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Meia hora depois encontrava-se com os dois doutores Ians, comendo a inevitável salada no refeitório principal do Hospital — aquele que servia para os Tralthanos, Kelgianos, humanas e as várias outras criaturas de sangue quente e respiradoras de oxigénio que faziam parte do quadro do pessoal. A salada era mais ou menos apetecível, comparada com as coisas que ele tinha de comer quando convidava outros colegas extraterrestres, mas pensava que nunca seria capaz de se habituar à ventania que eles criavam durante o almoço.
Os cidadãos GKNM de Ia eram uma forma de vida grande, delicada e alada que parecia uma libélula. Aos seus corpos esguios como uma vareta mas flexíveis estavam presas quatro pernas de insecto, manipuladores, os órgãos sensoriais usuais e três tremendos pares de asas. As maneiras deles à mesa não eram verdadeiramente desagradáveis — acontecia apenas que eles não se sentavam para comer, pairavam no ar. Aparentemente, comer enquanto voavam ajudava as suas digestões e era muito como um reflexo condicionado.
Conway colocou o relatório da Patologia sobre a mesa e pôs a terrina da salada em cima dele, para que não voasse. Disse: — Por aquilo que acabo de vos ler parece um caso muito simples. Mas direi que é invulgar, uma vez que o doente surge notavelmente isento de qualquer tipo de bactérias nocivas. Os sintomas dele indicam uma forma de epitelioma, isso e nada mais, o que torna a inconsciência um tanto ou quanto perturbadora. Mas talvez alguma informação sobre o seu ambiente planetário, períodos de sono, etc., possa esclarecer as coisas1, e é por isso que lhes queria falar.
— Sabemos que o paciente vem da vossa galáxia. Podem dizer-me alguma coisa sobre ele?
O GKNM que estava à direita de Conway deslizou alguns centímetros para trás, afastando-se da mesa, e disse através do seu Tradutor: — Receio ainda não ter dominado as dificuldades do vosso sistema de classificação fisiológica, Doutor. Qual é o aspecto do cliente?
— Desculpe, esqueci-me disso — confessou Conway. Ia explicar em pormenor o que era um EPLH, mas resolveu fazer antes um esboço nas costas do relatório da Patologia. Poucos momentos depois ergueu o desenho e disse: — Parece-se mais ou menos com isto.
Ambos os Ians caíram no chão.
Conway, que nunca vira os GKNM pararem de comer ou voar durante uma refeição, ficou impressionado pela reacção.
Disse: — Conhecem-nos, então?
O GKNM que se encontrava à direita fez ruídos que o Tradutor de Conway reproduziu como uma série de ladridos, o equivalente extraterrestre de um ataque de gaguez. Por fim ele disse: — Conhecemo-los. Nunca vimos um, não conhecemos o seu planeta de origem, e até agora não tínhamos a certeza de que eles tivessem existência verdadeiramente física. Eles… eles são deuses, Doutor.
Mais uma pessoa muito importante!… pensou Conway, com a súbita sensação de que lhe faltava o chão debaixo dos pés. A experiência dele com pessoas dessas dizia-lhe que os casos delas nunca eram simples. Mesmo que o estado do doente não tivesse nada de sério, havia inevitavelmente complicações, nenhuma das quais era de natureza médica.
— O meu colega está a deixar-se arrastar um pouco pelas emoções — interveio o outro GKNM. Conway nunca fora capaz de notar qualquer diferença entre os dois Ians, mas fosse como fosse, aquele tinha o ar de ser uma libélula mais cínica, mais fatigada do mundo. — Talvez eu possa dizer-lhe o pouco que sabemos, e o que tem sido deduzido quanto a eles, em vez de enumerarmos todas as coisas que não são…
A espécie a que o paciente pertencia não era numerosa, explicou o médico Ian, mas a sua esfera de influência na outra galáxia era tremenda. Estavam muito avançados nas ciências sociais e psicológicas, e individualmente a inteligência e capacidade mental deles era enorme. Por razões que só eles conheciam não procuravam com muita frequência a companhia dos outros, e nunca se encontrara mais que um em qualquer planeta, durante um período de tempo apreciável.
