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O besouro do intercomunicador despertou Conway, instantaneamente mas sem confusão no agradável e familiar ambiente dos seus aposentos. Mas depois teve consciência de que havia algo de estranho e isso fê-lo hesitar por um momento. Ali havia… silêncio!
— Para que você não pergunte «onde estou?», fique sabendo que está inconsciente há dois dias — disse a voz fatigada de O’Mara. Durante esse tempo, no começo do dia de ontem, o ataque cessou e ainda não recomeçou, e eu trabalhei muito em si. Dei-lhe um tratamento hipnótico para que esquecesse tudo, mas não fique eternamente grato pelo que fiz por si. Como é que se sente?
— Muito bem. Não sinto nada… Quero dizer, parece-me que tenho muito espaço dentro da cabeça…
O’Mara resmungou: — A conclusão óbvia é a de que a sua cabeça está vazia, mas não direi isso…
Embora o Psicólogo-Chefe quisesse manter a sua maneira de ser usual, seca e sardónica, a sua voz mostrava-se terrivelmente fatigada. Mas O’Mara prosseguiu: — O comandante da Armada quer reunir-se connosco dentro de quatro horas portanto não tome quaisquer casos à sua conta. De qualquer maneira as coisas não correm agora muito mal, de modo que pode acalmar-se um pouco. Eu vou dormir.
Mas Conway verificou que era difícil passar quatro horas sem fazer nada. A sala de jantar principal estava cheia de homens do Corpo. Toda a gente conversava em voz alta, de uma maneira demasiado nervosa e alegre, e girava em torno dos passados e futuros aspectos do ataque.
Aparentemente, a força, dos Monitores fora praticamente empurrada de encontro à superfície exterior do Hospital, mas então uma força extraterrestre de voluntários Mensanos surgira do hiperespaço mesmo no exterior do globo inimigo. As naves illensanas eram grandes e mal desenhadas; pareciam unidades pesadas de batalha, ainda que tivessem apenas o armamento de cruzadores ordinários, e a visão de dez delas a surgirem do nada assustara o inimigo. A força atacante retirara-se por algum tempo para se reagrupar e os Monitores, que não tinham nada para reagrupar, tinham-se concentrado no reforço do armamento da sua última linha de defesa: o próprio Hospital. Mas, mesmo pensando que o assunto dizia tanto respeito a ele como a qualquer outra pessoa naquela sala, Conway não quis juntar-se àquela conversa tão mórbida.
Comeu rapidamente, sentindo que tinha de melhorar o seu moral. Isso fê-lo perguntar a si próprio se a Murchinson estaria de serviço, de folga ou a dormir. Se ela estivesse a dormir não poderia fazer nada; se ela estivesse de serviço não tardaria a tirá-la dele, e quando ela estivesse livre…
Por estranho que parecesse, quase não sentia peso na consciência por esse vergonhoso abuso de autoridade, com fins absolutamente egoístas. Mas a Murchison estava exactamente a sair de serviço, de modo que ele não teve de cometer o crime que pensara em cometer. No mesmo tom alto e demasiado alegre que considerara artificial quando o ouvira na sala de jantar, perguntou se ela tinha algum compromisso, sugeriu um encontro e murmurou qualquer coisa horrível sobre só se pensar em trabalho e nada em divertimentos…
— Compromisso…? Divertimento..! Mas eu quero é dormir! — protestou ela. Depois, num tom mais razoável, acrescentou: — Não pode ser… Quero dizer: para onde iríamos, que faríamos? Isto está tudo destroçado. Bem, tenho de mudar de roupa?
— O piso de recreio continua no seu lugar e parece estar em perfeitas condições.
O uniforme das enfermeiras era constituído por uma blusa azul e calças, tudo muito apertado para facilitar a entrada e saída dos fatos de pressão. Ficava bem à Murchison, mas ela parecia esgotada. Quando ela desapertou o largo cinto branco, com as bolsas dos instrumentos e retirou a touca e a rede do cabelo, Conway rosnou e teve imediatamente um ataque de tosse porque a sua garganta ainda estava magoada de fazer ruídos alienígenas.
A Murchison riu-se, abanou os cabelos e esfregou o rosto para trazer às faces um pouco de cor. Disse: — Prometes que não me demoras até muito tarde?
No caminho para o piso de recreio foi difícil não falar do trabalho. Muitas secções do Hospital tinham perdido pressão e os pisos habitáveis estavam cheios de gente. Era uma situação que ninguém previra. Não tinham esperado que o inimigo recorresse a uma guerra limitada. Se tivessem sido usadas armas atómicas não havia acumulação de pessoas, nem hospital, provavelmente. A maior parte do tempo, Conway não escutou o que a Murchison dizia, mas ela pareceu não dar por isso. Talvez porque também não o escutava.
O piso de recreio estava na mesma, mas os pormenores tinham sido alterados de uma maneira dramática. O centro» de gravidade do Hospital estava acima do piso, a pouca atracção que havia ali exercia-se de baixo para cima, e tudo quanto normalmente assentava no chão ou na baía estava agora no tecto, formando um caos translúcido de água com veios de areia, bolsas de ar e globos de água através do qual o sol submerso brilhava com uma luz roxa, forte.
— Oh, que belo! — exclamou a Murchison. — E calmo!
A luz dava à pele dela uma cor quente, escura, que era absolutamente indescritível, mas bela. Os lábios dela — de um roxo suave, quase negro — estavam ligeiramente entreabertos, mostrando dentes que pareciam, quase irisados, os olhos dela eram grandes, misteriosos, luminosos.
— Não é calmo. E romântico!
