125352.fb2 O Fim da Inf?ncia - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 5

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IIIA última geração

— Olhe para isto! — explodiu George Greggson, jogando o jornal para Jean. Apesar dos esforços dela para interceptá-lo, foi pousar bem no meio da mesa de café. Jean limpou pacientemente a geléia e leu o trecho que tanto indignara George, procurando mostrar também indignação. Geralmente, não conseguia, porque na maior parte das vezes concordava com os críticos. Costumava, porém, guardar para si mesma as opiniões heréticas e não apenas para manter a paz e o sossego. George estava perfeitamente pronto a aceitar elogios dela (ou de qualquer pessoa), mas, se Jean fizesse alguma crítica a seu trabalho, podia se preparar para ouvir um esmagador discurso sobre sua ignorância em matéria de arte.

Leu a crítica duas vezes e desistiu. Parecia-lhe muito favorável.

— Parece que ele gostou. Por que você está resmungando tanto?

— Por causa disto — rosnou George, indicando com o dedo o meio da coluna. — Leia de novo!

— «Foram particularmente refrescantes para os olhos os delicados tons de verde do cenário do número de balé.» E daí?

— Daí que não eram tons de verde! Gastei um tempo enorme para conseguir aquele tom de azul! E tudo isso para quê? Ou algum maldito engenheiro da sala de controle estragou todo o equilíbrio das cores, ou esse idiota do crítico tem uma televisão com defeito. Ei, qual a cor que apareceu no nosso televisor?

— Não me lembro — confessou Jean. — A menina começou a gritar bem nessa hora e eu tive que ir ver o que havia.

— Oh! — murmurou George, aparentemente serenado. Mas Jean sabia que, a qualquer momento, outra explosão ocorreria. Quando, por fim, ela veio, foi surpreendentemente suave.

— Inventei uma nova definição para a TV — resmungou ele. — Cheguei à conclusão de que é um meio de dificultar a comunicação entre o artista e a audiência.

— E o que é que você pensa fazer? — retrucou Jean. — Voltar ao teatro?

— E por que não? — perguntou George. — É exatamente nisso que estou pensando. Sabe aquela carta que recebi do pessoal de Nova Atenas? Voltaram a escrever. Dessa vez vou responder.

— É mesmo? — disse Jean, alarmada. — Eles me parecem uma turma de malucos.

— Bem, só há um jeito de descobrir se são ou não. Pretendo ir visitá-los na próxima quinzena. Devo dizer que a literatura deles é perfeitamente sensata. E há muito boa gente lá.

— Se você pensa que vou começar a cozinhar num fogão de lenha ou me vestir de peles, está muito…

— Ora, não seja boba! Essas histórias não passam de boatos. A colônia tem tudo o que é preciso para uma vida civilizada. Só não há luxo. De qualquer maneira, faz uns dois anos que não vou ao Pacífico. Acho que vai ser uma boa mudança de ares para nós.

— Nisso concordo com você — disse Jean. — Mas não pretendo ver o garoto e a menina transformados num casal de selvagens polinésios.

— Não há perigo — replicou George. — Isso eu lhe prometo.

E tinha razão, embora não do jeito que ele previa.

— Como deve ter notado, quando sobrevoou a colônia — disse o homenzinho, no outro lado da varanda —, ela consiste em duas ilhas, unidas por uma espécie de estrada. Esta é Atenas, à outra demos o nome de Esparta. É uma ilha rochosa e selvagem, um lugar ótimo para a prática de esportes. — Seu olhar caiu momentaneamente na cintura de George, que se remexeu, embaraçado, na cadeira de vime.

— A propósito, Esparta é um vulcão extinto. Pelo menos, é o que afirmam os geólogos.

«Mas voltemos a Atenas. A idéia da colônia, como já deve ter percebido, é formar um grupo cultural estável e independente, com tradições artísticas próprias. Devo lhe dizer que, antes de partirmos para a criação da colônia, passamos muito tempo pesquisando. Trata-se, realmente, de uma experiência de engenharia social, baseada numa matemática muito complexa, que não tenho a pretensão de compreender. Tudo o que sei é que os sociólogos matemáticos computaram o tamanho ideal da colônia, os tipos de pessoas que ela deveria conter e, acima de tudo, que tipo de constituição deveria ter, a fim de garantir uma estabilidade a longo prazo.

«Somos governados por um conselho de oito diretores, representando a produção, a energia, a engenharia social, as artes, a economia, as ciências, os esportes e a filosofia. Não há um presidente permanente. Cada um dos diretores ocupa a presidência num sistema de rotatividade, pelo espaço de um ano.

«Atualmente, nossa população ultrapassa um pouco os cinqüenta mil, quase o ideal. É por isso que continuamos aceitando recrutas. E, naturalmente, em certos campos mais especializados, ainda não somos auto-suficientes.

«Aqui, nesta ilha, tentamos salvar algo da independência humana, das tradições artísticas da humanidade. Não temos nada contra os Senhores Supremos; queremos simplesmente ter paz para poder seguir nosso caminho. Quando eles destruíram as velhas nações e o modo de vida que o homem conhecera desde o início da história acabaram com muitas coisas boas, juntamente com as más. O mundo é agora plácido, incaracterístico e culturalmente morto; nada de realmente novo foi criado desde a chegada dos Senhores Supremos. E a razão é mais do que óbvia. Não há mais nada por que lutar e existem demasiadas distrações e diversões. Já pensou que, todos os dias, umas quinhentas horas de rádio e televisão são transmitidas pelos vários canais? Se uma pessoa resolvesse não dormir e não fazer mais nada, mesmo assim não poderia acompanhar mais do que um vigésimo dos diversos tipos de diversão que nos são apresentados ao mero girar de um botão! Não admira que as pessoas se venham transformando em esponjas passivas — absorvendo e não criando. Sabia que o tempo médio passado por uma pessoa em frente da televisão é, agora, de três horas por dia? Em breve as pessoas não terão mais vida própria. Vão passar a vida acompanhando os diversos seriados e novelas apresentados pela televisão!

«Aqui em Atenas as diversões têm hora. Além disso, não são enlatadas, e sim ao vivo. Numa comunidade desse tamanho, é possível ter uma participação quase completa da audiência, com tudo o que isso representa para os executantes e os artistas. Aliás, contamos com uma ótima orquestra sinfônica, que pode ser cotada entre as seis melhores do mundo.

«Mas não quero que se deixe levar apenas pelas minhas palavras. Geralmente, os candidatos a membros de nossa colônia ficam aqui alguns dias para ver se gostam. Se se resolvem a vir para cá, damos-lhes uma bateria de testes psicológicos, que representam nossa principal linha de defesa. Cerca de um terço dos candidatos são rejeitados, quase sempre por razões que não se refletem sobre eles e que não teriam importância fora daqui. Os que passam voltam para arrumar suas coisas, antes de se estabelecerem definitivamente. Às vezes mudam de idéia a essa altura dos acontecimentos, mas isso é muito raro e quase sempre por razões pessoais, que escapam a seu controle. Nossos testes são agora, por assim dizer, cem por cento eficientes; as pessoas que passam são as que desejam mesmo vir para cá.»

— E se alguém muda de idéia mais tarde? — perguntou Jean, apreensiva.

— Pode ir embora. Não há nenhum entrave. Já aconteceu uma ou duas vezes.

Fez-se longo silêncio. Jean olhou para George, que ali-sava, pensativo, as costeletas em moda nos círculos artísticos. Desde que não fechassem todas as portas atrás deles, ela não se preocupava. A colônia parecia um lugar bem interessante e não tão louco quanto ela temia. Além do mais, as crianças iam adorar. Foi isso, no fim, o que mais pesou.

Mudaram-se seis semanas mais tarde. A casa, de um só andar, era pequena, mas chegava para uma família que não pretendia ter mais que quatro membros. Todos os aparelhos básicos destinados a economizar esforços faziam parte da casa; pelo menos, pensou Jean, não havia o perigo de voltar à era da escravidão doméstica. Ficou, porém, um pouco preocupada ao descobrir que a casa tinha cozinha. Numa comunidade daquele tamanho, seria normal ligar para a Central de Alimentos, esperar cinco minutos e receber a refeição escolhida. A individualidade era uma grande coisa, mas Jean temia que fosse levada a extremos imprevisíveis. E se lhe coubesse fazer as roupas da família, além de lhes preparar as refeições? Mas não havia roca de fiar entre o lava-pratos automático e a tela de radar, de modo que a coisa não podia ser tão má assim…

Naturalmente, o resto da casa parecia ainda muito nu. Eles eram seus primeiros ocupantes e levaria algum tempo para que aquela aparência de coisa nova e desinfetada se transformasse num lar cheio de calor humano. Sem dúvida as crianças apressariam essa transformação. Já havia (embora Jean ainda não soubesse) uma pobre vítima de Jeffrey expirando na banheira, resultado da ignorância do garoto quanto à diferença fundamental entre água doce e água salgada.

Jean aproximou-se da janela ainda sem cortinas e olhou, através dela, para a colônia. Não havia dúvida de que era um lugar muito bonito. A casa erguia-se nas vertentes ocidentais da colina que dominava — graças à ausência de quaisquer rivais — a ilha de Atenas. A dois quilômetros para o norte, podia ver a passarela — uma faixa estreita, dividindo a água — que levava a Esparta. Essa ilha rochosa, com seu cone vulcânico ameaçador, contrastava de tal maneira com aquele lugar pacífico, que ela às Vezes se assustava, pensando que os cientistas poderiam enganar-se ao dizerem que o vulcão estava extinto e não voltaria a despertar e a engolfá-los a todos.

Uma silhueta cambaleante, subindo a vertente junto à sombra formada pelas palmeiras, sem ligar para a estrada, atraiu-lhe a atenção. Era George, voltando de sua primeira conferência. Estava na hora de pôr de lado os sonhos e se ocupar com as coisas da casa.

Um estrondo metálico anunciou a chegada da bicicleta de George. Jean ficou pensando quanto tempo levaria para os dois aprenderem a andar nela. Aquele era outro aspecto inesperado da vida na ilha. Não eram permitidos carros particulares, coisa, na verdade, desnecessária, pois a maior distância que se podia percorrer em linha reta era inferior a quinze quilômetros. Havia vários veículos a serviço da comunidade: caminhões, ambulâncias e carros de bombeiros, todos eles restritos, exceto em casos de emergência, a cinqüenta quilômetros por hora. Em decorrência disso, os habitantes de Atenas tinham ocasião de fazer um bocado de exer- cício, as ruas eram descongestionadas, e não havia acidentes de trânsito.

George beijou a mulher e deixou-se cair, com um suspiro de alívio, na poltrona mais próxima.

— Puxa! — exclamou, enxugando a testa. — Todo mundo me passou na subida da colina, de modo que espero me acostumar também. Acho que já emagreci uns dez quilos.

— Que tal foi seu dia? — perguntou Jean, como boa esposa. Esperava que George não estivesse tão exausto que não pudesse ajudá-la a tirar as coisas dos caixotes.

— Muito estimulante. Naturalmente, não me lembro da metade das pessoas que me foram apresentadas, mas achei-as todas muito agradáveis. E o teatro é tão bom quanto eu esperava. Vamos começar a trabalhar na semana que vem, montando a peça de Bernard Shaw Back to Methuse-lah. Vou ficar com os cenários. Vai ser uma novidade, não ter uma dúzia de pessoas me dizendo o que não posso fazer. É, acho que vamos gostar disso aqui.

— Apesar das bicicletas?

George reuniu energia suficiente para sorrir.

— É — disse ele. — Daqui a duas semanas, não vou nem notar que moramos numa colina.

Não acreditava no que dizia, mas não se enganava. Não obstante, passou-se mais um mês antes que Jean deixasse de lamentar a falta de um carro e descobrisse todas as coisas que se podiam fazer em sua própria cozinha.

Nova Atenas não tinha crescido natural e espontaneamente como a cidade cujo nome tomara de empréstimo. Tudo na colônia fora planejado e era resultado de muitos anos de estudos realizados por um grupo de homens extraordinários. Começara como uma conspiração aberta contra os Senhores Supremos, num desafio implícito a sua política, senão a seu poderio. A princípio, os patrocinadores da colônia tinham tido quase a certeza de que Karellen lhes frustraria os planos, mas o supervisor nada fizera — absolutamente nada. Isso não era tão tranqüilizador quanto se poderia esperar. Karellen dispunha de muito tempo; podia estar preparando um contragolpe retardado. Ou estar tão certo do fracasso do projeto, que não visse necessidade de tomar quaisquer medidas contra ele.

A maioria das pessoas previra o fracasso da colônia. Contudo, mesmo no passado, antes que houvesse um conhe- cimento real da dinâmica social, houvera muitas comunidades com finalidades especificamente religiosas ou filosóficas. Muitas delas tinham, era verdade, fracassado, mas algumas haviam conseguido sobreviver. E as bases de Nova Atenas pareciam seguramente assentes nos princípios da ciência moderna.

Havia muitas razões para escolher uma ilha como localização, principalmente de ordem psicológica. Numa era de transporte aéreo universal, o oceano não mais significava uma barreira física, mas ainda transmitia uma sensação de isolamento. Além disso, uma área limitada tornava impossível muita gente viver na colônia. A população máxima estava fixada em cem mil pessoas; mais do que isso deitaria por água abaixo as vantagens inerentes a uma comunidade pequena e compacta. Um dos objetivos dos fundadores era que todos os membros de Nova Atenas conhecessem os outros cidadãos que tivessem os mesmos interesses; e mais um ou dois por cento dos restantes também.

O homem que fora a mola mestra por trás da criação de Nova Atenas era um judeu. E, da mesma forma que Moisés, não vivera o suficiente para entrar em sua terra prometida, pois a colônia fora fundada dez anos após sua morte.

Nascera em Israel, a última nação independente a ser proclamada e, por conseguinte, a que durara menos tempo. O fim da soberania nacional fora sentido em Israel mais do que em qualquer outro lugar do mundo, pois é duro abrir mão de um sonho que levou tantos séculos de luta para se tornar realidade.

Ben Salomon não era fanático, mas as recordações de sua infância deviam ter pesado bastante na filosofia que ele queria pôr em prática. Lembrava-se do que o mundo fora, antes do advento dos Senhores Supremos, e não desejava voltar a ele. Da mesma forma que alguns outros homens inteligentes e bem-intencionados, ele apreciava tudo o que Karellen fizera em prol da raça humana, mas não se sentia feliz com os planos finais do supervisor. Seria possível, perguntava-se às vezes, que, apesar de sua formidável inteligência, os Senhores Supremos não compreendessem a humanidade e estivessem cometendo um erro terrível a pretexto do melhor dos motivos? E se, em sua paixão altruísta pela justiça e pela ordem, estivessem resolvidos a reformar o mundo, mas não percebessem que estavam destruindo a alma humana?

O declínio mal começara, mas os primeiros sintomas não eram difíceis de perceber. Salomon não era artista, mas tinha uma aguda percepção da arte e sabia que sua era não se podia igualar, em nenhum setor artístico, aos séculos anteriores. Talvez tudo entrasse em seus devidos eixos, quando o choque do encontro com a civilização dos Senhores Supremos houvesse passado. Mas talvez isso nunca acontecesse, e um homem prudente trataria de se precaver com uma apólice de seguros.

Nova Atenas era essa apólice. Seu estabelecimento levara vinte anos e custara alguns bilhões de libras decimais — por conseguinte, uma fração bastante pequena dos fundos existentes no mundo. Durante os primeiros quinze anos, nada acontecera; mas, nos últimos cinco, acontecera tudo.

A tarefa de Salomon teria sido impossível se ele não houvesse conseguido convencer um punhado dos mais famosos artistas do mundo quanto à viabilidade de seu plano. Tinham simpatizado com o projeto porque ele representava um estímulo a seus egos, e não porque fosse importante para a raça humana. Mas, uma vez convencidos, o mundo os escutara e lhes dera apoio moral e material. Por trás daquela fachada espetacular de talento, os verdadeiros arquitetos da colônia tinham traçado seus planos.

Uma sociedade consiste em seres humanos cujo com-portamento, como indivíduos, é imprevisível. Mas, tomando-se certo número de unidades básicas, determinadas leis começam a surgir, conforme foi descoberto, há muito tempo, pelas companhias de seguros. Ninguém pode dizer que indivíduos morrerão dentro de um determinado tempo, mas o número total de mortes pode ser previsto com considerável exatidão.

Existem outras leis, mais sutis, divisadas, no início do século XX, por matemáticos como Weiner e Rashavesky. Segundo eles, acontecimentos como as depressões econômicas, os resultados das corridas armamentistas, a estabilidade dos grupos sociais, as eleições políticas, etc, podiam ser analisados por meio de técnicas matemáticas. A grande dificuldade era o número enorme de variáveis, muitas delas difíceis de definir em termos numéricos. Não se podia traçar um sistema de curvas e declarar, de modo definitivo: «Quando se chegar a essa linha, vai haver guerra». E nunca se podiam prever acontecimentos tão inesperados como o assassinato de uma figura-chave ou os efeitos de uma nova descoberta científica; menos ainda de catástrofes naturais, como terremotos ou enchentes, que podiam ter um efeito muito profundo num grande número de pessoas e nos grupos sociais de que elas faziam parte.

Não obstante, podia-se conseguir muito, graças aos conhecimentos pacientemente acumulados durante os últimos cem anos. A tarefa teria sido impossível sem a ajuda dos computadores gigantes, capazes de realizar o trabalho de um milhar de calculistas humanos numa questão de segundos. Esses computadores tinham sido utilizados ao máximo quando a colônia fora planejada.

Mesmo assim, os fundadores de Nova Atenas só podiam providenciar o solo e o clima nos quais a planta desejada iria — ou não — florescer. Conforme o próprio Salomon observara: — Podemos ter a certeza do talento, mas só podemos rezar por genialidade. — A esperança era, porém, de que, numa solução tão concentrada, viessem a se realizar algumas reações interessantes. Poucos artistas prosperam na solidão e nada é mais estimulante que o entrechoque de espíritos com interesses similares.

Ainda era muito cedo para se ver se o grupo que trabalhava em pesquisas históricas corresponderia às esperanças de seus instigadores, cujo objetivo era restaurar o orgulho da humanidade por suas realizações. A pintura continuava em compasso de espera, o que vinha reforçar a opinião dos que achavam que as formas de arte estáticas, de apenas duas dimensões, já haviam esgotado todas as suas possibilidades.

Notava-se — embora não houvesse nenhuma explicação satisfatória para isso — que o tempo desempenhava um papel essencial nas mais bem-sucedidas realizações artísticas da colônia. Mesmo a escultura raramente era imóvel. Os volumes e as curvas de Andrew Carson, por exemplo, mudavam lentamente de forma à medida que eram contemplados, de acordo com desenhos complexos que a mente podia apreciar, mesmo que não fosse capaz de entendê-los inteiramente. Carson alegava, com uma certa dose de verdade, ter levado os móbiles do século anterior a sua forma mais extrema, conseguindo casar a escultura com o bale.

Grande parte das experiências musicais da colônia eram conscientemente relacionadas com o que se poderia chamar de «duração de tempo». Qual era a nota mais breve que a mente podia captar ou a mais longa que ela podia tolerar sem se entediar? O resultado poderia ser variado por condicionamento ou pelo uso de uma orquestração apropriada? Problemas como esses eram discutidos interminavelmente e as discussões não eram puramente acadêmicas. Tinham resultado em algumas composições extremamente interessantes.

