120550.fb2 A M?quina do Tempo - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 7

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Virei-me para Weena e gritei-lhe em sua língua: «Dance!». Pois agora eu dispunha de uma arma contra as horrendas criaturas que temíamos. E ali, naquele museu abandonado, sobre o espesso e macio tapete de poeira, executei solenemente, para imenso gáudio de Weena, uma espécie de dança compósita, enquanto assobiava The Land of the Leal tão alegremente quanto me era possível. Foi uma mistura de cancan, de sapateado e de dança rodada (tanto quanto as abas do meu casaco o permitiram), mas foi também uma dança original. Pois, como sabem, tenho espírito inventivo.

Ainda penso que haver escapado, graças a essa caixa de fósforos, ao peso destruidor do tempo, através de centenas de milhares de anos, foi a coisa mais estranha e, para mim, mais afortunada. Porem fiz outra descoberta, infinitamente mais surpreendente: cânfora. Achei-a dentro de um vidro lacrado e que, por mero acaso, creio eu, o fora hermeticamente, não deixando penetrar o ar. Pensei de início que se tratava de cera de parafina e por isso quebrei o vidro. Mas o cheiro da cânfora era inconfundível. Em meio à universal decomposição, essa substância volátil conservara-se intacta, por obra do acaso, talvez durante milhares de séculos. Isso me fez lembrar uma pintura a sépia que eu tinha visto executar com a tinta extraída de um belemnite, que devia ter morrido e virado fóssil milhões de anos atrás.

Ia jogar fora a cânfora quando me lembrei de que ela era inflamável e ardia com uma bela chama brilhante — era, na verdade, uma ótima vela e guardei-a no bolso. Não encontrei, no entanto, nenhum explosivo nem nada que servisse para rebentar as portas de bronze. Até ali, minha alavanca de ferro era o objeto mais útil sobre o qual tinha deitado a mão. Nada obstante, deixei essa galeria muito eufórico.

Não posso contar os pormenores de toda essa longa tarde. Isso exigiria um grande esforço da memória, mais ainda relatar minhas explorações na ordem em que as fiz. Lembro-me de uma comprida galeria com estandes de armas enferrujadas. Como hesitei entre minha alavanca e uma espada ou uma machadinha! Não podia, no entanto, levar as duas, e a barra de ferro prometia ser mais eficiente contra as portas de bronze. Havia numerosas pistolas e carabinas. A maioria estava reduzida a blocos de ferrugem, mas algumas eram feitas de algum metal novo e estavam em perfeitas condições. Mas os cartuchos ou a pólvora tinham virado poeira. Um dos cantos da galeria estava carbonizado e com as paredes rebentadas; talvez, pensei eu, tivesse ocorrido a explosão de alguma das armas ou de munições. Em outro local via-se uma grande exposição de ídolos — polinésios, mexicanos, gregos, fenícios, de todos os povos da terra, diria eu. Aí, cedendo a um impulso irresistível, escrevi meu nome no nariz de um monstro de esteatita, proveniente da América do Sul, justamente aquele que mais me atiçou esse capricho.

À medida que se aproximava a noite, meu interesse esfriava. Passei de galeria a galeria, todas poeirentas, silenciosas, muitas vezes em ruínas, os objetos expostos não raro transformados em montões de ferrugem e linhita, embora outros se apresentassem em melhor estado. Numa das salas, vi-me subitamente diante de um modelo de mina de estanho e ali, por mero acidente, dentro de um recipiente hermeticamente fechado, descobri dois cartuchos de dinamite! Gritei: «Eureka!», e rebentei o recipiente com entusiasmo. Mas logo fiquei em dúvida. Hesitei. E, escolhendo uma pequena galeria lateral, fiz a experiência. Nunca senti maior desapontamento do que ao esperar cinco, dez, quinze minutos por uma explosão que não se produziu. Naturalmente que os cartuchos eram simples imitações, como eu devia ter adivinhado logo. Acredito realmente que, se fosse mesmo dinamite, eu teria corrido imediatamente para fazer saltar pelos ares a Esfinge, as portas de bronze e (como veria mais tarde) teria também perdido todas as possibilidades de recuperar a Máquina do Tempo.

Creio que foi depois disso que chegamos a um pequeno pátio descoberto no interior do Palácio. Em meio à grama havia três árvores frutíferas. Ali descansamos e nos alimentamos. Ao pôr-do-sol, comecei a estudar nossa posição. A noite estava descendo e meu refúgio inexpugnável ainda não tinha sido encontrado. Mas isso agora me incomodava muito pouco. Eu estava de posse de uma coisa que era talvez a melhor das defesas contra os Morlocks — eu tinha fósforos! E tinha também cânfora no bolso, caso necessitasse de uma luz mais forte. Pareceu-me que a melhor coisa a fazer era passar a noite ali ao ar livre, protegidos por uma fogueira. Na manhã seguinte iria reaver a Máquina do Tempo. Para isso eu dispunha, por enquanto, somente de minha maça de ferro. Mas agora, com os novos conhecimentos que adquirira, eu encarava de outra forma o obstáculo das portas de bronze. Até então eu me abstivera de forçá-las, em grande parte devido ao mistério que elas ocultavam. Elas nunca me tinham dado a impressão de ser muito sólidas, e eu contava que minha barra de ferro seria suficiente para o trabalho a fazer.

