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Essa, devo adverti-los, era minha teoria naquela ocasião. Eu não tinha nenhum cicerone providencial, como acontece nos livros de Utopias. Minha explicação pode estar absolutamente errada. Mas acredito que é ainda a mais plausível. Porém, mesmo à luz dessa hipótese, a civilização equilibrada que por fim se tinha atingido devia desde muito ter ultrapassado o seu zênite, c estava agora em plena decadência. A segurança demasiado perfeita dos habitantes do Mundo Superior havia-os envolvido num lento processo de degenerescência, com uma redução geral da estatura, da força física e da inteligência. Isso eu podia constatar de forma suficientemente clara. O que acontecera aos habitantes do Mundo Subterrâneo eu ainda não suspeitava. Mas, pelo que tinha visto dos Morlocks — e este, a propósito, era o nome que se dava a essas criaturas —, podia facilmente imaginar que as modificações do tipo humano entre eles haviam sido muito mais profundas do que entre os «Elois», a bela raça que eu já conhecia.
Então sobrevieram as dúvidas inquietantes. Por que tinham os Morlocks levado minha Máquina do Tempo? Pois estava certo de que tinham sido eles. E por que, se os Elois eram os senhores, não podiam eles devolver-me a máquina? Por que tinham tanto medo da escuridão? Tentei, como disse, inquirir Weena sobre esse mundo subterrâneo, porém também ela me deixou frustrado. A princípio não conseguia entender minhas perguntas; depois, recusou-se a responder. Ela tremia como se o assunto lhe fosse insuportável. E quando a pressionei, talvez um pouco duramente, desfez-se em lágrimas. Foram essas as únicas lágrimas, exceto as minhas próprias, que vi nessa Idade de Ouro. Ao vê-la em prantos, parei imediatamente de atormentá-la com os Morlocks, e só me preocupei em fazer com que ela esquecesse esses testemunhos da herança humana. Em pouco tempo, Weena estava sorrindo e batendo palmas, enquanto eu acendia solenemente um fósforo.
Poderá parecer-lhes estranho, porém só dois dias depois é que me dispus a seguir a nova pista do que era, sem dúvida alguma, o verdadeiro caminho. Eu sentia invencível repugnância por aqueles seres pálidos. Tinham exatamente a mesma cor esbranquiçada dos vermes e animais que são preservados em álcool nos museus de zoologia. Eram de uma frialdade repulsiva ao tato. Minha aversão provavelmente se devia em grande parte à minha simpatia pelos Elois, cujo asco pelos Morlocks eu começava a entender.
Naquela noite não dormi bem. Minha saúde por certo se achava um pouco afetada. Oprimiam-me dúvidas e perplexidades. Uma ou duas vezes assaltou-me uma sensação de profundo terror para a qual não encontrava razão definida. Lembro-me de que me esgueirei para dentro do salão onde as pequenas criaturas dormiam à luz do luar — nessa noite Weena estava com eles — e tranqüilizei-me ao vê-los. Nesse momento ocorreu-me que, dentro de poucos dias, seria lua nova, as noites ficariam totalmente escuras, e então seriam mais numerosas as aparições dessas desagradáveis criaturas subterrâneas, desses Lêmures brancacentos, desses novos bichos que haviam substituído os antigos.
Nesses dois dias acompanhou-me sem cessar a impressão de que eu estava procurando furtar-me a um dever inadiável. Estava convencido de que só recuperaria a Máquina do Tempo se penetrasse decididamente naqueles mistérios subterrâneos. No entanto, não me animava a enfrentar esses mistérios. Se pelo menos eu tivesse um companheiro, a coisa seria diferente. Mas eu estava horrivelmente só e a simples idéia de descer pela escuridão do poço me aterrorizava. Não sei se compreendem como eu me sentia, mas era como se houvesse um perigo sempre a ameaçar-me.
Foi essa inquietação, essa insegurança, talvez, que fizeram com que eu me distanciasse cada vez mais nas minhas caminhadas exploratórias. Dirigindo-me para sudoeste, no rumo da região montanhosa que hoje se chama Combe Wood, notei muito ao longe, na direção da atual Banstead, uma grande construção verde, de aspecto diferente de todas as que havia visto até então. Era maior do que os maiores palácios ou ruínas que eu conhecia, e a fachada ostentava um estilo oriental, com um acabamento que lembrava, pelo brilho do esmalte e pela tonalidade verde-pálido, verde-azulado, certo tipo de porcelana chinesa. Essa diferença de aspecto denotava diferença de uso, e eu me senti inclinado a estender até lá minha exploração. Mas já se fazia tarde, e eu chegara a esse lugar após longa e cansativa caminhada. Decidi, portanto, reservar a aventura para o dia seguinte, e voltei para a acolhida jubilosa e os carinhos de Weena. Mas, na manhã seguinte percebi claramente que minha curiosidade com relação ao Palácio de Porcelana Verde não era mais que outro pretexto, uma auto-sugestão para que eu adiasse por mais um dia minha temida incursão. Resolvi fazer a descida sem mais perda de tempo, e bem cedinho me encaminhei em direção a um poço nas proximidades dos escombros de granito e alumínio.
