124719.fb2
Conway foi acompanhado ao seu camarote por um oficial que usava um caduceu de médico sobre a sua insígnia e que se apresentou como sendo o major Stillman. Ainda que falasse calma e cortesmente, Conway teve a impressão de que o major não era pessoa que se impressionasse com alguma coisa ou pessoa. Disse que o comandante gostaria de falar com Conway na sala de comando depois de fazer o primeiro «salto», para lhe dar pessoalmente as boas-vindas a bordo.
Pouco depois; Conway encontrou-se com o coronel Williamson, o comandante da nave, que lhe concedeu liberdade de movimentos. Era uma cortesia rara numa nave do Governo, e impressionou Conway, mas ele não tardou a descobrir que, ainda que ninguém lhe dissesse nada, ele viu-se simplesmente no caminho de toda a gente que estava na sala de comando e perdeu-se por duas vezes no interior da nave. O cruzador pesado Vespasiam, dos Monitores, era muito maior do que Conway pensara. Depois de ser guiado de volta por um homem do Corpo com um rosto demasiado Inexpressivo, decidiu que passaria a maior parte do tempo da viagem na sua cabina familiarizando-se com a sua nova missão.
O coronel Williamson dera-lhe cópias das informações mais pormenorizadas e recentes que tinham chegado através dos canais do Corpo de Monitores, mas ele começou por estudar o que O’Mara lhe dera.
A criatura chamada Lonvellin ia a caminho de um mundo sobre o qual ouvira rumores muito desagradáveis, num sector praticamente inexplorado da Pequena Nuvem de Magalhães quando adoecera e fora levado ao Geral do Sector. Pouco depois de ter sido designado curado recomeçara a viagem e algumas semanas depois entrara em contacto com o Corpo. Declarara que as condições que encontrara no mundo eram sociologicamente complexas e medicamente bárbaras, e que seria necessário auxílio no aspecto médico antes que ele pudesse actuar eficientemente contra as muitas doenças sociais que afligiam aquele planeta verdadeiramente desgraçado. Perguntara também se algumas criaturas com a classificação fisiológica DBDG poderiam ser enviadas para actuarem como colectoras de informações porque os nativos eram dessa classificação e mostravam-se violentamente hostis a toda a vida que não fosse do planeta, um facto que prejudicava seriamente as actividades de Lonvellin.
A circunstância de Lonvellin pedir auxílio era surpreendente só por si, em vista da enorme inteligência e da experiência da sua espécie na solução de vastos problemas sociológicos. Mas naquele caso as coisas tinham tomado um rumo desastroso, e Lonvellin estava demasiado ocupado com o uso da sua ciência defensiva para poder fazer mais alguma coisa…
Segundo o relatório de Lonvellin ele começara por observar o planeta do espaço durante muitas rotações, analisando as emissões de rádio através do seu Tradutor e tomando nota, em particular, do baixo nível de industrialização que contrastava tão estranhamente com a existência de um espaço porto em funcionamento. Quando colhera e analisara todas as informações que julgara necessárias, escolhera o que pensara ser o melhor locai para pousar.
Pelos dados que possuía, Lonvellin julgara que o mundo — o seu nome nativo era Etla — fora uma colónia outrora próspera que entrara em decadência por razões económicas e que tinha muito poucos contactos com o exterior. Mas tinha alguns, o que significara que a primeira e em geral mais difícil tarefa de Lonvellin, a de levar os nativos a confiar numa estranha e talvez visualmente horrível criatura que caíra do céu, fora grandemente simplificada. Aquela gente sabia da existência de extraterrestres. Portanto ele desempenharia o papel de um pobre extraterrestre, assustado e um pouco estúpido, que fora forçado a pousar para reparar a sua nave. Para isso seriam necessários vários pedaços completamente inúteis de metal ou rocha, e fingir grande dificuldade em levar os Etlanos a compreenderem o que ele pretendia. Mas por pedaços de coisas sem valor ele podia trocar artigos de grande valor, e não tardaria que os nativos mais empreendedores soubessem disso.
