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— É uma pena deixar-se estragar o jantar — disse o Redator-Chefe de um conhecido jornal.
O Doutor tocou a campainha.
Além dele e de mim, o Psicólogo era a única pessoa que havia estado presente ao jantar da semana anterior. Os demais eram Blank, o Redator-Chefe a que me referi, um certo jornalista e um senhor de barba, tímido e silencioso, a quem eu não conhecia e que, até onde pude observar, não pronunciou uma única palavra durante toda a noite.
A mesa de jantar, trocamos conjecturas sobre a ausência de nosso anfitrião e eu, meio em tom de brincadeira, aventei que ele devia estar viajando pelo tempo. O Redator-Chefe quis saber maiores detalhes e o Psicólogo se prontificou a fazê-lo, relatando de forma algo insípida o «engenhoso paradoxo e o espetáculo de ilusionismo» que havíamos presenciado. Estava ele era meio de sua exposição quando a porta que dava para o corredor se abriu devagar e sem ruído. Eu estava sentado bem em frente dela e fui o primeiro a vê-lo.
— Viva! — gritei. — Até que enfim!
A porta abriu-se de todo e o Viajante do Tempo surgiu diante de nós. Não pude conter um grito de surpresa.
— Deus do céu! Homem, o que foi que aconteceu? — Era a voz espantada do Médico, o segundo a avistá-lo.
Todos na mesa se voltaram para a porta.
Seu aspecto era constrangedor. O casaco estava empoeirado e sujo, com manchas esverdeadas nas mangas. O cabelo em desalinho parecia-me mais grisalho — ou por causa da poeira ou porque realmente sua cor tivesse mudado. Seu rosto era de uma palidez cadavérica, no queixo havia um corte já meio cicatrizado. Tinha um ar desvairado, os traços repuxados pareciam trair um grande sofrimento. Hesitou por um momento no vão da porta, como se estivesse ofuscado pela claridade reinante na sala. Depois entrou coxeando, como esses mendigos que têm os pés em petição de miséria. Nós o fitávamos em silêncio, esperando que ele falasse.
Sem dizer uma palavra, aproximou-se penosamente da mesa e fez um gesto para alcançar a garrafa de vinho. O Redator-Chefe encheu uma taça de champanha e lhe ofereceu. Ele a esvaziou de um trago. A bebida pareceu fazer-lhe bem, porque ele circunvagou o olhar pela mesa e a sombra de seu costumeiro sorriso bailou-lhe no rosto.
— Mas por onde é que andou você, homem de Deus? — gritou de novo o Médico.
O Viajante do Tempo não pareceu tê-lo ouvido.
— Fiquem à vontade, não quero perturbá-los — falou, articulando com dificuldade as palavras. — Estou bem.
Deteve-se e estendeu a taça para que a enchessem de novo, e esvaziou-a de uma só vez.
— Isso faz bem — disse.
Seus olhos se tornaram mais brilhantes e um leve rubor subiu-lhe às faces. Relanceou os olhos sobre nós numa espécie de muda aprovação e em seguida se pôs a andar pela sala quente e confortável. Depois voltou a falar, ainda como se tivesse dificuldade cm encontrar as palavras.
— Vou lavar-me e mudar de roupa, depois descerei para lhes dar as explicações.. Deixem para mim um pouco desse carneiro. Estou quase a morrer de fome.
Deu-se conta da presença do Redator-Chefe, que era um conviva muito raro, e cumprimentou-o. O Redator-Chefe esboçou uma pergunta.
— Daqui a pouco eu lhe responderei — disse o Viajante do Tempo. — Sinto-me um pouco. . esquisito. Mas estarei bem num minuto.
Depositou a taça na mesa e encaminhou-se para a porta da escada. Notei mais uma vez que ele coxeava e que, ao andar, fazia um ruído abafado. Do lugar onde me encontrava pude ver os seus pés: estavam descalços, não tinham senão as meias rasgadas e sujas de sangue. A porta se fechou por trás dele. Por um instante pensei em segui-lo, mas logo me lembrei de que ele detestava ingerências na sua vida privada. Meu espírito se pôs a vaguear. «Estranho Comportamento de um Cientista Famoso» — ouvi a voz do Redator-Chefe, pronunciando as palavras como se ditasse um título de matéria em caixa alta. E isso fez voltar minha atenção para a brilhante mesa de jantar.
