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Por um golpe de sorte ele viu o Dr. Mannein numa mesa vaga, no recinto dos Superiores. Mannen era um terrestre que fora o superior de Conway e agora era um Médico-Chefe, bem a caminho de atingir a categoria de diagnosticador. Estava autorizado a reter três gravações fisiológicas — A de um Tralthano especialista em microcirurgia e duas que tinham sido feitas por cirurgiões das espécies de baixa gravidade LSVO e MSVK — mas, apesar disso, as suas reacções eram razoavelmente humanas. Naquele momento ele estava a comer uma salada com os olhos voltados para o céu — e para o tecto da sala — para não ver o que comia. Conway sentou-se na frente dele e fez um ruído que exprimia simultaneamente simpatia e uma interrogação.
— Tive um Tralthano e um LSVO na minha lista esta tarde; dois trabalhos bem longos — disse Mannen, a custo. — Sabes como isto é, estou a pensar demasiado como eles. Se esses malditos Tralthanos não fossem vegetarianos ou se os LSVO não se sentissem agoniados perante qualquer coisa que não pareça alpista… Hoje és qualquer outra pessoa?
Conway abanou a cabeça, — Apenas eu próprio. Não te importas que coma carne?
— Não. Limita-te a não falar nela.
— Não falarei,
Conway conhecia demasiado bem a confusão, a dupla visão mental e a severa perturbação emocional que surgia quando uma gravação fisiológica se integrava excessivamente no espírito de um operador. Recordava-se de que apenas três meses antes se apaixonara loucamente — loucamente — por um grupo de especialistas visitantes de Melf IV. Os Melfanos eram ELNT, criaturas de seis pernas, anfíbias e vagamente semelhantes a caranguejos, e enquanto metade do seu espírito tinha insistido em que tudo aquilo era ridículo, a outra metade pensava amorosamente naquela carapaça maravilhosa e sentia-se como se uivasse à Lua.
As gravações fisiológicas eram decididamente uma bênção muito confusa, mas o uso delas era necessário porque nenhum ser isolado podia pensar em reter no cérebro todos os dados fisiológicos necessários para o tratamento dos pacientes num hospital multiambiental. A incrível massa de dados necessários para tomar cuidado deles era fornecida por meio de gravações do educador, que eram simplesmente os registos cerebrais! de grandes especialistas médicos das várias espécies. Se um doutor terrestre tivesse de tratar um paciente Kelgiano, tomava uma das gravações fisiológicas DBLF até que o tratamento estivesse completo, e depois apagava-a. Mas os Médico-Chefes com deveres de professor eram muitas vezes obrigados a reter essas gravações por longos períodos, o que não era de modo algum divertido.
A única coisa boa, do seu ponto de vista, era a de que eles estavam em melhor situação que os diagnosticadores.
Eram a elite do Hospital. Um diagnosticador era um daqueles raros seres cujo espírito era considerado suficientemente estável para reter permanentemente até dez gravações fisiológicas, ao mesmo tempo. Aos seus cérebros cheios de dados era dada a missão de investigação original na medicina xenológica e o diagnóstico e tratamento de doenças novas em formas de vida até então desconhecidas. Havia um princípio bem conhecido no Hospital que se dizia ter tido a sua origem no próprio O’Mara, e segundo o qual qualquer pessoa suficientemente sã para ser um diagnosticador era doido.
Os dados fisiológicos não eram a única coisa que as gravações imprimiam: as memórias completas e a personalidade da entidade que possuía esse conhecimento também eram impressas no cérebro receptor. Na verdade um diagnosticador que sujeitava a si próprio à mais drástica forma de esquizofrenia múltipla, com as personalidades alienígenas que compartilhavam o seu espírito tão completamente diferentes que em muitos casos nem sequer tinham um sistema de lógica em comum.
Conway fez regressar os seus pensamentos àquele lugar e àquele momento. Mannen falava de novo.
— Uma coisa curiosa com o sabor dia salada é a de que nenhum dos meus outros alter-egos parecem preocupasse com isso — disse ele, sempre a olhar para o tecto. — A Visão sim, mas não o sabor. Não gostam muito dela, mas não sentem repugnância. Ao mesmo tempo, há espécies que têm uma tremenda paixão por ela. E falando de tremendas paixões, como vai isso entre ti e a Murchison?
Qualquer dia ouvir-se-iam as engrenagens a partir os dentes, da maneira como Mannen fazia tão depressa as mudanças.
— Se tiver tempo, vê-la-ei esta noite — respondeu ele cuidadosamente. — Entretanto, somos apenas bons amigos.
— Ah — disse Mannen.
Conway mudou de assunto com igual violência, falando apressadamente da sua nova missão. Mannen era o melhor do mundo, mas tinha o doloroso hábito de pregar rasteiras às pessoas. Conway conseguiu manter a conversa afastada de Murchison durante o resto da refeição.
