120550.fb2 A M?quina do Tempo - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 4

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Receio não me ser possível exprimir em palavras as singulares sensações de uma viagem pelo Tempo. Posso garantir que são extremamente desagradáveis. É como se estivéssemos numa montanha-russa, caindo desamparadamente de cabeça para baixo! Experimentava, também, a mesma horrível sensação antecipada de um choque iminente, esmagador. Quando regulei a marcha, os dias e as noites se sucediam como o bater de uma asa negra. Fui perdendo a noção do laboratório, que acabou sumindo de minha visão. O sol atravessava o céu como de um salto, de minuto a minuto, cada minuto correspondendo a um dia. Acho que o laboratório foi destruído, pois de repente me vi ao ar livre. Tinha a esquisita impressão de estar subindo por andaimes, mas a essa altura minha velocidade era tal que eu perdera a consciência das coisas em movimento. A mais vagarosa das lesmas me parecia um relâmpago. A cintilante sucessão de claro e escuro me doía demais na vista. Nessas trevas intermitentes, vi então a lua passar velozmente por todas as suas fases, da lua cheia à lua nova, e tive um rápido vislumbre das estrelas em volta. Pouco depois, à medida que eu avançava, ganhando cada vez mais velocidade, a palpitação dos dias e das noites fundiu-se num cinza contínuo. O céu tomou um belo azul profundo, uma esplêndida luminosidade como a das primeiras horas da manhã. O sol transformou-se numa risca de fogo, um arco fulgurante no espaço; a lua, uma fita flutuante, mais apagada, fá não distinguia estrela alguma, salvo um círculo mais brilhante a lucilar de vez em quando no azul do firmamento.

A paisagem era brumosa e vaga. Eu me encontrava ainda na encosta do morro sobre a qual se acha construída esta casa, mas o terreno por trás de mim se elevava como uma sombra difusa. Via as árvores crescerem e mudarem como exalações de vapor, ora pardas, ora verdes; cresciam, desenvolviam-se, desmanchavam-se, sumiam. Imensos edifícios, majestosos em suas formas imprecisas, erguiam-se e dissipavam-se, como sonhos. Toda a superfície da terra parecia ter mudado — liquefazia-se e fluía ante meus olhos. Os pequenos ponteiros do painel que registravam minha velocidade giravam cada vez mais depressa. Em breve notei que o sol — sua risca luminosa — passava de um solstício a outro em apenas um minuto; conseqüentemente, eu viajava a mais de um ano por minuto. E de minuto a minuto a neve branca recobria todo o solo e se desvanecia, substituída pelo breve e brilhante verdor da primavera.

As desagradáveis sensações do início eram agora menos agudas. Por fim, acabaram se confundindo com uma espécie de ex-citação histérica. Notei que a máquina oscilava de forma estranha; sem que eu pudesse encontrar uma explicação. Tinha, porém, a mente demasiado confusa para que pudesse dar maior atenção ao problema; tomado de uma espécie de loucura crescente, eu me precipitava como um bólide no futuro.

A princípio, não pensei muito em parar, entregue quase que inteiramente às novas sensações da viagem. Mas logo uma nova série de pensamentos começou a formar-se em meu espírito — uma certa curiosidade, e, portanto, um certo temor — até que por fim, me dominaram completamente. Que extraordinários progressos da humanidade, que maravilhosos avanços sobre nossa civilização rudimentar não iriam surgir diante de meus olhos, quando eu parasse para ver de perto esse mundo difuso e fugitivo que corria e flutuava à minha frente! Via erguerem-se em torno de mim edifícios de uma soberba arquitetura, portentosos como nenhum outro em nossa época, e no entanto parecendo feitos de névoa e lampejo. Pelas encostas do morro subia uma vegetação mais rica e ali permanecia sem as alternâncias do inverno. Mesmo através do véu de minha confusão mental, a terra parecia muito bela. E então comecei a concentrar-me no problema da parada.

O risco principal residia na possibilidade de encontrar alguma coisa sólida no espaço que eu, ou a máquina, ocupávamos. Enquanto eu estivesse viajando através do Tempo a uma alta velocidade, essa hipótese não me preocupava muito. Eu estava, por assim dizer, volatilizado — passava como um vapor através dos interstícios das substâncias interpostas! Mas ao parar eu estaria me projetando, molécula por molécula, dentro do que quer que se encontrasse em meu caminho; significava que meus átomos entrariam em tão estreito contato com os do obstáculo, que poderia seguir-se uma profunda reação química — talvez uma explosão em grande escala — lançando-nos, a mim e a máquina, para fora de todas as dimensões possíveis. . para o Desconhecido. Essa possibilidade me ocorrera freqüentemente quando eu estava construindo a máquina, mas então eu a admitia, com tranqüilidade, como um risco inevitável — um desses riscos que temos de correr! Agora o risco era iminente e eu não mais podia encará-lo com displicência.

