie de sujeito era esse? perguntou Scanlan.
— Pelo que dizem deveria ser um ente sobre-humano, tanto pelos poderes de que dispunha como por sua perversidade. Diziam ter sido mesmo por sua causa e por causa da corrupção de costumes que ele havia provocado entre o povo que todo o país fora destruído.
— Como Sodoma e Gomorra.
— Exatamente. Parecia existir um ponto que, atingido, tornaria a situação incomportável. A paciência da Natureza, como que se esgotaria, apresentando-se-lhe como único recurso a destruição de tudo para recomeçar de novo. Esta criatura que mal se pode chamar de humana dedicara-se a artes diabólicas e adquirira poderes mágicos do maior alcance, que utilizava para praticar o mal. É essa a lenda do Senhor do Torvo Semblante. Isso explicaria porque essa casa é ainda um objeto de horror para este pobre povo e porque nos impedem de aproximarmo-nos dela.
— O que me torna ainda mais ansioso por fazê-lo, exclamei.
— E a mim também, Bo, acrescentou Bill.
— Confesso que também me interessaria examiná-la, disse o professor. Creio que nossos bons hóspedes não se zangarão se fizermos uma pequena expedição por nossa Conta, desde que sua superstição lhes torna difícil acompanhar-nos. Aproveitaremos a primeira oportunidade para isso.
Esta oportunidade demorou um pouco a apresentar-se, pois nossa pequena comunidade era regida por uma organização tão rígida e perfeita que poucas ocasiões se davam para o exercício da iniciativa individual. Aconteceu todavia que uma manhã houve uma festa religiosa que os fez reunirem-se e absorveu toda a sua atenção. A oportunidade era boa demais para que a perdêssemos e tendo por isso assegurado aos dois porteiros encarregados de manobrar as grandes bombas da câmara de entrada que tudo estava em ordem, encontrávamo-nos dali a pouco sobre o leito do oceano, a caminho da velha cidade. Caminha-se com dificuldade através do meio denso que é a água salgada, e mesmo uma curta jornada é cansativa, mas no fim de uma hora já nos achávamos em frente do vasto edifício negro que excitara nossa curiosidade. Sem nenhum guia amigo para nos deter, nem pressentimento de perigo, subimos a escadaria de mármore e passamos por entre as ombreiras esculpidas daquele palácio do mal.
Estava muito melhor conservado que os outros edifícios da velha cidade — tão conservado mesmo que seu arcabouço de pedra estava ainda perfeito e apenas o mobiliário e ornamentos é que haviam há muito desaparecido. A Natureza, porém, trouxera outros adornos em substituição, e dos mais horríveis. Era uma habitação escura e sombria, mas mesmo naquela semi-obscuridade entreviam-se as formas repulsivas de pólipos monstruosos e peixes extravagantes e grotescos, como visões de um pesadelo. Lembro-me em especial de uma enorme espécie de lesma do mar de cor púrpura, que se arrastava em grande número por toda parte e de grandes e negros peixes chatos que jaziam como almofadas sobre o chão, com longos tentáculos ondulantes de extremidades rubras movendo-se acima deles na água. Precisávamos avançar com cuidado, pois todo o edifício estava povoado com estes entes horrendos, que poderiam muito bem mostrar-se tão peçonhentos como pareciam.
Havia corredores ricamente ornamentados, com pequenos quartos ao lado e o centro do edifício era ocupado por um salão magnífico, que nos seus dias de grandeza deveria ter sido um dos mais admiráveis que a mão do homem já construiu. Aquela frouxa claridade não podíamos ver o teto nem as paredes em conjunto. Mas passeando por eles os túneis de luz de nossas lâmpadas, pudemos apreciar suas dimensões gigantescas e as maravilhosas decorações das paredes. Estas decorações consistiam em estátuas e ornamentos esculpidos com a perfeição mais acabada, mas horríveis e revoltantes em suas representações. Tudo o que o espírito humano mais depravado poderia conceber de crueldade sádica e luxúria bestial, estava representado naquelas paredes. Através das sombras entrevíamos ao nosso redor, para todos os lados, imagens monstruosas e repulsivas. Se jamais o demônio teve um templo erigido em sua honra, seria aquele. A figura do próprio demônio lá se achava representada. Numa extremidade do salão, sob um palio de um metal descorado que bem poderia ter sido ouro e colocada sobre um alto trono de mármore vermelho, achava-se sentada uma divindade temerosa, a mais perfeita personificação do mal, feroz, escarnecedora e implacável, modelada nas mesmas linhas que a de Baal que víramos na colônia dos atlantes, mas infinitamente mais pavorosa e repulsiva. Havia como que um fascínio na energia portentosa daquele semblante terrível. Achávamo-nos à sua frente com a luz de nossas lâmpadas projetadas sobre ela e a contemplá-la absortos, quando a mais espantosa e incrível das coisas veio quebrar o fio de nossas reflexões. De trás de nós veio o som de uma risada humana, estrepitosa e sardônica.