Eram sempre os supremos senhores, nos mundos que ocupavam. Por vezes, o seu domínio era benévolo, por vezes duro — mas a dureza, quando vista a um século de distância, resultava sempre ser disfarçadamente benévola. Usavam as pessoas, populações planetárias inteiras, i’ até culturas interplanetárias, puramente como um meio de resolver os problemas que eles próprios estabeleciam, o quando o problema estava resolvido partiam. Pelo menos era a impressão recebida por observadores não muito imparciais.
Numa voz tornada átona e impassível só por causa do processo de tradução, o Ian prosseguiu: —… As lendas parecem concordar em que quando um deles desce num planeta nada mais traz do que a nave e um companheiro que é sempre de uma espécie diferente. Usando uma combinação de ciência defensiva, psicologia e simples habilidade para o negócio, sobrepõem-se aos preconceitos locais e começam a acumular riqueza e poder. A transição da autoridade local para o domínio planetário absoluto é gradual, mas eles têm muito tempo. São imortais.
Conway ouviu o garfo cair no chão, como que multo longe. Passaram-se alguns minuto® antes que pudesse readquirir a firmeza, quer nas mãos, quer no espírito.
Havia algumas espécies extraterrestres na Federação que possuíam vidas muito longas, e a maior parte das culturas médicas avançadas — incluindo a da Terra — tinha os meios de prolongar consideravelmente a vida com tratamentos rejuvenescedores. A imortalidade, entretanto, era uma coisa que não tinham, nem tinham sequer tido a oportunidade de estudar alguém que a possuísse. Até àquele momento. Agora Conway tinha um paciente para cuidar, para curar e, acima de tudo, para investigar. A menos que… mas o GKNM era um médico, e um médico não diria «imortal» se quisesse referir apenas à longevidade.
— Tem a certeza? — grasnou Conway.
A resposta do Ian foi demorada porque incluiu o detalhe de muitos factos, teorias e legendas referentes a esses seres que se sentiam satisfeitos por dominar nada menos que um planeta de cada vez. No fim dela, Conway não estava certo de que o seu paciente fosse imortal, mas tudo quanto ele ouvira parecera indicar isso.
Hesitante, disse: — Depois do que ouvi, talvez não devesse fazer esta perguntai, mas na vossa opinião essas criaturas são capazes de cometer um acto de assassínio e canibalismo…
— Não! — disse um Ian.
— Nunca! — disse o outro.
Não havia, de resto, qualquer indício de emoção nas respostas traduzidas, mas o seu volume foi suficiente para que toda a gente; no refeitório, levantasse os olhos.
Poucos minutos depois, Conway ficou só. Os Ians tinham pedido autorização para ver o legendário EPLH e depois haviam-se afastado apressadamente, dominados por uma mistura de admiração e receio. Os Ians eram boas pessoas, pensou Conway, mas pensou também que a salada só era boa para os coelhos. Pôs a salada de parte e marcou um bife com todos os matadores.
Aquele dia prometia ser longo e duro.
Quando Conway voltou para a sala de observações os Ians já tinham partido e o estado do doente não se alterara. O tenente continuava a guardar a enfermeira de serviço — muito de perto — e começou a corar, por qualquer razão. Conway fez um movimento grave, com a cabeça, mandou à enfermeira que se retirasse e estava a ler de novo o relatório da Patologia quando o Dr. Prilicla chegou.
Prilicla era uma criatura semelhante a um aranhiço, frágil, proveniente de um mundo de baixa gravidade. Tinha a classificação de GLNO e usava constantemente anuladores de gravidade para não ser esmagado por acelerações que os outros seres consideravam normais. Além do ser um médico muito competente, Prilicla era a pessoa mais popular no Hospital, porque a sua faculdade empática impedia que a pequena criatura fosse desagradável para qualquer pessoa. E, ainda que possuísse também um par de grandes asas irisadas, sentava-se à hora das refeições e comia esparguete com um garfo. Conway gostava muito de Prilicla.