A pequena Weena acompanhou-me, a correr e â dançar, até o poço. Mas quando me viu inclinado por sobre a borda, olhando para baixo, pareceu extraordinariamente perturbada.
— Adeus, pequena Weena — disse-lhe eu, beijando-a; depois, recolocando-a no chão, comecei a procurar às apalpadelas por sobre o parapeito, os primeiros ganchos de descida. Eu tinha pressa, mas devo confessar, era somente porque temia que a coragem me fugisse! A princípio, Weena me olhou estarrecida. Depois, soltando um grito lamentoso, atirou-se sobre mim e procurou deter-me com todas as forças de suas mãozinhas. Acho que essa oposição foi o que me decidiu a prosseguir. Empurrei-a, talvez um pouco rudemente, e um momento depois me encontrava na boca do poço. Vi o rosto angustiado de Weena por sobre o parapeito e sorri-lhe para tranqüilizá-la. Depois me concentrei nos degraus inseguros em que me apoiava, e iniciei a descida.
Eram uns duzentos metros mais ou menos. Tinha de utilizar as barras metálicas fixas nas paredes do poço, e como elas se destinavam a criaturas menores e mais leves do que eu, logo me senti cansado e com cãibras. Mas não apenas cansado! Um dos degraus vergou subitamente sob o meu peso e por um triz não fui atirado nas profundezas da escuridão lá embaixo. Por um momento fiquei suspenso no ar por uma única mão, e depois desse susto não ousei mais parar para descansar. Embora sentisse uma grande dor nos braços e nos rins, continuei a descer o mais rápido que minhas forças permitiam. Olhando para cima, vi a abertura do poço como um pequeno disco azul, através do qual uma estrela ainda era visível, enquanto a cabeça de Weena se projetava redonda e escura. Vinha de baixo, cada vez mais forte e opressivo, o ruído regular de uma máquina. Tudo, exceto o pequeno disco lá em cima, estava em profunda escuridão; quando olhei novamente, Weena havia desaparecido.
Seguiu-se um momento de angustiante mal-estar. Pensei mesmo em tornar a subir, e deixar de lado o mundo subterrâneo. Porém, mesmo enquanto eu remoia essa idéia no meu espírito, continuava a descer. Por fim, com imenso alívio, distingui a pouca distância, à minha direita, uma exígua abertura na parede. Com um giro do corpo introduzi-me ali e descobri que era a entrada de um estreito túnel horizontal, no qual eu podia deitar-me e descansar. Já não era sem tempo. Os braços me doíam, sentia cãibras nas pernas e dor nas costas, e ainda tremia com o terror prolongado de me despencar no abismo. Ademais disso, a escuridão compacta me deixara os olhos doloridos. Ouvia-se agora perfeitamente o ronrom das máquinas bombeando o ar para dentro do poço.
Não sei quanto tempo fiquei estendido ali. Fui despertado pelo contacto de uma mão muito mole tocando no meu rosto. Pus-me de pé num átimo, procurei por meus fósforos e risquei um, apressadamente: vi diante de mim três criaturas encurvadas, semelhantes àquela que eu havia encontrado junto das ruínas. Fugiram precipitadamente com medo da luz. Vivendo, como viviam, numa escuridão que para mim era impenetrável, seus olhos eram anormalmente grandes e sensíveis, exatamente como as pupilas dos peixes abissais, e refletiam a luz da mesma forma. Não havia dúvida de que eles podiam ver-me naquelas trevas opacas e pareciam não ter medo nenhum de mim, exceto pela luz da chama. E tão logo risquei um fósforo para vê-los, eles fugiram incontinenti, desaparecendo nos escuros canais e túneis, de onde ficaram me olhando com as pupilas acesas, do modo mais estranho.
Experimentei chamá-los para junto de mim, mas a língua deles, ao que tudo indicava, era diferente da falada pelos habitantes do mundo de cima. De maneira que me vi sozinho fazendo inúteis esforços, e a idéia de fugir daquele lugar antes mesmo de iniciar a exploração voltou ao meu espírito. Mas então eu disse comigo mesmo: «Você está aqui para saber o que há» e, caminhando às apalpadelas pelo túnel, notei que o ruído das máquinas se tornava cada vez mais alto. Mais adiante, senti que as paredes haviam acabado e encontrei-me num vasto espaço aberto. Acendendo outro fósforo, descobri que havia entrado em uma enorme caverna abobadada, que se estendia, escuridão adentro, para além do que era alumiado por mim. O que vi foi o quanto se pode ver à chama de um fósforo.
Forçosamente o que me lembra é vago. Grandes vultos, como de enormes máquinas, surgiam da escuridão e projetavam sombras negras e grotescas, nas quais os Morlocks espectrais se escondiam da luz. O lugar, diga-se desde logo, era abafado e opressivo, e havia no ar o cheiro nauseante de sangue recém-derramado. Pouco mais abaixo do centro do círculo iluminado, havia uma pequena mesa de metal, com o que me pareceu uma refeição. Os Morlocks, portanto, eram carnívoros! Mesmo nesse momento, fiquei pensando comigo mesmo que animal de grande porte poderia ter sobrevivido para fornecer aquela peça de carne, ainda sangrenta. Tudo era muito impreciso: o cheiro sufocante, os grandes vultos indefinidos, as figuras abjetas espreitando-me das sombras e só à espera de que voltasse a escuridão para caírem de novo sobre mim! Então o fósforo chegou ao fim, queimando-me os dedos; soltei-o e ele caiu, traçando um risco vermelho no escuro.