CAPÍTULO 11

Saímos do Palácio quando o sol ainda se encontrava acima do horizonte. Eu tinha decidido chegar à Esfinge Branca na manhã do dia seguinte, e antes do anoitecer queria atravessar a mata que me detivera na vinda. Meu plano era avançar o mais possível nessa noite e depois acender uma fogueira para dormirmos protegidos pelo seu clarão. Assim pensando, fui apanhando pelo caminho gravetos e mato seco, e em pouco estava com os braços cheios. Com essa carga, nosso avanço era mais lento do que havia previsto e, além disso, Weena mostrava-se muito fatigada. E eu também começava a sentir-me invadido pela sonolência; de modo que, quando chegamos à orla da mata, já era noite fechada. Temendo a escuridão, Weena teria preferido parar numa colina coberta de arbustos, onde estávamos; eu, porém, com uma sensação de perigo iminente, que na verdade me deveria ter detido, lancei-me para diante. Estava sem dormir havia dois dias e uma noite, e achava-me febril e irritado. Sentia que o sono me vencia e com ele os Morlocks.

Enquanto hesitávamos, distingui entre as moitas atrás de nós, quase se confundindo com elas na escuridão, três vultos agachados. A vegetação que nos cercava era alta e espessa, de maneira que eu não me sentia protegido contra a insidiosa aproximação dessas criaturas. Calculei que a floresta devia ter pouco menos de uma milha de largura. Se conseguíssemos atravessá-la e chegar à encosta da colina do outro lado, onde só havia vegetação rasteira, teríamos um lugar de repouso absolutamente seguro. Pensava que com os fósforos e a cânfora conseguiria iluminar o meu caminho através da mata. Todavia, era óbvio que, se quisesse andar com fósforos acesos nas mãos, teria de abandonar a lenha para a fogueira; assim, muito a contragosto, joguei-a ao chão. Então me ocorreu a idéia de assombrar e pôr em fuga os pérfidos amiguinhos que nos seguiam, ateando fogo a essa lenha. Eu devia descobrir logo depois a enorme estupidez desse ato, mas no primeiro momento ele se me afigurou uma tática engenhosa, destinada a cobrir nossa retirada.

Não sei se alguma vez já pensaram que coisa extraordinária deve ser a chama sem a presença do homem e num clima temperado. O calor do sol raramente é bastante forte para incendiar a vegetação, mesmo quando a luz se refrata nas gotas de orvalho, que atuam como um espelho, como acontece por vezes nas regiões tropicais. Um raio pode abater e carbonizar, mas é raro que dê origem a uma queimada. Os vegetais em decomposição podem acumular, pela fermentação, grande quantidade de calor e arder, mas quase sempre sem chama. Naquela época de decadência, a arte de fazer fogo havia sido esquecida sobre a terra. As línguas rubras que saltavam, lambendo o monte de lenha, eram algo inteiramente novo e estranho para Weena.

Ela queria correr para o fogo e brincar com ele. Penso que, se eu não a segurasse, ela se atiraria dentro da fogueira. Ergui-a nos braços e, apesar de seus esperneios, segui afoitamente pela mata adentro. Até certa distância, a fogueira alumiou-nos o caminho, Quando, num dado instante, olhei para trás, pude ver, através do emaranhado de troncos, que as chamas se tinham espalhado por algumas moitas adjacentes e que um rastilho de fogo já subia pela colina. Ao percebê-lo soltei uma gargalhada e continuei abrindo caminho por entre as árvores negras à minha frente. Estava muito escuro e Weena se agarrava a mim convulsivamente, mas, à medida que meus olhos se acostumavam às trevas, o resto de claridade era suficiente para que eu visse e evitasse os troncos. Por cima de nós a escuridão era cerrada, salvo quando uma nesga de céu aparecia por entre as copas das árvores. Não riscara nenhum dos meus fósforos porque não tinha as mãos livres. No braço direito carregava minha pequena amiga e com o outro brandia a barra de ferro.

Durante algum tempo não ouvi nada senão os estalidos dos galhos secos sob os meus pés, o sussurro da brisa na folhagem, minha própria respiração e o latejar do sangue nos ouvidos. De repente pareceu-me ouvir um ruído de passos miúdos em torno de mim. Continuei andando, com uma determinação inflexível. As pisadas macias se tornaram mais distintas e então percebi as mesmas vozes e os sons esquisitos que já ouvira no mundo subterrâneo. Eram por certo alguns Morlocks que se acercavam de mim. E de fato, um minuto depois, senti que me puxavam o casaco e depois o braço. Weena estremeceu violentamente e se inteiriçou por completo.

