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«Não», disse comigo mesmo, obstinadamente, «o relvado não era esse».

Mas era esse. Pois a face branca e leprosa da Esfinge estava voltada para ele. Podem vocês calcular o que senti quando adquiri plena convicção do que sucedera? Não, não podem.

A Máquina do Tempo havia sumido!

Instantaneamente, como se tivesse recebido uma chicotada no rosto, ocorreu-me a possibilidade de perder minha própria época, de ficar abandonado nesse novo mundo. Este simples pensamento me acutilou como uma verdadeira dor física. Senti um aperto na garganta e a respiração sufocada. Um momento depois vi-me presa do terror e corri desabaladamente, descendo a colina aos saltos. Levei um tombo violento, caindo ao comprido, c fiz este ferimento no rosto. Não parei para estancar o sangue. Continuei a correr e a saltar, sentindo na face e no queixo um fio quente a escorrer do corte.

Durante todo esse tempo, eu ia falando para mim mesmo: «Eles a afastaram um pouco do lugar e a esconderam sob os arbustos». Mas continuava a correr com todas as minhas forças. Porque durante esse tempo todo, com a certeza que às vezes acompanha um terror excessivo, eu sabia que essa afirmação era uma loucura, sabia instintivamente que a máquina havia sido carregada para fora de meu alcance. Minha respiração era difícil. Penso que cobri a distância entre o topo da colina e o pequeno relvado — duas milhas, talvez — em dez minutos. E não sou mais nenhum jovem. Aos berros eu amaldiçoava minha irrefletida confiança ao largar a máquina, e com isso perdia ainda mais o fôlego; gritava e ninguém me respondia. Ninguém parecia mover-se naquele mundo iluminado pela luz da lua.

Quando cheguei ao relvado, meus piores receios se confirmaram. Não havia o menor vestígio da máquina. Senti-me gelado por dentro, como se fosse desfalecer, ao ver aquele espaço vazio. Pus-me a correr furiosamente em volta, como se a máquina pudesse estar escondida em algum canto, e de repente parei, apertando a cabeça com as mãos. Por sobre mim, em seu pedestal de bronze, branca, o rosto escalavrado brilhando ao luar, alteava-se a Esfinge. Parecia zombar de meu desespero.

Poderia consolar-me imaginando que as pequenas criaturas haviam guardado a máquina em algum abrigo, não estivesse eu convencido de que eram física e intelectualmente incapazes disso. E era isso o que me aterrava: a suspeita de algum poder até então desconhecido, sob cuja intervenção meu invento havia desaparecido. No entanto, de uma coisa eu estava certo: a menos que em outra época qualquer se tivesse produzido uma exata duplicata, a máquina não podia ser posta em movimento no tempo. O sistema de alavancas — eu lhes mostrarei mais tarde como funciona — evitava que, quando retiradas, alguém pudesse acioná-la. A máquina tinha sido carregada, e estava escondida, somente no espaço. Mas então, onde estaria?

Penso que fui tomado de um acesso de loucura. Lembro-me de ter corrido alucinadamente por entre os arbustos que rodeavam a Esfinge, assustando um pequeno animal branco que, à claridade do luar, me pareceu um veadozinho. Lembro-me também de ter ficado até altas horas da noite rebentando os arbustos com os punhos fechados, até sentir os dedos machucados e sangrando. Depois, soluçando e perdido de angústia, desci até o grande edifício de pedra. A grande sala estava às escuras, silenciosa e deserta. Escorreguei no piso desigual, e caí sobre uma das mesas de malaquita, quase quebrando uma perna. Acendi um fósforo e dirigi-me para o interior, atrás das cortinas poeirentas de que antes lhes falei.

Havia ali uma segunda grande sala coberta de almofadas, sobre as quais dormiam creio que umas vinte daquelas criaturinhas. Não resta dúvida de que devem ter achado meu segundo aparecimento muito esquisito, porquanto irrompi em meio à quietude das trevas com gritos inarticulados e erguendo a chama de um fósforo. Pois nem mais deviam saber o que eram fósforos.

— Onde está minha Máquina do Tempo? — pus-me a vociferar, como uma criança zangada, agarrando-os e sacudindo-os um depois do outro. Alguns riram, mas quase todos ficaram realmente assustados. Quando os vi de pé em torno de mim, dei-me conta de que estava cometendo o maior desatino possível naquelas circunstâncias, procurando reavivar neles a sensação de medo. Porque, raciocinando com base no seu comportamento durante o dia, era de supor que, para eles, o medo era uma coisa esquecida.