Mas fora na arte do cinema de animação, com suas ilimitadas possibilidades, que Nova Atenas realizara suas mais bem-sucedidas experiências. Os cem anos decorridos desde a era de Walt Disney tinham deixado muito por fazer nesse ultraflexível meio de comunicação. Sob o aspecto puramente realista, os resultados muitas vezes não se podiam distinguir da fotografia, para grande desprezo dos que desenvolviam o cinema de animação seguindo linhas abstratas.

O grupo de artistas e cientistas que até ali fizera menos coisas era o que atraíra maior interesse e provocara maior alarma: o time que trabalhava na «identificação total». A história do cinema servia como pista para suas ações. Primeiro, o som, depois a cor, depois o estereoscópio, e depois o cinerama, tinham tornado o cinema cada vez mais parecido com a realidade. Como terminaria a história? Sem dúvida, o estágio final seria alcançado quando a audiência esquecesse que era uma audiência e resolvesse tomar parte na ação. Conseguir isso envolveria um estímulo de todos os sentidos e talvez, também, a hipnose, mas muitos acreditavam que valia a pena. Quando a meta fosse atingida, a experiência humana ficaria enormemente enriquecida. A pessoa poderia transformar-se — por algum tempo, ao menos — em outra pessoa e poderia tomar parte em qualquer aventura conce-bível, real ou imaginária. Poderia até virar planta ou animal, se fosse possível capturar e gravar as impressões de outras criaturas vivas. E, quando o «programa» terminasse, a pessoa teria adquirido uma recordação tão vivida quanto qualquer experiência de sua vida real — uma recordação impossível de ser distinguida da realidade.

As perspectivas eram fascinantes. Havia os que as achavam terríveis e esperavam que o empreendimento fracassasse. Mas sabiam, no fundo de seu coração, que, quando a ciência declarava uma coisa possível, não havia escapatória para sua eventual realização…

Assim era, portanto, Nova Atenas e esses eram alguns de seus ideais. Esperava vir a ser o que a velha Atenas teria sido, se houvesse contado com máquinas em vez de escravos, ciência em vez de superstição. Mas ainda era muito cedo para dizer se a experiência daria resultado.

Jeffrey Greggson era um dos habitantes da ilha que, por ora, não mostravam o menor interesse pela estética ou pela ciência, as duas principais preocupações de seus líderes. Mas aprovava a criação da colônia por motivos muito pessoais. O mar, nunca a mais de alguns quilômetros em qualquer direção, fascinava-o. A maior parte de sua curta vida fora passada longe do mar e ainda não estava acostumado à novidade de se ver rodeado de água. Era um bom nadador e de vez em quando saía com a turma, todos munidos de pés-de-pato e máscaras, para explorar as águas menos fundas da laguna. A princípio, Jean ficara preocupada, mas, depois de ter dado alguns mergulhos, perdera o medo do mar e de suas estranhas criaturas, e deixava Jeffrey se divertir à vontade, com a única condição de nunca mergulhar sozinho.

O outro membro da família Greggson que gostara da mudança era Fey, a bela cachorra golden retriever cujo dono, no papel, era George, mas que raramente se afastava de Jeffrey. O menino e a cadela eram inseparáveis durante o dia e — se Jean não se tivesse imposto — também durante a noite. Só quando Jeffrey saía com a bicicleta é que Fey ficava em casa, deitada diante da porta e olhando para a estrada com uma expressão triste, o focinho entre as patas. Aquele apego ao filho e não a ele aborrecia George, que pagara muito caro pelo pedigree de Fey. Parecia que ia ter que esperar pela próxima geração — dali a três meses — para ter um cão realmente seu. Jean pensava de outra maneira. Gostava de Fey, mas achava que um animal de estimação era mais do que suficiente.

Só Jennifer Anne ainda não sabia se gostava ou não da colônia. Isso não era de espantar, pois até ali nada vira do mundo além das paredes plásticas de seu berço, não suspeitando sequer da sua existência.

George Greggson não costumava pensar no passado. Estava demasiado ocupado com planos para o futuro, com seu trabalho e os filhos. Muito raramente se lembrava daquela noite na África e nunca falava dela com Jean. Por uma espécie de acordo tácito, evitavam tocar no assunto e, desde aquele dia, nunca mais tinham visitado os Boyce, apesar dos repetidos convites. Sempre tinham uma desculpa para não ir e, nos últimos tempos, ele deixara de convidá-los. Para surpresa geral, seu casamento com Maia parecia estar dando certo.

Um dos resultados daquela noite fora Jean ter perdido a vontade de investigar mistérios e atravessar as fronteiras da ciência. O fascínio ingênuo que a atraíra para Rupert e suas experiências desaparecera completamente. Talvez tivesse ficado convencida e não precisasse mais de provas. Geor-ge preferia não lhe perguntar. Também podia ser que as preocupações da maternidade lhe tivessem varrido do espírito esses interesses.

George achava que não havia por que se preocupar com um mistério que jamais poderia ser solucionado. Contudo, na quietude da noite, às vezes acordava e ficava pensando. Recordava seu encontro com Jan Rodricks, no terraço da casa de Rupert, e as poucas palavras que tinha trocado com o único ser humano que conseguira desafiar as leis dos Senhores Supremos. Nada, no reino do sobrenatural, pensava George, podia ser mais fantástico do que o fato puramente científico de que, embora quase dez anos se houvessem passado desde que ele falara com Jan, aquele ora distante viajante só estivesse mais velho alguns dias.

O universo era vasto, mas esse fato o apavorava menos do que seu mistério. George não era pessoa para pensar a fundo em tais assuntos, mas às vezes parecia-lhe que os homens eram como crianças, divertindo-se num playground cercado, protegido das terríveis realidades do mundo exterior. Jan Rodricks não gostava dessa proteção e fugira dela — para encontrar ninguém sabia o quê. Nesse assunto, George alinhava-se com os Senhores Supremos. Não tinha o menor desejo de enfrentar o que se escondia nas trevas desconhecidas, para além do pequeno círculo de luz formado pela lâmpada da ciência.

— Como é possível — queixou-se George — que Jeff nunca esteja em casa quando eu chego? Aonde é que ele foi hoje?

Jean levantou os olhos do tricô — ocupação arcaica, recentemente ressuscitada com grande sucesso. Na ilha, as modas iam e vinham com rapidez. O resultado daquela mania de fazer tricô era que todos os homens haviam recebido de presente suéteres coloridos, demasiado quentes para serem usados durante o dia, mas gostosos depois do anoitecer.

— Foi a Esparta com alguns amigos — respondeu Jean. — Prometeu voltar à hora do jantar.

— Vim para casa mais cedo para trabalhar — disse George. — Mas o dia está tão bonito, que acho que vou nadar um pouco. Que espécie de peixe você gostaria que eu trouxesse para o jantar?

George nunca pescara nada e os peixes da laguna não se deixavam apanhar. Jean ia dizer isso, quando a quietude da tarde foi abalada por um som forte que, mesmo naquela era de paz e tranqüilidade, ainda era capaz de gelar o sangue nas veias e causar arrepios de apreensão.

Era o grito de uma sirene, espalhando sua mensagem de perigo em círculos concêntricos, na direção do mar.

Durante quase cem anos, as pressões vinham aumentando lentamente, naquela escuridão ardente, debaixo do solo oceânico. Embora o canyon submarino tivesse sido formado havia muitas eras geológicas, as rochas torturadas nunca se reconciliaram com suas novas posições. Vezes sem conta as camadas estratificadas haviam estalado e mudado de posição, à medida que o peso inimaginável da água lhes perturbava o equilíbrio precário. Agora, estavam prontas para se mover de novo.

Jeff estava explorando as piscinas formadas pelas rochas, ao longo da estreita praia espartana — ocupação que nunca deixava de fasciná-lo. Nunca se podia prever que criaturas exóticas seriam encontradas, protegidas das ondas que avançavam eternamente pelo Pacífico para irem quebrar-se de encontro aos arrecifes. Era um país de conto de fadas para qualquer criança e, naquele momento, pertencia-lhe inteiramente, pois seus amigos haviam resolvido escalar os morros.

O dia estava calmo. Não soprava a menor brisa e até mesmo o eterno murmúrio para além dos arrecifes parecia ter cessado. Um sol escaldante pendia, baixo, do céu, mas o corpo cor de cobre de Jeff já estava imunizado contra seus ataques.

A praia, ali, não passava de uma estreita faixa de areia, inclinando-se, íngreme, na direção da laguna. Olhando para aquela água cristalina, Jeff viu as rochas submersas, que lhe eram tão familiares quanto as formações em terra. Cerca de dez metros mais abaixo, o esqueleto coberto de algas de uma velha escuna erguia-se para o mundo que deixara havia dois séculos. Jeff e seus amigos tinham muitas vezes explorado os restos do barco, mas suas esperanças de encontrar algum tesouro escondido não se haviam concretizado. Tudo o que tinham encontrado fora uma bússola coberta de crustáceos.

De repente, algo pareceu tomar conta da praia e sacudi-la. O tremor passou tão depressa, que Jeff ficou pensando se não o teria imaginado. Talvez tivesse sido vítima de uma tontura passageira, pois tudo a sua volta continuava como antes. A água da laguna permanecia calma, o céu, vazio de nuvens. Mas, então, algo muito estranho aconteceu.

Mais rapidamente do que qualquer maré, a água recuou da beira da praia. Jeff ficou olhando, muito intrigado mas sem nenhum medo, a areia molhada ficar a descoberto, brilhando ao sol. Acompanhou com o olhar o oceano em retrocesso, determinado a aproveitar ao máximo o milagre que abrira o mundo submarino a sua inspeção. O nível das águas baixara tanto, que o mastro partido do velho navio se erguia no ar, com as algas pendendo molemente dele. Jeff avançou ansioso por ver se descobria mais maravilhas.

Foi então que reparou no barulho que vinha dos arre-cifes. Nunca ouvira algo parecido, e parou para pensar, os pés descalços afundando lentamente na areia molhada. Um grande peixe debatia-se, em agonia, a poucos metros de distância, mas Jeff mal o notou. Todo ele estava alerta ao som, que aumentava, a sua volta.

Era um som gorgolejante, como o de um rio passando por um canal estreito. Era a voz do mar retrocedendo a contragosto, irado por perder, mesmo que apenas por momentos, as terras que lhe cabiam de direito. Através das graciosas ramificações de coral, por entre as escondidas cavernas submarinas, milhões de toneladas de água estavam sendo dragadas da laguna para a vastidão do Pacífico.

Muito em breve — e muito rapidamente — elas retornariam.

Horas mais tarde, uma das turmas de salvamento descobriu Jeff sobre um grande bloco de coral, que fora lançado vinte metros acima do nível normal da água. Não parecia assustado, embora estivesse aborrecido por ter perdido a bicicleta. Tinha também muita fome, já que a destruição parcial da estrada que unia as ilhas o impedira de voltar para casa. Ao ser salvo, estava pensando em nadar de volta a Atenas e, a menos que as correntezas tivessem mudado drasticamente, ele sem dúvida teria efetuado a travessia sem grande esforço.

Jean e George tinham testemunhado tudo o que acontecera quando o tsunami atingira a ilha. Embora os estragos tivessem sido grandes, principalmente nas regiões baixas de Atenas, não houvera nenhuma vítima. Os sismógrafos só tinham podido dar o alarma quinze minutos antes, mas isso fora o suficiente para que todo mundo saísse da zona de perigo. Agora, a colônia estava fazendo um inventário dos estragos e reunindo uma coletânea de lendas que, com os anos, se tornariam cada vez mais apavorantes.

Jean rompeu a chorar quando lhe devolveram o filho, pois estava convencida de que ele fora tragado pelo mar. Vira, com olhos cheios de horror, o negro paredão de águas encapeladas avançar, rugindo, do horizonte, e sufocar a base de Esparta num remoinho de espuma e borrifos. Parecia-lhe incrível que Jeff pudesse ter voltado para casa são e salvo.

Não era de espantar que ele não fosse capaz de fazer uma descrição racional do que acontecera. Só depois de ter comido e se deitado é que os pais ficaram sossegados.

— Agora durma, querido, e procure esquecer o que aconteceu — disse Jean. — Está tudo bem.

— Mas foi divertido, mãe — protestou Jeff. — Eu «5o senti medo.

— Ótimo — falou George. — Você é um garoto corajoso e ainda bem que não perdeu a cabeça e correu a tempo. Já ouvi falar nesses vagalhões causados pelas marés. Muita gente se afogou por se aventurar pela parte a descoberto da praia, levada pela curiosidade.

— Foi o que fiz — confessou Jeff. — Quem será que me ajudou?

— Como assim? Não havia ninguém com você. Os outros garotos estavam no alto do morro.

Jeff ficou intrigado.

— Mas alguém me disse para correr.

Jean e George entreolharam-se preocupados.

— Você está querendo dizer que imaginou ter ouvido alguém?

— Ora, não lhe faça tantas perguntas — disse Jean, um pouco apressada demais. Mas George era teimoso.

— Quero saber como foi. Diga-me o que aconteceu, Jeff.

— Bem, eu estava na praia, junto do navio afundado, quando a voz falou.

— Que foi que ela disse?

— Não me lembro bem, mas foi mais ou menos assim: «Jeffrey, corra para aquele morro o mais depressa que você puder. Se ficar aqui, morrerá afogado». Tenho certeza de que a voz me chamou Jeffrey, e não Jeff, de modo que não pode ter sido alguém que conheço.

— Foi uma voz de homem? E de onde ela veio?

— Parecia junto de mim. E era uma voz de homem… — Jeff hesitou e George instigou-o:

— Continue. Imagine que está de novo na praia e me diga exatamente o que foi que aconteceu.

— Bem, não era a voz de um homem comum. Parecia ser a voz de um homem muito grande.

— A voz não disse mais nada?

— Não, só quando comecei a subir o morro. Aí aconteceu outra coisa engraçada. Sabe o atalho que vai até o alto do morro?

— Sei.

— Eu estava correndo por ele acima, porque era o caminho mais rápido. Sabia o que estava acontecendo, tinha visto a onda avançar. Fazia um barulho horrível. Aí descobri que havia uma grande pedra no caminho. Não estava lá antes e eu não podia passar por cima dela.

— Deve ter sido derrubada pelo terremoto — disse George.

— Psiu! Continue, Jeff.

— Eu não sabia o que fazer e a onda estava se aproximando. Aí, a voz disse: ''Feche os olhos, Jeffrey, e ponha a mão diante do rosto». Achei engraçado, mas obedeci. Então, ouvi uma espécie de relâmpago — meu corpo estremeceu todo — e, quando abri os olhos, a pedra tinha sumido.

— Sumido?

— Isso mesmo, não estava mais lá. Comecei de novo a correr e foi aí que queimei a sola dos pés, porque o caminho estava pelando. A onda arrebentou contra o morro, mas não conseguiu me pegar, eu já estava muito acima. E é só. Desci quando já não havia mais ondas. Aí, vi que minha bicicleta tinha sumido e que a estrada tinha sido arrastada pelas águas,

— Não se preocupe com a bicicleta, querido — disse jean, apertando, comovida, a mão do filho. — A gente lhe dá outra. A única coisa que interessa é você estar são e salvo, e não como foi que aconteceu.

Naturalmente, isso não era verdade, pois a discussão começou tão logo Jean e George saíram do quarto das crianças. Apesar de não chegarem a uma conclusão, não deixou de ter seus efeitos. No dia seguinte, sem dizer nada a George, Jean levou o filho ao psicólogo infantil da colônia. O psicólogo ouviu com atenção a história de Jeff, que não parecia nada impressionado com o novo ambiente em que se encontrava. Depois, enquanto o garoto se recusava a catalogar os brinquedos na sala ao lado, o médico tranqüilizou Jean:

— Não há nada que sugira qualquer anomalia mental. A senhora não pode esquecer que ele passou por uma terrível experiência e se saiu notavelmente bem. É uma criança cheia de imaginação e provavelmente acredita na história que inventou, de modo que o melhor é aceitá-la e não se preocupar, a menos que venham a ocorrer outros sintomas. Se isso acontecer, avise-me imediatamente.

Nessa noite, Jean comunicou o veredicto ao marido. Ele não pareceu tão aliviado quanto ela esperava e Jean achou que isso se devia aos estragos que o terremoto causara a seu querido teatro. Limitou-se a resmungar «Ótimo» e a instalar-se numa poltrona, com o último número do Stage and Studio. Parecia ter perdido o interesse no caso e Jean sentiu-se vagamente irritada com ele.

Mas, três semanas mais tarde, no dia em que a estrada da ilha foi reaberta, George partiu, de bicicleta, rumo a Esparta. A praia continuava cheia de pedaços de coral e o próprio recife parecia ter sido partido. George ficou pensando quanto tempo as miríades de pacientes pólipos levariam para reparar os estragos.

Havia apenas um caminho para subir pela face do morro e, assim que recobrou o fôlego, George iniciou a escalada. Alguns pedaços secos de alga, presos entre as rochas, marcavam os limites alcançados pelas vagas.

Durante muito tempo, George Greggson ficou ali, parado naquele caminho solitário, olhando para as rochas fundidas sob seus pés. Tentou dizer a si mesmo que deviam ser vestígios do vulcão extinto, mas não tardou a pôr de lado essa tentativa de auto-sugestão. Seus pensamentos voltaram àquela noite, anos atrás, em que ele e Jean tinham participado daquela experiência idiota em casa de Rupert Boyce. Ninguém compreendera realmente o que tinha acon- tecido e George sabia que, de alguma maneira misteriosa, aqueles estranhos acontecimentos se relacionavam. Primeiro fora Jean, agora o filho dela. Não sabia se devia estar feliz ou ter medo e, do fundo de seu coração, elevou uma prece silenciosa:

— Obrigado, Karellen, pelo que você e seu povo fizeram por Jeff. Mas gostaria de saber por que o fizeram.

Desceu lentamente para a praia e as grandes gaivotas brancas esvoaçaram em volta dele, aborrecidas porque ele não trouxera comida para lhes dar.

O pedido de Karellen, embora fosse esperado desde que a colônia fora fundada, repercutiu como a explosão de uma bomba. Conforme todo mundo sabia, representava uma crise nos assuntos de Atenas, e ninguém poderia dizer se dali adviria algo de bom ou de mau.

Até então, a colônia seguira seu caminho sem qualquer interferência por parte dos Senhores Supremos. Tínham-na deixado completamente à vontade, da mesma forma que ignoravam a maior parte das atividades humanas, desde que não fossem subversivas nem ofendessem seus códigos de comportamento. Não se podia dizer ao certo se os objetivos da colônia eram ou não subversivos. Eram apolíticos, mas representavam um desejo de independência intelectual e artística. E, a partir daí, quem poderia dizer o que adviria? Os Senhores Supremos bem poderiam prever o futuro de Atenas mais claramente que os seus fundadores, e não o aprovar.

Naturalmente, se Karellen desejasse mandar um observador, inspetor ou que outro nome tivesse, nada poderiam fazer contra isso. Vinte anos antes, os Senhores Supremos tinham feito saber que não mais utilizariam seus meios de vigilância, de modo que a humanidade não mais precisava preocupar-se com estar sendo espionada. Contudo, o fato de esses meios ainda existirem significava que nada podia ser escondido dos Senhores Supremos, desde que eles quisessem ver o que estava acontecendo na Terra.

Alguns dos habitantes da ilha esperavam com ansiedade aquela visita, na qual viam uma oportunidade de resol- ver um dos problemas menores da psicologia dos Senhores Supremos — sua atitude para com as artes. Considerá-las-iam uma aberração infantil da raça humana? Eles próprios não teriam alguma forma de arte? Nesse caso, a visita teria propósitos puramente estéticos, ou os motivos de Karellen seriam menos inocentes?