Era o momento de acender um fósforo, mas para isso eu tinha de colocar Weena no chão. Foi o que fiz e, enquanto metia a mão no bolso, uma luta começou a travar-se na escuridão, perto de mim — Weena absolutamente silenciosa e os Morlocks rosnando à sua maneira peculiar. Mãos flácidas me apalpavam por todo o corpo, até o pescoço. Acendi o fósforo e ergui o braço; à luz da chama, vi os Morlocks fugindo por entre as árvores. Apressadamente tirei um pedaço da cânfora e preparei-me para inflamá-la assim que o fósforo estivesse se apagando. Em seguida voltei-me para Weena. Estava no chão agarrada aos meus pés, inteiramente imóvel, com o rosto virado para baixo. Alarmado, inclinei-me sobre ela. Mal parecia respirar. Acendi o pedaço de cânfora, coloquei-o no chão, e enquanto ele esguichava a sua luz, afugentando os Morlocks e as sombras, ajoelhei-me e levantei Weena. A mata em torno de nós parecia fervilhar de seres que se agitavam e sussurravam!

Weena parecia estar desmaiada. Aninhei-a cuidadosamente no meu ombro e levantei-me para seguir, quando me dei conta de uma coisa terrível: ao me ocupar com os fósforos e com Weena, eu girara o corpo diversas vezes e agora não tinha a mínima idéia da direção! Era possível que agora estivesse voltado para o Palácio de Porcelana Verde. Um suor frio me cobriu o rosto. Precisava pensar rapidamente e decidir o que fazer. Resolvi acender uma fogueira e acampar onde estávamos. Encostei Weena, ainda inanimada, a um tronco coberto de musgo e, com toda a pressa, antes que o pedaço de cânfora se extinguisse, comecei a juntar gravetos e folhas secas. Aqui e ali, do meio das trevas, os olhos dos Morlocks faiscavam como carbúnculos! A chama da cânfora bruxuleou e apagou-se. Risquei um fósforo e, quando o fiz, dois vultos esbranquiçados, que se tinham aproximado de Weena, fugiram precipitadamente. Um deles ficou tão ofuscado pela luz que veio diretamente sobre mim, e eu senti seus ossos estalarem sob a violência do murro que desferi. Ele soltou um urro de pavor, cambaleou por um instante e foi ao chão. Acendi outro pedaço de cânfora e continuei a arrumar minha fogueira. Notei como estava seca a folhagem das árvores; desde que eu chegara com a Máquina do Tempo, havia uma semana, não tinha chovido. Assim, em vez de ficar apanhando gravetos no chão, comecei a arrancar ou quebrar os galhos nos troncos. Em pouco, tinha uma boa fogueira de lenha verde e ramos secos, que desprendia uma fumaça sufocante mas me permitia economizar a cânfora. Então passei a ocupar-me de Weena, que jazia ao lado de minha maça de ferro. Fiz o que pude para reanimá-la, ela porém parecia morta. Não encontrei meio de saber se ainda respirava ou não.

A fumaça vinha diretamente sobre mim, e deve ter-me deixado completamente tonto. Além do mais, o vapor da cânfora estava no ar. A fogueira não precisaria ser realimentada por uma hora ou mais. Eu me sentia exausto após tantos esforços, e sentei-me. A própria mata era toda ela um murmúrio misterioso que convidava ao sono. Pareceu-me que eu fechara os olhos e os abrira imediatamente. Mas estava tudo escuro e os Morlocks se atiravam sobre mim. Libertando-me daquelas mãos pegajosas, procurei nos bolsos, mais do que depressa, a caixa de fósforos. Tinha sumido! Então os Morlocks me agarraram novamente e entramos em luta corporal. Num instante, compreendi o que havia ocorrido. Eu havia adormecido e a fogueira se apagara. Minha alma se encheu de uma amargura mortal. A floresta parecia invadida pelo cheiro de madeira em combustão. Eu fui agarrado pelo pescoço, pelos cabelos, pelos braços e derrubado. Era um horror indescritível sentir na escuridão todas aquelas criaturas flácidas amontoadas sobre mim. Tinha a impressão de estar preso numa monstruosa teia de aranha! Eu estava subjugado e parei de lutar. Senti no pescoço a mordida de dentes pequeninos e afiados. Rolei no chão e, no movimento, minha mão tocou na barra de ferro. Ela me deu forças. Debati-me, sacudindo os ratos humanos de cima de mim e, segurando firmemente a alavanca, comecei a golpear por baixo, na altura em que deviam estar as cabeças dos meus atacantes. Eu podia sentir as massas de carne e ossos esmagadas por meus golpes, e num instante me vi livre.