Como já expliquei, nossas cabeças se achavam encerradas em campanas de vidro que não só impediam a entrada do som, como também a transmissão da voz de uma pessoa que a usasse. E entretanto aquele riso escarnecedor chegava claramente aos ouvidos de todos nós. Voltamo-nos todos instantaneamente e ficamos paralisados de espanto ante o espetáculo que se nos deparou.
Recostado contra um dos pilares do vasto salão encontrava-se um homem, com os braços cruzados sobre o peito e os olhos malévolos fixados ameaçadoramente sobre nós. Eu disse que era um homem, mas era diferente de todos os homens que já vira, e o fato de poder respirar e falar em condições em que nenhum homem poderia fazê-lo e de poder transmitir sua voz quando nenhum homem o conseguiria, mostrava-nos que ele tinha em si algo que o tornava muito diferente de nós. Exteriormente era uma figura majestosa, tendo no mínimo sete pés de altura, de linhas atléticas, o que se via melhor por usar ele uma vestimenta que lhe moldava perfeitamente o corpo e que parecia feita de couro preto e luzidio. Seu rosto era o de uma estátua de bronze, uma estátua esculpida por mão de mestre a fim de representar toda a energia e ao mesmo tempo todo o mal que se poderiam imprimir numa fisionomia humana. Seu rosto não exprimia orgulho nem sensualismo, pois tais caracteres indicam fraquezas e não se divisava naquele o menor traço disso. Muito pelo contrário, exprimia uma energia sobre-humana com seus traços firmes, seu nariz de águia, suas sobrancelhas escuras e cerdosas e seus flamejantes olhos negros, que cintilavam e luziam como animados de um fogo interior. Eram estes olhos implacáveis e malignos e sua boca bela mas cruel com seus lábios finos e retos, que lhe davam aquela expressão sinistra no rosto. Sentia-se ao olhar para ele que apesar de sua aparência majestosa era impregnado de maldade até a medula dos ossos. Seu olhar era uma ameaça, seu sorriso um escárnio, sua risada um sarcasmo.
— Muito bem, senhores — disse ele em excelente inglês, numa voz que soava tão claramente como se nos achássemos na terra — já lhes sucedeu uma notável aventura em seu passado e bem lhes poderia acontecer uma outra ainda mais digna de nota no futuro, se bem que eu me possa dar ao agradável trabalho de cortar tudo pela raiz. Receio que esta nossa conversação tenha de possuir um caráter unilateral, mas como sou perfeitamente capaz de ler os seus pensamentos e sei de tudo a respeito de suas pessoas, não precisam temer nenhum mal-entendido. Têm ainda muitas, muitíssimas coisas a aprender.
Olhamos uns para os outros cheios do maior espanto. E o que era mais desagradável era estarmos impedidos de trocar idéias sobre as emoções que tudo isto despertava em nós. Ouvimos novamente sua risada áspera.
— Sim, é realmente bem desagradável. Mas poderão conversar quando voltarem, pois quero que voltem para levar uma mensagem minha. Se não fosse essa mensagem, creio bem que esta visita à minha casa seria o fim de todos. Mas antes de mais nada tenho qualquer coisa a dizer-lhes. Dirigir-me-ei à sua pessoa, Dr. Maracot, como sendo o mais velho e presumivelmente o mais sensato do grupo, se bem que não deva ser considerado muito sensato quem se atreve a fazer uma excursão como esta. Todos me ouvem perfeitamente, não é verdade? Muito bem, um simples movimento de cabeça é quanto me basta.
Em primeiro lugar, bem sabem quem sou. Sei que só me descobriram recentemente. Ninguém pode falar a meu respeito nem pensar em mim sem que eu o saiba imediatamente. Ninguém pode vir à minha antiga casa, meu sacrário mais íntimo, sem que eu me sinta no mesmo instante chamado. É por isso que aquela pobre gente a evita e queria que também a evitassem. Teriam realmente agido muito melhor se seguissem os seus conselhos. Os senhores me trouxeram aqui, e quando me chamam não me afasto assim tão prontamente.