Tenho pensado desde então quanto eu me achava extremamente mal equipado para essa experiência. Quando parti com a Máquina do Tempo, foi com a absurda suposição de que os homens do Futuro estariam por certo infinitamente à nossa frente em todos os sentidos. Eu tinha viajado sem armas, sem remédios, sem nada para fumar — de vez em quando o fumo me fazia uma falta terrível — e nem mesmo trazia fósforos em quantidade suficiente. Se ao menos eu tivesse levado uma Kodak! Poderia ter tomado instantâneos desse mundo subterrâneo, para depois examiná-los com mais vagar. Mas o fato é que eu estava ali contando unicamente com as armas e os recursos que a Natureza me dera — mãos, pés e dentes. E mais quatro fósforos de segurança que ainda me restavam.
Receava abrir caminho entre aquelas máquinas mergulhadas nas trevas, e foi só quando a chama se extinguia que descobri que meu estoque de fósforos estava no fim. Até aquele momento nunca me havia ocorrido que eu precisava economizá-los, e havia gasto quase metade da caixa riscando-os para deslumbramento dos habitantes do Mundo Superior, para quem o fogo era uma novidade. Agora, como falei, dispunha apenas de mais quatro. Quando voltou a escuridão, senti uma mão tocando na minha e dedos flácidos apalpando-me o rosto, ao mesmo tempo que me penetrava pelas narinas um odor nauseabundo. Pareceu-me ouvir a respiração de uma pequena multidão desses seres tétricos, aglomerados em torno de mim. Dedos macios tentavam tirar de minha mão a caixa de fósforos, enquanto outras mãos por trás de mim puxavam minhas vestes. A impressão de estar rodeado dessas criaturas que eu não podia ver e que me apalpavam era indescritivelmente desagradável. Eu nada sabia a respeito de seu modo de pensar e agir, e esse súbito pensamento me varou o cérebro. Pus-me a gritar tão alto quanto me era possível. Eles se afastaram assustados, porém logo se reaproximaram. Passaram a me apalpar mais afoitamente, sussurrando sons esquisitos uns para os outros. Estremeci violentamente e voltei a gritar — algo mais inseguro. Dessa vez não ficaram muito alarmados e trocaram entre si um ruído que me pareceu de risadas, voltando a atacar-me. Devo confessar que estava terrivelmente apavorado. Decidi riscar outro fósforo e escapar sob a proteção da chama; o que fiz, aumentando a intensidade da luz com um pedaço de papel que tirei do bolso e acendi. Pude assim bater em retirada na direção do túnel estreito. Porém, mal havia entrado, a luz acabou e, na escuridão, pude ouvir os Morlocks sussurrando como o vento entre as folhas e precipitando-se no meu encalço com passos rápidos e miúdos que me soavam como um ruído de chuva.
Num instante senti-me agarrado por diversas mãos e não havia dúvida de que tentavam arrastar-me de volta. Risquei outro fósforo e balancei-o diante de suas faces ofuscadas. Vocês não podem imaginar que aparência repulsivamente inumana tinham eles — com aqueles rostos lívidos c sem queixo, os olhos grandes e sem pestanas, de um cinza avermelhado! — ali parados diante de mim, cegos e confusos com a claridade. Mas posso lhes garantir que não me demorei na contemplação; prossegui na minha retirada e, quando o segundo fósforo apagou, risquei o terceiro. Este se achava quase no fim quando cheguei à abertura por onde entrara. Deitei-me no chão, porque as batidas da grande bomba no fundo me deixavam atordoado. Tateei em busca dos grampos de metal, mas, nisso, fui agarrado pelos pés e puxado com violência para trás. Risquei meu último fósforo. . que se apagou imediatamente. Mas eu já estava com uma das mãos num degrau de subida, e desvencilhando-me dos Morlocks com violentos pontapés, galguei rapidamente os degraus do poço, enquanto eles ficavam lá embaixo a me verem subir, os olhos piscando. Todos, menos um pequeno demônio que me seguiu por algum tempo e quase me arrancou a bota, para servir-lhe de troféu.
A ascensão pareceu-me interminável. Nos últimos dez metros, fui tomado de náuseas mortais. Era-me necessário um esforço quase sobre-humano para segurar os degraus. Os lances finais foram uma luta terrível contra o desfalecimento. Por várias vezes senti vertigens e tive todas as sensações de uma queda. Não sei como, mas alcancei a borda do poço, saí e, cambaleando para fora das ruínas, vi-me sob a luz cegante do sol. Caí com o rosto por terra — e como era limpa, como era deliciosa essa terra!
Depois só me lembro de Weena me beijando as mãos e as orelhas, e das vozes de outros Elois. Em seguida, perdi os sentidos.