Fui invadido pela estranha exultação que tantas vezes parece acompanhar um rude combate. Eu sabia que tanto eu como Weena estávamos perdidos, mas me decidi a fazer os Morlocks pagar caro por sua refeição. Permaneci encostado num tronco de árvore, brandindo a alavanca de ferro diante de mim. Toda a mata parecia tomada pelos gritos e correrias dos Morlocks. Um minuto se passou. Suas vozes eram agora mais altas e mais agudas, denotando uma grande excitação; seus movimentos se tornaram mais rápidos. No entanto, nenhum se aproximava de mim. Fiquei olhando inutilmente para dentro das trevas. De repente, a esperança renasceu: e se os Morlocks estivessem assustados? Uma coisa estranha veio logo em seguida. Parecia que as trevas estavam se tornando luminosas! Muito indistintamente, comecei a ver os Morlocks em torno de mim — três deles jaziam a meus pés — e então descobri, com incrédula surpresa, que os outros estavam correndo, num fluxo incessante; surgiam de trás de mim e precipitavam-se para o meio da mata à minha frente. E suas costas não eram mais esbranquiçadas: pareciam vermelhas. Enquanto eu os olhava boquiaberto, vi, por uma abertura do céu estrelado, entre os ramos, uma pequena fagulha que logo desapareceu. E então compreendi o que significavam o cheiro de madeira queimada, o murmúrio embalador que já se ia transformando num bramido de tempestade, o clarão vermelho e a fuga dos Morlocks.

Afastei-me do tronco e, olhando para trás, divisei, por entre as árvores mais próximas, as chamas do incêndio. Era a primeira fogueira que vinha ao meu encontro! Procurei Weena, mas ela havia desaparecido. Os silvos e estalidos atrás de mim, o estrondo de cada nova árvore em chamas, não me deixavam tempo para refletir. Ainda empunhando a barra de ferro, saí em perseguição aos Morlocks. Era uma corrida desabalada. De uma vez, as chamas se propagaram com tal rapidez à minha direita que me bloquearam e me obrigaram a correr para a esquerda. Por fim, emergi numa pequena clareira e, nesse mesmo instante, um Morlock caminhou tropegamente em minha direção, passou por mim, e atirou-se entre as chamas!

Eu ia agora presenciar o mais fantástico e pavoroso espetáculo que me foi dado ver nessa época futura. Com o clarão do incêndio, toda aquela área estava iluminada como se fosse dia. No centro havia um montículo, ou tumulus, coroado por um espinheiro seco. Mais adiante se via outro braço da mata em chamas, com enormes línguas amarelas já saltando, e envolvendo completamente a clareira, num anel de fogo. Sobre o montículo se aglomeravam uns trinta ou quarenta Morlocks, ofuscados pela luz e aterrorizados pelo calor; no seu aturdimento, rodavam para lá e para cá chocando-se uns com os outros. A princípio não compreendi que estavam inteiramente cegos e, cheio de repulsa, atacava-os furiosamente com a barra de ferro, quando eles se aproximavam de mim; matei um e feri vários outros. Mas quando vi um deles tateando miseravelmente embaixo do espinheiro e ouvi os seus gemidos, convenci-me de que estavam absolutamente impotentes e enceguecidos pelo clarão do incêndio, deixei-os em paz.

Entretanto, de vez em quando um vinha na minha direção, provocando em mim um frêmito de horror que me fazia afastar-me rapidamente do seu caminho. Houve um momento em que as chamas baixaram bastante, e eu receei que as horrendas criaturas não tardassem a poder ver-me. Pensei mesmo em passar logo à ofensiva, matando alguns deles, antes que isso acontecesse; mas o incêndio recrudesceu e eu descansei o braço. Caminhei em torno do montículo, evitando tocá-los, à procura de algum sinal de Weena. Mas Weena não estava ali.

Por fim, sentei-me no alto do montículo, e fiquei observando aquele bando estranho e incrível de criaturas cegas, que tateavam para cá e para lá, soltando grunhidos apavorados cada vez que o clarão das chamas incidia sobre elas. Espessos rolos de fumaça cobriam o céu e, através dos raros rasgões naquele dossel vermelho, brilhavam as pequeninas estrelas, distantes como se pertencessem a outro universo. Dois ou três Morlocks, às apalpadelas, vieram esbarrar em mim e eu os enxotei aos murros, cheio de asco.

Durante a maior parte dessa noite, quis acreditar que tudo não passava de um pesadelo. Dei mordidas em mim mesmo e gritei, na ânsia desesperada de acordar. Bati com as mãos no chão, levantei-me, tornei a sentar-me, vagueei de um lado para o outro, e de novo me sentei. Depois esfreguei os olhos e roguei a Deus que me fizesse despertar. Por várias vezes vi um Morlock abaixar a cabeça, numa espécie de agonia, e atirar-se às chamas.

Finalmente, por sobre o vermelho do incêndio que diminuía, sobre os rolos de fumaça negra, sobre os troncos de árvore que iam perdendo o rubro e escureciam aos poucos, e sobre o número agora reduzido daquelas criaturas medonhas, raiou o dia.