O fato é que, insensivelmente, a absoluta estranheza de tudo aquilo, a trepidação e o balanço enjoativo da máquina e, mais que tudo, a sensação de queda prolongada haviam acabado com os meus nervos. Dizia para mim mesmo que era impossível parar e, num acesso de irritação, resolvi dar uma parada instantânea. Com a impaciência de um louco, puxei a alavanca até o fim. Incontinenti, a máquina começou a rodopiar e fui atirado no ar de cabeça para baixo.

Senti nos ouvidos como que o estrondo de um trovão. Penso que por um momento fiquei atordoado. Um granizo impiedoso sibilava em torno de mim. Vi-me sentado na relva macia, diante da máquina caída. Tudo ainda me parecia cinzento, mas a pressão nos ouvidos tinha cessado. Olhei em volta. Estava, ao que tudo indicava, num pequeno relvado dentro de um jardim, cercado de touceiras de rododendros, cujas flores, sob a violência do granizo, se desfaziam numa chuva de pétalas purpúreas. As pedrinhas de gelo saltavam e revoluteavam sobre a máquina como uma nuvem e escorriam para o solo desfeitas em fumaça. Num instante fiquei encharcado até os ossos. «Bela maneira de receber», disse eu, «um homem que atravessou não sei quantos anos para vê-lo».

Logo me dei conta de que não fazia sentido ficar ali exposto às intempéries. Pus-me de pé e olhei em torno. Para além dos rododendros, em meio às brumas do temporal, entrevia-se uma figura gigantesca, talhada de algum tipo de pedra branca. Todo o resto, porém, estava invisível.

Não sei como descrever minhas sensações. Quando a tempestade de granizo amainou, pude ver melhor a figura branca. Era de fato colossal, pois a copa de uma bétula mal lhe chegava aos ombros. Feita de mármore branco, representava algo como uma esfinge alada, porém as asas, em vez de caírem verticalmente dos lados, estavam estendidas, como se ela pairasse no ar. O pedestal parecia de bronze e estava coberto de azinhavre. Por acaso a Esfinge tinha o rosto voltado para mim, e seus olhos cegos pareciam fitar-me. Bailava nos seus lábios um vago sorriso. Estava grandemente danificada pelas intempéries, e daquele estrago vinha a desagradável impressão de que fora corroída por uma doença. Fiquei a contemplá-la por alguns instantes — talvez meio minuto, ou, quem sabe, meia hora. Ela parecia aproximar-se ou recuar, conforme a cortina de granizo diante dela se fazia mais densa ou mais tênue. Por fim, desviei meus olhos da estátua por um momento, e vi que o temporal estava cedendo e o céu principiava a clarear, com promessa de sol.

Volvi de novo os olhos para a Esfinge Branca e, de súbito, apercebi-me da enorme temeridade de minha viagem. Que iria aparecer quando a cortina de névoa se dissipasse por completo? Quem sabe o que teria acontecido aos homens? Que fazer se a crueldade se tivesse tornado uma paixão coletiva? Se, nesse intervalo, nossa raça tivesse perdido sua própria humanidade, transformada em algo não-humano, sem qualquer sentimento e imensamente poderosa? Eu poderia parecer-lhes um animal selvagem do velho mundo, tanto mais hediondo e repugnante quanto maior fosse a nossa semelhança física — uma criatura monstruosa que se devia matar imediatamente.

A essa altura já começava a lobrigar outras construções de grande porte, imensos edifícios com intrincados parapeitos e altas colunas. Pela encosta da colina um denso arvoredo parecia descer sobre mim, com seus contornos ainda imprecisos através da tempestade que serenava.