Bruscamente, jogando fora o fósforo, e tropeçando em um eloi que estava em meu caminho, precipitei-me pelo salão de jantar e saí para a noite banhada pelo clarão da lua. Ouvi gritos de terror e o ruído dos passos desencontrados dos pequeninos pés correndo de um lado para o outro. Não me recordo de tudo que fiz, enquanto a lua vagueava pelo céu. Acredito que foi a natureza imprevista de minha perda que me pôs como louco. Senti-me irremediavelmente separado de todos de minha espécie — um animal estranho num mundo desconhecido. Devo ter perambulado sem destino, gritando imprecações contra Deus e a sorte. Guardo a lembrança de um terrível cansaço, enquanto essa noite de pesadelo ia passando; de ter procurado em lugares impossíveis; de haver tateado por entre as ruínas iluminadas pelo luar, tocando em estranhas criaturas escondidas na escuridão; e, por fim, de me ter deitado no chão perto da Esfinge e chorado desesperadamente. Pois só me restava a minha própria desgraça. Então, adormeci, e quando despertei era já dia claro e um casal de pardais saltitava na relva perto de mim.

Sentei-me, no frescor da manhã, e procurei lembrar-me de como fora parar ali e porque estava possuído de tamanha sensação de abandono c desespero. Então as coisas se aclararam no meu espírito. À luz crua do dia, que me devolvia a razão, pude raciocinar com objetividade. Compreendi que meu comportamento da noite anterior fora uma rematada estupidez e pude colocar as idéias no lugar. «Suponhamos o pior», disse eu. «Suponhamos que a máquina esteja perdida — esteja mesmo destruída. Cumpre-me ser calmo e paciente, aprender a maneira de ser desse povo, formar uma idéia clara de como se deu a perda da máquina, e o que devo fazer para arranjar material e ferramentas. Talvez, quem sabe, eu consiga construir uma nova.» Essa era minha única esperança, uma pobre esperança, decerto, porém melhor que o desespero. Afinal de contas, era belo e curioso esse novo mundo.

Mas, provavelmente a máquina tinha sido apenas carregada. Também aqui devia eu ser calmo e paciente, descobrir o' esconderijo e procurar recuperá-la pela força ou pela astúcia. Levantei-me com grande esforço e, com os olhos, procurei um lugar onde pudesse fazer a ablução matinal. Sentia-me cansado, entorpecido e sujo da viagem. O frescor da manhã fazia-me desejar ficar também limpo e bem disposto. Minhas emoções tinham-se esgotado. Na verdade, enquanto tratava das coisas, fiquei analisando com surpresa a minha excessiva comoção da véspera. Examinei cuidadosamente o terreno em torno do relvado onde estivera a máquina. Perdi algum tempo fazendo perguntas inúteis, da melhor forma que podia, às criaturinhas que se aproximavam. Nenhuma delas entendia meus gestos. Algumas simplesmente me olhavam com um ar estúpido, outras julgavam que era uma brincadeira e punham-se a rir. Tive de fazer o maior esforço de minha vida para não bater nesses delicados rostos sorridentes. Era um impulso irracional, mas o demônio engendrado pelo medo e pela raiva cega não tinha sido dominado e ainda procurava tirar vantagem de minha perplexidade.

A relva me foi mais útil. Havia um sulco a meio caminho entre o pedestal da Esfinge e as marcas de meus sapatos no lugar onde eu tinha feito movimentos para levantar a máquina virada. Havia na grama outros sinais da retirada do meu aparelho, juntamente com estranhas pegadas muito estreitas, que pareciam deixadas por um animal como a preguiça. Minha atenção se voltou mais diretamente para o pedestal. Como já lhes disse, era de bronze. Não era um bloco liso; em cada um dos quatro lados se viam artísticos painéis em baixo-relevo. Bati no bronze. O pedestal era oco. Examinando os painéis com cuidado, descobri que não eram inteiriços, e sim montados em partes dentro de caixilhos. Não vi puxadores nem fechaduras, mas se os painéis eram portas, como eu supunha, deviam abrir-se de dentro para fora. Uma coisa me parecia bastante clara: não foi preciso nenhum grande esforço mental para concluir que a Máquina do Tempo estava lá dentro. Como fora levada para ali era outro problema.