Tentei encontrar, ainda uma vez, algum sinal de Weena, mas em vão. Não havia dúvida de que, na fuga, os Morlocks haviam abandonado seu pequenino corpo na floresta em chamas. Não posso descrever como me sentia aliviado pelo pensamento de que, assim, ela escapara ao horrível destino que lhe parecia reservado. Nesse estado de espírito, quase me lancei a um massacre entre aquelas criaturas abomináveis e inermes que me cercavam, mas contive-me. O montículo, como lhes disse, era uma espécie de ilha na floresta. Do alto, pude distinguir, por entre as nuvens de fumaça, o Palácio de Porcelana Verde e, dessa forma, foi-me fácil encontrar a direção para a Esfinge Branca.

Então, mal o dia clareou mais um pouco, abandonando o resto daquelas almas danadas que continuavam a zanzar e a gemer, amarrei alguns punhados de ervas nos pés e saí manquejando por entre as cinzas fumegantes e os troncos negros, que ainda ardiam por dentro, em direção ao esconderijo da Máquina do Tempo. Andava devagar porque estava quase exausto, coxeava, e sentia-me inteiramente arrasado com a morte horrível de Weena. Sua perda me parecia uma tragédia devastadora. Agora que estou aqui sentado nesta velha sala tão familiar, é mais aquela tristeza depois de um sonho do que a dor de uma perda verdadeira. Mas, naquela manhã, a morte de Weena me deixava de novo absolutamente só — terrivelmente só. Comecei a pensar nesta minha casa, nesta lareira, em alguns dentre vocês, e esses pensamentos me trouxeram uma saudade quase dolorosa.

Enquanto caminhava por entre os restos fumegantes, sob o brilhante céu da manhã, fiz uma descoberta. No bolso da calça havia ainda alguns fósforos soltos. A caixa devia ter-se aberto antes de cair.

CAPÍTULO 12

Pelas oito ou nove da manhã, cheguei àquele mesmo assento de metal amarelo no alto da colina, de onde, na tarde de minha chegada, havia eu lançado um grande olhar sobre o mundo. Lembrei-me de minhas conclusões apressadas nessa tarde e não pude deixar de rir amargamente de minha confiança. Era a mesma bela paisagem, a mesma vegetação luxuriante, os mesmos palácios esplêndidos e magníficas ruínas, o mesmo rio prateado deslizando entre as margens férteis. As vestes alegres dos graciosos Elois perpassavam aqui e ali entre as árvores. Alguns estavam tomando banho exatamente no lugar onde eu salvara Weena, e ao recordar senti uma punhalada no coração. Como borrões na paisagem, viam-se as pequenas cúpulas que levavam ao mundo subterrâneo. Eu compreendia agora o que estava escondido por baixo de toda essa beleza do mundo exterior. Muito agradável era o dia dos Elois, tão agradável como o dia do gado na pastagem. Como o gado, não conheciam inimigos e tinham quem lhes provesse a todas as necessidades. E o fim deles era o mesmo.

Doeu-me n'alma pensar quão breve fora o sonho da inteligência humana. Ela se suicidara. Lançara-se resolutamente em busca de conforto e bem-estar, de uma sociedade equilibrada cuja divisa era segurança e estabilidade; havia alcançado suas metas — para chegar a isso. Em determinado momento, a vida e a propriedade deviam ter atingido uma segurança quase absoluta. Os ricos viram-se garantidos em sua riqueza e conforto; os operários tiveram assegurados sua subsistência e seu trabalho. Por certo que, nesse mundo, não tinha havido mais nenhum problema de desemprego, nenhuma questão social não resolvida. E seguira-se uma grande paz.

É uma lei natural, por nós menosprezada, que a versatilidade intelectual é a compensação para as mudanças, os perigos e as dificuldades. Um animal em perfeita harmonia com o seu meio torna-se uma perfeita máquina. A natureza nunca recorre à inteligência, a menos que o hábito e o instinto sejam insuficientes. Não há inteligência onde não há mudanças nem necessidade de mudanças. Só desenvolvem a inteligência aqueles animais que têm de enfrentar uma enorme gama de perigos e necessidades.

Assim, ao que se me afigurava, o homem do Mundo Superior acabara reduzido àquela frágil beleza, e o Mundo Subterrâneo à mera indústria mecânica. Mas a esse estado perfeito faltava ainda uma coisa para atingir a perfeição automática: a estabilidade absoluta. Certamente, com o passar do tempo, os meios de subsistência do Mundo Subterrâneo, quaisquer que tenham sido, entraram em colapso. A Mãe Necessidade, que tinha sido conjurada durante alguns milhares de anos, retornou e fez-se sentir primeiro lá embaixo. Como os habitantes do Mundo Subterrâneo viviam em contacto com a maquinaria, que, por mais perfeita que fosse, sempre necessitava de alguma atenção além da simples rotina, deviam forçosamente ter conservado um pouco mais de espírito de iniciativa, embora menos dos outros caracteres humanos, que os habitantes de cima. Por isso, quando lhes faltou outro alimento, recorreram ao que até então havia sido proibido por um antigo costume. Foi assim que vi as coisas em minha última contemplação do mundo de Oitocentos e Dois Mil Setecentos e Um. Pode ser a explicação mais falsa que ocorreria ao espírito de um mortal. Mas foi desse modo que tudo se me delineou, e é desse modo que lhes apresento.