Todas essas questões foram debatidas incessantemente, enquanto se ultimavam os preparativos para a chegada do supervisor. Nada se sabia a respeito dele, mas presumia-se que pudesse absorver cultura em quantidades ilimitadas. A experiência seria, pelo menos, tentada e as reações da vítima observadas com interesse por uma bateria de mentes aguçadas.

O atual presidente do conselho era o filósofo Charles Yan Sen, homem irônico mas bem-humorado, que ainda não chegara aos sessenta anos e estava, por conseguinte, no melhor da vida. Platão teria visto nele um exemplo do esta-dista-filósofo, embora Sen não simpatizasse muito com Platão, que acusava de ter adulterado grosseiramente as idéias de Sócrates. Charles Yan Sen estava entre os que pretendiam tirar o máximo proveito daquela visita, nem que fosse apenas para mostrar aos Senhores Supremos que os homens ainda tinham muita iniciativa e ainda não estavam, como ele dizia, «completamente domesticados».

Em Atenas, nada se fazia sem a aprovação de um comitê, essa marca registrada do sistema democrático. Alguém chegara mesmo a definir a colônia como um sistema de comitês que se entrosavam. Mas o sistema funcionava graças aos pacientes estudos dos psicólogos sociais que haviam sido os verdadeiros fundadores de Nova Atenas. Como a comunidade não era muito grande, todo mundo podia participar de seu governo e ser um cidadão no mais lato sentido da palavra.

Era quase inevitável que George, na qualidade de líder da hierarquia artística, fizesse parte do comitê de recepção. Mas ele quis ter a certeza disso e, para tal, tratou de mexer os cordõezinhos. Se os Senhores Supremos queriam estudar a colônia, George também queria estudá-los. Jean não se sentiu muito feliz com isso. Desde aquela noite na casa dos Boyce, sentira uma vaga hostilidade para com os Senhores Supremos, embora não pudesse dar nenhum motivo para isso. Apenas desejava não ter que lidar com eles, e um dos principais atrativos da ilha havia sido, para ela, sua independência. Agora, temia que essa independência fosse ameaçada.

O Senhor Supremo chegou sem qualquer cerimônia, num carro aéreo de fabricação humana, para desapontamento dos que esperavam algo mais espetacular. Podia ser o próprio Karellen, pois ninguém jamais conseguira distinguir ao certo um Senhor Supremo do outro. Todos pareciam saídos do mesmo molde. E talvez, graças a um processo biológico desconhecido, fossem mesmo.

Passado o primeiro dia, os habitantes da ilha deixaram de prestar muita atenção, quando o carro oficial percorria os pontos turísticos. O nome correto do visitante, Than-thalteresco, era demasiado difícil para ser usado correntemente, e não tardou que ele fosse batizado de «Inspetor», nome bastante bem dado, já que sua curiosidade e seu apetite por dados estatísticos eram insaciáveis.

Charles Yan Sen estava exausto quando, muito depois da meia-noite, reconduziu o Inspetor de volta ao carro aéreo que lhe servia de base. Não havia dúvida de que ele continuaria a trabalhar, varando a noite, enquanto seus humanos anfitriões tinham que se render à fraqueza do sono.

A Sra. Sen esperava, ansiosa, pelo marido. Formavam um casal feliz, apesar do hábito que ele tinha de, por brincadeira, chamá-la Xantipa sempre que tinham convidados. Ela havia muito ameaçara vingar-se preparando-lhe uma xícara de cicuta, mas, felizmente, essa erva era menos comum na nova do que na antiga Atenas.

— Que tal, foi um sucesso? — perguntou ela, mal o marido se sentou para comer algo.

— Acho que sim, mas a gente nunca pode ter certeza do que se passa dentro daqueles extraordinários cérebros. Ele mostrou-se interessado, fez elogios. A propósito, pedi-lhe desculpas por não o convidar a vir aqui. Ele retrucou que entendia perfeitamente e não tinha o menor desejo de bater com a cabeça em nosso teto.

— Que foi que você lhe mostrou hoje?

— O lado material da colônia, que ele não pareceu achar tão tedioso quanto eu. Fez toda espécie de perguntas que se possam imaginar sobre produção, como equilibrávamos nosso orçamento, quais os nossos recursos minerais, qual o índice de nascimentos, como obtínhamos os alimentos que consumíamos, etc. Felizmente, eu estava acompanhado do Secretário Harrison, que viera preparado com todos os relatórios anuais desde o início da colônia. Você precisava vê-los falar de estatísticas. O Inspetor pediu os relatórios emprestados e aposto que amanhã ele vai ser capaz de nos citar qualquer número. Acho esse tipo de exibição mental muito deprimente.

Bocejou e começou a comer sem grande apetite.

— Espero que amanhã seja mais interessante. Vamos visitar as escolas e a academia. E eu é que vou lhe fazer algumas perguntas. Gostaria de saber como é que os Senhores Supremos educam os filhos, partindo do princípio, naturalmente, de que os têm.

Para essa pergunta, Charles Sen não obteria resposta, mas, sobre outros pontos, o Inspetor não se fez de rogado. Evitava as perguntas embaraçosas de maneira magistral e, de repente, fazia confidencias inesperadas.

A primeira dessas «intimidades» ocorreu quando estavam saindo da escola que era um dos orgulhos da colônia. — Preparar esses espíritos jovens para o futuro é uma grande responsabilidade — comentou o Dr. Sen. — Felizmente, os seres humanos são muito resistentes; é preciso uma série de azares na infância para que a pessoa fique permanentemente marcada. Mesmo que nossos objetivos estivessem totalmente errados, nossas pequenas vítimas provavelmente se sairiam bem. E, como pôde ver, parecem muito felizes. — Fez uma pequena pausa e olhou, de relance, para a imponente figura de seu hóspede. O Inspetor estava completamente envolto numa fazenda prateada, de modo que nem um centímetro de seu corpo se expunha à luz ardente do sol. Por trás dos óculos escuros, o Dr. Sen podia ver os grandes olhos, fitando-o sem qualquer emoção, ou com emoções que ele jamais poderia compreender. — Imagino que nosso problema, no tocante à educação dessas crianças, seja muito semelhante ao de vocês, com relação à raça humana. Ou não é assim?

— Sob certos aspectos — admitiu, gravemente, o Senhor Supremo. — Sob outros, talvez pudéssemos ir buscar uma analogia na história das potências coloniais de vocês. Por esse motivo, os Impérios Romano e Britânico sempre nos interessaram muito. O caso da Índia é particularmente instrutivo. A principal diferença existente entre nós e os ingleses na Índia é que eles verdadeiramente não tinham motivos para estar lá — isto é, objetivos conscientes e não razões triviais e temporárias, como fazer comércio e hostilizar outras potências européias. Viram-se a braços com um império antes de saberem o que fazer com ele e só se sentiram felizes depois que se viram livres dele.

— Por acaso pretendem — perguntou o Dr. Sen, in- capaz de resistir à oportunidade — ver-se livres de seu império quando acharem que está na hora?

— Sem a menor hesitação — retrucou o Inspetor.

O Dr. Sen não insistiu. A franqueza da resposta não era muito lisonjeira. Além disso, tinham chegado à academia, onde os pedagogos, reunidos, esperavam afiar o espírito em contato com um Senhor Supremo ao vivo.

— Como nosso distinto colega deve ter-lhe mencionado — disse o Professor Chance, decano da Universidade de Nova Atenas —, nosso principal objetivo é manter as mentes de nosso povo alerta e permitir-lhes desenvolver todas as suas potencialidades. Fora desta ilha — e seu gesto indicou e rejeitou o resto do mundo — receio que a raça humana haja perdido a iniciativa. Vive em paz e em abundância, mas não tem horizontes.

— Ao passo que aqui… — interrompeu o Inspetor. O Professor Chance, que não tinha senso de humor mas uma vaga noção dessa falha, olhou, desconfiado, para o visitante.

— Aqui — continuou ele — não padecemos da velha obsessão de que o ócio é um pecado. Mas tampouco achamos que seja suficiente passar a vida como simples espectadores. Todo mundo nesta ilha tem uma ambição, que pode ser resumida de maneira muito simples. É fazer algo, por menor que seja, melhor do que qualquer outra pessoa. Naturalmente, é um ideal que nem todos atingimos. Mas, neste mundo moderno, já é uma grande coisa ter um ideal. Alcançá-lo é muito menos importante.

O Inspetor não pareceu inclinado a fazer comentários. Tinha tirado a roupa protetora, mas continuava usando os óculos escuros, mesmo à luz mortiça do salão de conferências. O decano ficou pensando se seriam mesmo necessários ou consistiriam em mera camuflagem. Sem dúvida, tornavam impossível a tarefa, já muito difícil, de ler os pensamentos dos Senhores Supremos. Não pareceu, contudo, objetar às afirmações algo desafiantes que lhe haviam sido feitas de modo tão direto, ou às críticas à política de sua raça com relação à Terra que elas implicavam.

O decano ia insistir no ataque, quando o Professor Sperling, chefe do Departamento de Ciências, resolveu entrar também na arena.

— Como o senhor sem dúvida sabe, um dos grandes problemas de nossa cultura tem sido a dicotomia entre artes e ciências. Gostaria muito de conhecer seus pontos de vista a respeito. Acha, por acaso, que todos os artistas sejam anormais? Que sua obra, ou, pelo menos, o impulso por trás dela, seja o resultado de alguma insatisfação psicológica profunda?

O Professor Chance pigarreou, aflito, mas o Inspetor apressou-se a responder:

— Já me disseram que todos os homens são, até certo ponto, artistas, que todo mundo é capaz de criar algo, mesmo que a um nível rudimentar. Ontem, em suas escolas, observei, por exemplo, a ênfase dada à criatividade no desenho, na pintura e na modelagem. O impulso pareceu-me universal, mesmo entre os que claramente se destinam às ciências. Por isso, se todos os artistas são anormais e todos os homens são artistas, estamos diante de um interessante silogismo…

Todos ficaram à espera de que ele prosseguisse. Mas, quando queriam, os Senhores Supremos sabiam dar mostras de um tato impecável.

O Inspetor passou no teste do concerto sinfônico com galhardia, o que não aconteceu com muita gente na platéia. A única concessão ao gosto popular fora a Sinfonia dos salmos, de Stravínski; o resto do programa era agressivamente moderno. Fossem, porém, quais fossem as opiniões, o desempenho da orquestra fora soberbo, pois a colônia se orgulhava de possuir alguns dos melhores músicos do mundo. Os diversos compositores rivais disputavam a honra de serem incluídos no programa, embora alguns cínicos duvidassem que isso fosse uma honra. Embora tudo o que se sabia indicasse o contrário, era possível que os Senhores Supremos não tivessem o menor ouvido musical.

Aconteceu, porém, que, após o concerto, Thanthalte-resco procurou os três compositores cujas obras haviam sido tocadas e os cumprimentou pelo seu «grande engenho», fazendo com que eles se retirassem com expressões satisfeitas mas vagamente intrigados.

Só no terceiro dia é que George Greggson teve a oportunidade de se encontrar com o Inspetor. O teatro programara uma espécie de pot-pourri — duas peças em um ato, um quadro representado por um cômico famoso e um número de balé. Tudo isso foi esplendidamente desempenhado e a previsão de um crítico — «Agora, pelo menos, vamos descobrir se os Senhores Supremos bocejam» — não se concre- tizou. Ao contrário, o Inspetor riu várias vezes e sempre nos momentos certos.

Entretanto, ninguém podia estar seguro. Ele podia estar também representando, acompanhando a apresentação apenas pela lógica, com suas estranhas emoções não tocadas, como um antropólogo que tomasse parte num rito primitivo. O fato de rir na hora certa e reagir da maneira esperada no fundo não provava nada.

Embora George tivesse a intenção de conversar com o Inspetor, sua tentativa fracassou. Depois do espetáculo, trocaram algumas palavras, mas o visitante foi conduzido para outro lado. Era impossível isolá-lo, afastá-lo de sua comitiva, e George foi para casa sentindo-se frustrado. Não tinha a certeza do que desejava dizer, mesmo que tivesse tido oportunidade, mas decerto teria dado um jeito de falar de Jeff. E, agora, perdera essa oportunidade.

Seu mau humor durou dois dias. O carro aéreo do Inspetor já se fora, em meio a protestos mútuos de consideração e estima, quando surgiu a questão. Ninguém se lembrara de interrogar Jeff, e o garoto devia ter pensado muito no assunto antes de falar com o pai.

— Papai — disse ele, antes de ir para a cama —, sabe esse Senhor Supremo que esteve aqui?

— Sei — respondeu George, aborrecido.

— Bem, ele foi à nossa escola e ouvi-o falar com alguns professores. Não deu para ouvir o que ele dizia, mas reconheci a voz. Foi ele quem disse para eu fugir, quando o vagalhão cobriu a praia.

— Você tem certeza? Jeff hesitou um momento.

— Não posso garantir, mas, se não foi ele, foi outro Senhor Supremo. Fiquei até pensando se deveria agradecer. Mas ele já foi embora, não foi?

— Já — respondeu George. — Acho que sim. Mas talvez você tenha outra oportunidade. Agora vá se deitar e não se preocupe mais com isso.

Assim que Jeff saiu da sala e Jenny acabou de tomar a rnamadeira, Jean voltou e sentou-se no tapete, ao lado da poltrona de George, encostando-se em suas pernas. Era um hábito que ele achava irritantemente sentimental, mas pelo qual não valia a pena brigar. Apenas tratava de espetar ao máximo os joelhos.

— Que é que você acha agora? — perguntou Jean numa voz cansada. — Acha que realmente aconteceu?

— Aconteceu — replicou George —, mas talvez seja bobagem a gente se preocupar. Afinal de contas, a maioria cios pais se sentiria grata e, naturalmente, eu me sinto grato. A explicação pode ser muito simples. Sabemos que os Senhores Supremos ficaram interessados na colônia, de modo que devem tê-la estado observando com seus instrumentos, apesar da promessa que fizeram. Imagine que um estava nos observando e viu a vaga avançar. Seria a coisa mais natural avisar quem estivesse correndo perigo.

— Mas ele sabia o nome de Jeff, não se esqueça. Não, nós estamos sendo observados. Há algo de estranho em nós, algo que atrai a atenção deles. Sinto isso desde a festa em casa de Rupert. Engraçado, como aquela festa mudou nossa vida!

George olhou para ela com simpatia e nada mais. Esquisito como uma pessoa podia mudar tanto em tão pouco tempo. Tinha ternura por ela; afinal, dera-lhe dois filhos e fazia parte de sua vida. Mas, do amor que um certo George Greggson sentira a determinada altura por um sonho chamado Jean Morrei, o que ficara? Seu amor estava agora dividido entre Jeff e Jennifer de um lado e Carolle do outro. Não acreditava que Jean soubesse a respeito de Carolle, e pretendia contar-lhe tudo antes que alguém o fizesse, mas até então não tinha tido coragem.

— Muito bem, Jeff está sendo vigiado, ou melhor, protegido. Você não acha que deveríamos sentir orgulho disso? Talvez os Senhores Supremos tenham planejado um grande futuro para ele. Que espécie de futuro será?

Sabia que estava dizendo aquilo para tranqüilizar Jean. Ele próprio não se sentia preocupado, apenas intrigado, espantado. De repente, um outro pensamento lhe ocorreu, algo que lhe devia ter vindo à cabeça antes. Seus olhos voltaram-se automaticamente para o quarto das crianças.

— Será que só estão atrás de Jeff? — perguntou.

No devido tempo, o Inspetor apresentou seu relatório, que os habitantes da ilha dariam tudo para ver. Todos os dados estatísticos foram alimentar as memórias insaciáveis dos grandes computadores, que eram apenas alguns dos poderes invisíveis por trás de Karellen. Antes mesmo que esses impessoais cérebros eletrônicos tivessem chegado a suas conclusões, já o Inspetor fizera suas próprias recomendações.

Expressas através dos pensamentos e da língua da raça humana, seriam mais ou menos assim:

«Não precisamos tomar medidas em relação à colônia. É uma experiência interessante, mas que não pode, de maneira alguma, afetar o futuro. Suas realizações artísticas não nos dizem respeito e não há evidência de que as pesquisas científicas estejam enveredando por caminhos perigosos.

«Conforme os planos, pude ver os relatórios escolares do Paciente Zero sem despertar curiosidade. As estatísticas importantes estão anexas e pode-se observar que ainda não há sinais de um desenvolvimento fora do comum. Contudo, como se sabe, muitas vezes não ocorrem sintomas prévios.

«Conheci também o pai do paciente e tive a impressão de que ele desejava falar comigo. Felizmente, consegui evitar isso. Não há dúvida de que ele suspeita de algo, embora, naturalmente, não possa nunca suspeitar da verdade nem afetar, de qualquer maneira, os resultados.

«Cada vez tenho mais pena dessa gente.»

George Greggson teria concordado com o veredicto do Inspetor de que nada havia de fora do comum a respeito de Jeff. Apenas aquele intrigante incidente, tão surpreendente quanto um trovão isolado num dia calmo e límpido. Depois disso, nada mais acontecera.

Jeff tinha toda a energia e a curiosidade de um menino normal de sete anos. Era inteligente — quando queria ser —, mas não corria o perigo de vir a ser um gênio. Às vezes, pensava Jean, um pouco cansada, ele correspondia perfeitamente à definição clássica de um garoto: «um barulho cercado de sujeira». Não que fosse muito fácil constatar a sujeira, que precisava acumular-se durante bastante tempo antes de se destacar do tom bronzeado de Jeff.

Às vezes, ele era afetivo e carinhoso, outras, teimoso; podia ser reservado ou extrovertido. Não mostrava preferência pelo pai ou pela mãe, e a chegada da irmãzinha não provocara nele qualquer demonstração de ciúme. Sua ficha médica era imaculada: nunca em sua vida ficara um só dia doente. Mas, naquela era e naquele clima, isso não era in-comum.

Ao contrário de alguns garotos, Jeff não se aborrecia depressa na companhia do pai e nem procurava trocá-lo por companheiros de sua idade. Era evidente que herdara o talento artístico de George e desde muito pequeno se tornara freqüentador habitual dos bastidores do teatro existente na colônia. O teatro chegara mesmo a adotá-lo como sua mascote não-oficial, e ele tinha agora muita prática de oferecer flores a visitantes famosos, do palco e da tela.

Sim, Jeff era um garoto perfeitamente normal, dizia George para si mesmo, ao saírem para passeios a pé ou de bicicleta pela ilha. Conversavam, como quaisquer pai e filho em qualquer época — só que, naquela era, havia muito mais sobre quê falar. Embora Jeff nunca saísse da ilha, podia ver tudo o que queria do mundo através do olho mágico da tela de televisão. Como todos os membros da colônia, sentia certo desprezo pelo resto da humanidade. Eles eram a elite, a vanguarda do progresso. Elevariam a humanidade às alturas que os Senhores Supremos haviam alcançado — talvez, até, mais longe. Não amanhã, claro, mas um dia…

Não imaginavam que esse dia viria cedo demais.

Os sonhos começaram seis semanas mais tarde.

Na escuridão da noite subtropical, George Greggson flutuou lentamente até alcançar o nível da consciência. Não sabia o que o despertara e ficou um momento numa espécie de estupor. Depois, percebeu que estava só no quarto. Jean levantara-se e em silêncio dirigira-se ao quarto das crianças. Estava falando em voz baixa com Jeff, tão baixo que não se entendia o que ela dizia.

George saiu da cama e foi ter com ela. A menina tornara essas excursões noturnas bastante comuns, mas, quando ela chorava, ele acordava imediatamente. Aquilo era algo inteiramente diferente e George não sabia o que acordara Jean.