Agora, minha situação parecia pior do que antes. Até então, exceto a noite de angústia pela perda de minha Máquina do Tempo, eu mantinha a firme esperança de no final das contas achar um meio de escapar; mas essa esperança fora duramente abalada por minhas últimas descobertas. Até então, eu achava que minha ação era simplesmente retardada pela ingenuidade infantil dos Elois e por algumas forças desconhecidas que eu precisava apenas conhecer para poder superar. Mas, com os Morlocks, se interpusera um elemento inteiramente novo: aquela raça repugnante tinha qualquer coisa de inumano e de maligno. Instintivamente eu os execrava. Antes, eu me sentia como um homem que caiu num fosso: minha única preocupação era o fosso e como sair dele. Agora eu me sentia como um animal apanhado numa armadilha, cujo inimigo está prestes a chegar.
O inimigo que eu temia vai deixá-los surpresos: era a escuridão das noites de lua nova. Weena me incutira isso na cabeça através de suas alusões, a princípio incompreensíveis, sobre Noites Escuras. Agora não era muito difícil adivinhar o que essas noites escuras significavam. A lua estava no quarto minguante e a cada noite era maior a duração do período de escuridão completa. E agora também eu compreendia, pelo menos até um certo ponto, a razão por que os pequenos habitantes do Mundo Superior temiam as trevas. E me perguntava que coisas sinistras perpetravam os Morlocks nas noites de lua nova.
Estava agora quase certo de que minha segunda hipótese era inteiramente falsa. Os habitantes do Mundo Superior podiam ter sido um dia a aristocracia privilegiada, e os Morlocks seus servidores mecânicos. Mas isso tinha acabado desde muito tempo. As duas espécies resultantes da evolução do homem haviam-se dirigido, ou já haviam chegado, a um tipo de relacionamento completamente novo. Os Elois, como os reis carolíngios, tinham-se tornado simples figuras decorativas. Era-lhes consentida a posse da terra, mas isso porque os Morlocks, após inúmeras gerações de existência subterrânea, não podiam mais suportar a luz do dia na superfície. E os Morlocks fabricavam seu vestuário, deduzi eu, e proviam às suas necessidades cotidianas, talvez devido à sobrevivência do velho hábito de servir. Eles agiam como um cavalo empinado que agita as patas dianteiras ou como o homem que se diverte matando animais por esporte: são antigas e extintas necessidades que ficaram impressas no organismo. Mas, indubitavelmente, a antiga ordem tinha sido já em parte invertida. A Nêmesis dos delicados Elois aproximava-se rapidamente. Eras atrás, milhares de gerações atrás, o homem havia negado a seu irmão o direito ao bem-estar e à luz do sol. E agora esse irmão reaparecia — transformado! Os Elois já tinham começado a aprender de novo uma velha lição. Tornavam a travar conhecimento com o Medo. E de repente me veio à lembrança o pedaço de carne que eu havia visto no Mundo Subterrâneo. Flutuou na minha mente de maneira estranha, não como algo surgido no curso de minhas meditações, mas sim quase como uma interrogação de alguém do lado de fora. Tentei lembrar-me da forma daquela peça sangrenta. Parecia-me vagamente familiar, mas naquele momento não consegui definir o que fosse.
No entanto, por mais impotente que fosse aquela gente miúda em presença de seu misterioso Medo, eu era feito de outra cepa. Eu vinha desta nossa época, de pujante maturidade da raça humana, em que o Medo não nos paralisa e o mistério perdeu os seus terrores. Pelo menos, saberia defender-me. Sem detença resolvi armar-me e arranjar um lugar seguro onde pudesse dormir. Tendo esse refúgio como base, poderia enfrentar esse estranho mundo com um pouco da confiança que havia perdido ao verificar a espécie de criaturas a que estava exposto todas as noites. Não poderia mais dormir tranqüilo enquanto não soubesse que me achava em segurança no meu leito. Estremecia de horror só em pensar o quanto eles já me deviam ter examinado.
Durante toda a tarde vaguei pelo vale do Tâmisa, mas não encontrei nada que se me apresentasse como inexpugnável. Todos os edifícios e árvores pareciam facilmente ao alcance dos Morlocks, que a julgar pelas subidas e descidas aos poços eram trepadores hábeis. Então os pináculos do Palácio de Porcelana Verde me vieram à memória, e o brilho de suas paredes polidas. Ao cair da noite, colocando Weena sobre os ombros como se faz com uma criança, iniciei a marcha na direção do sudoeste. Calculara a distância em sete ou oito milhas, mas deviam ser umas dezoito. Eu tinha visto o Palácio pela primeira vez numa tarde úmida, quando as distâncias se nos afiguram enganadoramente menores. Além disso, o tacão de uma das minhas botas estava solto e um prego havia furado a sola — eu usava uma dessas velhas botas confortáveis com que costumo andar dentro de casa —, de modo que coxeava. Foi bastante depois do pôr-do-sol que cheguei à vista do Palácio, cuja silhueta escura se recortava contra o amarelo pálido do céu.