Um terror pavoroso se apossou de mim. Corri freneticamente para a Máquina do Tempo e tentei revirá-la. Enquanto me entregava a esses esforços, os raios de sol romperam através das nuvens tempestuosas. A chuva de granizo cessou de todo e, como as vestes arrastadas de um fantasma, todos os seus sinais desapareceram. Por sobre mim desdobrava-se agora um imenso céu azul de verão, onde alguns escuros restos de nuvens aos poucos se dissipavam. Os grandes edifícios que me cercavam apareciam agora claros e distintos, brilhando com a umidade deixada pelo aguaceiro e realçados em sua alvura pelos montículos de granizo ainda não derretido que se acumulavam ao longo deles. Senti-me nu em um mundo estranho. Senti talvez o mesmo que sente um pássaro quando voa no espaço aberto e vê um gavião pairando por cima dele, pronto para atacá-lo. Meu medo virou um frenesi. Tomei uma respiração profunda, apertei os dentes, e ataquei a máquina ferozmente com braços e pernas, a fim de recolocá-la em posição. Cedendo aos meus esforços desesperados, ela acabou ficando de pé. Na revirada, atingiu-me violentamente no queixo. Uma das mãos no assento, a outra na alavanca de partida, fiquei ali arquejando pesadamente, pronto a voltar à máquina.

Mas, com a certeza de que a retirada estava garantida, minha coragem retornou. Pus-me a olhar com mais curiosidade e menos temor para esse mundo do futuro remoto. Numa janela circular no alto do prédio mais próximo se encontrava um grupo de figuras vestidas ricamente. Tinham-me visto, pois seus rostos estavam voltados na minha direção.

Então ouvi vozes se aproximando. Por entre as touceiras de arbustos que cercavam a Esfinge Branca apareceram as cabeças e os ombros de homens correndo. Um deles emergiu no atalho que conduzia diretamente ao local onde eu me encontrava com a máquina. Era uma criatura franzina — devia ter um metro e vinte de altura — e vestia uma túnica de cor púrpura presa à cintura por um cinto de couro. Usava sandálias ou borzeguins (não pude distinguir claramente). As pernas estavam nuas dos joelhos para baixo e tinha a cabeça descoberta. Ao observá-lo, notei pela primeira vez como a temperatura estava quente.

O aspecto dessa criatura impressionou-me: era muito bela e graciosa, mas extraordinariamente frágil. Suas faces coradas me fizeram lembrar a beleza dos tísicos, de que tanto se ouve falar. Ao vê-lo, subitamente recuperei a confiança e tirei as mãos da máquina.

CAPÍTULO 4

Um momento depois estávamos frente a frente, eu e esse delicado ser egresso do futuro. Ele dirigiu-se a mim sem hesitação e pôs-se a rir, fitando-me nos olhos. Sua ausência de qualquer temor me chamou logo a atenção. Ele depois se voltou para dois outros que o seguiam e falou para eles numa língua estranha, suave e melodiosa.

Outros foram chegando e em breve me vi cercado de um pequeno grupo de oito ou dez dessas criaturas singulares. Uma delas me dirigiu a palavra. Coisa bastante estranha: ocorreu-me naquele momento que minha voz devia soar muito áspera e profunda para eles. Então sacudi a cabeça e, apontando para os meus ouvidos, repeti o gesto. O que me falara deu um passo a frente, hesitou e em seguida tocou na minha mão. Logo comecei a sentir leves apalpadelas nas costas e nos ombros. Queriam certificar-se de que eu era real. Não achei nada de alarmante em tudo isso. Na verdade, havia algo nas maneiras dessas criaturinhas graciosas que inspirava confiança — uma delicadeza natural, uma espontaneidade infantil. E, além disso, eles pareciam tão frágeis que não duvidava ser capaz de derrubá-los a todos com um único movimento, como no jogo de boliche. Mas eu tive de me mexer rapidamente, para adverti-los, quando os vi alisarem, com suas mãozinhas róseas, a Máquina do Tempo. Felizmente percebi ainda cedo um perigo que até então havia esquecido; fui até o aparelho, desaparafusei as pequenas alavancas que o punham em movimento e guardei-as no bolso. Depois voltei para ver o que podia fazer a fim de comunicar-me com aqueles seres.

Examinando-lhes os rostos de mais perto, descobri novas particularidades naquela sua beleza de porcelana de Saxe. Seus cabelos, uniformemente cacheados, iam só até o pescoço. Os rostos eram glabros, sem o mínimo vestígio de pêlo. As orelhas eram singularmente miúdas, as bocas pequenas e vermelhas, de lábios finos, os queixos estreitos terminados em ponta. Tinham olhos grandes e doces; e — o que pode parecer egoísmo de minha parte —, pareceu-me que lhes faltava aquela centelha de interesse que eu esperava encontrar neles.