Vi duas criaturas vestidas de amarelo-laranja que vinham na minha direção através dos arbustos e passando sob algumas macieiras em flor. Sorri para elas e fiz-lhes sinais para que se aproximassem. Chegaram perto de mim. Apontando para o pedestal de bronze, tentei dar-lhes a entender que desejava abri-lo. Mas ao primeiro gesto meu nesse sentido, elas se comportaram da maneira mais estranha. Não saberia descrever para vocês a expressão de seus rostos. Para usar uma comparação, era como se eu tivesse feito gestos obscenos a uma senhora de respeito. Elas se afastaram como se eu lhes tivesse dirigido o pior dos insultos. Não tive melhor sorte com outro, vestido de branco, e de aspecto muito gentil. De algum modo fiquei envergonhado com a sua reação. Mas, vocês sabem, eu queria recuperar a Máquina do Tempo e tentei mais uma vez. Quando vi esse último dar-me as costas e afastar-se, como os outros, perdi as estribeiras. Em três saltos o alcancei, segurei-o pela parte superior do manto e vim arrastando-o na direção da Esfinge. Então li no seu rosto uma tal expressão de horror e repugnância, que o larguei imediatamente.

Todavia, não me dei por vencido. Bati com os punhos nos painéis de bronze. Pareceu-me ouvir ruídos no interior — para ser mais exato, sons de risos abafados — mas devia ser engano. Então desci até a margem do rio, recolhi uma pedra de bom tamanho e com ela bati nos painéis até que um deles ficou amassado, e o azinhavre começou a cair em flocos. As minhas batidas violentas no pedestal deviam ter sido ouvidas pelo menos a uma milha em torno, mas ninguém apareceu. Vi grupos deles nas encostas, deitando-me olhares furtivos. Por fim, cansado e cheio de calor, sentei-me na grama para ficar observando o local. Mas estava muito inquieto para ficar ali sentado à espreita. Sou demasiado ocidental para agüentar uma longa vigília. Posso ficar anos inteiros trabalhando num problema, mas não consigo ficar inativo por vinte e quatro horas.

Passado algum tempo, levantei-me e comecei a andar sem destino pelo matagal, na direção da colina. «Paciência», dizia comigo mesmo. «Se você quer recuperar sua máquina, deixe a Esfinge em paz. Se eles querem ficar com a sua máquina, não adianta destruir-lhes os painéis de bronze; e se não querem, você a terá de volta quando pedir. É inútil ficar sentado em meio a todas essas coisas desconhecidas, tentando resolver um enigma. Você acabará monomaníaco. Encare este mundo. Aprenda-lhe os costumes, observe-o, não tire conclusões apressadas. No fim você acabará encontrando todas as respostas.»

De súbito percebi o cômico de minha situação: durante anos havia estudado e trabalhado para poder visitar o futuro e agora estava numa ansiedade louca para sair dele. Eu próprio havia construído a armadilha mais complicada e mais desesperadora que alguém já imaginara. E não podia fazer nada por mim mesmo. Ri às gargalhadas.

Ao atravessar o grande palácio, pareceu-me que as criaturas me evitavam. Podia ser apenas impressão minha, ou podia ter algo a ver com as minhas marteladas nas portas de bronze do pedestal. Fosse qual fosse o motivo, não havia dúvida de que fugiam de mim. Tive, no entanto, o cuidado de não me mostrar preocupado e abstive-me de qualquer perseguição a elas.

Ao fim de um ou dois dias, as coisas voltaram ao que eram antes. Fiz os progressos que pude para aprender a língua e aproveitei para estender o âmbito de minhas explorações. A menos que me tivesse escapado alguma particularidade sutil, a língua daquelas criaturinhas era excessivamente simples — compunha-se, quase que só, de substantivos concretos e de verbos. Havia poucos termos abstratos, se 6 que os havia, e empregavam muito pouco a linguagem figurada. Suas frases eram habitualmente muito reduzidas, de duas palavras, e eu não conseguia transmitir nem compreender a não ser as proposições mais elementares. Decidi relegar a um canto da memória a minha preocupação com a Máquina do Tempo e o mistério das portas de bronze sob a Esfinge, até que pudesse reunir conhecimentos suficientes para voltar ao problema de uma forma natural. Mas, como vocês podem compreender, um certo sentimento me retinha num círculo de poucas milhas em torno do ponto de minha chegada.