Nessa fase Lonvellin esperava ser explorado desavergonhadamente, mas não se importou. A pouco e pouco as coisas mudariam. Em vez de lhes dar coisas de valor, oferecer-se-ia para lhes prestar serviços ainda mais valiosos. Dir-lhes-ia que a sua nave era irreparável e a pouco e pouco acabaria por ser aceite como um residente permanente. Depois disso, tudo seria uma questão de tempo, e o tempo era uma coisa de que Lonvellin estava particularmente bem fornecido.
Pousara junto a uma estrada que passava entre duas pequenas cidades e não tardou a ter oportunidade de se revelar a uni nativo. O nativo, apesar do cuidadoso contacto de Lonvellin e de muitas palavras de acalmia através do Tradutor, fugiu. Poucas horas depois, projécteis pequenos e grosseiros com cargas químicas começaram a cair sobre a nave, enquanto toda a área em volta, que era densamente arborizada, foi saturada com produtos químicos voláteis e incendiada.
Lonvellin fora incapaz de prosseguir sem saber porque seria que aquela espécie, que tinha experiência de viagens espaciais, era tão cegamente hostil aos extraterrestres, e como não podia fazer perguntas pessoalmente pedira a ajuda dos humanos terrestres. Pouco depois, os especialistas de Contacto Alienígena do Corpo de Monitores tinham chegado, medido a situação e desembarcado.
Muito à vontade.
Descobriram que os nativos tinham um medo terrível dos extraterrestres porque acreditavam que eles eram portadores de doenças. O que era muito mais peculiar era o facto de eles não se preocuparem com os visitantes da sua própria espécie ou da uma espécie muito semelhante, cujos membros tinham afinal, mais probabilidades de transmitirem doenças. Era um facto médico bem conhecido que as doenças que afligiam os extraterrestres não eram transmissíveis aos membros de outras espécies planetárias. Qualquer espécie que conhecesse o» voo interstelar devia saber isso, pensou Conway. Era a primeira coisa que uma cultura interstelar aprendia.
Estava a tentar extrair qualquer sentido dessa estranha contradição, usando um cérebro fatigado e alguns trabalhos volumosos sobre o programa de colonização da Federação, quando a chegada de Stillman trouxe uma bem-vinda interrupção.
— Chegaremos daqui a três dias, Doutor — disse o major. — Creio que chegou o momento de aprender alguma coisa sobre espionagem. Quero dizer que tem de aprender a vestir roupas etlanas. São muito atraentes, ainda que pessoalmente eu não tenha joelhos para usar saiotes…
Stillman explicou que Etla fora contactada em dois níveis. Num eles tinham pousado secretamente e depois tinham usado a linguagem e as roupas nativas, sem necessidade de qualquer outro disfarce porque a semelhança fisiológica era muito estreita. A maior parte das suas informações posteriores fora obtida dessa maneira, e até então nenhum dos agentes fora descoberto. No outro nível, os homens ido Corpo tinham confessado a sua origem extraterrestre, falando através do Tradutor, e a sua história fora a de que tinham sabido dos males da; população nativa e tinham vindo prestar assistência médica. Os Etlanos tinham aceitado a história, revelando o facto de ofertas semelhantes de auxílio haverem sido feitas no passado, e de que uma nave do Império era para ali enviada de tempos a tempos com os mais modernos medicamentos, mas apesar disso toda a situação médica continuava a piorar. Os homens do Corpo tinham sido bem recebidos, mas a impressão dada pelos Etlanos eira a de que os consideravam como outro grupo de azelhas bem intencionados.
Naturalmente, quando o assunto da descida de Lonvellin veio à fala, o Corpo teve ide aparentar uma ignorância completa, e as opiniões expressas situaram-se fortemente numa posição mediana.