Como não faziam nenhum esforço para se comunicarem comigo e se limitavam a me rodear, sorrindo e falando entre si numa voz cantante, procurei iniciar a conversação. Apontei para a Máquina do Tempo e para mim. Depois, hesitando por um momento sobre como lhes transmitir a noção de tempo, apontei para o sol. Imediatamente, uma figurinha graciosa, com um vestido de xadrez branco e púrpura, repetiu o meu gesto e, para meu assombro, imitou o ruído do trovão.

Fiquei estupefato, embora o sentido daquele gesto fosse bem claro. Abruptamente, uma dúvida se me formou no espírito: seriam loucas essas criaturas? Vocês não podem imaginar como essa idéia me abalou. Sempre acreditei que no século 800 e pouco a humanidade estaria infinitamente à nossa frente em conhecimentos científicos, artes e tudo o mais. De repente, uma criatura dessa época me fazia uma pergunta que a colocava no nível de uma criança nossa de cinco anos. Na verdade, ela me perguntara se eu tinha vindo do sol numa trovoada! Isso punha por terra o juízo que eu fizera a respeito deles, baseando-me nos seus trajes, na sua compleição franzina e nas suas feições delicadas. Fui invadido por uma onda de desapontamento. Por um momento pensei que havia construído a Máquina do Tempo em vão.

Fiz que sim com a cabeça, apontei de novo para o sol e imitei o ribombar do trovão com tal força que eles se assustaram. Recuaram alguns passos e fizeram-me uma reverência. Um deles se aproximou com uma guirlanda de flores magníficas e inteiramente desconhecidas para mim, e passou-a em volta de meu pescoço. O gesto foi recebido com melodiosos aplausos. Logo puseram-se a correr para aqui e para lá em busca de flores, que atiravam, rindo, sobre mim, de modo que em pouco fiquei literalmente sepultado. Vocês que não estavam lá para ver, dificilmente podem imaginar as flores delicadas e maravilhosas que séculos e séculos de cultivo haviam produzido.

Um deles propôs que a brincadeira fosse apresentada no edifício mais próximo, e conduziram-me em direção a um enorme prédio cinzento de pedra lavrada, por trás da Esfinge de mármore branco, que durante todo aquele tempo parecera estar a observar-me, com um sorriso irônico diante de minha perplexidade. Enquanto os acompanhava, divertia-me interiormente com a lembrança de minhas confiantes previsões sobre a posteridade, que a meu ver seria profundamente austera e intelectualizada.

O edifício tinha uma entrada imensa e era, todo ele, de proporções colossais. Eu estava, naturalmente, muito ocupado em observar a crescente multidão daqueles pequenos seres e os enormes portais que se escancaravam diante de mim, escuros e misteriosos. Minha impressão geral daquele mundo que me cercava era de uma profusão de arbustos e flores admiráveis, um jardim de há muito abandonado mas não invadido pelo mato. Esparsas aqui e ali, em meio aos arbustos, como se fossem plantas silvestres, brotava um certo número de estranhas flores brancas, de largas pétalas de cera, dispostas em compridos cachos. Não pude examiná-las melhor. A Máquina do Tempo ficou abandonada sobre a relva, entre os rododendros.

O arco da entrada era ricamente trabalhado, mas, é lógico, não pude examinar os relevos de mais perto; pareceram-me no estilo dos antigos ornamentos fenícios e fiquei impressionado com o seu mau estado de conservação. À entrada, várias outras pessoas, também vestidas esplendidamente, vieram ao meu encontro. E assim fui entrando, em meus trajes pesados do século 19, que deviam parecer bastante grotescos, um garrido festão em torno do pescoço, e cercado por aquela multidão torvelinhante de vestes coloridas, de braços e pernas alvos, numa algazarra de risos e vozes pipilantes.