Weena se mostrou imensamente deliciada quando comecei a carregá-la, mas depois de certo tempo quis que eu a recolocasse no chão. Pôs-se a correr ao meu lado, de vez em quando disparando para aqui e ali, a fim de colher flores, que enfiava nos meus bolsos. Devo dizer que meus bolsos constituíam sempre um enigma para Weena, mas afinal ela concluiu que não eram outra coisa senão uma espécie inusitada de vaso para arranjos florais. Pelo menos era para isso que ela os utilizava. E isso me lembra uma coisa! Ao trocar de casaco eu encontrei. .!
O Viajante do Tempo fez uma pausa, meteu a mão no bolso, e sem dizer uma palavra colocou sobre a mesa duas flores murchas, que lembravam malvas brancas, porém bem maiores. Depois, retomou a narratriva.
Quando o silêncio do anoitecer já se estendia por toda a terra e galgávamos o topo da colina em direção a Wimbledon, Weena sentiu-se cansada e quis voltar para o edifício de pedra cinzenta. Mas eu lhe mostrei os pináculos distantes do Palácio de Porcelana Verde e consegui fazê-la entender que esperávamos encontrar ali um refúgio contra o seu Medo. Vocês conhecem a imensa paz que cai sobre as coisas quando a noite se avizinha? Até a brisa deixa de soprar entre as árvores. Para mim, há sempre um ar de expectativa nessa calmaria do anoitecer. O céu estava límpido, profundo e sem nuvens, salvo algumas listras horizontais quase na linha do poente. Nessa noite, a expectativa tomava as cores de meus receios. Em meio ao silêncio do escurecer, meus sentidos pareciam ter adquirido uma acuidade sobrenatural. Tinha a impressão de que podia sentir até a terra oca sob meus pés; era quase como se visse os Morlocks indo e vindo pelos túneis de seu formigueiro, à espera de que a noite chegasse. Em minha excitação, imaginei que eles deviam ter recebido minha invasão de suas tocas como uma declaração de guerra. E por que tinham eles roubado minha Máquina do Tempo?
O crepúsculo se transformou em noite, enquanto o silêncio nos envolvia. O azul desmaiado da distância desapareceu e as estrelas foram aparecendo, uma a uma. O solo tornou-se escuro, as árvores agora eram negras. Os temores e a fadiga de Weena aumentaram. Tomei-a nos braços, falei com ela e fiz-lhe carinhos. Quando a noite fechou, ela pôs os braços em torno de meu pescoço e, cerrando os olhos, afundou o rosto no meu ombro. Assim descemos um longo declive em direção ao vale e quase caí dentro de um riacho. Vadeei-o e subi para o outro lado do vale, passei por diversas casas-dormitório, por uma estátua — um fauno, ou algo parecido, já sem a cabeça. Aqui, também, havia acácias. Até então não tinha visto nenhum Morlock, mas ainda era cedo e as horas mais escuras que precedem o minguante ainda não haviam chegado.
Do alto da colina seguinte, vi um bosque cerrado, estendendo-se vasto e negro diante de mim. Ao vê-lo, fiquei hesitante. Não conseguia divisar seus limites para nenhum dos lados. Sentindo-me cansado — os pés, sobretudo, doíam-me demais —, parei, com muito cuidado tirei Weena de cima do meu ombro e sentei-me no chão. Não enxergava mais o Palácio de Porcelana Verde e estava em dúvida quanto à direção. Tentei devassar com os olhos a espessa mancha do bosque, imaginando o que podia ele esconder. Debaixo daquele denso emaranhado de galhos, uma criatura nem avistaria a luz das estrelas. Mesmo que não houvesse perigo algum a ameaçar — e eu não desejava ocupar a imaginação com essa idéia —, haveria sempre as raízes e os troncos de árvores nos quais havia o risco de tropeçar ou de bater.
Achava-me terrivelmente cansado após as peripécias do dia, e resolvi não enfrentar o desconhecido, considerando preferível passar a noite ao ar livre no alto da colina.
Vi com satisfação que Weena dormia a sono solto. Enrolei-a cuidadosamente no meu casaco e sentei-me a seu lado, aguardando o nascer da lua. A colina estava tranqüila e deserta, porém da escuridão da mata me chegavam de vez em quando ruídos de seres vivos. Por sobre mim cintilavam as estrelas, pois era uma noite muito clara. De certo modo eu sentia um reconforto amigo no seu piscar. Todas as antigas constelações, no entanto, haviam desaparecido do céu: seu lento movimento, que é imperceptível durante centenas de vidas humanas, desde muito que as havia reagrupado diferentemente. Só a Via Láctea me parecia não ter mudado, a mesma faixa esburacada de poeira de estrelas. Para o lado do sul (como julgava) havia uma estrela vermelha muito brilhante e inteiramente nova para mim; tinha mesmo um fulgor mais intenso do que nossa verde Sirius. E, no meio de todos esses cintilantes pontos de luz, um planeta brilhava firme e propício como o rosto de um velho amigo.