Tão depressa se separou de Mannen dirigiu-se ao intercomunicador e falou com os médicos das várias espécies que iriam passar a instruir os alunos, depois: do que olhou para o relógio. Faltava quase uma hora para embarcar na Vespasian. Começou a caminhar um pouco mais apressadamente do que era próprio de um Médico-Chefe…
A tabuleta sobre a entrada dizia: «Piso de Recreio, Espécies DBDG, DBLF, ElNT, GKNM & FGLI». Conway entrou, trocou a bata por uns calções e começou a procurar a enfermeira Murchison.
Uma iluminação hábil e uma decoração realmente inspirada dava ao piso de recreio a ilusão de um espaço tremendo. O efeito geral era o de uma pequena praia tropical entre duas arribas, aberta para o mar que se estendia até um horizonte que uma névoa de calor tornava indistinto. O céu era azul e sem nuvens — Os efeitos realistas de nuvens eram difíceis de reproduzir, segundo lhe dissera um engenheiro da manutenção — e a água da baia era de um azul carregado, coto tons turquesa. Batia contra a praia dourada, ligeiramente inclinada, cuja areia era quase demasiado quente para os pés. Só o sol artificial, que era demasiado avermelhado para o gosto de Conway, e as verduras alienígenas sobre a praia e as arribas, impediam que ela parecesse como uma baía tropical em qualquer parte da Terra.
Mas o espaço era precioso no Geral do Sector, e as pessoas que trabalhavam juntas, ali, tinham de se divertir juntamente também.
O aspecto mais efectivo, ainda que completamente invisível, daquele lugar, era o facto de ele ser mantido a metade da gravidade normal. Meio G significava que as pessoas fatigadas podiam repousar mais confortavelmente, e aquelas que se sentiam cheias de vigor podiam sentir-se ainda mais vigorosas, pensou Conway, amargamente, enquanto uma onda forte mas lenta avançava pela praia e se quebrava sobre os seus joelhos. A turbulência na baía não era produzida artificialmente, mas variava na proporção do tamanho, número e entusiasmo dos banhistas que a usavam.
Projectando-se de uma das arribas havia uma Série de plataformas de mergulho, ligadas por túneis ocultos. Conway subiu à plataforma mais alta, de quinze metros, e dai tentou encontrar uma DBDG fêmea com um fato de banho branco, de apelido Murchison.
Não estava no restaurante da outra arriba, nem nas águas pouco profundas junto à praia, nem na água verde-escura sob as plataformas de salto. A areia estava coberta de formas reclinadas que eram grandes e pequenas, coriáceas, escamudas e peludas — mas Conway não tinha dificuldade em distinguir os DBDG terrestres porque eram os únicos seres inteligentes da Galáxia com o tabu da nudez. Sabia que toda a gente que usava roupas, mesmo que muito poucas, era o que ele considerava um ser humano.
Subitamente, viu de relance um pouco de branco parcialmente oculto por duas manchas, uma verde e outra amarela, que a ladeavam. Devia ser a Murchison, sem dúvida. Tomou uma referência rápida e voltou para trás.
Quando Conway se aproximou da multidão que rodeava Murchison, dois homens do Corpo e um interno do piso oitenta e sete afastaram-se com uma relutância óbvia. Numa voz que, com seu desgosto, se tornara mais aguda, ele disse: — Olá! Desculpa-me por ter chegado atrasado.
A Murchison fez uma pala sobre os olhos e levantou a cabeça. — Acabo também de chegar — disse ela, com um sorriso. — Porque é que não te deitas?
Conway deitou-se na areia, mas continuou apoiado num cotovelo, a olhar para ela.
A Murchison possuía uma combinação de características físicas que tornava impossível para um membro masculino do pessoal terrestre olhar para ela de uma maneira clínica, e a exposição regular ao sol artificial mas rico em raios ultravioletas dera-lhe um bronzeado profundo, tornado ainda mais rico pelo perturbador contraste comi o seu fato de banho branco. Os cabelos castanhos-escuros agitavam-se perante a brisa artificial, e ela tinha os olhos novamente fechados e os lábios ligeiramente entreabertos. A respiração era lenta e profunda, como a de uma pessoa perfeitamente repousada ou adormecida, e as coisas que ela fazia ao fato de banho faziam também coisas a Conway. Pensou subitamente que se ela fosse telepata naquele momento se levantaria e correria para salvar a vida…
Abrindo um olho, ela disse: — Parece que queres soltar um rugido e bater com os punhos no peito acabado de rapar…
— Não é rapado — protestou Conway. — A falta de pêlos é natural. Mas quero que estejas séria por um momento. Gostaria de te falar a sós. Quer dizer…
—> Importo-me pouco com peitos, portanto não te sintas atrapalhado por isso.