O grande portal abria-se para um imenso salão cujas paredes eram forradas de um tecido escuro. Não havia luzes no teto, e as janelas, em parte com vidraças coloridas, em parte sem vidraças, deixavam coar uma luz suave. O piso era feito de enormes blocos de um metal branco e duro; sim, de blocos, e não de chapas ou de placas, e estava tão gasto pelos passos de inúmeras gerações que os trechos mais pisados pareciam pequenas valas. Transversalmente ao comprimento da sala, viam-se inúmeras mesas talhadas em blocos de pedra polida, de uns trinta centímetros de altura, sobre as quais se encontravam montes de frutas. Algumas eu reconheci como sendo framboesas e laranjas hipertrofiadas, mas na sua maior parte me eram desconhecidas. Espalhado entre as mesas havia um grande número de almofadas. Sobre elas se sentaram meus guias, fazendo-me sinais para que eu os imitasse. Com uma deliciosa ausência de cerimônia, começaram a comer as frutas com as mãos, jogando as cascas, os caroços e o bagaço pelas aberturas redondas nos lados das mesas. Não me fiz de rogado para seguir-lhes o exemplo, pois estava com muita fome e sede. Enquanto comia, pude contemplar o salão mais detidamente.

Talvez o que mais me impressionou foi o seu aspecto de abandono e destruição. As janelas de vidraças coloridas, com desenhos geométricos, estavam quebradas em vários lugares. As cortinas que pendiam no fundo do salão achavam-se cobertas de pó. A própria mesa de mármore em que eu estava, apresentava as bordas partidas. Nada obstante, o efeito geral era de opulência e pitoresco. Havia cerca de duzentas pessoas comendo ali, e a maioria, sentada tão perto de mim quanto o espaço permitia, observa-me com interesse, os olhinhos brilhando por cima das frutas que devoravam. Todos estavam vestidos com o mesmo tecido de seda, leve mas resistente.

Sua alimentação constituía-se unicamente de frutas. Essa gente do futuro remoto era rigorosamente vegetariana e eu próprio, enquanto estive com eles, apesar de sentir falta de carne, fui obrigado a ser também frutívoro. Mais tarde descobri que os cavalos, o gado, os carneiros e os cães estavam tão extintos quanto o Ichthyosaurus. Mas as frutas eram deliciosas, particularmente uma delas, que parecia estar na época — uma espécie de pinha farinhenta que acabei transformando em meu alimento predileto. A princípio fiquei intrigado com todas essas frutas e flores diferentes, mas depois descobri o que significavam.

Acho que lhes estou falando demais sobre o meu jantar de frutas nesse futuro distante. Tão logo satisfiz um pouco o meu apetite, decidi-me a tentar aprender a língua dos meus novos companheiros. Era decerto a primeira coisa a fazer. As frutas me pareciam bem adequadas para iniciar a tentativa de comunicação. Mostrando-lhes uma delas, fiz uma série de ruídos e gestos interrogativos. Não foi fácil dar-lhes a entender a minha intenção. Os primeiros resultados foram olhares de surpresa ou cascatas intermináveis de risos, mas ao fim de algum tempo uma criaturinha de lindos cabelos percebeu meu intuito e pronunciou um nome. Tanto bastou para que eles se pusessem a tagarelar uns com os outros por longo espaço de tempo, es minhas primeiras tentativas para imitar os delicados sons de sua linguagem provocaram novos acessos de risos. Eu me sentia como um mestre-escola entre crianças. Continuei insistindo e em pouco estava sabendo umas quinze ou vinte palavras. Dos substantivos passei aos pronomes demonstrativos e ao verbo «comer». Era um trabalho lento. Ficaram logo cansados e procuraram subtrair-se às minhas perguntas. Achei que era melhor aprender em pequenas doses e quando eles estivessem dispostos a isso. E foram doses realmente diminutas, pois jamais encontrei um povo tão indolente e que se fatigasse tão depressa.

CAPÍTULO 5

Logo descobri uma coisa esquisita a respeito dos meus pequenos hospedeiros: sua falta de interesse por tudo. Corriam para mim sofregamente, entre gritos de surpresa, como crianças, e, como crianças, logo paravam de me examinar e se afastavam, à cata de outro divertimento. Quando o jantar e minhas tentativas de conversação terminaram, notei pela primeira vez que quase todos os que me haviam rodeado de início tinham ido embora. E foi igualmente estranha a rapidez com que me tornei indiferente à presença deles.

Tendo satisfeito minha fome, saí para o ar livre e a luz do sol. Encontrava incessantemente novos grupos desses viventes do futuro, que me seguiam a pequena distância, tagarelavam e riam à minha custa, me sorriam e me faziam sinais amistosos, depois me deixavam em paz, entregue às minhas reflexões.