A única luz no quarto das crianças vinha dos desenhos a tinta fluorescente nas paredes. Mesmo assim, deu para ver Jean sentada ao lado da cama de Jeff. Voltou-se, ao ver o marido entrar, e murmurou: — Não acorde a menina.

— Que foi que houve?

— Senti que Jeff precisava de mim e acordei.

A simplicidade da afirmação fez com que George ficasse apreensivo. «Senti que Jeff precisava de mim.» Como foi

que você sentiu isso? pensou ele. Mas tudo o que perguntou foi:

— Ele tem tido pesadelos?

— Não tenho certeza — respondeu Jean —, agora parece estar bem. Mas, quando entrei no quarto, estava assustado.

— Eu não estava assustado, mamãe — retrucou uma vozinba indignada. — Mas era um lugar tão esquisito!

— Que lugar? — perguntou George. — Conte tudo.

— Tinha montanhas — disse Jeff, com ar de quem sonhava. — Eram tão altas! Mas não tinham neve em cima, como as outras montanhas que já vi. Algumas estavam ardendo.

— Você quer dizer que eram vulcões?

— Não. Estavam ardendo de cima até embaixo, com umas chamas gozadas, azuis. E, quando eu estava olhando, o sol apareceu.

— Continue, por que é que você parou? Jeff levantou os olhos intrigados para o pai.

— Essa é outra coisa que eu não entendo, papai. O sol apareceu tão depressa e era tão grande! A cor também era diferente: um azul lindo.

Fez-se um gélido e longo silêncio. Por fim, George perguntou baixinho: — Isso é tudo?

— É. Comecei a me sentir sozinho e foi então que mamãe veio e me acordou.

George acariciou o cabelo do filho com uma das mãos, enquanto com a outra apertava o robe contra o corpo. Sentiu-se de repente muito pequeno e cheio de frio. Mas nada disso transpareceu em sua voz, quando voltou a falar com Jeff.

— Foi só um sonho bobo. Você comeu demais no jantar. Esqueça tudo e procure dormir.

— Está bem, papai — disse Jeff. Pensou um momento e acrescentou: — Acho que vou tentar voltar lá.

— Um sol azul? — perguntou Karellen algumas horas mais tarde. — Isso deve ter facilitado a identificação.

— Sim — respondeu Rashaverak. — Trata-se, sem dúvida, de Alfanidon 2. As montanhas Sulfurosas confirmam isso. E é interessante notar a distorção da escala do tempo. O planeta tem uma rotação lenta, de modo que ele deve ter observado muitas horas em poucos minutos.

— Foi tudo o que pôde descobrir?

— Sim, sem interrogar diretamente a criança.

— É, não podemos fazer isso. Os acontecimentos têm que seguir seu curso natural, sem nossa interferência. Quando os pais dele se dirigirem a nós, então talvez possamos interrogá-lo.

— Pode ser que eles nunca se dirijam a nós. E, se o fizerem, talvez seja demasiado tarde.

— Quanto a isso, receio nada podermos fazer. Nunca deveríamos esquecer este fato: que, nesses assuntos, nossa curiosidade não tem a menor importância. É menos importante ainda do que a felicidade da humanidade.

Estendeu a mão para desligar a conexão.

— Mantenha a vigilância, claro, e apresente-me os resultados. Mas procure não interferir.

Quando estava acordado, Jeff parecia o mesmo. Isso, pelo menos, pensou George, era algo que tinham que agradecer. Mas o medo crescia em seu coração.

Para Jeff, tudo aquilo não passava de uma brincadeira, que ainda não começara a assustá-lo. Um sonho era apenas um sonho, por mais estranho que fosse. Não mais se sentia sozinho nos mundos que o sono lhe abria. Só naquela primeira noite sua mente chamara por Jean, atravessando os abismos que os cercavam. Agora, ele penetrava sozinho e sem medo no universo que se abria diante de si.

Todas as manhãs, os pais o interrogavam e ele lhes contava tudo quanto conseguia recordar. Às vezes, as palavras lhe faltavam, ao tentar descrever cenas que não só estavam muito além de sua experiência, como também da imaginação do homem. Eles sugeriam-lhe palavras novas, mostravam-lhe gravuras e cores para refrescar-lhe a memória, e depois procuravam tirar conclusões baseadas em suas respostas. Muitas vezes não conseguiam chegar a nenhum resultado, embora tudo indicasse que, na mente de Jeff, os mundos com que ele sonhava fossem simples e nítidos. Simplesmente, ele era incapaz de comunicá-los aos pais. Não obstante, alguns eram bastante claros…

Espaço — nenhum planeta, nenhuma paisagem em volta, nenhum mundo sob os pés. Só as estrelas na noite avelu-dada e, pendendo contra elas, um grande sol vermelho, que batia como um coração. Enorme e tênue num dado momento, encolhia-se depois lentamente, ao mesmo tempo que ficava mais brilhante, como se um novo combustível viesse alimentar seu fogo interno. Passava por todo o espectro, até pairar à beira do amarelo. Depois, o ciclo se processava em sentido inverso, a estrela se expandia e ia esfriando, tornando-se outra vez uma nuvem em vermelho-vivo…

(— Variável de pulsação típica — disse Rashaverak, ansiosamente. — Vista sob uma tremenda aceleração de tempo. Não consigo identificá-la precisamente, mas a estrela mais próxima que se enquadra na descrição é Rhamsandron 9. Ou talvez seja Faranidon 12.

— Seja ela qual for — replicou Karellen —, ele está se afastando cada vez mais.

— E muito! — concordou Rashaverak…)

Podia bem ser a Terra. Um sol branco pairava num céu azul, sarapintado de nuvens que corriam, prenunciando tempestade. Uma colina descia, suavemente, para um oceano açoitado pelo vento voraz. Não obstante, nada se mexia: tudo parecia paralisado, como uma paisagem entrevista em meio ao clarão de um relâmpago. E longe, muito longe, no horizonte, erguia-se algo que não era da Terra — uma fileira de colunas nebulosas, afunilando-se ligeiramente à medida que se elevavam do mar e se perdiam entre as nuvens. Estavam espaçadas, com perfeita precisão, ao longo da beira do planeta — demasiado grandes para serem artificiais, mas por demais regulares para serem naturais.

(— Sideneus 4 e os Pilares da Aurora — disse Rashaverak, com espanto na voz. — Ele chegou ao centro do universo.

— E mal começou a viagem! — retrucou Karellen.) O planeta era completamente plano. Sua enorme gravidade havia muito esmagara, aplainando-as, as montanhas de sua fogosa juventude — montanhas cujos picos mais altos nunca tinham ultrapassado uns poucos metros de altitude. Contudo, nele havia vida, pois a superfície estava coberta de miríades de desenhos geométricos, que se arrastavam, moviam e mudavam de cor. Era um mundo de duas dimensões, habitado por seres que não teriam mais que uma fração de centímetro de espessura.

Em seu céu havia um sol como nenhum fumante de ópio poderia jamais ter imaginado, mesmo em seus mais loucos sonhos. Demasiado quente para ser branco, era como um fantasma nas fronteiras do ultravioleta, queimando seus planetas com radiações que seriam imediatamente fatais a todas as formas terrenas de vida. Numa extensão de milhões de quilômetros à sua volta desdobravam-se grandes véus de gás e poeira, fluorescendo em inúmeras cores, à medida que as rajadas de ultravioleta os perpassavam. Era uma estrela contra a qual o pálido sol da Terra teria parecido tão fraco quanto um vaga-lume ao meio-dia.

(— Hexanerax 2, não pode ser outra coisa — disse Rashaverak. — Apenas um punhado de nossas naves conseguiu alcançá-la, e nunca se atreveram a pousar. Afinal, quem poderia imaginar que pudesse existir vida nesses planetas?

— Está me parecendo — retrucou Karellen — que vocês, cientistas, não foram tão ao fundo da questão como pensavam. Se essas formas têm inteligência, o problema da comunicação promete ser interessante. Será que eles têm alguma noção da terceira dimensão?)

Era um mundo que nunca poderia ter conhecido o significado do dia e da noite, dos anos ou das estações, Seis sóis coloridos compartilhavam o céu, de modo que só havia mudanças de luz, jamais trevas. Através do choque de campos gravitacionais conflitantes, o planeta viajava ao longo dos arcos e das curvas de sua órbita inconcebivelmente complexa, nunca percorrendo o mesmo caminho. Cada momento era único: a configuração que os seis sóis assumiam agora nos céus não se repetiria nunca mais.

E mesmo assim existia vida. Embora o planeta pudesse ser calcinado pelos fogos centrais numa era e congelado em outra, mesmo assim abrigava inteligência. Os grandes cristais multifacetados formavam intrincados desenhos geométricos, imóveis nas eras de frio, crescendo lentamente, ao longo dos veios do minério, quando o mundo ficava de novo quente. Não importava que levasse mil anos para completar um pensamento. O universo era ainda muito jovem e o tempo estendia-se interminavelmente à frente deles…

(— Procurei em todos os nossos fichários — disse Rashaverak. — Não temos conhecimento de tal mundo, ou de uma tal combinação de sóis. Se ele existisse dentro de nosso universo, os astrônomos já o teriam detectado, mesmo que ficasse fora do alcance de nossas naves.

— Então ele saiu da galáxia.

— É. Sem dúvida não pode ir muito mais longe.

— Quem sabe? Está apenas sonhando. Quando acorda, continua o mesmo. É só a primeira fase. Saberemos logo que a mudança tiver início.)

— Já nos encontramos antes, Sr. Greggson — disse o Senhor Supremo gravemente. — Meu nome é Rashaverak. Sem dúvida o senhor se lembra.

— Sim — disse George. — Aquela festa em casa de Rupert Boyce. Acho que nunca vou esquecer. E achei que voltaríamos a nos encontrar.

— Diga-me, por que pediu essa entrevista?

— Acho que o senhor já sabe.

— Talvez, mas vai nos ajudar, se o senhor me disser com suas próprias palavras. Pode ficar surpreso com isso, mas também estou procurando entender e, sob certos aspectos, minha ignorância é tão grande quanto a sua.

George olhou para o Senhor Supremo sem esconder o espanto. Nunca lhe ocorrera isso. Subconscientemente, partira do princípio de que os Senhores Supremos possuíam todos os conhecimentos e todos os poderes — que tudo compreendiam e provavelmente eram os responsáveis pelas coisas que vinham acontecendo com Jeff.

— Deduzo — prosseguiu George — que tenham visto os relatórios que entreguei ao psicólogo da ilha, de modo que devem saber dos sonhos.

— Sim, sabemos.

— Nunca acreditei que fossem apenas frutos da imaginação de uma criança. Eram tão incríveis que (sei que isso parece ridículo) tinham que estar baseados em alguma coisa real.

Olhou ansiosamente para Rashaverak, não sabendo se devia esperar por uma confirmação ou uma negativa. O Senhor Supremo nada disse; simplesmente fitou-o com seus olhos grandes e tranqüilos. Estavam sentados quase diante um do outro, já que a sala — evidentemente planejada para tais entrevistas — tinha dois planos, ficando a enorme poltrona do Senhor Supremo quase um metro mais baixa do que a de George. Era um gesto amistoso para com os homens que pediam uma entrevista e raramente se sentiam à vontade.

— A princípio, ficamos preocupados, mas não alarmados. Jeff parecia perfeitamente normal quando acordava, e os sonhos não davam a impressão de perturbá-lo. Até que, uma noite… — hesitou e olhou, com ar de defesa, para o

Senhor Supremo. — Nunca acreditei no sobrenatural. Não sou cientista, mas acho que existe uma explicação racional para tudo.

— E existe — confirmou Rashaverak. — Sei o que o senhor viu; eu estava observando.

— Sempre suspeitei disso. Mas Karellen havia prometido que os senhores nunca mais nos espionariam com seus instrumentos. Por que foi que quebrou essa promessa?

— Eu não a quebrei. O supervisor disse que a raça humana não mais ficaria sob vigilância. Essa promessa sempre foi mantida. Eu estava vigiando os seus filhos, não o senhor.

Passaram-se vários segundos antes que George entendesse as implicações das palavras de Rashaverak. Quando, por fim, compreendeu, seu rosto ficou branco.

— Quer dizer que?… — perguntou. A voz sumiu e ele teve que começar a frase de novo. — Então, em nome de Deus, meus filhos são o quê?

— Isso — respondeu Rashaverak solenemente — é o que estamos procurando descobrir.

Jennifer Anne Greggson estava deitada de costas, com os olhos fechados. Havia muito tempo que não os abria e nunca mais os abriria, pois para ela a vista era agora tão supérflua quanto para as criaturas que habitavam as profundezas escuras do oceano. Ela sentia o mundo que a rodeava; na verdade, sentia e pressentia mais do que isso.

Um reflexo permanecera de sua breve primeira infância, não se sabia como. O chocalho que antes a encantara soava agora incessantemente, marcando um ritmo complexo e sempre variado em sua cama. Um ritmo estranho, que despertara Jean e a levara, correndo, para o quarto das crianças. Mas não fora apenas o som que a fizera gritar por George.

Fora a visão daquele chocalho comum, de cores vivas, batendo no ar, a meio metro de qualquer suporte, enquanto Jennifer Anne, os dedos gorduchos entrelaçados, jazia, com um sorriso calmo no rosto.

Começara mais tarde, mas estava progredindo velozmente. Não tardaria a passar o irmão, pois tinha muito menos a desaprender.

— Fez bem em não tocar no brinquedo dela — disse Rashaverak. — Não acredito que pudesse tê-Io tirado do lugar. Mas, se tivesse conseguido, ela poderia ter ficado aborrecida. E então, não sei o que teria acontecido.

— Quer dizer — perguntou George, abatido — que os senhores não podem fazer nada?

— Não vou iludi-lo. Podemos estudar e observar, como já estamos fazendo. Mas não podemos interferir, porque não conseguimos entender.

— Então, que vamos fazer? E por que tudo isso aconteceu conosco?

— Tinha que acontecer com alguém. Não há nada de excepcional com vocês, como nada há com o primeiro nêu-tron que inicia a reação em cadeia numa bomba atômica. Acontece, pura e simplesmente, ser o primeiro. Qualquer outro nêutron teria servido; tal como com Jeffrey, poderia ter sido com qualquer outro. Chamamos a isso Penetração Total. Agora já não há nenhuma necessidade de guardar segredo, e ainda bem. Estávamos esperando que isso acontecesse desde que chegamos à Terra. Não havia maneira de sabermos quando e onde começaria, até que, por acaso, nos encontramos na festa de Rupert Boyce. Tive então quase a certeza de que os filhos de sua esposa seriam os primeiros.

— Mas… nessa altura ainda não estávamos casados. Não tínhamos nem…

— Eu sei. Mas a mente da Srta. Morrei foi o canal que, embora por um momento apenas, deixou passar conhecimentos que ninguém que estivesse vivo, naquela altura, poderia possuir. Só poderiam ter vindo através de uma outra mente, intimamente ligada à dela. O fato de ter sido uma mente por nascer não tem importância, pois o tempo é muito mais estranho do que o senhor possa pensar.

— Estou começando a entender. Jeff sabe dessas coisas, pode ver outros mundos e dizer de onde vocês vêm. Não sei como, Jean captou seus pensamentos, mesmo antes de ele ter nascido.

— A coisa é muito mais complicada do que isso, mas não creio que vocês possam alguma vez chegar muito mais perto da verdade. Através da história, sempre existiram pessoas com poderes inexplicáveis, que pareciam transcender o espaço e o tempo. Nunca os entenderam. Quase sem exceção, as tentativas de explicação foram ridículas. Eu sei, já li muito a respeito!

«Mas há uma analogia que é bem sugestiva e pode nos ajudar. Imagine que a mente de cada homem é uma ilha rodeada por oceanos. Cada mente parece estar isolada, mas na realidade estão todas ligadas pelo leito rochoso de que se originaram. Se os oceanos desaparecessem, seria o fim das ilhas. Todas passariam a fazer parte de um continente, mas sua individualidade teria desaparecido. É uma analogia que aparece freqüentemente na literatura de seu planeta.

«Pois bem, a telepatia, como vocês a chamam, é algo semelhante. Em circunstâncias propícias as mentes podem fundir-se e partilhar os conteúdos umas das outras, trazendo de volta memórias da experiência quando ficam de novo isoladas. Em sua forma mais elevada, esse poder não está sujeito às usuais limitações do tempo e do espaço. Foi por isso que Jean pôde transmitir os conhecimentos de seu filho por nascer.»

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual George procurou assimilar aqueles surpreendentes pensamentos. A coisa estava começando a tomar forma. Era algo incrível, mas que tinha sua lógica. E explicava — se é que esse verbo podia ser usado para algo tão incompreensível — tudo o que acontecera desde aquela noite em casa de Rupert Boyce. Também explicava, ele via agora, a curiosidade de Jean pelo sobrenatural.

— Quem começou tudo isso? — perguntou George. — E aonde irá parar?

— Eis aí algo a que não podemos responder. Mas há muitas raças no universo e algumas descobriram esses poderes muito antes de sua espécie — ou a minha — surgir em cena. Têm estado à espera de que vocês se juntassem a elas, e agora o momento chegou.

— Então, qual o seu papel em tudo isso?

— É provável que, como a maioria dos homens, o senhor nos tenha sempre considerado como amos ou patrões. Mas não é verdade. Nunca fomos mais do que guardiães, cumprindo um dever que nos foi imposto… de cima. Esse dever é difícil de definir; talvez seja semelhante ao das par-teiras, assistindo um parto difícil. Estamos ajudando a trazer algo de novo e maravilhoso para o mundo.

Rashaverak hesitou. Durante um momento, foi quase como se ele não encontrasse as palavras.

— Sim, nós somos as parteiras. Mas somos estéreis. Nesse momento, George percebeu que estava diante de uma tragédia muito maior que a sua. Era incrível — mas, de certa forma, justo. Apesar de todos os seus poderes e de seu brilho, os Senhores Supremos estavam numa espécie de beco sem saída evolutivo. Eram uma raça nobre e grande, superior, em quase todos os aspectos, à humanidade; entretanto, não tinham futuro e tinham consciência disso. Diante daquilo, os problemas de George pareceram, de repente, triviais.

— Agora sei — disse — por que vocês vigiaram Jef-frey. Ele foi a cobaia dessa experiência.

— Exatamente, embora a experiência estivesse fora de nosso controle. Não a começamos, procuramos apenas observar. Não interferimos, exceto quando foi necessário.

Sim, pensou George; o caso do vagalhão. Não podiam permitir que um espécime tão valioso fosse destruído. Mas logo sentiu vergonha de si próprio; uma tal amargura era indigna dele.

— Só mais uma pergunta — disse. — Que podemos fazer a respeito de nossos filhos?

— Aproveitar a companhia deles enquanto puderem — respondeu Rashaverak gravemente. — Não lhes pertencerão por muito tempo.

Era um conselho que podia ter sido dado a qualquer pai, em qualquer época — só que agora continha uma ameaça e um terror nunca sentidos.

Chegou o momento em que o mundo dos sonhos de Jeffrey já não era nitidamente separado de sua existência cotidiana. Ele já não ia à escola, e para Jean e George a rotina da vida também mudara inteiramente, como não tardaria a mudar nos quatro cantos do mundo dos homens.

Passaram a evitar os amigos, como se já soubessem que, em breve, nenhum deles os compreenderia. Às vezes, na quietude da noite, quando a maioria das pessoas já estava recolhida, saíam para dar grandes passeios a pé. Estavam agora mais unidos, como nos primeiros dias de seu casamento, unidos em face da tragédia ainda desconhecida, mas que não tardaria a desabar sobre eles.