Stillman acentuou-lhe que se tratava de um problema muito complexo, e se tornava pior com cada relatório enviado pelos agentes secretos. Mas Lonvellin tinha um belo plano para acabar com tudo aquilo. Quando Conway o ouviu, desejou subitamente não ter impressionado Lonvellin com o seu talento médico. Gostaria muito mais de voltar para o Hospital, naquele momento. Ser tornado responsável pela organização da cura de uma população planetária inteira dava-lhe uma sensação estranha a meio do ventre…
Etla estava repleta de doença e sofrimento e de ideias estreitas e supersticiosas; a sua reacção a Lonvellin dava uma imagem chocante da sua intolerância perante espécies que não se assemelhavam à nativa. As duas primeiras características desenvolviam a terceira, que por sua vez piorava as duas primeiras. Lonvellin tinha esperanças de quebrar esse círculo vicioso causando uma melhoria acentuada na saúde da população — uma melhoria que pudesse ser notada mesmo pelo mais estúpido e preconceituoso nativo. Então os homens do Corpo confessariam publicamente que tinham actuado sob as ordens de Lonvellin, o que deveria levar os nativos a envergonharem-se do seu ódio aos extraterrestres. Durante o aumento temporário de tolerância que se seguiria, Lonvellin começaria a tentar ganhar a confiança deles e por fim entraria no seu plano original a longo prazo, para os tornar de novo numa cultura sã, feliz e progressista.
Conway disse a Stillman que não era perito nesses assuntos, mas que o plano lhe parecia muito bom.
Stillman respondeu: — Eu sou-o e é. Se resultar.
No dia seguinte ao previsto para a chegada, o comandante pediu a Conway para ir à Sala de Comando por uns minutos. Estavam, a calcular a sua posição para darem o «salto» final e a nave emergira relativamente perto de um sistema binário, uma estrela do qual era uma variável ide curto período.
Maravilhado, Conway pensou que era a espécie de espectáculo que tornava as pessoas pequenas e solitárias, levando-as a sentirem a necessidade de se juntarem urnas às outras e de falarem para restabelecer a sua identidade perante toda aquela magnificência. As barreiras conversacionais abateram-se e o comandante Williamson começou imediatamente a falar com Conway em tons que sugeriam três coisas — que o comandante, no fim de tudo, podia ser humano, que tinha cabelos e que os ia deixar baixar um pouco.
— Dr. Conway — começou ele a dizer, num tom apologético. — não pense que estou a criticar Lonvellin, Em particular porque foi um paciente seu e talvez seja também seu amigo. Nem quero que pense que estou aborrecido por ele ter um cruzador da Federação e outras naves mais pequenas a fazer recados piara ele. Não é isso…
Williamson tirou o boné e endireitou a cinta com o polegar. Conway viu um pouco de cabelo grisalho, ralo, e uma testa com profundas rugas, até então escondidas pela pala do boné. O boné voltou ao seu lugar e ele tornou-se novamente num oficial superior, calmo e eficiente.
— … Para falar sem rodeios. Doutor — prosseguiu ele — Lonvellin é aquilo a que chamamos um amador bem dotado. Essa gente arranja sempre problemas para nós, os profissionais, perturbando as programações e outras coisas. Mas isso também não me preocupa, porque a situação que Lonvellin descobriu ali precisa sem dúvida de que se faça qualquer coisa. Aquilo que eu quero sublinhar é que, além das nossas tarefas de exploração, colonização e manutenção da ordem, estamos habituados a resolver problemas sociológicos como este, ainda que ao mesmo tempo eu deva confessar que não há ninguém dentro do Corpo que tenha a habilidade de Lonvellin. Nem podemos de momento sugerir qualquer plano melhor que o sugerido por Lonvellin…
Conway perguntou a si próprio sei o comandante estava a querer chegar a qualquer coisa ou se estava apenas a desabafar. Williamson não lhe parecera ser homem para queixumes.