Quando saí do grande edifício, a calma da tarde estendia-se pela terra e a paisagem era iluminada pelos raios cálidos do sol poente. A princípio as coisas me pareciam muito confusas. Tudo era tão diferente do mundo que eu havia deixado — até mesmo as flores. O edifício estava situado no declive do vale de um rio largo, mas o Tâmisa se deslocara talvez uma milha do seu leito atual. Resolvi subir ao cume de uma colina aproximadamente a milha e meia de distância, e dali deitar um olhar mais extenso por sobre este nosso planeta do Ano da Graça de Oitocentos e Dois Mil Setecentos e Um. Pois essa, como jâ devia ter informado, era a data marcada pelos mostradores de minha máquina.

Enquanto caminhava, permanecia atento a toda e qualquer impressão que pudesse ajudar-me a explicar por que aquele mundo de esplendor tombava em ruínas. Pois só encontrava ruínas.

A meio da encosta da colina, por exemplo, divisei um grande amontoado de granito, conservado unido por destroços de alumínio, um vasto labirinto de paredes desabadas e montes de entulhos, no meio dos quais se erguiam espessas touceiras de uma planta muito bonita, que pela disposição das folhas lembrava um pagode chinês — talvez urtiga, mas de um colorido mais vivo e sem os pêlos urticantes. Eram certamente os escombros abandonados de uma vasta construção, cuja finalidade eu não conseguia imaginar. Esse lugar me reservaria mais tarde uma experiência muito estranha — primeiro sinal de uma descoberta ainda mais estranha, porém, disso, falarei no momento oportuno.

Com um pensamento súbito, do terraço onde eu parará a fim de repousar um pouco, corri os olhos em torno e não avistei nenhuma espécie de habitação particular. Ao que tudo indicava, a casa de família e talvez mesmo a família não existiam mais. Aqui e ali, em meio à vegetação, viam-se edifícios apalacetados, mas a habitação isolada e a casa de campo, que dão uma feição tão característica à nossa paisagem inglesa, haviam desaparecido.

«Comunismo», falei para mim mesmo.

Atrás desse pensamento veio outro. Olhei a meia dúzia de figurinhas que ainda me seguiam. Então, num lampejo, percebi que todas se vestiam da mesma forma, tinham o mesmo rosto imberbe e delicado, as mesmas formas redondas de meninas. Pode parecer inconcebível que eu não tivesse notado isso antes. Mas tudo era tão diferente! Agora eu percebia as coisas com a maior clareza. No trajar, e em todas as características e maneiras que hoje distinguem os dois sexos, essas criaturas do futuro eram exatamente iguais. As crianças, por sua vez, pareciam-me simples miniaturas de seus pais. Disso concluí que as crianças dessa época futura eram extremamente precoces, pelo menos fisicamente, e mais tarde encontrei provas abundantes dessa opinião.

O bem-estar e a segurança em que vivia essa gente faziam certamente esperar, pensei, que os dois sexos acabassem se parecendo tanto; pois a robustez do homem e a delicadeza da mulher, a instituição da família e a diferenciação de ocupações são meras exigências de uma era de força física. Quando a população é numerosa e equilibrada, um elevado índice de nascimentos é antes um mal do que uma bênção para o Estado; quando a violência é rara e a prole está segura, há menos necessidade — na verdade, não há necessidade alguma — de uma família organizada como tal, e a especialização dos sexos com referência às necessidades dos filhos termina por desaparecer. Disso já encontramos alguns indícios em nossa própria época, e no futuro esse quadro social estará completo. Devo lembrar a vocês que essa era a especulação que eu fazia naquela hora. Porque mais tarde iria descobrir como estava longe da realidade.

Enquanto meditava sobre essas coisas, minha atenção foi despertada por uma pequena e graciosa construção, que me pareceu um poço sob uma cúpula. Pensei, um pouco distraidamente, como era esquisito ainda existirem poços, e retomei o fio de minhas especulações. Não havia grandes construções na parte superior da colina. Seguia andando aceleradamente, como se tivesse milagrosos poderes locomotores, e não tardei a verme sozinho pela primeira vez. Tomado de uma estranha sensação de liberdade e aventura, subi correndo ao topo da colina.