— Não me sinto — disse Conway. — Não nos podemos ver livres deste jardim zoológico?… Oh, um estoiro!
Estendeu o braço rapidamente, cobrindo os olhos dela, ao mesmo tempo que cobria os dele.
Dois Tralthanos, com um total de doze pés elefantinos, passaram a poucos metros deles e mergulharam na água, fazendo saltar areia e água num raio de cinquenta metros. As condições de meio G que permitiam aos normalmente lentos e maciços FGLI cabriolar como cordeiros permitia também que a areia que eles lançavam ao ar ficasse nele suspensa por muito tempo. Quando Conway se certificou de que os últimos grãos já tinham caído, tirou a mão dos olhos da Murchison. Mas não inteiramente.
Hesitando, e de uma maneira um tanto ou quanto acanhada, deslizou a mão sobre o suave contorno do rosto dela até a colocar sob o queixo. Depois, lentamente mergulhou os dedos no macio emaranhado dos caracóis, atrás da orelha da jovem. Sentiu-a tornar-se hirta para depois logo se acalmar.
— Estás a ver o que te queria dizer? — Disse ele, com a boca seca. — A menos que gostes destes monstros de meia tonelada a atirarem areia para a tua cara…
A Murchison disse, a rir-se: — Estaremos sós logo, quando me fores levar a casa…
— E então que acontecerá? — disse Conway desgostoso. — A mesma coisa que da última vez. Iremos pé ante pé até à tua porta, para não acordar a tua companheira que tem de entrar de serviço cedo, e depois esse maldito servo aparecerá aos trambolhões… — Furioso Conway começou a imitar a voz gravada do autómato. — … Percebo que vocês são criaturas de classificação DHDG e são de géneros diferentes, e noto mais que estiveram estreitamente justapostos durante dois minutos e quarenta e oito segundos. Nessa circunstância devo respeitosamente recordar-vos a Regra Vinte e Um, Subsecção Três, sobre o tratamento das visitas nos Aposentos das Enfermeiras DBDG…
Quase a sufocar de riso, a Murchison disse: — Lamento muito. Deve ter sido uma grande frustração para ti.
Conway pensou com amargura que a expressão de piedade fora um tanto ou quanto estragada pela gargalhada reprimida que a precedera. Inclinou-se mais e pegou-a pelo ombro. Disse: — Foi e é. Quero falar contigo e não terei tempo para te acompanhar a casa esta noite. Mas não quero falar aqui: foges sempre para a água quando te vês entalada. Bem, quero mesmo entalar-te… e fazer-te algumas perguntas sérias. Isto de sermos simples amigos está a dar cabo de mim…
A Murchison abanou a cabeça. Tirou a mão dele do ombro dela, apertou-a e disse: — Vamos nadar.
Segundos depois, enquanto a perseguia nas ondas, ele perguntou a si próprio se ela no fim, não seria um pouco telepata. Por certo que nadava com uma rapidez suficiente,
A meio G a natação era uma coisa maravilhosa. As ondas eram altas e curtas e o mais pequeno salpico parecia ficar no ar durante segundos, enquanto as gotas brilhavam vermelhas e cor de âmbar ao sol. Um mergulho mal executado por uma das formas de vida mais pesadas — os FGLI, em especial, tinham muito ventre a virar — podia causar efeitos verdadeiramente espectaculares. Conway bracejava loucamente atrás da jovem, na frente de uma dessas vagas titânicas, quando um altifalante começou a rugir na arriba.
— Doutor Conway — berrou ele. — Doutor Conway, apresente-se na Escotilha Dezasseis para embarcar, por favor…
Iam a caminhar apressadamente pela praia quando a Murchison disse, muito seriamente para os hábitos dela: — Não sabia que ias partir Vou mudar de roupa e irei despedir-me de ti.
Na antecâmara da escotilha havia um oficial do Corpo de Monitores. Quando viu que Conway tinha companhia disse: — Dr. Conway? Partimos dentro de quinze minutos, senhor — e desapareceu tacticamente. Conway parou perante o tubo de transferência e a jovem fez o mesmo. Ela olhou para ele mas não havia qualquer expressão particular no seu rosto, apenas belo e muito atraente. Conway começou a falar-lhe da sua nova e importante missão, ainda que não quisesse falar de nada disso. Falou rápida e nervosamente até que ouviu o oficial de Monitores voltar através do tubo. Então puxou com força a Murchison contra ele e beijou-a também com força,
Não conseguiu saber se ela lhe correspondera. Tudo fora muito súbito, muito pouco suave…
— Estarei fora três meses — disse ele, numa voz que tentava explicar e desculpar-se simultaneamente. Depois, com uma ligeireza forçada, concluiu: — E de manhã não sentirei nem um bocadinho de remorso.