Seu espírito, com o pequeno grão de ciência terrena que possui, atormenta-se inutilmente com os problemas que minha pessoa apresenta. Como posso viver aqui sem oxigênio? Eu não vivo aqui. Vivo no grande mundo dos homens sob a luz do sol. Só venho aqui quando sou chamado, como os senhores me chamaram. Sou uma criatura que apenas respira éter. Aqui existe tanto éter como no cume de uma montanha. Mesmo algumas pessoas da sua espécie, aliás, podem viver sem o ar. O cataléptico pode passar meses sem respirar. O mesmo sucede comigo, mas como vê, permaneço vivo e capaz de atividade.
Quer agora saber como me podem ouvir. Pois a verdadeira base da radiotelefonia não é a transformação de vibrações do éter em vibrações do ar? Assim também é que consigo fazer minhas palavras de articulação etérea atingir os seus ouvidos através do ar que enche esses seus grosseiros aparelhos.
O meu inglês? Espero realmente que o achem razoavelmente bom. Vivi algum tempo na terra — oh, bastante tempo! Quanto? Será este o décimo primeiro milênio ou o décimo segundo? O último, suponho. Tive tempo de aprender todas as línguas humanas. O meu inglês não é mais perfeito que o resto.
Terei resolvido algumas de suas dúvidas? Muito bem. Se eu não os posso ouvir, posso vê-los. Mas agora tenho alguma coisa mais séria a dizer.
Sou eu Baal-seepa. Sou eu o Senhor do Torvo Semblante. Sou eu aquele que penetrou tão fundo os mais íntimos segredos da Natureza que pôde desafiar a própria morte. Arranjei as coisas de modo tal a não poder morrer nem mesmo se o quisesse. Para que eu morra é necessário que surja uma vontade mais forte que a minha. Mortais, nunca peçam para ser libertados da morte. Esta pode parecer terrível, mas a vida eterna o é infinitamente mais. Ir de um para outro lado vendo passar a infinita procissão da humanidade! Sentarmo-nos a um lado da história e vê-la desenrolar-se, a caminhar sempre avante, deixando-nos para trás! É de se admirar que meu coração esteja cheio de rancor e amargura e que eu maldiga a todos e a tudo? Faço-lhes todo o mal que posso. Por que não?
Pergunta-se como o consigo. Disponho de poderes que não'são pequenos. Sei manobrar os espíritos dos homens. Sou o senhor das multidões. Onde quer que se tenha planejado o mal, lá estive eu. Encontrava-me com os hunos quando reduziram metade da Europa a ruínas. Encontrava-me com os sarracenos quando em nome da religião passavam a fio de espada os que discordavam de suas crenças. Achava-me presente aos massacres da noite de São Bartolomeu. Encontrava-me atrás do tráfico de escravos. Foi por insinuação minha que se queimaram dez mil velhas inofensivas que os tolos chamavam feiticeiras. Era eu o alto homem de tez escura que conduzia as multidões em Paris, quando o sangue inundava as ruas. Tempos inestimáveis aqueles! Mas houve ainda melhores ultimamente na Rússia. Foi donde eu vim agora. Havia-me quase esquecido desta colônia de ratos marinhos que, entocados na lama, conservam ainda algumas das artes e lendas daquela grande terra onde a vida floresceu com um viço nunca mais atingido. Foram os senhores que me fizeram lembrar deles, pois esta minha velha casa ainda está unida por vibrações pessoais, de que sua ciência nada sabe ainda, ao homem que a construiu e amou. Senti que estranhos haviam penetrado nela. Averigüei quem fossem e aqui estou. Desde que já «estou» aqui — e é a primeira vez em mil anos — isso me lembrou este povo. Acho que já viveram bastante. Já é tempo de se irem. Eles devem sua vida ao poder de um ente que me desafiou durante toda a sua existência e que edificou um prédio para refúgio contra o cataclismo que destruiu a tudo, menos a seu povo e a mim. Sua sabedoria os salvou e meu poderio, salvou-me. Mas agora meu poderio esmagará aqueles que ele salvou e a história ficará completa.
Enfiou a mão no peito e retirou um pergaminho com. caracteres escritos.