Ali encontrei um assento feito de um metal amarelo que eu não identifiquei, corroído por uma espécie de ferrugem cor-de-rosa, e já meio coberto por uma camada de musgo; os descansos dos braços lembravam cabeças de grifos. Sentei-me e pus-me a contemplar o nosso velho mundo sob o crepúsculo desse longo dia. Foi um dos mais belos e doces espetáculos que eu vi. O sol já havia transposto a linha do horizonte, o ocidente era ouro flamejante, com algumas barras horizontais de púrpura e carmesim. Lá embaixo estava o vale do Tâmisa, pelo qual o rio se estirava como uma lâmina de aço polido. Já me referi aos grandes palácios que pontilhavam a vegetação variegada, alguns completamente em ruínas, outros ainda ocupados. Aqui e ali elevava-se um vulto branco ou prateado no abandonado jardim da terra, aqui e ali a cortante linha vertical de algum mirante ou obelisco. Não se viam cercas nem quaisquer sinais de propriedade, ou de cultivo de cereais. Toda a terra se tornara um único jardim.

Olhando tudo isso, comecei a basear minha interpretação nas coisas que havia visto. Mais tarde percebi que só havia encontrado metade da verdade ou, menos até, o vislumbre de uma de suas facetas. Mas, naquele dia foi assim que as coisas foram por mim interpretadas.

Pareceu-me que eu me deparava com a humanidade em uma época de declínio. O crepúsculo avermelhado fez-me pensar no crepúsculo da raça humana. Pela primeira vez comecei a compreender uma estranha conseqüência dos esforços sociais em que hoje estamos empenhados. E, nada obstante, era uma conseqüência bastante lógica. O vigor é o produto da necessidade; a segurança é um convite ao enfraquecimento. A obra de melhoria das condições de vida — o verdadeiro processo civilizatório que torna a existência cada vez mais segura — havia prosseguido firmemente e atingido o seu clímax. A humanidade unida havia acumulado uma sucessão de triunfos sobre a Natureza. Coisas que hoje não passam de sonhos haviam-se transformado em projetos palpáveis e executados na sua plenitude. E o resultado era o que eu estava vendo!

Afinal de contas, as condições sanitárias e a agricultura de hoje estão ainda numa fase rudimentar. A ciência de nosso tempo atacou apenas uma faixa insignificante no campo das doenças humanas, mas ainda assim ela continua a desenvolver-se com firmeza e obstinação. A agricultura e a horticultura destroem uma erva daninha aqui e ali, e cultivam tão-só uma vintena de plantas úteis, deixando que a grande maioria dos vegetais lute como puder para encontrar o equilíbrio natural. Aperfeiçoamos nossas plantas e animais favoritos — e como são poucos! — gradativamente, praticando a criação e o cultivo seletivos: hoje um pêssego melhor, uma uva sem caroço, amanhã uma variedade de flor mais bela e mais perfumada, ou uma espécie de gado mais produtivo. Esse aperfeiçoamento é desenvolvido aos poucos, porque nossos conhecimentos são limitados e não sabemos ao certo o que desejamos. Por sua vez, a Natureza mostra-se tímida e lenta em nossas mãos inábeis. Algum dia, tudo isso estará mais bem organizado; e cada vez mais. Essa é a direção da corrente, apesar dos redemoinhos. O mundo inteiro será instruído, inteligente e cooperativo. A Natureza será subjugada numa progressão cada vez mais veloz. Por fim. reajustaremos o equilíbrio da vida animal e vegetal para que se adapte às necessidades humanas.

Esse equilíbrio deve ter sido atingido e de maneira perfeita, no espaço de tempo coberto por minha máquina. O ar estava livre de mosquitos; a terra, de ervas daninhas e de fungos; por toda a parte, árvores frutíferas e flores maravilhosas; borboletas de asas brilhantes adejavam. A medicina preventiva havia chegado ao seu estágio ideal. As doenças haviam sido erradicadas. Durante minha estada, não vi qualquer indício de moléstias contagiosas. E mais tarde lhes mostrarei que mesmo os processos de putrefação e decomposição haviam sido profundamente afetados por essas mudanças.

Tinham-se obtido, também, triunfos sociais. Eu via a humanidade alojada em magníficos prédios, luxuosamente vestida, e não havia encontrado ninguém entregue ao duro trabalho braçal. Não havia sinal de luta, nem social nem econômica. As lojas, os anúncios, o tráfego, todo esse comércio que constitui a estrutura de nosso mundo, não existiam mais. Era natural que, nessa tarde dourada, eu admitisse facilmente a idéia de que me encontrava num paraíso social. O próprio crescimento da população, julgava eu, tinha sido estabilizado.