Ante o espetáculo das estrelas, de súbito me compenetrei da insignificância de meus problemas e de todos os transes da vida terrestre. Meditei na sua incalculável distância, no seu curso lento mas inexorável do desconhecido passado para o futuro desconhecido. Pensei no grande ciclo precessional que o pólo da Terra descreve. Somente quarenta vezes se tinha produzido essa silenciosa revolução durante todos os milhares de anos que eu atravessara. E durante essas poucas revoluções, todas as atividades, todas as tradições, as complexas organizações, os países, as línguas, as literaturas, as aspirações, até a simples lembrança do Homem tal como eu o conhecia, tinham sido varridas da existência. Em vez de tudo isso, restavam essas criaturas frágeis que haviam esquecido sua nobre origem, e aqueles avantesmas que me enchiam de terror. E pensei no Grande Medo que separava as duas espécies, e pela primeira vez, com um estremecimento súbito, tive a clara noção de qual devia ser a procedência da peça de carne que eu havia visto. Mas seria horrível demais! Contemplei a pequenina Weena dormindo a meu lado, tão alva e pálida sob as estrelas, e logo afastei o pensamento.
Durante essa longa noite procurei esquecer os Morlocks o mais que pude, e passei o tempo tentando encontrar indícios das antigas constelações em meio aos novos e confusos agrupamentos. O céu continuava muito claro, com uns fiapos de nuvem aqui e ali. Devo ter cochilado algumas vezes. Quando minha vigília ia adiantada, o céu começou a empalidecer para os lados do leste, como o reflexo de algum fogo invisível, e a lua minguante apareceu, estreita e macilenta. E quase sem transição, envolvendo-a e diluindo-a, atrás dela veio a aurora, pálida a princípio, depois rósea e quente. Nenhum Morlock se havia aproximado de nós. Na verdade, eu não tinha avistado nenhum deles, essa noite, sobre a colina. Com a reavivada confiança que me trazia o amanhecer de um novo dia, quase acreditei que todos os meus terrores eram imaginários. Pus-me de pé e senti que meu tornozelo estava inchado; o calcanhar doía muito. Tornei a sentar-me, tirei as botas e atirei-as para longe.
Acordei Weena e pusemo-nos a caminho do bosque, agora verde e convidativo, em vez de negro e ominoso. Encontramos alguns frutos com os quais pudemos quebrar o nosso jejum. Pouco adiante surgiram alguns Elois, rindo e dançando ao sol, como se não existisse na natureza essa coisa chamada noite. E então uma vez mais eu fiquei pensando na comida que entrevira na mesa dos Morlocks. Agora não tinha mais dúvida do que era, e do fundo d'alma tive pena desse último e humilde riacho em que se transformara o caudaloso rio da Humanidade.
Ao que tudo indicava, num dado momento do longo passado da decadência humana, o alimento dos Morlocks escasseou. Talvez tivessem, então, passado a comer ratos e insetos. Mesmo em nossos dias, o homem está longe de ser exclusivista e seletivo na escolha de seus alimentos — qualquer macaco o é mais. Seu preconceito contra a carne humana não é um instinto fundamente enraizado. E assim, esses descendentes inumanos do homem. .! Procurei encarar a coisa de um ângulo estritamente científico. Afinal de contas, eles eram menos humanos e mais distantes do que nossos antepassados canibais de há três ou quatro mil anos. E a inteligência, que veria uma tragédia nesse estado de coisas, não existia mais. Por que devia eu incomodar-me? Os Elois eram simples gado de engorda, que os Morlocks preservavam e de cuja criação talvez cuidassem, para depois abatê-los. E ali estava Weena, bailando inocentemente a meu lado!
Busquei resguardar-me do horror que me invadia, pois tudo isso me parecia um castigo rigoroso do egoísmo humano. O homem se dispusera a viver folgada e deleitosamente à custa do trabalho do próximo, tomara a Necessidade como senha e desculpa, e com o passar dos séculos a Necessidade se apresentara também a ele. Ensaiei até, à maneira de Carlyle, uma atitude de escárnio em relação a essa infeliz aristocracia em degenerescência. Mas era uma posição mental insustentável. Por mais intelectualmente degradados que estivessem, os Elois tinham conservado a aparência humana mais do que o bastante para fazerem jus à minha simpatia e me obrigarem a participar de sua degradação e de seus terrores.
Eu não tinha nessa ocasião idéias muito definidas sobre o que deveria fazer. A primeira era encontrar um lugar seguro que me servisse de abrigo e fabricar tantas armas de metal ou de pedra quantas pudesse, para me defender. Essa necessidade era imediata. Em segundo lugar, esperava encontrar meios de produzir fogo, para ter uma tocha na mão, pois sabia que arma nenhuma era mais eficaz contra os Morlocks do que essa.
Depois queria arranjar um objeto com o qual pudesse rebentar as portas de bronze do pedestal da Esfinge Branca. Tinha em mente um aríete. Estava convencido de que, se pudesse abrir essas portas e entrasse ali com uma tocha acesa, eu poderia recuperar a Máquina do Tempo e escapar. Não acreditava que os Morlocks fossem bastante fortes para a terem transportado para muito longe. Tinha decidido trazer Weena comigo para a nossa época. Revolvendo todos esses planos na imaginação, prossegui a caminho do edifício que me parecia o lugar ideal para nossa morada.