A princípio, tinham experimentado um sentimento de culpa pelo fato de deixarem as crianças sozinhas em casa, mas agora percebiam que Jeff e Jennifer podiam cuidar de si mesmos de uma maneira que escapava à compreensão dos pais. Além do mais, os Senhores Supremos estavam vigilantes. Esse pensamento tranqüilizava-os: sentiam que não estavam a sós com seu problema, que olhos sábios e compassivos compartilhavam de sua vigília.

Jennifer dormia. Não havia outra palavra para descrever o estado em que ela mergulhara. Aparentemente, era ainda um bebê, mas à sua volta havia uma aura de poder latente tão assustador, que Jean não tinha mais coragem de entrar no quarto das crianças.

E não havia necessidade disso. O ser que fora Jennifer Anne Greggson ainda não estava completamente desenvolvido, mas mesmo naquele estado de crisálida adormecida já tinha suficiente controle do que a cercava para suprir suas necessidades. Jean tentara dar-lhe de comer, mas não conseguira. O ser alimentava-se quando queria e à sua maneira.

A comida desaparecia da geladeira de forma lenta e constante, mas Jennifer Anne nunca saía de seu berço.

O barulho do chocalho parará e o brinquedo jazia no chão do quarto, onde ninguém ousava tocá-lo, com medo de que Jennifer Anne voltasse a precisar dele. Às vezes, ela fazia com que a mobília se mexesse, formando desenhos, e George tinha a impressão de que a pintura fluorescente da parede brilhava mais do que nunca.

Ela não dava preocupações nem trabalho. A assistência deles, o amor deles já não a atingiam. Aquilo não podia demorar muito mais e, no tempo que lhes restava, apegavam-se desesperadamente a Jeff.

Ele também estava mudando, mas ainda os conhecia. O garoto, cujo crescimento haviam acompanhado desde as névoas informes da primeira infância, estava perdendo a personalidade, que se dissolvia, momento a momento, ante os olhos deles. Contudo, às vezes ainda lhes falava como antes, de seus brinquedos e dos amigos, como se não tivesse consciência do que o esperava. Mas a maior parte do tempo ele não os via, nem mostrava ter conhecimento da presença dos pais. Não mais dormia, como os pais eram forçados a fazer, apesar do desejo e da necessidade de desperdiçar o mínimo possível daqueles derradeiros momentos.

Ao contrário de Jenny, ele não parecia possuir poderes anormais sobre objetos físicos, talvez porque, sendo mais velho, tivesse menos necessidade deles. O que havia de estranho nele limitava-se a sua vida mental, da qual os sonhos eram agora apenas uma pequena parte. Ficava imóvel durante horas a fio, olhos cerrados, como se escutasse ruídos que ninguém mais pudesse ouvir. Sua mente estava absorvendo conhecimentos — vindos de algum lugar ou de algum tempo — que em breve avassalariam e destruiriam a criatura semi-formada que fora Jeffrey Angus Greggson.

E Fey ficava sentada, olhando, erguendo para ele uns olhos trágicos e intrigados, sem saber para onde o dono fora e quando voltaria para ela.

Jeff e Jenny haviam sido os primeiros, mas não demorou a que não estivessem mais sós. Como uma epidemia que se espalhasse rapidamente de país em país, a metamorfose contagiara toda a raça humana. Poupava quase todo mundo com mais de dez anos, ao passo que praticamente ninguém abaixo dessa idade escapava.

Era o fim da civilização, o fim de tudo o que os homens tinham conseguido, desde o começo do tempo. No espaço de alguns dias, a humanidade perdera seu futuro, pois o coração de qualquer raça é destruído e sua vontade de viver desaparece, quando os filhos lhe são tirados.

Não houve pânico, como teria acontecido um século antes. O mundo estava como que entorpecido, com as grandes cidades paradas e silenciosas. Apenas as indústrias vitais continuavam funcionando. Era como se o planeta estivesse de luto, chorando por tudo o que nunca mais haveria de vir.

E então, como fizera certa vez, numa era já esquecida, Karellen falou pela última vez à humanidade.

— Meu trabalho aqui está quase terminado — disse a voz de Karellen, através de um milhão de rádios. — Por fim, após cem anos, posso lhes dizer qual foi esse trabalho.

«Tivemos que esconder muitas coisas de vocês, da mesma forma que nos escondemos durante a metade de nossa estada na Terra. Sei que muitos de vocês achavam isso des- necessário. Já se acostumaram a nossa presença, não podem imaginar como seus ancestrais teriam reagido a ela. Mas, pelo menos, podem entender o que nos levou a nos escondermos, saber que tínhamos um motivo para o que fizemos.

«O segredo máximo que escondemos de vocês foi o objetivo de nossa vinda à Terra, coisa sobre a qual vocês nunca se cansaram de especular. Não podíamos revelá-lo porque o segredo não nos pertencia.

«Há um século, chegamos a seu mundo e os salvamos da autodestruição. Não creio que alguém possa negar esse fato, mas vocês nunca desconfiaram da verdadeira natureza dessa autodestruição.

«Como banimos as armas nucleares e os demais brinquedos mortíferos que vocês acumulavam em seus arsenais, o perigo da aniquilação física foi afastado. Vocês pensavam que esse fosse o único perigo. Quisemos que acreditassem nisso, mas não era verdade. O perigo maior que os confrontava era de um tipo inteiramente diferente — e não dizia respeito apenas à sua raça.

«Muitos mundos chegaram à encruzilhada do poder nuclear, evitaram o desastre final, continuaram a construir civilizações pacíficas e felizes, e foram depois destruídos por forças sobre as quais nada sabiam. No século XX, vocês começaram a mexer seriamente com essas forças. Foi por isso que se tornou necessário agir.

«Durante todo esse século, a raça humana foi se aproximando lentamente do abismo, sem sequer suspeitar de sua existência. Para atravessar esse abismo só há uma ponte. Poucas raças conseguiram encontrá-la sem ajuda. Algumas recuaram a tempo, evitando tanto o perigo quanto o feito em si. Seus mundos tornaram-se ilhas de contentamento sem esforço, sem qualquer papel na história do universo. Esse nunca seria o destino, ou a sorte, de vocês. Sua raça tinha demasiada vitalidade para isso. Teria mergulhado na ruína e arrastado outras consigo, pois vocês jamais teriam encontrado a ponte.

«Receio que grande parte do que eu tenho a dizer agora deva ser dito por meio de analogias. Vocês não têm palavras e nem conceitos para muitas das coisas que desejo lhes dizer — e seu conhecimento delas é também muito imperfeito.

«Para entender, precisam voltar ao passado e recuperar muita coisa que seus ancestrais teriam achado familiar, mas que vocês esqueceram — e que nós, em verdade, deliberada-mente os ajudamos a esquecer, pois toda a nossa estada aqui se baseou num vasto engano, num esconder de verdades que vocês não estavam preparados para enfrentar.

«Nos séculos anteriores a nossa vinda, seus cientistas descobriram os segredos do mundo físico e fizeram com que vocês passassem da energia do vapor à energia do átomo. Vocês descartaram todas as superstições; a ciência era a única religião da humanidade, o presente da minoria ocidental ao resto da raça humana, o destruidor de todas as outras crenças. As que ainda existiam, quando nós chegamos, já estavam moribundas. A opinião geral era de que a ciência podia explicar tudo. Não havia forças que escapassem a seu escopo, nem acontecimentos cuja explicação não se lhe pudesse imputar. A origem do universo podia ficar para sempre desconhecida, mas tudo o que acontecera depois obedecia às leis da física.

«Não obstante, seus místicos, embora perdidos nas próprias ilusões, viram parte da verdade. Há poderes mentais e poderes extramentais que sua ciência nunca poderia ter abrigado sem ficar definitivamente abalada. Através das idades, tem-se sabido de inúmeros fenômenos estranhos — teleci-nésia, telepatia, precognição — a que vocês deram nomes, mas que nunca conseguiram explicar. A princípio, a ciência ignorou-os, chegou mesmo a negar-lhes a existência, apesar do testemunho de cinco mil anos. Mas eles existem e nenhuma teoria do universo pode estar completa sem mencioná-los.

«Durante a primeira metade do século XX, alguns de seus cientistas começaram a investigar esses assuntos. Sem o saberem, estavam brincando com o fecho da caixa de Pandora. As forças que poderiam libertar transcendiam qualquer perigo que o átomo pudesse ter causado, porquanto os físicos só poderiam ter dado cabo da Terra, ao passo que os parafísicos poderiam ter levado o pandemônio também aos astros.

«Isso não podia acontecer. Não posso explicar a plena extensão da ameaça que vocês representavam. Não teria sido uma ameaça feita a nós e, por conseguinte, não a compreendemos. Digamos que vocês podiam ter-se tornado um câncer telepático, uma mentalidade maligna que, em sua inevitável dissolução, poderia ter envenenado outras mentes, bem maiores.

«E por isso viemos — ou melhor, fomos enviados — à Terra. Interrompemos seu desenvolvimento em todos os níveis culturais, mas principalmente no campo das pesquisas dos fenômenos paranormais. Tenho perfeita consciência de que também inibimos, pelo contraste entre nossas civilizações, todas as outras formas de realizações criativas. Mas isso foi um efeito secundário e não tem importância.

«Agora, devo dizer-lhes algo que vocês talvez achem surpreendente ou mesmo incrível. Todas essas potencialidades, todos esses poderes latentes, nós não os possuímos nem os compreendemos. Nossos intelectos são muito mais potentes do que os seus, mas existe algo em suas mentes que sempre nos escapou. Desde que chegamos à Terra que os estamos estudando. Aprendemos muito e vamos aprender ainda mais, mas duvido que alguma vez descubramos toda a verdade.

«Nossas raças têm muito em comum, e por isso fomos escolhidos para essa tarefa. Sob outros aspectos, representamos os fins de duas evoluções diferentes. Nossas mentes chegaram ao fim de seu desenvolvimento. O mesmo, em sua forma atual, aconteceu com as suas. Contudo, vocês podem dar o pulo para o próximo estágio e é nisso que reside a diferença entre nós. Nossas potencialidades estão exaustas, mas as suas ainda não foram exploradas. Estão relacionadas, de um modo que nós não entendemos, com os poderes que mencionei — os poderes que estão agora despertando em seu mundo.

«Atrasamos o relógio, fizemos com que vocês ficassem marcando tempo enquanto esses poderes se desenvolviam, até eles poderem sair pelos canais que estavam sendo preparados para esse fim. O que fizemos para melhorar seu planeta, para elevar seu padrão de vida, para trazer paz e justiça à Terra — tudo isso nós teríamos feito em quaisquer circunstâncias, de vez que éramos forçados a intervir nos assuntos da humanidade. Mas toda essa vasta transformação afastou-os da verdade e, portanto, veio ajudar o nosso objetivo.

«Somos seus guardiães — e nada mais. Várias vezes vocês devem ter querido saber qual a posição que minha raça ocupava na hierarquia do universo. Assim como estamos acima de vocês, também há algo acima de nós, servindo-se de nós para seus próprios fins. Nunca descobrimos o que é, embora há séculos sejamos seu instrumento e não ousemos desobedecer-lhe. Temos recebido ordens, ido para mundos em estágio primitivo de civilização, guiando-os por uma estrada que nunca poderemos trilhar — a estrada pela qual vocês estão agora seguindo.

«Repetidas vezes estudamos o processo que ajudamos a promover, esperando poder aprender a escapar de nossas limitações. Mas só conseguimos vislumbrar os vagos contornos da verdade. Vocês nos deram o nome de Senhores Supremos sem fazerem idéia da ironia desse título. Acima de nós está a Mente Suprema, utilizando-nos como o oleiro usa seu torno.

«E sua raça é a argila que está sendo torneada.

«Acreditamos — embora não passe de uma teoria — que a Mente Suprema esteja procurando crescer, estender seus poderes e aumentar seu conhecimento do universo. A essa altura, deve ser a soma de muitas raças e ter deixado muito para trás a tirania da matéria. Tem consciência da inteligência, onde quer que ela esteja. Quando soube que vocês estavam quase prontos, mandou-nos para cá, a fim de prepará-los para a transformação que ora vai acontecer.

«Todas as mudanças anteriores que sua raça conheceu levaram um tempo incalculável. Mas essa é uma transformação da mente, e não do corpo. Pelos padrões da evolução, será cataclísmica — instantânea. E já começou. Vocês têm que enfrentar o fato de que são a última geração do Homo sapiens.

«Quanto à natureza dessa mudança, muito pouco lhes podemos dizer. Não sabemos como ela se produz — que impulso aciona a Mente Suprema quando acha que o momento chegou. Tudo o que descobrimos foi que começa com um indivíduo — sempre uma criança — e depois se espalha explosivamente, como a formação de cristais em volta do primeiro núcleo, numa solução saturada. Os adultos não serão afetados, pois suas mentes já estão formadas de maneira inalterável.

«Daqui a alguns anos, tudo terá terminado e a raça humana se terá dividido em duas. Não há como retroceder, nem futuro para o mundo que vocês conhecem. Todas as esperanças e todos os sonhos de sua raça terminam aqui. Vocês deram à luz seus sucessores e é uma tragédia, mas nunca vão entendê-los, nem sequer poder se comunicar com as mentes deles. Na realidade, eles não terão mente igual à que vocês conhecem. Serão uma entidade única, assim como vocês são a soma de todas as suas células. Vocês não vão considerá-los humanos e não se enganarão.

«Disse-lhes tudo isso para que saibam o que os espera. Dentro de algumas horas, a crise recairá sobre nós. Minha missão e meu dever são proteger aqueles a quem fui enviado para guardar. Embora seus poderes estejam despertando, poderiam ser destruídos pelas multidões à sua volta — até mesmo pelos pais, quando eles se dessem conta da verdade. Preciso levá-los comigo e isolá-los, para proteção deles e sua. Amanhã, minhas naves darão início à evacuação. Não os culparei, se vocês procurarem interferir, mas será inútil. Poderes bem maiores que os meus estão agora despertando; não passo de um de seus instrumentos.

«E, depois, que é que vou fazer com vocês, sobreviventes, quando seu destino tiver sido cumprido? Talvez o mais simples e misericordioso fosse acabar com vocês, como vocês acabariam com um animal de estimação que estivesse mortalmente ferido. Mas não posso fazer isso. Seu futuro será escolhido por vocês mesmos, nos anos que lhes restam. Espero que a humanidade acabe descansando em paz, sabendo que não viveu em vão.

«Porque o que vocês terão trazido para o mundo pode ser muito estranho, pode não corresponder a nenhum de seus desejos ou esperanças, pode fazer com que suas maiores realizações pareçam brinquedos de criança, mas será algo maravilhoso, e vocês o terão criado.

«Quando nossa raça tiver sido esquecida, uma parte da sua continuará existindo. Não nos condenem, portanto, pelo que fomos obrigados a fazer. E lembrem-se; nós sempre os invejaremos.»

Jean já havia chorado, mas agora não chorava. A ilha jazia, dourada ao sol inclemente e insensível, quando a nave surgiu lentamente à vista, por sobre os picos gêmeos de Esparta. Naquela ilha rochosa, não havia muito tempo, seu filho escapara da morte por um milagre que ela agora entendia muito bem. Às vezes, pensava se não teria sido preferível que os Senhores Supremos o houvessem deixado entregue a seu destino. A morte era algo que ela podia enfrentar, que ela já enfrentara: era a ordem natural das coisas. Mas aquilo era mais estranho que a morte — e mais definitivo. Até aquele dia, muita gente tinha morrido, mas a raça continuara.

As crianças não falavam nem se mexiam. Estavam espalhadas sobre a areia, não mostrando mais interesse umas nas outras do que nos lares que iam deixar para sempre. Muitos carregavam bebês demasiado pequenos para andar — ou que não desejavam acionar os poderes que tornavam o andar desnecessário. Porque, com toda a certeza, pensou George, se eram capazes de fazer a matéria inanimada se mover, podiam também movimentar os próprios corpos. Por que razão estavam as naves dos Senhores Supremos recolhendo todas elas?

Mas isso não tinha importância. Estavam indo embora e aquela era a maneira que escolhiam para ir. Foi então que George se lembrou de algo que lhe vinha mexendo com a memória. Em algum lugar, havia muito tempo, vira um documentário cinematográfico de um êxodo semelhante, ocorrido havia um século. Devia ter sido no início da Primeira Grande Guerra, ou da Segunda. Viam-se longas filas de trens, cheios de crianças, saindo lentamente das cidades ameaçadas, deixando para trás pais que muitos deles nunca mais voltariam a ver. Poucas choravam: algumas pareciam espantadas, segurando nervosamente seus pequenos pertences, mas a maioria parecia estar contemplando alguma grande aventura.

No entanto, a analogia era falsa. A história jamais se repetia. Os que agora estavam partindo já não eram crianças, fossem o que fossem. E, dessa vez, nunca mais se reuniriam aos pais.

A nave pousara à beira d'água, afundando na areia macia. Em perfeito uníssono, a linha de grandes painéis curvos ergueu-se e as pranchas de embarque estenderam-se na direção da praia, como se fossem línguas de metal. Os vultos espalhados e solitários começaram a convergir, a formar uma pequena multidão, semelhante a qualquer multidão humana.

Solitários? Por que teria ele pensado isso? perguntou George a si mesmo. Porque isso era justamente o que elas nunca mais seriam. Só as pessoas podem se sentir sós: só os seres humanos. Quando, por fim, as barreiras tivessem caído, a solidão desapareceria ao mesmo tempo que a personalidade. As inúmeras gotas de chuva se teriam misturado com o oceano.

Sentiu a mão de Jean aumentar a pressão sobre a sua, num súbito espasmo de emoção.

— Veja — murmurou ela. — Estou vendo Jeff. Junto à segunda porta.

A distância era grande e tornava-se bastante difícil dizer ao certo. George tinha como que uma névoa diante dos olhos, que lhe dificultava a visão. Mas, sim, era Jeff, ele tinha certeza disso. George podia agora reconhecer o filho, já com um pé na prancha metálica.

Jeff virou-se e olhou para trás. Seu rosto era apenas uma mancha branca. Àquela distância, não se podia dizer se ele estava reconhecendo os pais, se se estava lembrando de tudo o que deixava para trás, E George também nunca saberia se Jeff se voltara para eles por puro acaso, ou se sabia, naqueles derradeiros momentos em que ainda era filho deles, que os pais o estavam vendo passar para uma região onde jamais poderiam entrar.

As grandes portas começaram a fechar-se. Nesse momento preciso, Fey ergueu o focinho e soltou um uivo baixo e desolado. Levantou os belos olhos para George e ele percebeu que ela acabava de perder o dono. Agora ele já não tinha rival.

Para os que tinham ficado, havia muitos caminhos, mas apenas um destino. Havia os que diziam: «O mundo continua belo. Um dia, vamos ter que deixá-lo, mas para que apressar nossa partida?»

Mas outros, que tinham olhado mais para o futuro do que para o passado, e haviam perdido tudo o que fazia a vida digna de ser vivida, não desejavam ficar. Partiram sozinhos ou com amigos, segundo sua natureza.

Foi assim com Atenas. A ilha nascera do fogo; no fogo escolheu morrer. Os que desejavam partir, partiram, mas a maioria ficou, para esperar o fim entre os fragmentos de seus sonhos despedaçados.

Ninguém sabia quando seria. Contudo, Jean despertou na quietude da noite e ficou por um momento olhando para o reflexo que vinha do teto. Depois, estendeu o braço e agarrou a mão de George. Ele tinha um sono profundo, mas dessa vez acordou imediatamente. Não disseram nada, pois as palavras que seriam necessárias não existiam.

Jean já não estava assustada, nem sequer triste. Atingira como que uma calma em que as emoções já não a to- cavam. Mas faltava ainda fazer uma coisa e ela sabia que o tempo mal chegaria.