Após as fadigas, as excitações e os terrores dos dias passados, e não obstante a minha tristeza, aquele recanto, o cenário tranqüilo e o calor do sol eram muito agradáveis. Estava muito cansado e sonolento, e logo passei da meditação à modorra. Percebendo isso, achei melhor fazer o que meu corpo pedia. Estendi-me na relva e dormi um sono longo e reparador.

Acordei um pouco antes do pôr-do-sol. Agora não havia o perigo de ser surpreendido pelos Morlocks enquanto dormisse e, levantando-me, desci a colina em direção à Esfinge Branca. Levava a alavanca de ferro em uma das mãos e com a outra brincava com os fósforos no bolso.

Tive a maior surpresa. Ao me aproximar do pedestal da estátua, vi que as portas de bronze estavam abertas. Tinham sido corridas para baixo ao longo dos trilhos.

Parei, hesitando entrar.

Havia no interior um pequeno compartimento e, a um canto, sobre uma parte mais alta, estava a Máquina do Tempo. As pequenas alavancas se achavam no meu bolso. E eis que, após meus cuidadosos preparativos para o assalto à Esfinge Branca, se me deparava uma humilde capitulação! Joguei fora a barra de ferro, quase com pena de não a ter usado.

Um súbito pensamento me atravessou o espírito, quando me abaixei para entrar. Dessa vez, pelo menos, eu adivinhara as maquinações dos Morlocks. Contendo uma grande vontade de rir, entrei no compartimento e caminhei até a Máquina do Tempo. Fiquei surpreso ao ver que ela tinha sido cuidadosamente limpa e lubrificada. Chegara antes a recear que os Morlocks a houvessem desmontado em parte, a fim de descobrirem, da maneira mais desastrada, para que fim serviria.

Então, enquanto eu a examinava, sentindo o maior prazer só em tocá-la, o que eu esperava aconteceu. Os painéis de bronze subiram repentinamente e fecharam-se com uma batida brusca. Estava no escuro — apanhado na armadilha. Assim pensavam os Morlocks. . Ri baixinho, de puro gozo.

Já podia ouvir-lhes o murmúrio de galhofa, enquanto se aproximavam. Muito calmamente, fui riscando um fósforo. Só me restava fixar as alavancas e desaparecer como um fantasma. Mas eu havia esquecido um pequeno detalhe: os fósforos eram dessa qualidade abominável que só se acendem riscando na própria caixa!

É fácil imaginar como perdi toda a minha calma. As pequenas feras já estavam sobre mim. Um me apalpava. Esmurrando a torto e a direito com as alavancas na mão, abri caminho para me instalar no assento da máquina. Não enxergava nada. Senti uma mão sobre mim, depois outra. Por fim me vi obrigado a defender minhas alavancas contra esses dedos insistentes e, ao mesmo tempo, procurava acertar os pinos em que elas se encaixavam. Houve um momento em que quase as perdi. Quando uma delas escapuliu de minha mão, dei uma violenta cabeçada no escuro, e pude ouvir o som da batida do crânio de um Morlock. Recuperei-a. Essa última escaramuça foi, a meu ver, um corpo-a-corpo mais duro do que a luta na floresta.

Finalmente, consegui fixar a alavanca e acioná-la. As mãos que me agarravam como que escorregaram de meu corpo. As trevas se desfizeram diante de meus olhos. Agora me encontrava cercado da mesma luz baça e do mesmo rumor contínuo da viagem inicial.

CAPÍTULO 13

Já lhes falei do mal-estar e da confusão mental que acompanham uma viagem no Tempo. E desta vez eu não estava sentado como devia e sim de través, e numa posição instável. Por um prolongado período, fiquei agarrado à máquina, enquanto ela jogava e vibrava, pouco preocupado em saber para onde ia e, quando me dispus a olhar para os mostradores, fiquei espantado ao descobrir que enorme distância no tempo havia percorrido. Um dos mostradores marca os dias; o outro, os milhares de dias; um terceiro, os milhões; e um quarto, os milhares de milhões. Aconteceu que, em vez de reverter as alavancas, eu as havia acionado no sentido de avançar; quando olhei para os mostradores, verifiquei que o ponteiro de 1.000 estava girando tão rapidamente como o ponteiro dos segundos de um relógio — e na direção do futuro!