— Entregará isto ao chefe dos ratos de água, disse ele. Lamento, cavalheiros, que os senhores tenham que partilhar sua sorte, mas desde que são a causa primeira de sua desgraça, isso não passa de simples justiça. Mais tarde tornarei a vê-los. Neste intervalo recomendo-lhes um estudo dessas pinturas e esculturas, que lhes darão uma idéia da altura a que eu elevei a Atlântida durante os dias que a dirigi. Aqui encontrarão alguns aspectos das modas e costumes do povo, quando sob a minha influência. A vida era muito mais variada, colorida e pitoresca. Nos dias prosaicos de hoje chamá-la-iam uma orgia perversa. Dêem-lhe o nome que quiserem, eu a instaurei, regozijei-me com ela e não tenho remorsos. Se o meu tempo voltasse de novo, faria o que fiz e mesmo mais ainda, exceto apenas a realização deste plano fatal de viver eternamente. Warda, que eu maldigo e que deveria ter matado antes que se tornasse bastante forte para voltar o povo contra mim, foi mais sensato do que eu neste assunto. Ele ainda visita a terra, mas como um simples espírito e não como homem. E agora eu me vou. Foi a curiosidade que os trouxe aqui, meus amigos, e ouso esperar que a tenham satisfeito.
E vimo-lo então desaparecer. Sim, sua figura desvaneceu-se diante de nossos olhos. Isto não sucedeu num instante. Afastara-se do pilar contra o qual estivera encostado. Os contornos de seu vulto esplêndido e majestoso pareceram diluir-se. Apagou-se o brilho de seu olhar e suas feições tornaram-se indistintas. Dali a um momento achava-se reduzido a uma nuvem negra e revoluteante que subiu através da água estagnada do horrendo salão, desaparecendo. Só ficamos ali os três, a olhar estupefatos uns para os outros, assombrados com as estranhas possibilidades da vida.
Não ficamos mais tempo naquele horrível palácio. Não era um lugar em que se pudesse estar em segurança. Havia já tirado uma daquelas nojentas lesmas de cor púrpura do ombro de Bill Scanlan, e eu próprio fora dolorosamente atingido na mão pelo jacto de veneno que me lançara um grande lamelibrânquio amarelo. Ao sairmos dali com passos mal firmes tive um último vislumbre daqueles horríveis quadros em relevo, trabalhados nas paredes pelas mãos do próprio demônio e precipitamo-nos quase correndo pelo escuro corredor, maldizendo o dia em que havíamos sido bastante insensatos para entrar naquela casa. Foi uma verdadeira alegria para nós sentirmo-nos novamente banhados pela luz fosforescente da planície batibiana e ver aquelas claras extensões de águas transparentes ao nosso redor. Dali a uma hora achávamo-nos novamente de volta ao refúgio. Depois de removermos nossos capacetes, reunimo-nos em nosso quarto para deliberarmos sobre o assunto. O professor e eu nos achávamos abalados demais para conseguir exprimir nossos pensamentos. Só a irreprimível vitalidade de Scanlan é que conseguiu vencer a opressão desse encontro.
— Deus nos guarde! Aquele sujeito parecia ser o diabo-mor saído do inferno.
O Dr. Maracot estava absorvido em seus pensamentos. Em dado momento ele tocou a sineta para chamar nosso criado. «Manda», disse ele. Dali a um minuto nosso amigo se achava no quarto. Maracot entregou-lhe o fatídico bilhete.
Nunca admirei tanto um homem como a Manda naquele momento. Havíamos por nossa injustificável curiosidade trazido sobre ele e seu povo uma tremenda ameaça de destruição — nós, os estranhos que eles haviam salvo quando já tudo lhes parecia irremediavelmente perdido. Todavia, apesar da palidez espectral que lhe cobriu o rosto ao lê-la, não se viu o menor sinal de censura nos seus tristes olhos castanhos quando os voltou para nós. Abanou a cabeça e via-se o desespero em todos os seus gestos. «Baal-seepa! Baal-seepa!» exclamou ele, e apertou as mãos convulsiva-mente contra os olhos, como a repelir uma horrível visão. Girou pelo quarto como um homem enlouquecido de desespero e finalmente precipitou-se para fora para ler a mensagem à comunidade. Ouvimos poucos minutos mais tarde o retumbar do grande sino que os convocava a todos para uma reunião no Salão Central.
— Devemos ir? perguntei.
O Dr. Maracot abanou a cabeça.
— Que poderíamos fazer? Que probabilidades podem eles ter contra um ente que dispõe dos poderes de um demônio?
— Seria o mesmo que um grupo de coelhos a lutar contra uma doninha, disse Scanlan. Mas o certo é que toca a nós achar um meio para sair desta enrascada. Não é bonito irmos acordar o demônio para o lançar sobre o povo que nos salvou.
— O que sugeres? perguntei ansiosamente, pois entrevia atrás de todo esse palavreado o seu fértil e eterno espírito prático.
— Acho que talvez ele não seja tão invulnerável como pensa. Pode bem ser que com a idade ele se tenha deteriorado um pouco, pois a acreditar em sua palavra já é bem velhozinho.
— Julga então que o poderemos atacar?