O Palácio de Porcelana Verde, ao qual chegamos por volta do meio-dia, estava deserto e em ruínas. Nas janelas não restavam senão pedaços de vidro, e grandes placas do revestimento verde da fachada se haviam desprendido dos caixilhos metálicos corroídos. Havia sido construído no alto de uma colina coberta de relva. Antes de entrar, olhei na direção nordeste e fiquei surpreso ao avistar um largo estuário, ou mesmo uma enseada, onde eu supunha que, no passado, se encontravam Wandsworth e Battersea. Pensei então — sem me deter muito nesse pensamento — no que devia ter acontecido, ou continuava a acontecer, com os animais marinhos.
Examinando o material do Palácio, verifiquei que era realmente porcelana. No alto do frontispício havia uma inscrição em caracteres desconhecidos. Pensei tolamente que Weena poderia auxiliar-me a decifrá-la, mas foi só até perceber que nem a simples idéia da existência da escrita lhe passara algum dia pela cabeça. Penso que sempre a considerei mais humana do que de fato era, talvez porque seu apego a mim fosse tão humano.
A grande porta estava aberta e caindo aos pedaços. Ao entrar, em vez da sala habitual, encontramos uma comprida galeria iluminada por numerosas janelas laterais. A primeira vista, parecia um museu. O piso estava coberto de espessa camada de poeira e uma imensa quantidade de objetos heterogêneos estava sepultada sob igual camada de pó. No centro do salão, estranho e descarnado, erguia-se o que reconheci como sendo a parte inferior de um esqueleto gigantesco. Pelas patas oblíquas,
era algum animal extinto semelhante ao Megatherium. O crânio e os ossos da parte superior jaziam por terra, cobertos de poeira, e na parte ainda em pé alguns pedaços estavam estragados por uma goteira no teto. Mais adiante, via-se o enorme esqueleto abaulado de um Brontosaurus. Minha hipótese de estar num museu se confirmava. Caminhando para um dos lados, encontrei o que me pareceram prateleiras inclinadas; limpando a poeira grossa, deparei-me com as minhas conhecidas vitrinas dos museus de hoje. Mas aquelas deviam ser hermeticamente seladas, à prova de ar, a julgar pelo excelente estado de conservação de algumas peças no seu interior.
Não havia dúvida de que estávamos entre os destroços de algum derradeiro Museu de História Natural! Ali onde nos achávamos era, evidentemente, a Seção de Paleontologia, e devia ter abrigado uma esplêndida coleção de fósseis, embora o inevitável processo de decomposição — detido por algum tempo e com noventa e nove por cento de sua força perdidos pela destruição das bactérias e dos fungos — houvesse retomado o seu trabalho, extremamente lento mas também extremamente seguro, sobre todos aqueles tesouros. Aqui e ali encontrei marcas da presença dos Elois na forma de delicados fósseis reduzidos a pedaços ou transformados num brinquedo de ossos enfiados num cordel. Algumas vitrinas haviam sido audaciosamente retiradas — pelos Morlocks, pensava eu. Reinava um grande silêncio. A densa camada de pó amortecia o ruído de nossos passos. Weena, que se entretinha a fazer rolar um ouriço-do-mar sobre o vidro inclinado de uma pequena montra, enquanto eu observava tudo em redor, parou de fazê-lo e veio para junto de mim, segurando minha mão, muito calada, e não se afastando mais.
De começo, eu estava tão surpreso com esse antigo monumento de uma era intelectual, que não pensei nas possibilidades que ele apresentava. Até a preocupação com a Máquina do Tempo recuou para um canto de minha mente.
A julgar por sua extensão, esse Palácio de Porcelana Verde devia conter mais do que uma Galeria de Paleontologia; talvez seções de História, e quem sabe até, uma biblioteca! Para mim, pelo menos naquelas circunstâncias, elas seriam muito mais interessantes do que ficar vendo os espécimes em decomposição de uma geologia do passado longínquo. Prosseguindo nas explorações, encontrei um galeria menor, transversal à primeira. Parecia dedicada aos minérios. Ao ver um bloco de enxofre, pensei logo em pólvora. Mas não encontrei salitre; na verdade, nenhuma espécie de nitrato. Sem dúvida se tinham dissolvido com o passar dos anos. O enxofre, porém, não me saiu do pensamento e desencadeou uma série de idéias. Quanto ao resto das exposições naquela sala — a mais bem conservada de todas as que vi — meu interesse era diminuto. Não sou especialista em mineralogia, e por isso me dirigi a outra galeria, paralela à primeira em que havia entrado, e cujo estado era lastimoso. Visivelmente ela se destinava à História Natural, mas tudo estava reduzido a alguns restos irreconhecíveis. Fragmentos enrugados e enegrecidos do que deviam ter sido animais empalhados, múmias exsicadas dentro de frascos que um dia continham álcool, montículos de poeira escura em que as plantas se haviam transformado; e era tudo! Isso me contristou, porque eu gostaria de poder identificar as etapas através das quais a natureza animada fora dominada pelo homem.