CAPÍTULO 7

Até onde a vista alcançava, toda a terra apresentava a mesma exuberante riqueza do vale do Tâmisa. Do alto de todas as colinas que subi, vi a mesma abundância de belos edifícios, infinitamente variados em material e estilo, as mesmas formações de coníferas, as mesmas árvores cobertas de flores. Aqui e ali, a água brilhava como prata e, mais ao longe, a terra elevava-se em ondulações de colinas azuladas, até fundir-se na serenidade do céu. Um aspecto singular, que logo me atraiu a atenção, foi a presença de certos poços circulares, alguns deles, ao que me pareceu, de grande profundidade. Um desses poços se encontrava na vereda para a colina que eu havia seguido quando de minha primeira caminhada. Como os demais, tinha na borda uma cercadura de bronze curiosamente trabalhada e era protegido da chuva por uma pequena cúpula. Sentava-me à beira desses poços e perscrutava a profunda escuridão, sem ver o menor reflexo de água, nem mesmo acendendo um fósforo. Mas em todos eles ouvia um ruído, um ronco surdo e ritmado como o de uma grande máquina. E descobri, também, pela chama dos fósforos, que havia uma permanente corrente de ar nos poços. Joguei um pedaço de papel num deles e, em vez de flutuar e cair lentamente, foi aspirado de uma vez só e desapareceu de minha vista.

Não tardei a estabelecer uma relação entre esses poços e as torres altas que havia aqui e ali nos declives, pois sobre elas se via com freqüência essa mesma vibração do ar que se nota, num dia quente, sobre as praias ensolaradas. Juntando as coisas, formulei a hipótese de um extenso sistema de ventilação subterrâneo, cuja verdadeira utilidade eu não conseguia discernir. A princípio, inclinei-me a associá-lo aos serviços sanitários daquela gente. Era uma conclusão evidente, mas absolutamente errada.

Devo admitir que fiquei sabendo muito pouco sobre o sistema de esgotos, os meios de transporte e outros serviços públicos, durante minha permanência nesse futuro real. Em algumas dessas concepções de Utopias e tempos futuros que tenho lido, há uma profusão de detalhes urbanísticos, sociológicos e que tais. Esses detalhes são muito fáceis de obter quando o mundo inteiro está contido dentro de nossa imaginação, mas são de todo inacessíveis ao viajante verdadeiro que, como eu, se vê jogado dentro da realidade. Imaginem o que um nativo da África Central, recém-chegado a Londres, poderia depois contar à sua tribo. Que saberia ele das estradas de ferro, dos movimentos sociais, do telégrafo e do telefone, da Companhia de Colis Postaux e coisas análogas? E, no entanto, qualquer um de nós se prontificaria a explicar-lhe tudo. Mesmo aquilo que ele soubesse, como faria para que seu amigo na África Central, que nunca esteve aqui, compreendesse ou acreditasse? Agora, imaginem a pequena distância que há entre um negro africano e um homem branco de nossa época, e o tremendo hiato a separar-me dessas criaturas da Idade de Ouro! Eu tinha consciência do muito que não via e que contribuía para meu conforto, mas, salvo quanto à impressão de uma organização automática, receio não ser capaz de lhes fazer sentir as diferenças.

No tocante aos mortos, por exemplo: não encontrava nada que parecesse forno de cremação ou túmulo. Mas isso não impedia que, para além do meu campo de exploração, houvesse áreas reservadas a cemitérios ou fomos crematórios. Foi essa uma das perguntas que me propus a responder, porém minha curiosidade a princípio ficou inteiramente insatisfeita. O fato me intrigava e levou-me a fazer outra observação, que me deixou ainda mais perplexo: entre essa gente não havia ninguém que fosse velho ou enfermo.

Devo confessar que minha satisfação com as teorias que formulei de início, sobre uma civilização automatizada e uma humanidade decadente, não durou muito. Contudo, eu não conseguia encontrar outra. Vou expor as minhas dúvidas. Os vários palácios que eu explorara eram simples residências, grandes salas de jantar e dormitórios. Neles não havia máquinas nem instalações de qualquer tipo. Apesar disso, essa gente se vestia de belos tecidos, que de tempos em tempos precisariam ser renovados; suas sandálias, embora sem maiores enfeites, exigiam para seu fabrico apetrechos de metal bastante complexos. Forçosamente essas coisas tinham de ser produzidas em algum lugar. E as pequenas criaturas não revelavam nenhum indício de pendores criativos. Não havia lojas, nem oficinas, nem sinal de atividades de importação. Passavam o tempo todo brincando despreocupadamente, tomando banho no rio, fazendo amor meio na brincadeira, comendo frutas e dormindo. Eu não conseguia descobrir a maneira como a engrenagem era mantida em funcionamento.

E, mais uma vez, a Máquina do Tempo: algo, eu não sabia o quê, a havia levado para dentro do pedestal oco da Esfinge Branca. Por quê? Quisera eu adivinhar. E aqueles poços sem água, aquelas colunas de ventilação. Sentia que me faltava uma pista. Sentia.. como explicar? Vamos supor que vocês encontram uma inscrição gravada em excelente inglês, mas com as frases entremeadas de palavras, e mesmo de letras, totalmente desconhecidas. Bem, no terceiro dia de minha visita, era exatamente assim que se apresentava o mundo de Oitocentos e Dois Mil Setecentos e Um!