— Que brincadeira é esta? — perguntou o Jornalista. — Será que lhe deu na veneta bancar o vendedor ambulante? Não entendo.
O olhar do Psicólogo cruzou-se com o meu e no seu rosto li minha própria interpretação. Pensei no Viajante do Tempo a subir penosamente a escada com os pés descalços e machucados. Penso que ninguém mais tinha percebido que ele estava mancando.
O primeiro a se refazer totalmente da surpresa foi o Médico, que tocou a campainha para que trouxessem os pratos quentes (pois o dono da casa não tolerava a presença dos criados durante o jantar). Com um resmungo, o Redator-Chefe voltou ao garfo e à faca, e o Homem Silencioso imitou-o. Recomeçamos a jantar. Durante algum tempo a conversação limitou-se a uma troca de exclamações entremeadas de arquejos de satisfação gustativa, mas logo o Redator-Chefe mostrou que ardia de curiosidade.
— Acaso o nosso amigo incrementa sua modesta receita como lixeiro? Ou sofre transformações como Nabucodonosor? — perguntou.
— Estou certo de que se trata dessa história da Máquina do Tempo — disse eu, retomando o relato de nossa reunião anterior, do ponto onde o Psicólogo o deixara. Os novos convivas mostravam-se francamente incrédulos. O Redator-Chefe opunha objeções. Afinal, que viagem no Tempo era essa? Pode uma pessoa ficar coberta de poeira simplesmente ao dar voltas dentro de um paradoxo? E mal lhe ocorreu a idéia, enveredou pela caricatura. Não haveria escovas de roupa no Futuro? Também o Jornalista não acreditava de forma alguma e juntou-se ao Redator-Chefe na fácil tarefa de ridicularizar o caso. Ambos pertenciam à nova geração de jornalistas, rapazes alegres e irreverentes.
— «Nosso Correspondente Especial no Dia Depois de Amanhã» — estava o Jornalista dizendo ou, melhor, gritando, quando o Viajante do Tempo reapareceu. Envergava agora um traje de noite completo, e nada mais, salvo o olhar ainda esgazeado, lembrava o homem cujo aspecto, poucos momentos antes, tanto me assustara.
— Nossos amigos aqui — falou o Redator-Chefe, rindo — me disseram que você esteve viajando em meio da semana que vem!! Vai contar-nos o que descobriu? Quanto quer pelo artigo?
O Viajante do Tempo foi sentar-se, sem dizer uma palavra, no lugar que lhe era reservado. Sorria mansamente, à sua maneira habitual.
— Onde está o meu carneiro? Que prazer, poder enterrar de novo o garfo num pedaço de carne!
— História! — gritou o Redator-Chefe.
— Que se dane! — retrucou o Viajante do Tempo. — Agora quero comer alguma coisa. E não direi uma palavra enquanto não introduzir um pouco de peptona em minhas artérias. Obrigado. O sal, por favor.
— Uma palavra só — pedi. — Esteve viajando no Tempo?
— Sim — respondeu ele, com a boca cheia, sacudindo a cabeça.
— Pago um shilling por linha pela transcrição literal — disse o Redator-Chefe.
O Viajante do Tempo empurrou seu copo na direção do Homem Silencioso e tamborilou com a unha no cristal. O Homem Silencioso, que o olhava fixamente, despertou num sobressalto e serviu-lhe o vinho.
O resto do jantar transcorreu num ambiente de mal-estar geral. De minha parte, sucessivas perguntas me afloravam aos lábios e estou certo de que o mesmo acontecia com os demais. O Jornalista tentou aliviar a tensão contando anedotas. O Viajante do Tempo concentrava toda a sua atenção no jantar e parecia estar com uma fome insaciável. O Médico fumava um cigarro e observava o Viajante do Tempo com os olhos semicerrados. O Homem Silencioso parecia mais desajeitado do que nunca, e bebia champanha com a regularidade e determinação do puro nervosismo. Finalmente, o Viajante do Tempo empurrou o prato da sua frente e nos abarcou com o seu olhar.
— Acho que lhes devo um pedido de desculpas — falou.
— Mas a verdade é que eu estava simplesmente à beira da inanição. Passei por uns maus bocados. — Apanhou um charuto e cortou a ponta. — Mas venham para a sala de fumar. É uma história muito longa para ser contada por cima destes pratos.
E, tocando a campainha de passagem, levou-nos ao outro aposento.