Mas, com a mudança, vem inevitavelmente a adaptação à mudança. A menos que a ciência biológica seja um amontoado de erros, qual é a razão da inteligência e do vigor humanos? A luta pela vida e a liberdade: condições sob as quais os ativos, os fortes e os astutos sobrevivem, enquanto os fracos sucumbem; condições que estimulam a aliança leal dos capazes, o autodomínio, a paciência, a determinação. E a instituição da família, e as emoções que dela resultam, o ciúme desvairado, a ternura para com a prole, a dedicação dos pais, tudo isso encontra sua justificativa e sustentáculo nos perigos que ameaçam os filhos. Mas, e quando não existem esses perigos? Surge e cresce um novo sentimento, oposto ao ciúme conjugai, oposto à maternidade feroz, oposto às paixões de qualquer natureza, Essas coisas se tornam desnecessárias, pois só serviriam para complicar a vida, resquícios bárbaros e incômodos numa existência agradável e refinada.

Pensei na delicadeza física das pessoas, na sua falta de inteligência, naquelas imensas ruínas por toda parte, e isso fortaleceu minha crença de que a Natureza havia sido inteiramente conquistada. Pois depois da batalha vem o repouso. A humanidade havia sido forte, enérgica, inteligente, e havia usado toda a sua transbordante vitalidade em alterar as condições do meio em que vivia. E agora vinha a reação que essa alteração provocara.

Sob as novas condições de absoluto conforto e segurança, essa energia incansável, que hoje é nossa força, ficou debilitada. Mesmo na época de hoje, certas tendências e desejos, que outrora foram indispensáveis à sobrevivência, são uma fonte constante de frustrações. A coragem física e o gosto dos combates, por exemplo, de nada servem para o homem civilizado — muito pelo contrário, podem ser um estorvo. Num estado de equilíbrio físico e de segurança, o poder, tanto intelectual como físico, estaria deslocado. E imaginei que essa gente do futuro tinha conhecido um incontável número de anos sem perigo de guerra ou de violência individual, nem ameaças de animais ferozes ou de epidemias, que exigissem robustez física e trabalhos pesados. Para tal gênero de vida, aqueles que chamamos de fracos se acham tão bem aparelhados como os fortes — na verdade, deixam de ser fracos. Estão, diria eu, até mais preparados, pois os fortes seriam vítimas de seu próprio excesso de energia desaproveitada. Sem dúvida que a requintada beleza dos edifícios que eu vira havia sido uma das últimas canalizações da energia da humanidade, antes que esta entrasse em perfeita harmonia com as condições ambientes. O esplendor desse triunfo, que foi o princípio da última e grande paz. Esse tem sido sempre o destino da energia em segurança: volta-se para a arte e o erotismo, e depois vêm a apatia e a decadência.

Mesmo esse impulso artístico acaba por morrer — e estava quase morto no Tempo que eu visitei. Enfeitar-se de flores, cantar, dançar ao sol, era tudo quanto restava das manifestações artísticas. Mesmo isso haveria de ceder um dia a uma inatividade satisfeita. A mó do sofrimento e da necessidade nos obriga a permanecer ativos — e me parecia que, naquele futuro distante, essa odiosa mó havia sido finalmente despedaçada! Sentado ali em meio às trevas que baixavam, eu pensava ter, com essa simples explicação, desvendado o enigma do mundo, esclarecendo todo o mistério daquela gente deliciosa. Era possível que os meios por eles usados para evitar o aumento da população tivessem sido eficientes demais, e seu número diminuíra em vez de permanecer apenas estacionado. Isso explicaria as ruínas abandonadas. Era uma explicação muito simples, e bastante plausível — como afinal o são quase todas as teorias erradas!

CAPÍTULO 6

Enquanto eu me entregava a essas reflexões sobre o triunfo demasiado perfeito do homem, a lua cheia, amarela e encurvada, apontava ao nordeste em meio a um lago de luz prateada. Lá embaixo, os pequeninos seres deixaram de agitar-se, uma coruja voejou silenciosamente, e eu comecei a tremer com o frio da noite. Resolvi descer e procurar um lugar onde pudesse dormir.

Procurei com os olhos o edifício que eu já conhecia. Depois o meu olhar passeou pelas cercanias até a estátua da Esfinge Branca sobre seu pedestal de bronze, que se destacava cada vez mais à medida que a luz do luar se tomava mais brilhante. Podia ver também a bétula branca ao seu lado. E o emaranhado de rododendros, escuros sob a luz pálida, e o pequeno relvado. Olhei para este mais uma vez. Um frio me desceu pela espinha, pondo fim à minha serenidade.