Também nesse dia arranjei uma amiga — vamos dizer assim. Aconteceu que, enquanto eu observava algumas dessas criaturas que tomavam banho no rio, uma delas foi tomada de cãibras e começou a ser arrastada pela correnteza. Esta era rápida, mas não forte demais, mesmo para um nadador modesto. Vocês poderão formar uma idéia da estranha alienação dessas criaturas quando eu lhes disser que nenhuma delas fez a mais leve tentativa para salvar a companheira que gritava e estava se afogando diante de seus olhos. Quando o percebi, mais que depressa tirei a roupa e, entrando na água um pouco abaixo, recolhi a infeliz e trouxe-a a salvo para a margem do rio. Com algumas fricções logo voltou a si, e eu tive a satisfação de ver que ela já estava boa quando a deixei. Eu já formara uma opinião tão negativa sobre os de sua espécie que não esperei nenhuma gratidão por parte dela. Desta vez, no entanto, eu me enganei.

Isso aconteceu pela manhã. À tarde, quando voltava de uma exploração, reencontrei minha pequenina mulher, como acredito que era, e ela me recebeu com gritos de alegria e ofereceu-me uma bela guirlanda — feita visivelmente para mim e para mim unicamente. O episódio me empolgou a imaginação. É bem possível que eu estivesse me sentindo muito abandonado. O certo é que fiz todo o possível para demonstrar-lhe como eu gostara do seu presente. Logo nos vimos sentados num banquinho de pedra sob um caramanchão, travando uma conversa feita sobretudo de sorrisos. Os gestos de afeto daquela criatura me tocavam exatamente como o teriam feito os de uma criança. Trocávamos flores, e ela me beijava as mãos. Eu beijava as mãos dela. Depois tentei um diálogo. Soube que se chamava Weena, nome que me pareceu bastante adequado, embora eu ignorasse o que significava. Esse foi o começo de uma curiosa amizade, que durou uma semana e terminou como depois lhes contarei!

Ela era tal qual uma criança. Queria estar comigo o tempo todo. Procurava seguir-me por toda parte. Em minhas caminhadas exploratórias, partia-me o coração vê-la ficar para trás, exausta, a chamar-me chorosamente. Mas eu tinha de deixá-la, porque os problemas desse mundo precisavam ser aclarados. Eu não viera ao futuro, dizia a mim mesmo, para me entregar a um namoro em miniatura. Sua tristeza quando eu a deixava era muito grande, suas recriminações chegavam a ser frenéticas, e penso que, todas as contas feitas, seu devotamento me trouxe tanto de aborrecimentos quanto de satisfação. Mas ela não deixava de me servir de grande conforto moral. Eu julgava que ela se agarrava a mim por mera afeição infantil. Até quando já era tarde demais, eu não me dei conta, claramente, do mal que lhe fazia quando a deixava. E também só quando já era tarde demais é que compreendi claramente o que ela significava para mim. Porque, pelo simples fato de parecer apaixonada por mim e demonstrar, à sua maneira tão frágil e frívola, que se preocupava comigo, aquele pedacinho de gente acabou dando ao meu retorno às proximidades da Esfinge Branca, todos os dias, quase a impressão de um regresso ao lar. E do alto da colina eu já procurava com os olhos a sua pequenina figura pálida e loura.

Foi também através dela que descobri que o medo ainda não havia desaparecido da terra. Durante o dia mostrava-se tranqüila e tinha em mim a mais irrestrita confiança; pois certa vez, num momento de irritação, eu lhe fiz caretas ameaçadoras, e ela simplesmente se pôs a rir. Mas ela temia o escuro, temia as sombras, temia tudo que fosse preto. As trevas eram para ela a única coisa apavorante. Era um sentimento profundamente arraigado, o que me fez pensar e observar. Descobri, então, entre outras coisas, que esses pequenos seres, assim que anoitecia, juntavam-se no interior dos edifícios e ali dormiam em grandes grupos. Entrar no meio deles sem uma luz na mão era lançá-los no maior pânico. Jamais encontrei algum do lado de fora, ou dormindo sozinho, durante a noite. No entanto, minha estupidez não me deixou aprender a lição desse medo e, a despeito da aflição de Weena, eu insistia em dormir afastado daquelas multidões.

Ela ficava muito angustiada, mas sua estranha afeição por mim acabou triunfando e, em cinco das noites que durou a nossa ligação, incluindo a última, ela dormiu com a cabeça repousando no meu braço. Mas, falando dela, eu me desvio de minha história.