Enquanto eu dirigia, uma transformação especial se produziu no aspecto das coisas. Aquele cinza palpitante se tornou mais escuro; depois — embora eu ainda viajasse a uma prodigiosa velocidade — a ofuscante sucessão dos dias e das noites, que normalmente indicava uma redução da marcha, voltou e se tornou mais e mais pronunciada. A princípio, isso me deixou perplexo. A alternância de dias e noites ficou cada vez mais lenta, bem assim a passagem do sol através do firmamento, até que me pareceram prolongar-se durante séculos. Por fim, um crepúsculo contínuo baixou sobre a terra, um crepúsculo apenas interrompido esporadicamente, quando um cometa cortava com seu brilho o céu escuro. A faixa de luz que indicava o sol havia, desde muito, desaparecido. Pois o sol tinha deixado de se pôr — simplesmente subia e descia no oeste, e seu disco se tornara mais largo e mais vermelho. Não havia mais nenhum vestígio da lua. O movimento circular das estrelas, cada vez mais vagaroso, dera lugar ao aparecimento de furtivos pontos de luz. Finalmente, pouco antes do momento em que parei, o sol, vermelho e enorme, se imobilizara sobre o horizonte — vasta abóbada brilhando com um calor morno e de vez em quando se apagando momentaneamente. Houve uma vez em que ele, por alguns instantes, voltou a luzir mais intensamente, porém logo retornou ao seu vermelho mortiço. Por essa diminuição do tempo entre o nascer e o pôr-do-sol, percebi que o movimento das marés havia deixado de existir. A terra entrara em repouso, com uma das faces voltada constantemente para o sol, como hoje a lua em relação à terra. Muito cautelosamente, pois me lembrava de minha queda de cabeça para baixo na vez anterior, comecei a reverter a marcha. Os giros dos ponteiros foram ficando cada vez mais lentos, até que o de 1.000 pareceu imobilizar-se e o de dias deixou de ser uma simples névoa sobre o mostrador. Os ponteiros continuaram girando cada vez mais devagar, até que se tornaram visíveis os contornos indecisos de uma praia desolada.

Parei muito suavemente e, sentado na Máquina do Tempo, corri os olhos em torno. O céu já não era azul. Para os lados do nordeste, era negro como breu, e em meio às trevas cinti-lavam, viva e ininterruptamente, as brancas estrelas. Por cima de mim, o céu tinha um tom vermelho-escuro e não se via estrela alguma. Para os lados do sudoeste, ia ficando cada vez mais vivo, até atingir um carmesim brilhante no ponto em que, cortado pelo horizonte, permanecia imóvel o imenso disco vermelho do sol. As rochas em volta de mim apresentavam uma dura cor avermelhada e tudo quanto pude distinguir, a princípio, como sinal de vida, foi a vegetação intensamente verde que cobria todas as elevações do lado sudeste. Era o mesmo verde luxuriante que vemos nos líquens e no musgo da floresta: plantas que, como essas, crescem sob um perpétuo crepúsculo.

A máquina havia estacionado sobre uma praia em declive. O mar estendia-se para sudoeste e alteava-se até confundir-se com a brilhante linha do horizonte sob um céu descorado. Nem ondas nem arrebentação, pois não havia o menor sopro de brisa. Só uma leve e viscosa ondulação, como o subir e descer de uma respiração suave, mostrava que o mar eterno ainda se agitava e vivia. E ao longo da praia, onde um dia as ondas tinham vindo quebrar-se, havia uma espessa incrustação de sal — rósea sob o lúrido céu. Senti uma opressão na cabeça e notei que respirava muito depressa. Isso me fez lembrar minha única experiência de alpinismo e por aí deduzi que o ar devia estar mais rarefeito que hoje.

Muito ao longe, no alto da encosta desolada, soou um grito rouco, e avistei algo semelhante a uma descomunal borboleta branca, que se lançou pelo declive e levantou vôo, pairou um pouco no céu e desapareceu por sobre algumas elevações do terreno. O som desse grito me pareceu de tal forma tétrico, que estremeci e me sentei mais firmemente sobre a máquina. Olhando de novo em torno de mim, notei, já muito perto e movendo-se lentamente na minha direção, uma coisa que antes me parecera um bloco de rocha avermelhada. Na realidade, era uma espécie de caranguejo monstruoso. Imaginem um caranguejo do tamanho daquela mesa, com suas numerosas patas, arrastando-se desajeitadamente, a balançar as enormes pinças; e as imensas antenas, que mais pareciam reinos de cocheiro, ondulando e tateando; os olhos pedunculados a me espiarem de cada lado da carantonha metálica. Seu casco era todo enrugado, cheio de mossas de feio aspecto, salpicado aqui e ali de incrustações esverdeadas. Os incontáveis palpos de sua bocarra tremiam, tomando o faro.

Enquanto eu observava com espanto essa sinistra aparição que rastejava em direção a mim, senti no rosto uma cócega, como se tivesse pousado uma mosca. Tentei enxotá-la com a mão, mas logo ela voltou e quase imediatamente outra pousou em minha orelha. Bati nesta última, e senti na mão uma espécie de filamento, que escorregou rapidamente por entre meus dedos. Com um arrepio de horror, virei-me e percebi que havia agarrado a antena de outro monstruoso caranguejo, bem atrás de mim. Seus olhos maus retorciam-se nos pedúnculos, a boca denotava uma voracidade feroz, as enormes pinças cobertas de limo estavam descendo sobre mim. Num segundo minha mão acionou a alavanca, e eu coloquei um mês entre mim e esses monstros. Vi-me, no entanto, ainda na mesma praia e avistei-os de imediato, assim que me detive. Dezenas deles se arrastavam por ali, sob a inalterável luz crepuscular, em meio à vegetação rasteira de um verde intenso.

