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Por qualquer razão, O cérebro de Conway preocupara-se mais com os efeitos da explosão do que com a sua causa. Ou talvez ele tivesse tentado propositadamente não pensar nisso, para se convencer a si próprio de que houvera qualquer acidente e que o Hospital não estava a ser atacado. Mas o sistema de Comunicações Gerais lembrava-lhe a verdade em todos os cruzamentos e no caminho para o gabinete de O’Mara toda a gente se movia duas vezes mais depressa do que o habitual e, como sempre acontecia, numa direcção oposta à de Conway. Teve de se obrigar a entrar devagar no gabinete do Psicólogo-Chefe, dizer o que pretendia e perguntar o que acontecera.
— Sete naves — respondeu O’Mara, fazendo sinal a Conway para se deitar, enquanto baixava o capacete do Educador. — Parecem ser pequenas, sem quaisquer armas ou defesas invulgares. Houve uma boa escaramuça. Três fugiram e urna que não o fez lançou contra nós um míssil antes de rebentarmos com ela. Um míssil pequeno, com uma ogiva química.
O’Mara prosseguiu, pensativo. — Isso é muito estranho, porque se tivesse sida uma ogiva nuclear não haveria agora Hospital Não estávamos à espera deles tão depressa e fomos apanhados um pouco de surpresa. Você tem mesmo de tratar desse paciente?
— O quê? Oh, sim — disse Conway. — Sabe como são os DBLF. Qualquer ferida incisa é muito grave neles. Não há tempo para chamar outro módico.
O’Mara resmungou. Verificou se o capacete estava bem colocado e depois disse: — A maneira maldosa como actuaram é uma indicação clara das intenções deles. No entanto usaram uma carga química, quando podiam ter-nos destruído por completo. É estranho. No entanto, isso fez com que os recalcitrantes se decidissem. Agora cada um já sabe se de facto quer ficar ou não. E os que não querem estão ansiosos por partir, o que é uma boa coisa na opinião de Dermod…
Dermod era o comandante da Armada.
— … E agora esvazie a cabeça — disse O’Mara. — Ou esvazie-a pouco mais do que é habitual.
Conway pensou que o leito parecia mais confortável do que era habitual. Dir-se-ia que se afundava nele… mas uma pancada no ombro fê-lo saltar. O’Mara disse causticamente: — Não durma! Quando acabar com o seu paciente vá deitar-se. Mannen poderá tratar das coisas na Recepção e o Hospital não se desintegrará… a menos que seja atingido por uma bomba atómica.
Conway saiu do gabinete com os primeiros indícios de uma dupla consciência. Mas os DBLF não eram tão alienígenas como algumas das criaturas com as quais Conway tivera de partilhar o seu espírito. Ainda que fisicamente fossem semelhantes a lagartas prateadas e gigantescas, tinham muito em comum com os terrestres. As suas reacções emocionais a estímulos como a música, as belas paisagens e os DBLF do sexo oposto eram quase idênticas. Aquela até gostava de carne, de modo que
Conway não teria necessidade de passar fome comendo saladas, se tivesse de manter a gravação durante mais tempo. Mesmo assim, não gostou que, quando chegou à pequena sala de operações para onde fora levado o DBLF, uma parte do seu cérebro olhasse a Murchison como um daqueles magrizelas DBDG, da Terra…
Ainda que a Murchison tivesse tudo pronto, Conway não começou imediatamente. Sabia que não podia trabalhar, fatigado como estava, sem correr o perigo de matar o ferido.
— Arranja-me uma injecção estimulante, sim? — Disse ele, reprimindo um bocejo.
Durante um instante, ela pareceu estar disposta a discutir a ordem. Os estimulantes não eram vistos com bons olhos no Hospital — o seu uso só era autorizado em casos muito graves e por muito boas razões. Mas ela injectou-o sem dizer nada, usando uma agulha romba e uma força desnecessária. Ainda que metade do seu espírito não fosse seu, Conway compreendeu que ela estava furiosa.
Depois, subitamente, a injecção fez efeito. Conway sentiu-se tão repousado como se tivesse dormido dez horas e tomado um bom duche. Perguntou subitamente: — Como está o outro?
— A respiração artificial fê-lo voltar a si — respondeu ela, e acrescentou com um entusiasmo maior: — Mas ele encontra-se em estado de choque. Mandei-o para a secção Traithana; eles ainda têm lá algum pessoal superior.
— Bom — disse Conway. Queria dizer mais coisas mas sabia que não havia tempo. — Vamos começar, sim?
Além da pequena carapaça, de paredes finas, onde o cérebro estava alojado, os DBLF não possuam ossos. Os seus corpos eram formados por um cilindro exterior de tecido muscular que, para além de ser o seu meio de locomoção primário, servia para proteger os órgãos vitais no seu interior. Além disso tinham um sistema circulatório complexo e extremamente vulnerável: a rede sanguínea que alimentava as tremendas cintas musculares situava-se muito junto à pele. A espessa camada de pêlos dava-lhe uma protecção razoável, mas não contra pedaços de metal, de contornos irregulares, voando pelo ar. Um ferimento que muitas outras espécies considerariam superficial podia levar um DBLF a sangrar até à morte em poucos minutos.