Deve ter sido na noite anterior ao salvamento de Weena. Acordei de madrugada. Tinha estado inquieto, e tivera um sonho dos mais desagradáveis, no qual eu me afogava e sentia o rosto apalpado pelos moles tentáculos de anêmonas-do-mar. Acordei sobressaltado e com a, esquisita impressão de que um animal pardacento acabava de fugir do quarto. Tentei dormir novamente, mas me sentia nervoso e indisposto. Era essa hora indecisa em que os objetos começam a tomar corpo nas trevas, em que nada tem cor definida, e tudo está ainda envolto numa aura de irrealidade. Levantei-me, atravessei a grande sala de jantar e detive-me na escadaria do palácio. Como não havia outro remédio, decidi esperar ali pelo nascer do sol,

A lua se punha e sua luz mortiça misturava-se com os primeiros palores da aurora para dar uma semiclaridade espectral. As moitas de arbustos eram pretas como breu, o solo pardo e sombrio, o céu descorado e lúgubre. Olhei para a colina e acreditei ver fantasmas. Virei-me repetidamente naquela direção e, cada vez, distinguia vultos brancos. Duas vezes pareceu-me ver uma criatura branca, simiesca, correndo sozinha pela encosta; e uma vez, perto das ruínas, vi um grupo carregando um volume escuro. Eles se moviam com muita pressa. Não pude segui-los com a vista. Como que desapareceram por entre os arbustos. Era ainda madrugada, como vocês podem compreender, e eu experimentava essa sensação gélida, indefinida, de antes do amanhecer. Duvidava de meus olhos.

Para os lados do levante, o céu começou a clarear, a luz do dia jorrou, e o mundo mais uma vez se cobriu de cores vivas. Examinei meu campo de visão com o maior cuidado. Não lobriguei mais vestígios dos vultos brancos. Eram meras visões do lusco-fusco matinal.

«Devem ser espíritos», falei com os meus botões. «Imagino como devem ser velhos!»

É que me viera ao pensamento, divertidamente, uma teoria de Grant Allen (Grant Allen (1848–1899), escritor canadense radicado na Inglaterra; começou escrevendo trabalhos científicos, depois S9 dedicou à ficção, deixando numerosos livros. No mesmo ano do aparecimento de A Máquina do Tempo (1895), publicou o romance The British Barbarians, em que um viajante do Futuro faz um percurso inverso ao do personagem de Wells, vindo do século 25 para visitar a Inglaterra do século 19. - N. do T.): segundo ele, se cada geração, ao morrer, deixa seus espíritos, o mundo acabará ficando apinhado deles. Em oitocentos mil anos, o seu número seria incalculável e, assim, não haveria nada de assombroso que eu visse quatro de uma só vez. Mas a pilhéria era pouco convincente e eu continuei a pensar nesses vultos durante toda a manhã, até que o quase afogamento de Weena e seu salvamento me fizeram esquecer o fato. Associei-os vagamente ao animal de cor clara que eu tinha assustado quando da procura frenética da Máquina do Tempo. Weena os substituiu agradavelmente no meu espírito. Mas, apesar disso, eles estavam destinados a ocupar, muito breve, o centro dos meus pensamentos e de uma forma infinitamente mais apavorante.

Penso que já mencionei que a temperatura na Idade de Ouro era muito mais alta do que a de hoje. Não sei como explicar. Talvez o sol estivesse mais quente, ou a Terra mais próxima do sol. É comum supor-se que este ficará cada vez mais frio no futuro. Mas as pessoas não familiarizadas com especulações como as de Darwin, o Moço, (Refere-se a Sir George Howard Darwin (1845–1912), segundo filho de Charles Darwin, e astrônomo de grande nomeada no seu tempo. - N. do T), esquecem que os planetas acabarão caindo de volta no corpo de que se formaram. Quando essas catástrofes ocorrerem, o sol brilhará com renovada energia; e é possível que algum planeta interior houvesse tido esse destino. Qualquer que seja o motivo, o fato é que o sol estava muito mais quente do que hoje.

Mas prossigamos. Certa manhã de muito calor — creio que foi a quarta — estava eu procurando abrigo contra a soalheira numa enorme ruína perto daquele edifício onde comia e dormia, quando aconteceu um fato extraordinário: ao escalar os montões de alvenaria, deparei-me com uma galeria estreita cuja extremidade, bem como as aberturas laterais, estavam obstruídas por desmoronamentos. Devido ao contraste com a intensidade da luz lá fora, ela me pareceu a princípio impenetravelmente escura. Entrei às apalpadelas, pois a passagem da claridade para as trevas me fazia ver manchas coloridas dançando diante de mim. De chofre parei, surpreso. Um par de olhos, luminosos devido ao reflexo da luz vinda do exterior, observava-me da escuridão.