Não sei como descrever a sensação de desolação aterradora que envolvia o mundo. O céu vermelho no oriente, o negror para os lados do norte, o salgado Mar Morto, a praia rochosa povoada daqueles monstros lerdos e repelentes, o verde uniforme e de aspecto venenoso daquela vegetação liqueniforme, o ar rarefeito que doía nos pulmões — tudo contribuía para um efeito assustador. Avancei uma centena de anos, e deparou-se-me o mesmo sol vermelho, um pouco maior, um pouco menos brilhante; o mesmo oceano moribundo, o mesmo ar glacial; e os mesmos crustáceos a rastejar por entre o verde da vegetação e o vermelho das rochas. No sentido do oeste, vi uma pálida linha curva como se fosse de uma lua imensa.

Assim fui viajando, parando de tempos em tempos, a intervalos de mil anos ou mais, impelido pelo mistério do destino da Terra, vendo com estranha fascinação o sol tornar-se cada vez maior e mais apagado no ocidente, e a vida neste velho planeta a declinar para o fim. Numa fase a mais de trinta milhões de anos da época atual, o largo semidisco rubro do sol terminara por ocultar cerca de um décimo do céu sombrio. Parei uma vez mais, pois a multidão de caranguejos-gigantes havia desaparecido, e a praia vermelha, salvo pelas hepáticas e os líquens de um verde lívido, parecia sem vida. Sobre ela, em muitos pontos, via-se agora uma crosta branca. O frio era cortante. Alvos flocos caíam de vez em quando em turbilhão. Para os lados do nordeste, sob o fulgor das estrelas num céu negro, brilhava o estendal de neve, e sobre os topos das colinas aparecia um branco róseo. Ao longo da praia já existiam franjas de gelo. Bancos de gelo flutuavam no oceano, mas este, em sua maior extensão, ainda não se havia congelado e, à luz daquele eterno crepúsculo, era da cor de sangue.

Circunvaguei os olhos, a ver se ainda restava algum sinal de vida animal. Uma certa apreensão indefinível ainda me prendia ao assento da máquina. Porém nada via que se movesse na terra, no mar ou no céu. Somente o limo verde sobre as rochas testemunhava que a vida não se extinguira de todo. Um banco de areia emergira um pouco acima das águas, e o mar recuara da praia. Tive a momentânea impressão de haver visto um objeto negro se agitar por sobre o banco de areia, mas se imobilizou tão logo olhei para ele; achei que meus olhos me haviam enganado, e que o objeto negro não passava de um rochedo. No céu, as estrelas brilhavam intensamente e pareciam-me cintilar muito pouco.

Repentinamente, notei que o contorno circular do sol havia mudado; na sua curva aparecera uma concavidade, uma reentrância, que se tornava cada vez maior. Durante um minuto, talvez, fiquei a contemplar, cheio de pasmo, esse avanço das trevas sobre o dia, e de chofre compreendi que estava assistindo ao começo de um eclipse. A lua, ou o planeta Mercúrio, passava diante do disco solar. Naturalmente, julguei a princípio que era a lua, mas tenho fundadas razões para acreditar que, na realidade, assisti à passagem de um planeta interior muito perto da Terra.

A escuridão aumentava rapidamente. Um vento frio começou a soprar do leste em lufadas enregelantes, enquanto os flocos de neve caíam com maior intensidade. O mar se encrespou levemente, com um murmúrio longínquo. Afora esses ruídos da natureza, tudo era silêncio. Silêncio? Difícil descrever a profundíssima quietação que pesava sobre o mundo. Todos os rumores da humanidade, o balido dos rebanhos, o canto dos pássaros, o zumbido dos insetos, a agitação que forma como que a música de fundo de nossas vidas — tudo calara. A proporção que as trevas se adensavam, os turbilhões de neve se tornavam mais freqüentes, os flocos dançando diante de meus olhos. O frio era glacial. Por fim, um a um, numa sucessão rápida, os cumes brancos das colinas distantes sumiram na escuridão. A brisa transformou-se num vento lamurioso. A sombra central do eclipse estendia-se na direção do lugar onde me encontrava. Um momento depois, só as pálidas estrelas eram visíveis. Tudo o mais jazia imerso nas trevas. O céu ficara totalmente negro.

Senti-me invadido de horror ante essas trevas mortais. O frio que me penetrava até a medula dos ossos e o sofrimento da respiração difícil acabaram por dominar-me. Eu tiritava. Veio-me uma terrível náusea. Então, como um arco vermelho no céu, apareceu a borda do disco solar. Desci da máquina para me recuperar um pouco, pois me sentia aturdido e incapaz de enfrentar a jornada de volta.