Lançaram-se suavemente na direcção do restaurante. Passaram sobre a copa das árvores e atravessaram uma pequena cortina de nevoeiro — vapor produzido pelo sol submerso — que cobriu de gotas os seus rostos e os seus braços. Conway pegou na mão dela e agarrou-a suavemente, mas as velocidades de ambos não eram exactamente iguais e começaram a girar em torno do seu centro de gravidade. Conway dobrou o cotovelo um pouco, puxando-a para ele, e a rapidez com que giravam aumentou. Depois ele passou o braço pela cintura dela e puxou-a para si.
Ela começou a protestar e depois, subitamente, gloriosamente, começou a beijá-lo e a agarrar-se a ele com tanto ardor como ele se agarrava a ela, e a baía vazia, as arribas e o céu roxo e aguado giraram loucamente à volta deles.
Num canto calmo e impessoal do seu espírito, Conway pousou que a sua cabeça estaria de qualquer maneira a andar à roda mesmo que o seu corpo não estivesse — o beijo era dessa espécie. Deslizaram suavemente até ao cimo da arriba, do outro lado da baía, e separaram-se a, rindo.
Usaram os arbustos artificiais para se impelirem na direcção do que fora o restaurante. Lá dentro estava escuro e juntara-se muita água sob o tecto transparente e as partes interiores dos chapéus junto das mesas. A água pendia em esferas que pareciam frutos frágeis, estranhos, e que se agitavam ligeiramente à passagem deles ou explodiam em centenas de pequenos glóbulos prateados quando eles chocaram contra uma mesa. Era corno um mundo de sonho — e um sonho em que os desejos se realizavam inteiramente. O corpo escuro, adorável, da Murchison, a flutuar a seu lado, não deixava dúvidas quanto a isso.
Sentaram-se junto a uma das mesas, mas com muito cuidado para não deslocarem! a água do chapéu que a cobria. Conway pegou na mão dela, enquanto se seguravam às cadeiras com as outras mãos. Disse: — Preciso de falar contigo.
Ela sorriu-se, um pouco desconfiada.
Conway tentou falar. Tentou dizer as coisas que ensaiara muitas vezes, mas o que surgiu foram palavras soltas. Era bela. Ele amava-a e teria passado meses a colocá-la numa situação onde ela não pudesse dizer outra coisa senão sim. Mas agora não havia tempo para fazer as coisas como era devido. Pensava constantemente nela e mesmo durante a operação do TELHA fora a pensar nela que se conseguira aguentar até ao fim. E durante todo o bombardeamento preocupara-se…
— E eu preocupei-me contigo — disse ela, suavemente. — Estavas em toda a parte, e cada vez que éramos atingidos… Sabias sempre exactamente o que se devia fazer… e eu tinha medo que morresses…
O rosto dela estava na sombra, o uniforme húmido prendia-se à carne. Conway sentiu a boca seca.
Ela disse num tom caloroso: — Foste maravilhoso naquele dia com o TELHA. Foi como se trabalhasse com um diagnosticador. Sete gravações, disse O’Mara. Eu… pedi-lhe para me dar uma, primeiro, para te ajudar.
Mas ele disse que não porque… — Ela hesitou e desviou
o olhar —… porque segundo afirmou, as mulheres são muito esquisitas, quanto a quem toma posse delas. Dos espíritos delas, quero dizer…
— Esquisitas até que ponto? — Perguntou Conway. — Com os amigos também?
Ele inclinou-se para a frente, quando falou, largando a cadeira a outra mão subiu subitamente e bateu contra o chapéu e tocou com a testa num dos globos flutuantes. Quando a tensão superficial o quebrou, ele abateu-se li timidamente sobre todo o seu rosto. Afastou a água, tornando-a numa nuvem de pequenas gotas luminosas. Foi então que viu aquilo.
Foi a única nota discordante no seu sonho — um monte de mísseis desarmados, num canto da sala. Estavam presos ao chão por cintas e seguros por uma rede, para o caso das cintas serem abaladas por uma explosão. A rede estava solta. Sempre agarrado à Murchison, procurou o bordo da rede e levantou-a do chão.
— Não podemos falar devidamente a flutuar, no ar — Disse ele com toda a calma. — Queres entrar?
Talvez a rede fosse demasiado semelhante a uma teia de aranha. Ele sentiu que ela hesitava. A mão que jurava estava a tremer.
— Eu… sei o que senti — disse ela sem olhar para ele. — Também gosto de ti. Talvez até mais do que isso. Mas não está certo. Não temos tempo nenhum. Isto é egoísmo. Não posso deixar de pensar em todos esses homens nos corredores, e nas vítimas que estão sempre a chegar. Temos de pensar nos outros. E por isso…
— Obrigado — disse Conway, furioso. — Obrigado por me recordares o meu dever.
— Por favor! — Gritou ela, e subitamente agarrou-se de novo a ele, a cabeça contra o peito. — Não quero magoar-te nem quero que me odeies. Nunca pensei que a guerra fosse tão horrível. Estou assustada. Não quero que morras e me deixes sozinha. Por favor, agarra-me bem e… e diz-me o que devo fazer…
Os olhos dela brilhavam e foi só quando os pequenos pontos de luz começaram a subir dela, que ele compreendeu que ela estava a chorar, silenciosamente. Nunca Imaginara ver a Murchison a chorar. Agarrou-a com força, durante longo tempo», e depois, suavemente, afastou-a de si.
Num tom duro, disse: — Não te odeio, mas também não quero discutir os meus sentimentos neste momento. Vamos, vou-te acompanhar a casa.
Mas não foi. A sereia de alarme começou a funcionar alguns minutos depois e quando ela parou uma voz nas Comunicações Gerais começou a pedir ao Dr. Conway que fosse ao Intercomunicador.