O velho medo instintivo que temos dos animais selvagens me assaltou. Cerrei os punhos e fitei firmemente aqueles olhos brilhantes. Tive receio de voltar. Então me veio ao pensamento a absoluta segurança em que parecia viver a humanidade. E me lembrei do estranho terror que a escuridão inspirava àquela gente. Vencendo até certo ponto o meu medo, dei um passo à frente e falei. Admito que minha voz era áspera e não muito segura. Estendi a mão e toquei em alguma coisa macia. Imediatamente os olhos se desviaram e um vulto branco passou correndo por mim. Com o coração na boca, virei-me e vi uma estranha figura que lembrava um macaco, a cabeça abaixada de uma forma peculiar; atravessou, disparado, o espaço por trás de mim, exposto à luz do sol. Tropeçou num bloco de granito, cambaleou e, num ápice, desapareceu na escuridão de outro montão de escombros.

Evidentemente, não pude formar uma imagem muito perfeita. Mas vi o suficiente para notar que sua pele era de uma brancura cadavérica, os olhos grandes e de um cinzento avermelhado; tinha uma cabeleira comprida, cor-de-palha. Mas, como disse, ele correu depressa demais para que eu o visse distintamente. Nem posso mesmo dizer se corria de quatro ou se os membros dianteiros estavam apenas abaixados. Após um momento de pausa, segui-o até o montão de escombros. Não pude encontrá-lo imediatamente, mas depois de habituar-me à profunda escuridão, vislumbrei uma dessas aberturas circulares em forma de poço das quais já lhes falei, meio escondida por uma coluna tombada. Veio-me um pensamento súbito: teria a Coisa desaparecido por esse caminho? Acendi um fósforo e, olhando para baixo, vi mover-se uma pequena criatura branca, que enquanto fugia me fitava fixamente com os seus grandes olhos brilhantes. Estremeci. Parecia uma aranha humana! Ao observá-la, notei pela primeira vez que ao longo das paredes do poço havia uma série de degraus de ferro, como uma escada. O fósforo queimou-me os dedos; deixei-o cair e ele se apagou na queda. Quando risquei outro, o pequeno monstro havia sumido.

Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando para o fundo do poço. Foi preciso algum tempo de reflexão para que eu me convencesse de que a Coisa que vira era um ser humano. Porém, pouco a pouco, a luz se fez em meu espírito: o Homem não se tinha conservado em uma única espécie, mas se dividira em dois animais distintos. Aquelas graciosas crianças do Mundo Superior não eram os descendentes exclusivos de nossa geração. Também essa Coisa esbranquiçada, imunda e noturna, que eu vira de relance, era herdeira de todas as épocas anteriores.

Pensei nas colunas por sobre as quais O ar vibrava e na minha hipótese de um sistema subterrâneo de ventilação. Entrei a suspeitar de seu verdadeiro significado. Mas o que vinha fazer esse Lêmure no meu esquema de uma organização perfeitamente equilibrada? Que papel desempenhava com relação à indolente serenidade dos belos habitantes do Mundo Superior? E o que estava escondido lá embaixo, no fundo do poço?

Sentei-me na borda, dizendo a mim que, de qualquer forma, não havia o.que temer e que devia descer até lá embaixo se queria encontrar a solução de meus problemas. Ao mesmo tempo, eu tinha um medo terrível! Enquanto eu hesitava, dois dos belos habitantes do Mundo Superior apareceram correndo, entretidos no jogo amoroso. O macho perseguia a fêmea, atirando-lhe flores.

Ao deixarem a zona de claridade para a de sombra, onde me encontrava, deram comigo e pareceram perturbar-se ao me verem ali, um braço apoiado na coluna caída e olhando para baixo. Visivelmente era falta de educação reparar nessas aberturas. Pois quando apontei para o poço e tentei formular uma pergunta na língua deles, ficaram ainda mais aflitos e me viraram as costas. Mas como vi que tinham ficado interessados em meus fósforos, acendi alguns deles para diverti-los, aproveitando para de novo tentar extrair deles alguma informação sobre os poços, ainda uma vez sem resultado. Assim, logo os deixei de lado, propondo-me ir à procura de Weena, a ver se com ela tinha melhor sorte.