Mesmo assim, sem dizer palavra, George seguiu-a atra-vés da casa em silêncio. Atravessaram a mancha de luar que entrava pelo estúdio, avançando tão silenciosamente quanto as sombras que ela formava, até chegarem ao deserto quarto das crianças.

Nada mudara. Os desenhos fluorescentes que George pintara com tanto cuidado continuavam a brilhar nas paredes. E o chocalho que pertencera a Jennifer Anne estava ainda onde ela o deixara cair, quando sua mente se voltara para a região ignorada que ora habitava.

Ela deixou os brinquedos, pensou George, mas os nossos vão conosco. Lembrou-se dos filhos dos faraós, cujas bonecas e contas de brinquedo tinham sido sepultadas com eles, cinco mil anos atrás. E assim seria agora. Ninguém mais, pensou, amará nossos tesouros; vamos levá-los conosco, não vamos nos separar deles.

Jean voltou-se lentamente para ele e pousou a cabeça em seu ombro. Ele enlaçou-a pela cintura e o amor que antes sentira voltou-lhe, não tão forte, mas nítido, como se fosse um eco vindo de montanhas distantes. Era demasiado tarde para dizer-lhe tudo o que lhe devia e os remorsos que ele sentia eram menos por suas traições do que pela passada indiferença.

Então, Jean disse baixinho: — Adeus, meu amor — e abraçou-o com força. George não teve tempo de responder, mas mesmo naquele derradeiro momento não pôde deixar de sentir-se espantado de ver como ela sabia que o momento tinha chegado.

Lá embaixo, nas rochas, os segmentos de urânio começaram a se aproximar, em busca da união que nunca alcançariam.

E a ilha ergueu-se ao encontro da alvorada.

A nave dos Senhores Supremos atravessou o coração de Carina, deslizando pela sua trilha meteórica. Iniciara a louca desaceleração em meio aos planetas exteriores, mas ao pas- sar por Marte ainda possuía uma fração considerável da velocidade da luz. Aos poucos, os imensos campos em volta do Sol lhe iam absorvendo o impulso, enquanto, pelo espaço de um milhão de quilômetros mais atrás, as energias dispersas da Stardrive pintavam os céus de fogo.

Jan Rodricks estava voltando à Terra, seis meses mais velho, embora tivesse partido oitenta anos antes.

Dessa vez, já não era um clandestino, escondido numa câmara secreta. Estava atrás dos três pilotos (por que razão, pensava ele, precisariam de tantos?) olhando para a grande tela que dominava a sala de controles. As cores e formas que apareciam na tela nada significavam para ele; decerto forneceriam informações que, numa nave desenhada pelos homens, teria sido dada por meio de tabelas. Mas às vezes a tela mostrava os campos de estrelas circundantes e ele esperava que, em breve, mostrasse também a Terra.

Estava satisfeito de voltar para casa, apesar do esforço que fizera para sair de seu planeta. Naqueles poucos meses, Jan amadurecera. Vira tantas coisas, viajara tão longe, que estava desejoso de voltar a seu mundo. Compreendia agora por que os Senhores Supremos haviam proibido os homens de ir às estrelas. A humanidade ainda tinha muito que progredir, antes que pudessem desempenhar qualquer papel na civilização que ele vislumbrara.

Talvez — embora ele se recusasse a aceitar isso — a humanidade jamais pudesse vir a ser mais do que uma espécie inferior, conservada num zoológico distante pelos Senhores Supremos, na qualidade de guardiães. Talvez fosse isso o que Vindarten quisera dizer, ao prevenir Jan daquela maneira ambígua, pouco antes de sua partida. — Muita coisa pode ter acontecido — dissera ele — durante esse tempo, em seu planeta. Pode ser que você não reconheça seu mundo quando voltar a vê-lo.

Talvez não, pensou Jan. Oitenta anos era muito tempo e, embora ele fosse jovem e tivesse facilidade em se adaptar, poderia achar difícil entender todas as mudanças que se haviam processado. Mas de uma coisa ele estava certo — os homens gostariam de ouvir a história que ele tinha para contar e de saber o que ele pudera ver da civilização dos Senhores Supremos.

Tinham-no tratado bem, conforme ele esperara que fizessem. Da viagem de ida, nada soubera. Depois que a injeção deixara de fazer efeito e ele saíra da câmara onde se havia escondido, a nave já estava entrando no sistema dos

Senhores Supremos. Saíra de seu fantástico esconderijo e descobrira, para seu alívio, que o balão de oxigênio não era necessário. O ar era espesso e pesado, mas podia respirar sem dificuldade. Fora dar consigo no enorme porão, iluminado a luz vermelha, da nave, entre inúmeros outros caixotes e demais bagagens que se poderia esperar encontrar numa nave espacial ou num navio. Levara quase uma hora para encontrar o caminho da sala de controles e se apresentar à tripulação.

A falta de surpresa mostrada intrigara-o. Sabia que os Senhores Supremos demonstravam poucas emoções, mas esperara alguma reação. Em vez disso, eles tinham continuado como se nada houvesse ocorrido, olhando para a grande tela e mexendo nos inúmeros botões de seus painéis de controle. Foi então que soube que estavam descendo, pois, de vez em quando, a imagem de um planeta — sempre maior, cada vez que aparecia — surgia na tela. Contudo, nunca havia a menor sensação de movimento ou aceleração, apenas uma gravidade perfeitamente constante, que ele calculava como sendo aproximadamente um quinto da da Terra. As imensas forças que impeliam a nave deviam ser compensadas com precisão.

Os três Senhores Supremos se haviam levantado ao mesmo tempo de seus assentos e ele soubera que a viagem terminara. Não falaram com seu passageiro ou um com o outro e, quando um deles lhe fez sinal para segui-los, Jan compreendeu algo em que não pensara antes. Talvez não houvesse ninguém ali, naquela ponta da enorme linha de suprimentos de Karellen, que entendesse uma única palavra de inglês.

Fitaram-no gravemente, quando as grandes portas se abriram diante de seus olhos ávidos. Aquele era o momento supremo de sua vida: ia ser o primeiro ser humano a olhar para um mundo iluminado por outro sol. A luz cor de rubi da NGS 549672 inundou a nave e diante dele surgiu o planeta dos Senhores Supremos.

Que tinha ele esperado? Não estava muito certo. Vastos edifícios, cidades com torres que se perdiam entre as nuvens, máquinas para além de tudo o que a imaginação poderia sonhar — nada disso o teria surpreendido. Mas o que ele vira fora uma planície incaracterística, estendendo-se para um horizonte demasiadamente próximo e quebrada apenas por mais três naves dos Senhores Supremos, a alguns quilômetros de distância.

Por um momento, Jan sentiu-se desapontado. Depois, deu de ombros, compreendendo que, afinal de contas, era de se esperar encontrar um espaçoporto numa região tão remota e desabitada quanto aquela.

Fazia frio, mas não a ponto de não se poder agüentar. A luz irradiada pelo grande sol vermelho, como que afundado no horizonte, era suficiente para os olhos humanos, mas Jan não sabia quanto tempo ele agüentaria sem a vista repousante dos verdes e dos azuis. Viu então um enorme e fino crescente, subindo no céu como se fosse um grande arco colocado ao lado do Sol. Ficou olhando para ele durante muito tempo, antes de compreender que a viagem ainda não tinha terminado. Aquele era o mundo dos Senhores Supremos. Esse devia ser seu satélite, a base a partir da qual suas naves operavam.

Eles o levaram para uma nave não maior que um avião de carreira terrestre. Sentindo-se como um pigmeu, subira para uma das grandes poltronas, a fim de tentar ver algo do planeta que se aproximava, através das janelas.

A viagem foi tão rápida, que mal teve tempo de observar alguns detalhes a respeito do globo que se estendia embaixo da nave. Aparentemente, mesmo ali, tão próximo de seu mundo, os Senhores Supremos utilizavam uma versão da Stardrive, pois numa questão de minutos atravessaram uma atmosfera funda e cheia de nuvens. Quando as portas se abriram, clandestino e tripulação saíram para uma câmara abobadada, com um teto que devia ter-se fechado rapidamente atrás deles, pois não havia sinal de qualquer entrada.

Passaram-se dois dias antes que Jan saísse daquele edifício. Era uma mercadoria inesperada e não pareciam ter lugar onde colocá-lo. Para piorar as coisas, nenhum dos Senhores Supremos entendia inglês. A comunicação era praticamente impossível e Jan compreendeu com amargura que entrar em contato com uma raça estranha não era tão fácil quanto a ficção indicava. A linguagem por sinais não deu resultado, pois dependia muito de um conjunto de gestos, expressões e atitudes que os Senhores Supremos e a humanidade não tinham em comum.

Seria uma grande frustração, pensou Jan, se os únicos Senhores Supremos que falavam sua língua estivessem na Terra. Só lhe restava esperar pelo melhor. Sem dúvida algum cientista, algum especialista em raças estrangeiras, surgiria para tomar conta dele! Ou seria tão sem importância que ninguém se incomodaria com ele?

Não havia como sair do edifício, pois as grandes portas não tinham controles visíveis. Quando um Senhor Supremo se aproximava, elas simplesmente se abriam. Jan tentara fazer o mesmo, erguera objetos no ar a fim de interromper qualquer raio controlador, tentara tudo o que lhe viera à mente, sem qualquer resultado. Ocorreu-lhe que um homem da Idade da Pedra, perdido numa cidade ou num edifício moderno, teria as mesmas dificuldades. Certa vez, procurara sair ao mesmo tempo que um Senhor Supremo, mas fora gentilmente obrigado a recuar. Como estava ansioso por não irritar seus anfitriões, não insistira.

Vindarten chegou antes que Jan começasse a se desesperar. O Senhor Supremo falava um inglês muito ruim e demasiado depressa, mas melhorara com extraordinária rapidez. Em poucos dias eles podiam conversar quase sem dificuldade sobre qualquer assunto que não exigisse vocabulário especializado.

Depois que Vindarten tomara conta dele, Jan não tivera mais preocupações. Tampouco tivera oportunidade de fazer o que desejava, pois quase todo o seu tempo era passado em reuniões com os cientistas dos Senhores Supremos, ávidos de levar a cabo testes obscuros, com instrumentos complicados. Jan não via com bons olhos aquelas máquinas e, após uma sessão com um certo aparelho de hipnose, ficara várias horas com uma horrível dor de cabeça. Estava perfeitamente de acordo em cooperar, mas não tinha a certeza de que os cientistas percebiam suas limitações, tanto mentais quanto físicas. Passou-se muito tempo antes que pudesse convencê-los de que precisava dormir a intervalos regulares.

Entre essas sessões, pôde ver algo da cidade e compreender quão difícil — e perigoso — seria, para ele, andar por ela. As ruas praticamente não existiam e não parecia haver transporte de superfície. Era um mundo de criaturas capazes de voar e que não temiam a gravidade. Não era raro deparar, sem o menor aviso, com um vertiginoso abismo de várias centenas de metros, ou descobrir que a única entrada para uma sala era uma abertura no alto da parede. Jan começou a perceber que a psicologia de uma raça dotada de asas tinha que ser forçosamente diferente da das criaturas terrenas.

Era estranho ver os Senhores Supremos voar, como se fossem grandes pássaros, por entre as torres de sua cidade, as asas movendo-se em batidas lentas e poderosas. E havia um problema científico. Aquele era um planeta grande — maior que a Terra. No entanto, sua gravidade era baixa e Jan não entendia por que razão tinha atmosfera tão densa. Interrogou Vindarten a respeito e ficou sabendo, como já desconfiava, que aquele não era o planeta originário dos Senhores Supremos. Tinham evoluído num mundo muito menor e depois conquistado aquele, mudando-lhe não só a atmosfera, como também a gravidade.

A arquitetura dos Senhores Supremos era sisudamente funcional; Jan não vira ornamentos, nada que não tivesse uma utilidade, embora muitas vezes ele não compreendesse qual seria ela. Se um homem da Idade Média tivesse visto aquela cidade de luz vermelha e os seres que se moviam nela, sem dúvida teria pensado que estava no inferno. Até mesmo Jan, com toda a sua curiosidade e seu espírito científico, às vezes dava consigo à beira de um terror irracional. A ausência de um único ponto de referência familiar pode enervar até mesmo a mente mais lúcida e fria.

E havia tanta coisa que ele não compreendia e que Vindarten não podia ou não queria explicar! O que eram aquelas luzes que apagavam e acendiam, e aquelas formas mutáveis, aquelas coisas que tremulavam através do ar, tão depressa que ele nunca podia estar certo de sua existência? Podiam ser algo tremendo e apavorante, ou tão espetacular e trivial quanto os cartazes luminosos da antiga Broadway.

Jan também sentia que o mundo dos Senhores Supremos era cheio de sons que ele não podia ouvir. Ocasionalmente, captava alguma complexa combinação rítmica, subindo e descendo pelo espectro audível, para terminar desaparecendo na margem superior ou inferior da audição. Vindarten não parecia entender o que Jan queria dizer ao se referir à música, de modo que esse problema nunca foi esclarecido satisfatoriamente.

A cidade não era muito grande, certamente bem menor do que Londres ou Nova York haviam sido quando em seu apogeu. Segundo Vindarten, havia vários milhares de cidades parecidas, espalhadas pelo planeta, cada qual planejada para algum fim específico. Na Terra, o mais próximo teria sido uma cidade universitária, só que ali o grau de especialização tinha ido muito mais longe. Jan não tardou a descobrir que toda aquela cidade era dedicada ao estudo de culturas estrangeiras.

Numa das primeiras saídas da cela nua em que Jan vivia, Vindarten levara-o ao museu. Fora para Jan uma espécie de estímulo psicológico encontrar-se num lugar cujo propósito ele podia entender plenamente. Se não fosse a escala em que fora construído, o museu bem poderia estar situado na Terra. Tinham levado muito tempo para alcançá-lo, descendo por uma grande plataforma, que se movia como um pistão, num cilindro vertical de comprimento desconhecido. Não havia controles visíveis e a sensação de aceleração, no início e no fim da descida, era notável. Presumivelmente, os Senhores Supremos não desejavam desperdiçar seus aparelhos compensadores de gravidade para fins domésticos. Jan ficou pensando se todo o interior daquele mundo não seria cheio de escavações. E por que teriam eles limitado o tamanho da cidade, estendendo-a subterraneamente, em vez de espraiá-la? Esse foi outro dos muitos enigmas que ele não conseguiu solucionar.

Podia-se passar toda uma vida explorando aquelas câmaras colossais. Ali estava guardado tudo o que fora trazido dos planetas, as realizações de muitas civilizações que Jan nem sequer podia imaginar. Mas não houvera tempo de ver muita coisa. Vindarten colocara-o cuidadosamente sobre um pedaço de chão que, à primeira vista, parecia um desenho ornamental. Mas Jan lembrou-se de que ali não havia ornamentos; e, ao mesmo tempo, algo invisível o agarrara e o empurrara para a frente. Logo ele se vira passando diante de grandes vitrinas, de vistas de mundos inimagináveis, a uma velocidade de vinte ou trinta quilômetros horários.

Os Senhores Supremos tinham resolvido o problema da fadiga de museu. Ali não havia necessidade de andar.

Deviam ter viajado vários quilômetros, quando o guia de Jan de novo o agarrou e, agitando as grandes asas, o arrancou do campo de ação da força que os estava impelindo. Diante deles havia um enorme salão, meio vazio e iluminado por uma luz familiar, que Jan não via desde que deixara a Terra. Era uma luz suave, de modo a não causar dor aos olhos sensíveis dos Senhores Supremos, mas era, sem dúvida alguma, a luz do Sol. Jan nunca teria acreditado que algo tão simples ou tão comum lhe pudesse despertar tanta saudade.

Estavam no salão dedicado à Terra. Caminharam alguns metros, passando por uma bela maquete de Paris, por tesouros de arte de uma dúzia de países, agrupados de qualquer maneira, por modernas máquinas de calcular e machados pa-leolíticos, por televisores e pela primeira turbina a vapor. Uma grande porta se abriu diante deles e entraram no gabinete do Curador para a Terra.

Seria a primeira vez que ele via um ser humano? pensou Jan. Teria alguma vez ido à Terra, ou seria apenas um dos muitos planetas a seu cargo, de cuja exata localização ele não estava certo? O fato é que não falava nem entendia inglês e Vindarten teve que servir de intérprete.

Jan passou várias horas ali, falando num gravador, enquanto os Senhores Supremos lhe apresentavam diversos objetos terrestres, muitos dos quais, para sua vergonha, ele não fora capaz de identificar. A ignorância de sua própria raça e de suas realizações era enorme. Ele gostaria de saber se os Senhores Supremos, apesar de todos os seus soberbos dotes mentais, seriam realmente capazes de compreender todas as peculiaridades da cultura humana.

Vindarten levara-o para fora do museu por um caminho diferente. De novo tinham flutuado-, sem esforço, através de grandes corredores abobadados, mas dessa vez por entre as criações da natureza, e não da mente consciente. Sullivan, pensara Jan, teria dado a vida para estar ali, para ver as maravilhas que a evolução tinha processado numa centena de mundos. Mas Sullivan, provavelmente, já estava morto…

Depois, sem qualquer aviso, viram-se numa galeria, ao alto de uma grande câmara circular, com aproximadamente cem metros de diâmetro. Como de costume, não havia parapeito de proteção e, por um momento, Jan hesitara em se aproximar da beira. Mas Vindarten estava bem na beirada, olhando calmamente para baixo, de modo que Jan avançou, cauteloso, ao encontro dele.

O chão estava apenas vinte metros abaixo — demasiado perto. Mais tarde, Jan teve a certeza de que seu guia não pretendera assustá-lo e fora tomado de surpresa pela sua reação, pois ele soltara um tremendo berro e pulara para trás, procurando não ver o que havia embaixo. Só quando os ecos de seu grito já tinham morrido na espessa atmosfera, é que ele tivera coragem de se aproximar de novo.

Naturalmente, não tinha vida — e não estava olhando fixo para ele, como pensara no primeiro momento de pânico. Ocupava quase todo o grande espaço circular e a luz cor de rubi brilhava e tremulava nas suas profundezas de cristal.

Era um olho de gigante.

— Por que você fez esse barulho? — perguntou Vindarten.

— Fiquei apavorado — confessou Jan.

— Mas por quê? Sem dúvida você não imaginou que pudesse haver algum perigo!

Jan ficou pensando se poderia explicar o que era um ato reflexo, mas resolveu nem tentar.

— Tudo o que é completamente inesperado é assustador. Até uma situação nova ser analisada, o melhor é presumir o pior.

O coração dele ainda batia violentamente, quando olhou, mais uma vez, para o monstruoso olho. Naturalmente, podia ser um modelo de olho, muitíssimo ampliado, como os micróbios e os insetos nos museus da Terra. Contudo, mesmo ao fazer a pergunta, Jan já sabia, com uma certeza horripilante, que não era um olho aumentado.

Vindarten pouco lhe soube dizer; aquele não era seu campo de conhecimento e a curiosidade não era seu fraco. Partindo da descrição do Senhor Supremo, Jan construiu mentalmente a imagem de uma besta ciclópica, vivendo em meio ao entulho asteroidal de algum sol distante, tendo seu crescimento inibido pela gravidade, dependendo, para comer e viver, do alcance e do poder de resolução de seu único olho.

Não parecia haver limites para o que a natureza era capaz de fazer, quando pressionada, e Jan sentiu um prazer irracional em descobrir algo que os Senhores Supremos não seriam capazes de dominar. Tinham trazido uma baleia da Terra, mas nada tinham podido fazer a respeito daquilo.