O comandante terminou apressadamente: —… Sendo a pessoa com maior responsabilidade depois de Lonvellin neste projecto, é justo que saiba o que pensamos, assim como o que estamos a fazer. O número de pessoas que temos a trabalhar em Etla é quase o dobro do que Lonvellin conhece, e vêm mais a caminho. Pessoalmente, tenho o maior respeito pelo nosso amigo de longa vida, mas não consigo deixar de pensar que a situação é mais complexa do que o próprio Lonvellin pensa.
Conway manteve-se silencioso por um momento e depois disse: — Gostava de saber porque é que uma nave como a Vespasian está a ser usada no que é na essência um projecto de estudos culturais. Pensa que a situação é também… mais perigosa?
— Sim — respondeu o comandante.
Nesse momento a tremenda estrela dupla que o visor mostrava desapareceu e foi substituída pela de um sol normal do tipo G e, a cento e sessenta milhões de quilómetros, o pequeno crescente do planeta que era o seu destino. Antes que Conway pudesse fazer qualquer das perguntas que estava ansioso por fazer, o comandante informou-o de que tinham completado o «salto» final, que daí até à descida ele seria um homem muito atarefado, e acabou por o pôr muito delicadamente fora da sala com o conselho de que dormisse tanto quanto possível antes de pousar.
De volta ao seu camarote, Conway despiu-se, pensativo e, como uma parte do seu espírito teve o prazer de verificar, quase automaticamente. Tanto Stillman corno ele tinham usado durante os últimos dias o traje Etlano — blusa, saiote e uma cinta com bolsas, uma boina e uma capa que descia até meio da perna e que se destinava a ser usada ao ar livre. Sentia-se agora completamente à vontade nele, até quando jantava com os oficiais da Vespasian. De momento, a única coisa que o incomodava eram as últimas palavras ditas pelo comandante.
Williamson pensava que a situação em Etla era suficientemente perigosa para justificar o uso de uma nave de combate das maiores que o Corpo de Monitores possuía. Porquê? Onde estava o perigo?
Por certo que não havia nada semelhante a uma ameaça militar em Etla. O pior que os Etlanos poderiam fazer era o mesmo que tinham feito à nave de Lonvellin, e isso apenas magoara os sentimentos da criatura. O que significava que o perigo vinha de qualquer coisa exterior.
Subitamente, Conway pensou que sabia o que era que preocupava o comandante. O Império…
Alguns dos relatórios continham referências ao Império. Até aí era a grande incógnita. As naves de exploração do Corpo de Monitores não tinham estabelecido qualquer contacto com ele, o que não era surpreendente porque aquele sector da Galáxia não devia estar programado para qualquer levantamento cartográfico nos cinquenta anos seguintes, e ninguém teria lá entrado se não tivesse havido problema com o projecto de Lonvellin. Tudo quanto se sabia sobre o Império era que Etla fazia parte dele, e que enviava socorros médicos a intervales muito longos.
Para o espírito de Conway a qualidade do auxílio e os intervalos entre a sua chegada diziam muitas coisas tristes sobre as pessoas responsáveis pelo seu envio. Não podiam ser medicamente avançados, pois que se o fossem os remédios que enviavam teriam detido, mesmo que temporariamente, algumas das epidemias que varriam Etla nessas ocasiões. E quase por certo que eram pobres, pois que se não o fossem as naves chegariam a intervalos mais curtos. Conway não ficaria surpreendido se o misterioso Império não fosse mais que um mundo-mãe e algumas colónias periclitantes, como Etla. Mas o mais importante de tudo era que um Império que regularmente enviava auxílio à sua desgraçada colónia, fosse ele grande, médio ou pequeno, não parecia a Conway que pudesse ser particularmente malévolo ou perigoso. Pelo contrário pelo que sabia parecia-lhe de louvar tal Império.
Enquanto se rebolava na cama, pensou que o comandante Williamson tinha uma predisposição especial para se preocupar demasiado.