Mas o meu espírito tinha sofrido uma revolução. Hipóteses c impressões se entrechocavam na tentativa de uma nova ordem de idéias. Agora eu tinha uma pista para descobrir a razão de ser daqueles poços, para as colunas de ventilação e para o mistério dos fantasmas matutinos, sem falar nas portas de bronze sob a Esfinge e no desaparecimento da Máquina do Tempo! De maneira muito vaga ocorreu-me o que poderia ser a solução do problema econômico que tanto me havia intrigado.

Eis como eu agora encarava a questão. Manifestamente, essa segunda espécie humana era subterrânea. Três circunstâncias em particular me faziam acreditar que a pouca freqüência de suas vindas à superfície se devia a um prolongado hábito de viver debaixo da terra. Em primeiro lugar, o aspecto esbranquiçado comum à maioria dos animais que vivem grande parte do tempo no escuro — o peixe branco das grutas do Kentucky, por exemplo. Depois, os olhos grandes, com a capacidade de refletir a luz, característicos dos animais noturnos — basta citar a coruja e o gato. E, finalmente, a evidente perturbação que lhe causava a luz do sol, sua fuga precipitada, embora aos tropeções, em busca da proteção das sombras, e a maneira típica de baixar a cabeça — tudo reforçava a teoria de uma extrema sensibilidade da retina.

Debaixo dos meus pés, portanto, a terra devia conter uma infinidade de túneis e esses túneis era o habitai da nova raça. A presença de poços e colunas de ventilação na encosta da colina — na verdade por todos os lados, exceto ao longo do rio, no vale — testemunhava que as ramificações eram infinitas. Que haveria, pois, de mais natural do que supor que era nesse artificial Mundo Subterrâneo que se produziam as coisas necessárias ao conforto do Mundo Superior? A idéia era tão plausível que a adotei de imediato e até encontrei uma explicação para essa bifurcação da espécie humana. Ousaria dizer que vocês já prevêem o desenvolvimento de minha teoria; no entanto, de minha parte, descobri muito cedo como me encontrava longe da verdade.

Primeiro, tomando como ponto de partida os problemas de nossa época, parecia-me claro como a luz do dia que o crescente alargamento da distância social (meramente temporária) que existe hoje entre o Capitalista e o Operário era a chave de toda a questão. Sem dúvida que isso lhes parecerá bastante grotesco — e absolutamente insustentável! — mas em nossos dias mesmo já existem provas que apontam nessa direção. Há uma tendência a utilizar o subsolo para os serviços menos nobres da civilização. Temos, por exemplo, o Metropolitan Railway em Londres, as passagens subterrâneas, escritórios e restaurantes no subsolo, e eles crescem e se multiplicam. Evidentemente, raciocinei eu, a tendência se acentuou de tal forma que a Indústria perdeu o seu direito de existência à luz do sol. Quero dizer com isso que ela foi descendo cada vez mais profundamente e construindo fábricas subterrâneas cada vez maiores, passando uma parte cada vez maior do seu tempo lá embaixo, até que por fim. .! Não é verdade que, já em nossos dias, o operário dos bairros pobres vive em condições tão artificiais que praticamente não tem acesso à superfície natural da terra?

Ainda mais, a tendência exclusivista da classe rica — devida, sem dúvida, ao crescente refinamento de sua educação e ao abismo que se abre cada vez mais entre ela e a rude condição dos pobres — já está levando à interdição, em favor dela, de extensões consideráveis da superfície terrestre. Nos arredores de Londres, por exemplo, cerca de metade das mais bonitas zonas campestres é vedada aos estranhos. E esse mesmo distanciamento social cada vez mais agudo — resultante do extenso e dispendioso processo de educação superior e das crescentes oportunidades e tentações que se oferecem aos ricos para a aquisição de hábitos refinados — fará com que o intercâmbio entre as classes, a realização de casamentos mistos, que hoje retardam a divisão de nossa espécie segundo linhas de estratificação social, se tornem cada vez menos freqüentes. Por fim, um dia teremos na superfície os Ricos, sempre em busca dos prazeres, do conforto e da beleza; e embaixo os Pobres, os Operários, adaptando-se ininterruptamente às condições de seu trabalho.

Uma vez lá embaixo, eles teriam sem dúvida que pagar taxas, e não pequenas, pela ventilação de suas cavernas. Se se recusassem, seriam condenados a morrer de fome ou asfixiados, até o pagamento da dívida em atraso. Os rebeldes e os indigentes acabariam por morrer. No final se estabeleceria um equilíbrio permanente, e os sobreviventes se tornariam tão adaptados às condições da vida subterrânea, e felizes à sua maneira, quanto os habitantes do Mundo Superior às suas. Segundo me parecia, a apurada beleza destes e a lividez estiolada daqueles eram um resultado bastante natural.