Conway trabalhou lenta e cuidadosamente. Sentiu-se preocupado não porque a vida do paciente estivesse em perigo, mas porque sabia que aquele belo pêlo prateado não voltaria a crescer devidamente sobre as áreas afectadas, e se crescesse seria amarelado e repelente para qualquer macho Kelgiano. A enfermeira ferida era uma jovem notavelmente bela e uma desfiguração dessas seria uma verdadeira tragédia. Fez votos para que ela não fosse tão orgulhosa que não» quisesse usar pêlo artificial. Sem dúvida que ele não tinha o mesmo lustro dos pêlos vivos e seria imediatamente reconhecido, mas de modo algum seria tão visualmente ofensivo…
Conway pensou que uma hora antes a Kelgiana seria para ele apenas uma lagarta como outra qualquer. Agora até se preocupava com as perspectivas de casamento da paciente. As gravações fisiológicas levavam as pessoas a ter sentimentos para com os extraterrestres…
Quando acabou, telefonou à Recepção e disse que a paciente tinha de ser evacuada tão depressa quanto possível. Mannen respondeu-lhe que havia meia dúzia de pacientes em estado crítico, todos os pacientes das classificações A a G ou tinham partido ou estavam a partir, juntamente com o pessoal das mesmas classificações que recebera ordem de partir por razões de segurança.
Alguns deles tinham mostrado extrema relutância em partir. Um em particular, um diagnosticador Tralthano, que tinha a infelicidade de possuir um iate espacial — uma coisa que em condições normais não seria considerada um infortúnio — tivera de ser formalmente acusado de tentativa de traição, perturbação da ordem e incitamento a motim, e fora preso, tendo essa sido a única maneira de o fazer embarcar.
A Kelgiana ferida teve de ser metida numa tenda de pressão para a fase inicial da sua passagem através da enfermaria AUGL que agora estava aberta para o espaço. A visão do grande tanque, vazio, com as suas paredes secas pelo vácuo e a vegetação submarina tornada em pedaços de pergaminho descolorido, suscitou uma depressão horrível em Conway. A depressão manteve-se enquanto atravessavam os três pisos vazios, da ala do cloro, por baixo daquele, até chegarem a outra secção cheia de ar.
Ali tiveram que esperar que passasse um cortejo de TLTU. Foi uma coisa boa porque, ainda que Conway se sentisse artificialmente cheio de vigor, a Murchison começava a estar abatida. Assim que o seu paciente estivesse a bordo, ela teria de ir para a cama.
Sete TLTU passaram lentamente, as suas esferas protectoras presas a portadores de macas conduzidos por serventes de rosto tenso. Ao contrário das formas de vida que tinham a metana por base, aquelas esferas não se recobriam de geada. Em vez disso emitiam um silvo muito agudo enquanto os seus geradores trabalhavam para manter a temperatura interna confortável para os seus ocupantes: duzentos e oitenta graus centígrados. Com cada um deles passava uma onda de calor que Conway podia sentir, a seis metros de distância.
Se outro míssil explodisse ali, naquele momento, e um daqueles globos se abrisse… Conway não pensava que houvesse uma maneira pior de morrer que ter a carne fervida dos ossos por um sopro de vapor sobreaquecido.
Quando entregaram! o paciente ao médico da nave, na Escotilha, Conway estava a sentir dificuldade em focar os olhos e as pernas pareciam ser de (borracha. Ou se deitava ou tomava outra injecção. Estava a decidir-se pela primeira forma de tratamento quando se aproximou dele um oficial dos Monitores, usando um fato pesado de protecção que ainda irradiava o frio do espaço.
— Os feridos estão aqui, senhor — disse apressadamente o oficial. — Trouxemo-los numa nave de abastecimentos porque a Recepção está ocupada com a evacuação. Atracámos à secção DBLF mas está tudo vazio é o senhor foi o primeiro médico que vi. Pode tomar conta deles?
Conway quase perguntou que vítimas eram, mas conteve-se. Recordou-se subitamente de que houvera um ataque. Se o oficial soubesse que ele tivera demasiado que fazer para se lembrar do ataque e das vítimas…
— Onde é que os meteu? — Perguntou Conway.
— Ainda estão na nave. Pensámos que seria melhor que alguém os visse antes de os transportarmos. Alguns estão… Bem, quer fazer o favor de me seguir?
Eram dezoito, os destroços de homens extraídos dos destroços de uma nave, cujos fatos ainda estavam demasiado frios para serem tocados. Só os capacetes tinham sido retirados e isso fora para saber se ainda viviam. Conway contou três descompressões; o resto eram fracturas com vários graus de complicação, um dos quais era sem dúvida uma fractura do crânio por depressão. Não havia casos de radiação. Até então tinha sido uma guerra «limpa», se alguma guerra podia ser limpa…
Conway sentiu-se furioso mas dominou-se. Endireitou-se e disse à Murchison:
— Temos de usar mais estimulante. Vai ser urna longa sessão. Mas primeiro preciso de apagar esta gravação DBLF e tentar arranjar alguma ajuda. Enquanto trato disso, vê se tiras esses homens dos seus fatos e se consegues que os levem para a sala das operações Número Cinco dos DBLF, depois do que poderás cuidar de dormir.
«E obrigado» — disse ele, acanhadamente, sem poder dizer mais porque o oficial continuava junto dele. E o oficial não estivera a trabalhar ao lado da Murchison durante as últimas três horas, com um estimulante a despertar-lhe todos os sentidos…
— Se isso lhe for útil, tomarei também uma injecção estimulante — disse subitamente a Murchison.
Agradecido, Conway disse: — Eis uma pequena muito curiosa, mas tinha esperanças de que dissesses isso…