De outra feita, ele subira, subira, até as paredes do elevador passarem de opalescentes a transparentes como cristal. Sentia como se estivesse de pé, sem ter onde se apoiar, entre os mais altos picos da cidade, sem nada a protegê-lo do abismo. Mas não sentia mais vertigem do que se estivesse num avião, pois não havia sensação de contato com o chão distante.

Estava acima das nuvens, partilhando do céu com alguns pináculos de metal ou pedra. Qual um mar vermelho-rosado, a camada de nuvens rolava, lentamente, abaixo dele. Havia duas luas pálidas e minúsculas no céu, não longe do sol sombrio. Perto do centro daquele disco vermelho e inchado via-se uma pequena sombra escura, perfeitamente circular. Podia ser uma mancha solar ou uma outra lua em trânsito.

Jan foi avançando lentamente com o olhar ao longo do horizonte. A capa de nuvens estendia-se até a beira daquele mundo enorme, mas numa direção, a uma distância impossí- vel de se calcular, havia uma mancha sarapintada, que podia ser formada pelas torres de uma outra cidade. Fitou-a durante muito tempo e depois continuou a olhar.

Quando já tinha dado meia-volta, viu a montanha. Não estava contra o horizonte, mas além dele — um único pico serrilhado, erguendo-se por sobre a beirada do mundo, as vertentes mais baixas escondidas como a parte maciça de um iceberg se oculta sob a linha d'água. Mesmo num mundo com gravidade tão baixa quanto aquela, parecia difícil acreditar que tais montanhas pudessem existir. Seria possível que os Senhores Supremos praticassem esportes em suas vertentes e voassem, como águias, em torno daqueles imensos contrafortes?

Então, aos poucos, a montanha começou a mudar de forma. Quando ele a vira pela primeira vez, ela era de um vermelho fosco e quase sinistro, com algumas marcas junto ao cume, que ele não podia distinguir nitidamente. Estava procurando focalizá-las, quando percebeu que elas estavam se mexendo…

A princípio, não pôde acreditar no que via. Depois, lembrou-se de que todas as suas idéias preconcebidas de nada valiam ali; não podia permitir que sua mente rejeitasse qualquer mensagem que os sentidos levassem para a câmara oculta do cérebro. Não devia procurar entender — apenas observar. A compreensão viria mais tarde, ou não viria nunca.

A montanha — continuava a pensar nela como montanha, pois não sabia de nenhuma outra palavra que servisse para defini-la — parecia ter criado vida. Lembrou-se daquele olho monstruoso, em sua câmara subterrânea — mas, não, isso era inconcebível. Não estava olhando para a vida orgânica. Suspeitava, mesmo, que não se tratasse de matéria, tal e qual a conhecia.

O vermelho-escuro estava ficando mais claro, transformando-se num tom mais gritante. Faixas de amarelo-vivo surgiram e, por um momento, Jan pensou estar olhando para um vulcão que vomitasse correntes de lava para a terra abaixo dele. Mas aquelas correntes, como podia ver, pelas manchas que iam e vinham, estavam subindo.

Agora, uma outra coisa estava subindo das nuvens de rubi, que rodeavam a base da montanha. Era um anel gigante, perfeitamente horizontal e circular, e tinha a cor de tudo o que Jan deixara para trás, pois nunca os céus da Terra tinham sido mais azuis. Em nenhum outro lugar do mundo dos Senhores Supremos tinha ele visto tons como aqueles e teve que engolir em seco, tomado de uma saudade intensa e de um terrível sentimento de solidão.

O anel alargava-se, à medida que ia subindo. Estava agora mais alto do que a montanha e seu arco estendia-se rapidamente para ele. Sem dúvida, pensou Jan, deve ser uma espécie de vórtice — um anel de fumaça, com muitos quilômetros de diâmetro. Mas não redemoinhava, conforme ele esperava, e não parecia esfumar-se mais à medida que aumentava de tamanho.

Sua sombra projetou-se muito antes que o anel propriamente dito se espalhasse, majestosamente, sobre sua cabeça, continuando a subir no espaço. Jan ficou a vê-lo até ele se transformar num fiozinho azul, difícil de se distinguir em meio à vermelhidão do céu. Quando, por fim, desapareceu, já devia ter muitos milhares de quilômetros de diâmetro. E ainda estava crescendo.

Olhou para trás, para a montanha. Estava agora dourada e sem nenhuma marca. Talvez fosse obra da imaginação — a essa altura, ele já acreditava em tudo —, mas parecia-lhe mais alta e estreita, além de girar como o funil de um ciclone. Só então, ainda estonteado e com o raciocínio quase apagado, ele se lembrou de sua máquina fotográfica. Ergueu-a ao nível do olho e mirou aquele impossível, estarre-cedor enigma.

Vindarten colocou-se, rapidamente, na linha de visão. Com implacável firmeza, suas grandes mãos cobriram a lente e forçaram-no a abaixar a câmara. Jan não tentou sequer resistir; teria sido inútil, mas ele sentiu um súbito medo mortal daquela coisa na beira do mundo e não quis mais nada com ela.

Não houve nenhuma outra coisa, em suas viagens, que não o deixassem fotografar, e Vindarten nunca dava explicações. Ao contrário, passava muito tempo fazendo com que Jan descrevesse, em detalhes, tudo o que vira.

Foi então que Jan percebeu que os olhos de Vindarten haviam visto algo totalmente diferente; e foi quando ele suspeitou, pela primeira vez, que os Senhores Supremos também tinham seus senhores.

Agora, ele estava voltando para a Terra, e todo o espanto, medo e mistério tinham ficado para trás. A nave parecia-lhe a mesma, embora tivesse a certeza de que não era a mesma tripulação. Por mais longas que fossem suas vidas, era difícil acreditar que os Senhores Supremos se afastassem voluntariamente de seu planeta para fazer viagens interestelares que demoravam décadas.

O efeito de relatividade tempo-dilatação operava, naturalmente, em ambos os sentidos. Os Senhores Supremos só envelheceriam quatro meses na viagem de ida e volta, mas quando voltassem, seus amigos estariam oitenta anos mais velhos.

Se assim tivesse desejado, Jan sem dúvida poderia ter ficado lá para o resto da vida. Mas Vindarten prevenira-o de que não haveria outra nave para a Terra durante vários anos e aconselhara-o a aproveitar a viagem. Talvez os Senhores Supremos compreendessem que, mesmo naquele relativamente curto espaço de tempo, a mente de Jan quase chegara ao fim de sua capacidade de absorção. Ou talvez sua presença prolongada pudesse ter sido inconveniente e eles não quisessem gastar mais tempo com ele.

Agora, isso já não tinha importância, pois a Terra estava ao alcance de sua vista. Já a vira centenas de vezes do alto, mas sempre através do olho mecânico e remoto da câmara de televisão. Agora, por fim, ele estava em pleno espaço, completando o último ato de seu sonho, e a Terra girava, lá embaixo, em sua eterna órbita.

O grande crescente verde-azulado estava em quarto crescente: mais de metade do disco visível continuava imerso em escuridão. Havia poucas nuvens — alguns bancos, espalhados ao longo da linha de ventos alísios. A calota ártica refulgia, mas não tanto quanto o ofuscante reflexo de sol no Pacífico norte.

Quem não o conhecesse, teria pensado que aquele era um mundo de água; o hemisfério visível quase não tinha terras. O único continente visível era a Austrália, uma neblina mais escura em meio à névoa atmosférica que cercava o planeta.

A nave estava entrando no grande cone de sombra da Terra. O brilhante crescente tremulou, encolheu-se num arco de fogo e sumiu. Embaixo, reinavam a noite e a escuridão. O mundo dormia.

Foi então que Jan percebeu o que estava errado. Havia terra, lá embaixo, mas onde estavam os brilhantes colares de luzes, onde o coruscar ofuscante das cidades dos homens? Em todo aquele hemisfério às escuras, não havia uma única luz para afastar a noite. Como num passe de mágica, tinham desaparecido, sem deixar vestígio, os milhões de quilowatts que outrora rivalizavam com as estrelas. Parecia-lhe estar olhando para a Terra como ela devia ter sido antes da chegada do homem.

Aquele não era o regresso que ele esperara. Nada podia fazer a não ser olhar, enquanto o medo do desconhecido crescia dentro dele. Algo acontecera — algo inimaginável. E, contudo, a nave continuava a descer, formando uma longa curva, na direção do hemisfério iluminado pelo Sol.

Não viu nada do pouso, pois a imagem da Terra de repente sumiu e foi substituída por uma combinação de luzes e linhas. Quando a imagem foi restaurada, já estavam em terra. Havia grandes edifícios a distância, máquinas moven-do-se de um lado para outro e um grupo de Senhores Supremos observando-os.

Ouviu-se o ronco abafado do ar, enquanto a nave igualava a pressão ambiente e, depois, o som das grandes portas se abrindo. Jan não esperou; os calados gigantes ficaram a vê-lo, com tolerância ou indiferença, correr para fora da sala de controle.

Estava de volta a seu mundo, enfrentando a luz reful-gente de seu Sol, respirando o ar que seus pulmões tão bem conheciam. A prancha de desembarque já fora descida, mas ele teve que esperar um momento, até que o clarão do sol não mais o cegasse.

Karellen estava um pouco afastado de seus colegas, ao lado de um grande veículo de transporte, carregado de caixotes. Jan não parou para pensar que estava reconhecendo o supervisor, nem ficou surpreso de vê-lo tal e qual o deixara. Essa era quase a única coisa que saíra como ele esperava.

— Tenho estado à sua espera — disse Karellen.

— Nos primeiros tempos — disse o supervisor — podíamos andar no meio deles sem correr perigo. Mas já não precisavam de nós. Nossa missão terminou quando os juntamos e lhes demos um continente só para eles. Veja.

A parede em frente de Jan desapareceu e ele ficou a olhar, de uma altura de algumas centenas de metros, para uma região agradavelmente arborizada. A ilusão era tão perfeita, que ele sentiu até uma momentânea vertigem.

— Isso foi cinco anos mais tarde, quando se iniciou a segunda fase.

Havia pessoas movendo-se, embaixo, e a câmara caiu sobre elas como uma ave de rapina.

— Você vai ficar deprimido — preveniu Karellen. — Mas lembre-se de que seus padrões não mais se aplicam. Você não está vendo crianças humanas.

Entretanto, foi essa a impressão que veio à mente de Jan e lógica alguma foi capaz de afastá-la. Podiam ser selvagens, participando de alguma complicada dança ritual. Estavam nus e imundos, os cabelos sujos tapando-lhes os olhos. Segundo os cálculos de Jan, deviam ter entre cinco e quinze anos de idade, mas todos se moviam com a mesma velocidade, precisão e completa indiferença para com o que os cercava.

Foi então que Jan lhes viu os rostos. Engoliu em seco e forçou-se a continuar olhando. Eram mais vazios do que os rostos dos mortos, pois até um cadáver tem alguma marca lavrada pelo tempo em suas feições, que fala apesar dos lábios inertes. Naqueles rostos, não havia mais emoção ou sentimento do que na expressão de uma cobra ou de um inseto. Os próprios Senhores Supremos eram mais humanos do que eles.

— Você está procurando por algo que já não existe — disse Karellen. — Lembre-se, eles não têm mais identidade do que as células de seu corpo. Mas, unidos, formam algo muito maior que você.

— Por que não param de se mexer?

— Demos-lhe o nome de Longa Dança — explicou Karellen. — Não dormem nunca e isso durou quase um ano. Trezentos milhões, movendo-se num desenho controlado, por sobre todo um continente. Analisamos vezes sem conta esse desenho, mas não significa nada, talvez porque só possamos ver a parte física, a pequena porção que está aqui, na Terra. Possivelmente, aquilo a que chamamos Mente Suprema continua treinando-os, moldando-os numa unidade, antes que possa absorvê-los.

— Mas de que se alimentam? E que acontece quando encontram obstáculos, como árvores, penhascos ou água?

— A água não fazia diferença, eles não podiam afogar-se. Quando deparavam com obstáculos, às vezes se machucavam, mas nem notavam. Quanto à comida, bem, tinham toda a caça e fruta de que precisavam. Mas agora essa necessidade acabou, como tantas outras, pois a comida é, sobretudo, uma fonte de energia e eles aprenderam a utilizar fontes maiores.

A imagem estremeceu, como se uma onda de calor passasse por cima dela. Quando voltou a ficar nítida, o movimento embaixo cessara.

— Veja agora — disse Karellen. — Três anos mais tarde.

As figurinhas, de aspecto tão pateticamente vulnerável, caso a pessoa não soubesse a verdade, estavam imóveis, espalhadas pelas florestas, vales e planícies. A câmara passou, incansável, de uma para outra: seus rostos já estavam se fundindo numa espécie de molde comum. Jan tinha certa vez visto algumas fotos obtidas com a superposição de dezenas de impressões, para produzir um rosto «médio». O resultado fora algo tão vazio, tão despido de caráter como aquele ali.

Pareciam estar dormindo, ou em transe. Tinham os olhos cerrados e não demonstravam ter mais noção do que os cercava do que as árvores sob as quais estavam. Que pensamentos, imaginou Jan, estariam ecoando através da complicada rede da qual suas mentes não eram agora mais — e, no entanto, tampouco menos — do que fios separados de uma grande tapeçaria? E uma tapeçaria, pensou ele, que cobria muitos mundos e muitas raças, e que continuava crescendo.

Tudo aconteceu com uma velocidade de entontecer a vista e o cérebro, Num momento, Jan olhava para uma terra bela e fértil, onde nada havia de estranho, exceto as inúmeras pequenas estátuas espalhadas — embora não a esmo — em todo o seu comprimento e toda a sua largura. E logo, num instante, todas as árvores e a relva, todas as criaturas vivas que tinham habitado aquela terra, desapareceram como por encanto. Ficaram apenas os lagos parados, os rios ser-penteantes, as colinas castanhas ora despidas de seu tapete verde e as figuras silenciosas, indiferentes, que tinham causado toda aquela destruição.

— Por que fizeram isso? — perguntou, boquiaberto, Jan.

— Talvez a presença de outras mentes os tenha perturbado, mesmo as mentes rudimentares das plantas e dos animais. Acreditamos que, um dia, possam achar o mundo material igualmente perturbador. E, então, quem sabe o que acontecerá? Agora você compreende por que nos afastamos, depois de termos cumprido nosso dever. Continuamos tentando estudá-los, mas nunca penetramos na terra deles, ou mesmo enviamos nossos instrumentos. Só ousamos observar do espaço.

— Isso foi há muitos anos — disse Jan. — Que foi que aconteceu desde então?

— Muito pouca coisa. Durante todo esse tempo, nunca se moveram, nem tomaram conhecimento dos dias ou das noites, dos verões ou dos invernos. Ainda estão testando seus poderes. Alguns rios mudaram de curso e há um que flui morro acima. Mas nada fizeram que pareça ter um propósito definido.

— E os ignoraram completamente?

— Sim, embora isso não seja de surpreender. A entidade da qual fazem parte sabe tudo a nosso respeito. Não parece ligar para as nossas tentativas no sentido de estudá-la. Quando quiser que a gente saia, ou tiver uma nova tarefa para nós, noutro lugar, vai tornar seus desejos mais do que óbvios. Até lá, permaneceremos aqui, de modo a que nossos cientistas possam reunir todos os conhecimentos possíveis.

Aquilo, então, pensou Jan, com uma resignação muito além de qualquer forma de tristeza, era o fim do homem. Um fim que nenhum profeta previra, um fim que repudiava tanto o otimismo quanto o pessimismo.

No entanto, até certo ponto era adequado; tinha a sublime inevitabilidade de uma grande obra de arte. Jan vislumbrara o universo em toda a sua tremenda imensidão e sabia, agora, que não era lugar para os homens. Percebia agora, por fim, quão vão fora, em última análise, o sonho que o atraíra às estrelas.

Pois o caminho para as estrelas se bifurcava e nenhuma das duas direções conduzia a uma meta que levasse em conta as esperanças ou os temores do homem.

No fim de um dos atalhos estavam os Senhores Supremos. Tinham preservado sua individualidade, seus egos independentes. Tinham noção de si próprios e o pronome «eu» tinha realmente significado em sua língua. Possuíam emoções, algumas das quais compartilhadas pela humanidade. Mas Jan sabia agora que estavam encurralados num beco sem saída, do qual nunca conseguiriam escapar. Suas mentes eram dez — ou talvez cem — vezes mais poderosas que as dos homens. No cômputo geral, porém, isso não fazia diferença. Eram igualmente vulneráveis, sentiam-se igualmente perplexos diante da inimaginável complexidade de uma galáxia de cem bilhões de sóis e de um cosmo de cem milhões de galáxias.

E no fim do outro caminho? Achava-se a Mente Suprema — fosse ela o que fosse —, que estava para o homem como o homem para as amebas. Potencialmente infinita, para além da mortalidade, há quanto tempo estaria absorvendo raça após raça, enquanto se alastrava pelas estrelas? Teria também desejos, objetivos dos quais tinha uma noção vaga, mas que talvez nunca pudesse atingir? Agora, tinha atraído para si tudo o que a raça humana jamais conseguira. Não era uma tragédia, era uma realização. Os bilhões de centelhas transitórias de consciência que tinham contribuído para formar a humanidade não mais tremulariam como vaga-lumes, destacando-se contra a noite. Mas não teriam vivido inteiramente em vão.

Jan sabia que o último ato ainda estava por vir. Podia acontecer amanhã, ou dali a séculos. Nem mesmo os Senhores Supremos tinham certeza de quando.

Agora, ele compreendia os propósitos que os haviam guiado, o que tinham feito com o homem e por que ainda estavam na Terra. Sentiu-se tomado de uma grande humildade para com eles, bem como de admiração pela paciência inflexível que os levara a esperar durante tanto tempo fora de seu mundo.

Nunca ficou sabendo a história toda da estranha simbiose entre a Mente Suprema e seus servidores. Segundo Rashaverak, na história de sua raça jamais houvera uma época em que a Mente Suprema não estivesse presente, embora não se tivesse servido deles enquanto não alcançaram uma civilização científica que lhes havia permitido atravessar o espaço para cumprir missões.

— Mas por que razão ela precisa de vocês? — perguntou Jan. — Com todos os seus enormes poderes, decerto poderia fazer tudo o que quisesse.

— Não — respondeu Rashaverak. — Também ela tem suas limitações. Sabemos que, no passado, tentou agir diretamente sobre as mentes de outras raças e influenciar-lhes o desenvolvimento cultural. Sempre fracassou, talvez devido à grande diferença existente. Nós somos os intérpretes, os guardiães. Ou, utilizando uma de suas outras metáforas, amanhamos a terra até o trigo estar pronto para a colheita.

A Mente Suprema colhe o trigo, e nós passamos para outra tarefa. É a quinta raça a cuja apoteose assistimos. De cada vez, aprendemos um pouco mais.

— E não se revoltam por serem utilizados como ferramentas pela Mente Suprema?

— A coisa tem algumas vantagens; além disso, ninguém dotado de inteligência se revolta contra o inevitável.

Isso, refletiu Jan com ironia, nunca fora aceito pela humanidade. Havia coisas para além da lógica que os Senhores Supremos nunca tinham compreendido.

— Parece estranho — continuou Jan — que a Mente Suprema os tenha escolhido para executar essa tarefa, quando vocês não têm nenhum sinal dos poderes parafísicos latentes na humanidade. Como é que ela se comunica com vocês e torna seus desejos conhecidos?

— Essa é uma pergunta a que não posso responder, e também não lhe posso dizer a razão porque não posso explicar. Um dia talvez você venha a saber uma parte da verdade.

Jan ficou um momento meditando sobre isso, mas sabia que não adiantava insistir. Teria que mudar de assunto e esperar obter a resposta por vias transversas, mais tarde.