Conway descreveu-lhe resumidamente o estado do EPLH e tudo quanto sabia. Terminou, dizendo: —… Sei que não pode conseguir muito de um doente inconsciente, mas ajudar-me-ia se pudesse…
— Parece haver aqui uma incompreensão, Doutor — interrompeu Prilicla, usando as palavras que nele se podiam mais aproximar de dizer a alguém que estava errado. — O paciente está consciente…
— Recue!
Avisado tanto pelas palavras como pela radiação emocional de Conway perante o pensamento do que a maça ossuda do paciente poderia fazer ao corpo frágil como casca de ovo de Prilicla, o pequeno GLNO saltitou para trás, até se colocar fora do alcance. O tenente aproximou-se cautelosamente, os olhos fitos no ainda imóvel tentáculo que terminava naquele monstruoso cacete. Durante alguns segundos ninguém se moveu ou falou, enquanto exteriormente a criatura parecia continuar inconsciente. Por fim Conway olhou para Prilicla. Não teve necessidade de falar.
Prilicla disse: — Detecto radiação emocional de um tipo que emana apenas de um cérebro que está consciente de si próprio. Os processos mentais parecem lentos e, considerando o tamanho do paciente, também fracos. Em pormenor, está a irradiar sensações de perigo, impotência e confusão. Há também indicações de um objectivo fundamental
Conway suspirou.
— Portanto ele está a fingir-se de morto — disse o tenente numa voz soturna, falando principalmente para si próprio.
O facto de o paciente estar a simular a Inconsciência preocupava menos Conway que o monitor. Apesar da quantidade de material de que dispunha para diagnóstico, acreditava firmemente em que o melhor guia de um médico perante qualquer desarranjo era um doente comunicativo e cooperador. Mas como poderia ele iniciar uma conversação com um ser que era um semideus?
— Nós… nós queremos ajudá-lo — disse ele, acanhadamente. — Compreende o que estou a dizer?
O doente permaneceu imóvel como antes.
Prilicla disse: — Não há qualquer indicação de que ele o tenha ouvido, Doutor.
— Mas se está consciente… — Conway calou-se e encolheu os ombros.
Começou a montar de novo os seus instrumentos e com a ajuda de Prilicla examinou de novo o EFLH, dando atenção especial aos órgãos da visão e da audição. Mas não houve qualquer reacção física ou emocional enquanto o exame esteve em curso, apesar das luzes intermitentes. Conway não viu qualquer indicação de desarranjo físico nos órgãos sensoriais, ainda que o paciente se mostrasse completamente ignorante de todos os estímulos externos. No plano físico estava inconsciente, insensível a tudo quanto se passava em volta, ainda que Prilicla insistisse em que não estava.
Que semideus mais doido, mais confuso, pensou Conway. Porque seria que O’Mara lhe mandava sempre os casos mais estranhos? Disse em voz alta: — A única explicação que posso encontrar para este estado peculiar de coisas é que o cérebro com o qual está em contacto tem todos os contactos com o seu equipamento sensorial bloqueados ou interrompidos. O estado do paciente não é a causa disso, de modo que o problema terá uma base psicológica. Creio que a besta tem necessidade urgente de assistência psiquiátrica.
«No entanto — prosseguiu ele — os feiticeiros podem trabalhar com, mais eficiência num doente que esteja fisicamente bem, de modo que creio que primeiro teremos de tratar desta doença da pele…»
No Hospital fora preparado um específico contra o epitelioma do tipo daquele que afectava o paciente e a Patologia já dissera que ele era adequado ao metabolismo do EPLH e não produziria efeitos secundários perigosos. Demorou apenas alguns minutos até que Conway medisse uma dose de teste e a injectasse subcutaneamente. Prilicla aproximou-se dele apressadamente, para ver o efeito. Sabiam ambos que aquele era um dos raros milagres da medicina de acção rápida — o efeito devia surgir numa questão de segundos, em vez de horas ou dias.