— Você falou a Blanck, Dash e Chose sobre a máquina?
— perguntou, dirigindo-se a mim e recostando-se confortavelmente em sua poltrona. Esses eram os nomes dos três novos convidados.
— Mas tudo é um simples paradoxo! — argüiu o Redator-Chefe.
— Não estou em condições de discutir esta noite. Posso contar-lhes a história, mas discutir, não. Caso vocês queiram, conto-lhes o que me aconteceu, mas com a condição de não me interromperem. Preciso contar. Desesperadamente. Uma grande parte vai parecer mentira. Pouco importa! Tudo é pura verdade, nos menores detalhes. Estava eu no meu laboratório às quatro horas e desde então… vivi oito dias… dias como nenhum ser humano viveu antes! Estou morto de cansaço, mas não dormirei enquanto não tiver contado tudo a vocês. Depois irei repousar. Porém, nada de interrupções! Combinado?
— Combinado — disse o Redator-Chefe, e nós lhe fizemos coro.
Então o Viajante do Tempo começou a contar sua história, tal como buscarei reproduzir. De início ele afundou em sua poltrona e pôs-se a falar como um homem fatigado. Depois, foi-se animando.
Ao escrever isto, sinto agudamente como a pena e a tinta são insuficientes para exprimir a essência, e dou-me conta, mais ainda, de minhas próprias limitações. Creio que você, leitor, lê com bastante atenção. Mas não pode ver o rosto pálido, cheio de sinceridade, do Viajante do Tempo, iluminado pela pequena lâmpada. Nem ouvir as inflexões de sua voz. Você não pode imaginar como a expressão de seu rosto acompanhava as peripécias da narrativa! Quase todos dentre nós que o escutávamos estávamos na penumbra, pois as velas na sala de fumar não tinham sido acesas; só o rosto do Jornalista e as pernas do Homem Silencioso, dos joelhos para baixo, estavam no círculo de luz. A princípio trocávamos olhares uns com os outros. Mas não tardou que deixássemos de fazê-lo e, totalmente absorvidos, só fitássemos o rosto do Viajante do Tempo.
Na última quinta-feira, expus a alguns de vocês os princípios da Máquina do Tempo e mostrei-a, ainda incompleta, na oficina. Lá está ela agora, na verdade um pouco maltratada pela viagem; uma das barras de marfim está rachada, uma travessa de metal entortou, mas o resto se acha em perfeito estado. Esperava terminá-la na sexta-feira, mas nesse dia, quando concluía a montagem, percebi que uma das barras de níquel estava mais curta exatamente uma polegada, e tive de refazê-la, de modo que a máquina só ficou pronta esta manhã. Foi às dez horas da manhã de hoje que a primeira das Máquinas do Tempo iniciou sua carreira.
Dei uma última revisada, apertei mais uma vez todos os parafusos, deitei mais uma gota de óleo na peça de quartzo e instalei-me sobre o assento. Suponho que um suicida, quando encosta a pistola na fronte, deve sentir a mesma sensação de curiosidade que eu experimentei, sobre o que viria logo depois. Segurei a alavanca de partida com uma das mãos e a de parada com a outra, acionei a primeira e, quase imediatamente, a segunda. Senti uma vertigem, uma sensação de queda, como num pesadelo e, olhando em torno, vi o laboratório exatamente como era antes. Teria acontecido alguma coisa? Por um instante suspeitei que meu intelecto me houvesse enganado. Então olhei para o relógio na parede. Um momento antes, segundo me parecera, ele marcava um minuto ou dois depois das dez; agora eram quase três e meia).
Inspirei profundamente, cerrei os dentes, segurei a alavanca de partida com as duas mãos e arranquei de um só golpe. O laboratório ficou nebuloso, depois escureceu. Minha criada, Sra. Watchers, entrou e dirigiu-se, como se não me estivesse vendo, para a porta do jardim. Penso que levou pelo menos um minuto para atravessar a sala, mas a mim pareceu que ela passara como um foguete. Empurrei a alavanca até o fim. A noite baixou com a rapidez com que se apaga uma lâmpada e um instante depois era o dia seguinte. O laboratório foi ficando cada vez mais enevoado e indistinto. Veio a noite do dia seguinte, depois foi de novo dia, de novo noite, de novo dia, numa sucessão cada vez mais célere. Um rumor como de um torvelinho enchia-me os ouvidos e sobre meu cérebro desceu uma estranha confusão.