Chegamos a uma galeria de proporções simplesmente colossais, mas singularmente mal iluminada. O chão ali apresentava um declive que se acentuava da entrada para os fundos. O local devia ter tido iluminação artificial; do teto, a intervalos, pendiam globos brancos, muitos deles rachados ou semidestruídos. Ali eu me senti mais no meu elemento, pois de cada lado se elevavam massas enormes de máquinas gigantescas, todas já muito corroídas e muitas quebradas, mas algumas ainda quase perfeitas. Vocês bem conhecem o meu fraco pela mecânica, e eu estava propenso a demorar-me entre aquelas máquinas. Tanto mais que, na sua maioria, elas tinham para mim a sedução dos enigmas, pois eu só conseguia tecer conjecturas muito vagas sobre sua utilidade. Pensei, então, que se pudesse descobrir seus segredos, eu me acharia de posse de poderes valiosos para enfrentar os Morlocks.
Repentinamente, Weena se colou a mim. Tão repentinamente que me assustou. Não fora ela, penso que não teria notado que o chão da galeria formava uma rampa. A extremidade aonde eu chegara situava-se acima do solo, e era alumiada por umas poucas janelas estreitas. À proporção que se descia, no sentido do comprimento, o solo se elevava em relação a essas janelas, até que diante de cada uma delas se formava um poço semelhante à «área» de uma casa londrina, tendo apenas uma nesga de luz no alto. Eu caminhava ao longo das máquinas, tentando adivinhar para que serviam, e estava tão absorvido nelas que não notara a gradativa diminuição da luz. Foi a crescente apreensão de Weena que me chamou a atenção. Vi então que a galeria, na parte de baixo, mergulhava em espessas trevas. Hesitei, e ao olhar em torno observei que a poeira ali era menos abundante e sua superfície menos uniforme. Um pouco mais adiante, do lado da escuridão, pareceu-me ver impressas na poeira numerosas pegadas, pequenas e estreitas. Voltou-me a sensação que os Morlocks estavam por perto. Convenci-me de que perdia um tempo precioso no exame acadêmico daquelas máquinas. A tarde já ia avançada, e eu ainda não havia arranjado uma arma, um refúgio, nem meios de fazer fogo. Nesse momento, vindos do fundo escuro da galeria, ouvi as pisadas e os mesmos estranhos ruídos que os Morlocks haviam feito quando eu fugia deles no poço.
Peguei Weena pela mão. Depois, tomado de uma idéia súbita, deixei-a e virei-me para uma máquina da qual se projetava uma alavanca semelhante às de sinalização nas estações das estradas de ferro. Galguei a plataforma, agarrei a alavanca com as duas mãos e coloquei todo o meu peso para arrancá-la de lado. De repente, Weena, parada no meio da galeria, começou a choramingar. Eu tinha calculado com bastante precisão a capacidade de resistência da alavanca: após um minuto de esforço, ela se partiu. Fui ao encontro de Weena com uma maça na mão, mais do que suficiente, pensava eu, para esmigalhar quantos crânios de Morlocks se antepusessem no meu caminho. E já ansiava desde muito por matar alguns Morlocks. Vocês devem estar pensando: «Que desumanidade, desejar matar seus próprios descendentes!» Mas era impossível, lhes digo eu, descobrir qualquer laivo de humanidade naqueles bichos. Somente meu desejo de não abandonar Weena e a certeza de que, se começasse a satisfazer minha fúria exterminadora, a Máquina do Tempo iria pagar por isso, me impediram de descer até o fundo da galeria e massacrar os seres abjetos que ali nos tocaiavam.
E assim, sopesando a maça com uma das mãos e com a outra segurando Weena, saí dessa galeria e entrei noutra, ainda maior, e que ao primeiro relance me lembrou uma capela militar cheia de bandeiras esfarrapadas. Mas logo reconheci o que eram aqueles trapos carbonizados: restos de livros apodrecidos. Tinham desde muito caído em pedaços e não se via neles o menor vestígio de impressão. Mas, aqui e ali, encadernações deterioradas e fechos metálicos partidos falavam por si mesmos. Fosse eu um homem de letras e talvez me tivesse entregue a digressões morais sobre a inutilidade das ambições. Mas o que provocou o maior choque no meu espírito foi a constatação do enorme desperdício de trabalho que essa melancólica floresta de livros podres testemunhava. Devo confessar que nesse momento pensei sobretudo nas Philosophical Transactions (Centenária publicação da Royal Society, de Londres, reunindo principalmente estudos de física, matemática e biologia. - N. do T), e nas minhas próprias dezessete comunicações sobre ótica física.
Subimos depois por uma larga escadaria e fomos dar no que deveria ter sido uma galeria de Química Técnica. Ali eu esperava fazer algumas descobertas úteis. Salvo numa das extremidades, onde o teto havia desabado, estava bem conservada essa seção. Examinei ansiosamente todas as peças ainda intactas. E por fim, numa das montras realmente à prova de ar, encontrei uma caixa de fósforos. Experimentei-os com nervosismo. Estavam perfeitos. Nem sequer umedecidos.