Dez minutos depois nada acontecera.
— O tipo é duro — disse Conway, e injectou a dose segura máxima.
Quase imediatamente a pele na área enegreceu e perdeu a sua aparência seca, craquelada. A área negra alargou-se rapidamente enquanto olhavam, e um dos tentáculos agitou-se ligeiramente.
— Que está a fazer o espírito dele? — perguntou Conway.
— Mais ou menos o mesmo que antes — respondeu Prilicla. — Mas depois da última injecção surgiu uma angústia crescente. Detecto sensações de um cérebro que tenta tomar uma decisão… que está a tomar uma decisão…
Prilicla começou a tremer violentamente — um sinal claro de que a radiação emocional do paciente se intensificara. Conway abrira a boca para fazer uma pergunta quando um som seco, de algo que se rasgava, atraiu de novo a sua atenção para o paciente. O EPLH estava a fazer força e a atirar-se contra o arnês que o prendia.
Duas das correias já se tinham partido e ele conseguira libertar um tentáculo. O que possuía a maça…
Conway esquivou-se apressadamente e evitou por um centímetro que a cabeça lhe desaparecesse de cima dos ombros — ainda sentiu aquela arma terrível a roçar-lhe pelos cabelos. Quase no fim da trajectória a massa ossuda tocou-lhe no ombro e atirou-o de tal modo através da pequena sala que ele quase fez ricochete na parede. Prilicla, cuja cobardia era uma excelente característica de sobrevivência, já estava agarrado com as suas patas de pontas de ventosa, ao tecto, que era o único lugar seguro no compartimento.
Da sua posição, deitado no chão, Conway ouviu outras. correias estoirarem e Viu mais dois tentáculos a tactearem o espaço. Sabia que dentro de momentos o paciente estaria completamente livre1 do arnês e capaz de se mover na saia à vontade1. Pôs-se rapidamente de joelhos, agachou-se e depois mergulhou na direcção do EPLH enfurecido. Enquanto se agarrava estreitamente com os braços em torno do corpo do monstro logo abaixo das raízes dos tentáculos, Conway foi quase ensurdecido por uma Série de rugidos que vinham de orifício aural, ao lado do ouvido dele. O ruído traduzia-se como — Socorro! Socorro! — Simultaneamente viu o tentáculo que tinha na ponta a grande maça óssea a virar a ponta para baixo. Houve um estrondo e no chão, no lugar onde ele antes estivera, apareceu um buraco de oito centímetros de diâmetro.
Ao agarrar-se ao paciente daquela maneira, ele fizera uma coisa aparentemente louca, mas Conway mantinha a cabeça no seu lugar, sob mais que um aspecto. Abraçado assim ao EPLH abaixo do nível daqueles tentáculos que se agitavam loucamente, Conway estava no lugar mais seguro da sala.
Então viu o tenente…
O tenente tinha as coitas encostadas à parede e estava meio deitado, meio levantado. Um braço pendia-lhe, como que solto, mas na outra mão tinha a arma. Firmava-a entre os joelhos e um olho estava fechado numa piscadela diabólica enquanto o outro apontava o cano. Conway gritou desesperadamente para que ele esperasse, mas o ruído do paciente não deixou ouvir a sua voz. Aguardou a todo o momento o clarão © o choque das balas explosivas. Sentiu-se paralisado com medo e nem sequer pôde abrir os braços e soltar-se.
Então, subitamente, tudo acabou. O paciente caiu para o lado, contorceu-se e imobilizou-se. Metendo no coldre a arma que não chegara a disparar, o tenente pôs-se de pé com dificuldade. Conway libertou-se e Prilicla desceu do tecto.
Não muito à vontade, Conway disse: — Creio que não pôde disparar comigo ali pendurado…
O tenente abanou a cabeça. — Sou um bom atirador, Doutor. Podia tê-lo atingido sem tocar em si. Mas ele gritava constantemente: «Socorro!» Essa espécie de coisa prejudica o estilo de um homem…