— Muito bem — disse ele —, há uma outra coisa que vocês nunca explicaram. Quando sua raça chegou à Terra pela primeira vez, há muito, muito tempo, o que foi que deu errado? Por que vocês se haviam transformado num símbolo de medo e maldade?

Rashaverak sorriu. Não era capaz de sorrir tão bem quanto Karellen, mas era uma imitação razoável.

— Ninguém jamais adivinhou e agora você vai entender por que nunca lhes pudemos dizer. Havia só um acontecimento que podia causar um tremendo impacto sobre a humanidade, e esse acontecimento não teve lugar na aurora da história, mas no seu fim.

— Como assim? — perguntou Jan.

— Quando nossas naves penetraram em seus céus, há um século e meio, pela primeira vez nossas raças se encontravam, embora, naturalmente, nós os houvéssemos estudado a distância. Não obstante, vocês nos temeram e reconheceram, como já sabíamos que aconteceria. Não se tratava precisamente de uma recordação. Você já teve a prova de que o tempo é muito mais complexo do que sua ciência poderia imaginar. Porque essa memória, essa recordação, não era do passado e sim do futuro — dos anos finais, quando sua raça soube que tudo terminara. Fizemos o que pudemos, mas não foi um fim fácil. E, por estarmos presentes, identificamo-nos com a morte de sua raça. Sim, embora ela só fosse ocorrer dali a dez mil anos! Era como se um eco distorcido tivesse reverberado pelo círculo fechado do tempo, do futuro até o passado. Não chamemos a isso recordação e sim premonição.

Era difícil assimilar a idéia e Jan ficou um momento em silêncio. No entanto, já devia estar preparado, pois tivera provas suficientes de que causa e acontecimento podiam inverter sua seqüência normal.

Devia haver uma memória racial, independente do tempo. Para ela, futuro e passado eram como que a mesma coisa. Era por isso que, milhares de anos atrás, os homens já tinham vislumbrado uma imagem distorcida dos Senhores Supremos, através de uma névoa de medo e terror.

— Agora entendo — disse o último homem.

O último homem! Jan achava quase impossível pensar em si mesmo como sendo o último dos homens. Quando subira ao espaço, aceitara a possibilidade de um exílio eterno da raça humana e a solidão não tomara conta dele. À medida que os anos fossem passando, o desejo de ver outro ser humano poderia aumentar e dominá-lo, mas, por enquanto, a companhia dos Senhores Supremos evitava que ele se sentisse completamente só.

Tinham existido homens na Terra até dez anos atrás, mas eram sobreviventes degenerados, e Jan nada perdera por não os ter encontrado. Por razões que os Senhores Supremos não podiam explicar, mas que Jan suspeitava fossem principalmente psicológicas, não tinham nascido crianças para substituir as que se haviam ido. O Homo sapiens extinguira-se.

Era possível que, perdido numa das cidades ainda intactas, estivesse o manuscrito de algum Gibbson moderno, registrando os últimos dias da raça humana. Mas Jan não tinha a certeza de desejar lê-lo. Rashaverak já lhe dissera tudo o que ele queria saber.

Aqueles que não tinham acabado consigo próprios haviam procurado o esquecimento em atividades cada vez mais febris, em esportes suicidas e temerários, que podiam se confundir com guerras. À medida que a população fora velozmente diminuindo, os sobreviventes tinham procurado envelhecer unidos, como um exército derrotado, cerrando fileiras ao mesmo tempo em que batia, pela última vez, em retirada.

Aquele último ato, antes que o pano descesse para sempre, devia ter sido iluminado por clarões de heroísmo e de-votamento, e escurecido por demonstrações de selvageria e egoísmo. Se terminara em desespero ou com resignação, era coisa que Jan nunca poderia saber.

Havia muito com que ocupar a mente. A base dos Senhores Supremos ficava a cerca de um quilômetro de uma villa deserta, e Jan passara meses dotando-a de equipamentos que trouxera da cidade mais próxima, a uns trinta quilômetros de distância. Voara até lá com Rashaverak, cuja amizade, segundo suspeitava, não era inteiramente altruísta. O psicólogo dos Senhores Supremos continuava a estudar o último espécime do Homo sapiens.

A cidade devia ter sido evacuada antes do fim, pois as casas e muitos dos serviços públicos continuavam em bom estado. Não seria preciso muito trabalho para restaurar os geradores, de modo a que as amplas ruas brilhassem novamente, dando a ilusão de vida. Jan cogitou disso, mas depois abandonou a idéia por achá-la demasiado mórbida. A principal coisa que ele não queria era chorar pelo passado.

Havia ali tudo o de que ele necessitava para se manter pelo resto da vida, mas o que mais queria era um piano eletrônico e algumas transcrições de Bach. Nunca tivera tanto tempo para dedicar à música quanto desejaria, e agora procuraria compensar. Quando não estava tocando, ouvia tapes de sinfonias e concertos, de modo que a villa nunca estava silenciosa. A música tornara-se seu talismã contra a solidão que, um dia, acabaria por atacá-lo.

Às vezes, dava grandes passeios pelos morros, pensando em tudo o que acontecera durante os poucos meses em que estivera longe da Terra. Nunca poderia supor, ao dizer adeus a Sullivan, havia oitenta anos terrestres, que a última geração da humanidade já estava no útero.

Que jovem louco ele fora! Mas, no fundo, não lamentava o que fizera; se tivesse ficado na Terra, teria testemunhado aqueles derradeiros anos, sobre os quais o tempo correra um véu. Em vez disso, dera um salto para o futuro e ficara sabendo as respostas a perguntas que nenhum outro homem jamais saberia. Sua curiosidade estava quase satisfeita, mas às vezes ele se perguntava por que seria que os Senhores Supremos continuavam à espera e o que aconteceria quando sua paciência fosse, por fim, recompensada.

Na maioria das vezes, porém, com a resignação que normalmente os homens só têm ao fim de uma vida longa e atarefada, ele sentava-se ao piano e enchia o ar com seu amado Bach. Talvez estivesse se iludindo, talvez fosse algum truque misericordioso da mente, mas Jan achava, agora, que era aquilo que ele sempre desejara fazer. Sua ambição secreta ousara, por fim, emergir para a luz forte da consciência.

Jan sempre fora um bom pianista; agora era o maior pianista do mundo.

Foi Rashaverak quem trouxe a notícia a Jan, mas ele já a adivinhava. Nas primeiras horas da manhã, um pesadelo o despertara e não conseguira mais dormir. Não se lembrava do sonho, o que era muito estranho, pois achava que todos os sonhos podiam ser lembrados se a pessoa fizesse força para isso imediatamente após acordar. Tudo quanto podia lembrar era que, no sonho, tornara a ser garotinho e estava numa vasta planície vazia, ouvindo uma voz ribombante, que falava uma língua desconhecida.

O sonho preocupara-o. Ficara pensando se não seria o primeiro sintoma da solidão atacando-lhe a mente. Inquieto, saíra da villa para o gramado mal cuidado.

A lua cheia banhava tudo de um luar tão brilhante, que ele podia ver perfeitamente. O imenso e reluzente cilindro da nave de Karellen estava atrás dos edifícios da base dos Senhores Supremos, pairando acima deles e reduzindo-os a proporções humanas. Jan olhou para a nave, tentando recordar as emoções que ela outrora despertara nele. Houvera um tempo em que fora como uma meta inatingível, um símbolo de tudo o que ele jamais esperara, realmente, alcançar. Agora não significava nada.

Como tudo estava quieto e calado! Naturalmente, os Senhores Supremos estavam tão ativos como de costume, mas, no momento, não havia sinais deles. Jan poderia estar sozinho na Terra; como, na verdade, estava. Olhou para a Lua, procurando ver algo familiar em que seus pensamentos pudessem descansar.

Havia os velhos e bem-lembrados mares. Penetrara quarenta anos-luz no espaço, mas nunca andara por aquelas planícies poeirentas e silenciosas, a menos de dois segundos-luz de distância. Por um momento, divertiu-se, tentando localizar a cratera Tycho. Quando a descobriu, achou estranho ver que essa mancha reluzente estava mais afastada da linha central do disco do que pensara. E foi então que se apercebeu de que o ovalado escuro do Maré Crisium estava faltando.

A face que seu satélite ora apresentava à Terra não era a que olhara para seu mundo desde o início da vida. A Lua começara a girar sobre seu próprio eixo.

Aquilo só podia significar uma coisa: do outro lado da Terra, naquele lugar, que tão rapidamente haviam arrasado, eles estavam emergindo de seu longo transe. Assim como uma criança, ao despertar, pode esticar os braços para saudar o dia, assim estavam eles flectindo os músculos e brincando com seus recém-descobertos poderes…

— Sua dedução é correta — disse Rashaverak. — Já não é prudente ficar aqui. Pode ser que eles nos ignorem, mas não podemos correr esse risco. Partiremos tão logo nosso equipamento seja embarcado, dentro de umas duas ou três horas.

Olhou para o céu, como se temendo que algum novo milagre acontecesse. Mas tudo estava em paz; a Lua desaparecera e apenas algumas nuvens esvoaçavam, bem alto, tocadas pelo vento de oeste.

— Não tem grande importância se eles mexerem com a Lua — acrescentou Rashaverak —, mas imagine se eles começarem a interferir com o Sol! Vamos deixar aqui alguns instrumentos, para podermos saber o que está acontecendo.

— Eu vou ficar — disse Jan abruptamente. — Já vi o suficiente do universo. Agora, só estou curioso de uma coisa: o destino de meu planeta.

O chão tremeu suavemente sob seus pés.

— Eu estava esperando isso mesmo — continuou Jan. — Se eles alterarem a rotação da Lua, o impulso angular será desviado para outro lugar. Quer dizer que a Terra está andando mais devagar. Não sei o que mais me intriga: se o como eles fazem isso, se o porquê.

— Ainda estão brincando — disse Rashaverak. — Que lógica há nos atos de uma criança? E, sob muitos aspectos, a entidade em que sua raça se transformou é uma criança. Não está ainda pronta a se fundir com a Mente Suprema. Mas não tardará a estar, e então a Terra será de vocês. Não completou a frase e Jan terminou-a para ele.

— Se, claro, a Terra ainda existir.

— Mesmo prevendo esse perigo, você prefere ficar?

— Prefiro. Há cinco — ou seis? — anos que estou na Terra. Aconteça o que acontecer, não me queixarei.

— Estávamos mesmo esperando — disse Rashaverak, devagar — que você preferisse ficar. Há algo que você pode fazer para nós…

O clarão da Stardrive foi diminuindo até morrer, num ponto qualquer além da órbita de Marte. Só ele, pensou Jan, percorrera aquela trajetória, dentre os bilhões de seres humanos que tinham vivido e morrido na Terra. E ninguém voltaria a percorrê-la.

O mundo era dele. Tudo aquilo de que precisava — todos os bens materiais que alguém pudesse jamais desejar — eram dele. Mas Jan já não estava interessado nisso. Não temia nem a solidão do planeta deserto, nem a presença que ainda perdurava ali, naqueles derradeiros momentos, antes de partir em busca de sua herança desconhecida. Na inconcebível esteira dessa partida, Jan não esperava que ele e seus problemas sobrevivessem por muito tempo.

Estava tudo bem. Fizera tudo o que desejava fazer, e arrastar uma vida sem objetivos, naquele mundo vazio, teria sido um anticlímax insuportável. Poderia ter partido com os Senhores Supremos, mas com que fim? Pois sabia, como ninguém tinha jamais sabido, que Karellen dissera a verdade, ao declarar que as estrelas não eram para o homem.

Deu as costas à noite e dirigiu-se para a vasta entrada da base dos Senhores Supremos. Seu tamanho não o afetava em nada; a imensidão já não tinha nenhum poder sobre seu espírito. As lâmpadas ardiam, vermelhas, alimentadas por energias que não se esgotariam tão cedo. De cada lado havia máquinas cujos segredos ele jamais desvendaria, abandonadas pelos Senhores Supremos em retirada. Passou por elas e subiu desajeitadamente os grandes degraus, até chegar à sala dos controles.

O espírito dos Senhores Supremos ainda continuava ali: suas máquinas ainda funcionavam, executando as ordens de seus donos agora distantes. Que poderia ele acrescentar, pensou Jan, às informações que elas estavam lançando ao espaço?

Subiu para a enorme cadeira e pôs-se tão à vontade quanto lhe era possível. O microfone, já ligado, estava a sua espera. Algo semelhante a uma câmara de televisão devia estar vigiando, mas Jan não conseguiu localizá-la.

Para além do console e seus esquisitos painéis de instrumentos, as amplas janelas olhavam para a noite estrelada, através de um vale dormindo sob uma lua pálida, e para a longínqua cadeia de montanhas. Um rio serpenteava pelo vale, brilhando aqui e ali, quando o luar incidia sobre algum trecho de água. Tudo tão pacífico! Devia ter sido assim quando o homem nascera, igual a seu fim.

Lá longe, quem poderia dizer a quantos milhões de quilômetros de espaço, Karellen estaria esperando. Era estranho pensar que a nave dos Senhores Supremos estava, naquele mesmo momento, se afastando da Terra a uma velocidade quase igual àquela em que seu recado viajaria. Quase igual, mas não igual. Seria uma maratona, mas suas palavras alcançariam o supervisor e Jan teria pago a dívida.

Até que ponto, pensou ele, Karellen planejara aquilo, e até onde teria sido uma improvisação magistral? Teria o supervisor deliberadamente permitido que ele penetrasse no espaço, havia quase um século, de modo a poder voltar e desempenhar o papel de que agora fora encarregado? Não, isso lhe parecia demasiado fantástico. Mas Jan tinha certeza de que Karellen estava envolvido num vasto e complicado complô. Mesmo executando ordens, estudava a Mente Suprema com todos os instrumentos de que dispunha. Jan suspeitava que não fosse apenas curiosidade científica o que inspirava o supervisor; talvez os Senhores Supremos sonhassem algum dia libertar-se daquela forma peculiar de escravidão, quando tivessem aprendido o suficiente a respeito dos poderes aos quais serviam, f

Que Jan pudesse contribuir para aumentar esses conhecimentos com o que estava fazendo parecia-lhe difícil de acreditar. — Diga-nos tudo o que vir — pedira-lhe Rasha-verak. — A imagem que seus olhos virem será duplicada pelas nossas câmaras. Mas a mensagem que lhe penetrar a mente pode ser muito diferente e nos dizer muito. — Bem, ele procuraria fazer o máximo.

— Nada a relatar ainda — começou por dizer. — Há alguns minutos, vi o rastro de sua nave desaparecer no céu. A lua cheia acaba de passar e quase a metade de sua face familiar está agora afastada da Terra, mas acho que vocês já sabem disso.

Jan fez uma pausa, sentindo-se ligeiramente idiota. Havia algo de incongruente, até mesmo de absurdo, em tudo o que estava fazendo. A história chegara ao clímax, mas ele podia ser um comentador de rádio, descrevendo uma corrida de cavalos ou uma luta de boxe. Deu de ombros e afastou esse pensamento. Suspeitava que, em todos os momentos importantes, sempre houvesse um anticlímax — e não havia dúvida de que só ele podia sentir sua presença ali.

— Houve três pequenos tremores de terra nos últimos sessenta minutos — prosseguiu. — Eles devem ter um controle espantoso da rotação da Terra, mas ainda não é perfeito… Sabe, Karellen, vai ser muito difícil dizer-lhe algo que seus instrumentos já não lhe tenham dito. Teria sido útil me haverem dado alguma idéia do que esperar e por quanto tempo. Se nada acontecer, voltarei a falar daqui a seis horas, conforme combinado…

«Alô! Acho que eles estavam esperando que vocês se fossem. Está começando a acontecer algo. As estrelas estão ficando menos brilhantes. É como se uma grande nuvem estivesse subindo, a grande velocidade, e cobrindo todo o céu. Mas não se trata realmente de uma nuvem. Parece ter como que uma estrutura, posso ver uma nebulosa rede de linhas e faixas que não param de mudar de posição. É como se as estrelas estivessem emaranhadas numa gigantesca teia de aranha.

«A rede está começando a brilhar, a pulsar com a luz, exatamente como se estivesse viva. E suponho que esteja mesmo; ou será algo tão acima da vida quanto isso está acima do mundo inorgânico?

«O clarão parece estar passando para outro lado do céu, esperem um pouco, enquanto eu vou para a outra janela.

«Sim, eu já devia ter desconfiado. Há uma grande coluna de fogo como se fosse uma árvore incendiada, sobre o horizonte ocidental. Está a uma grande distância, ao redor do mundo. Sei de onde ela vem: eles estão finalmente a caminho, para se tornarem parte da Mente Suprema. Sua provação terminou. Estão deixando os últimos restos de matéria para trás.

«À medida que esse fogo sobe da Terra, vejo que a rede se torna mais firme e menos nebulosa. Em alguns lugares, parece quase sólida, mas as estrelas continuam a brilhar debilmente através dela.

«Acabo de me lembrar. Não é exatamente o mesmo, mas a coisa que vi irrompendo sobre seu mundo, Karellen, era muito parecida com isso. Seria também parte da Mente Suprema? Acho que vocês me ocultaram a verdade para que eu não tivesse idéias preconcebidas, para que eu pudesse ser um observador imparcial. Gostaria de saber o que suas câmaras lhe estão mostrando agora, para comparar com o que minha mente imagina que estou vendo!

«É assim que ela fala com vocês, Karellen, através de cores e formas como estas? Lembrei-me das telas de controle em sua nave e dos desenhos que apareciam nelas, fa-lando-lhes numa espécie de linguagem visual que seus olhos podiam interpretar.

«Agora, a coisa se parece com as cortinas da aurora, dançando e tremeluzindo por entre as estrelas. Acho que é isso mesmo, uma grande tempestade aurorai. Toda a paisagem está iluminada; está mais claro do que se fosse dia — vermelhos, amarelos e verdes parecem perseguir-se através do céu, oh, não há palavras, não me parece justo que seja só eu a ver, nunca pensei que tais cores existissem…

«A tempestade está agora amainando, mas a grande teia de névoa contínua. Acho que a aurora foi apenas um subproduto das energias que estão sendo liberadas lá, na fronteira do espaço..

«Um minuto só, reparei em algo mais. Meu peso está diminuindo. Que quererá dizer isso? Deixei cair um lápis, e está caindo lentamente. Algo aconteceu com a gravidade, está vindo uma grande ventania, vejo as árvores agitando os galhos, lá embaixo, no vale.

«Naturalmente, a atmosfera está escapando. Paus e pedras estão se erguendo no céu, quase como se a própria Terra tentasse segui-los pelo espaço. Há uma grande nuvem de pó, levantada pelo vendaval. Está ficando difícil ver… talvez clareie daqui a pouco.

«É — já está melhor. Tudo o que é móvel foi arrancado, as nuvens de poeira desapareceram. Até quando este edifício resistirá? E está ficando cada vez mais difícil respirar, preciso procurar falar mais devagar.

«Posso ver de novo com nitidez. A grande coluna de fogo continua no mesmo lugar, mas está se estreitando, parece o funil de um furacão, prestes a dissolver-se nas nuvens. E, oh, é difícil descrever, mas agora mesmo senti uma grande onda de emoção percorrer-me. Não era alegria ou tris- teza, uma sensação de ter conseguido… Será que foi obra de minha imaginação? Ou terá vindo de fora? Não sei.

«E, agora — isto não pode ser fruto da imaginação — o mundo parece vazio. Completamente vazio. É como se estivesse escutando rádio e a transmissão subitamente parasse. E o céu está de novo limpo — a teia de neblina sumiu. Para que outro mundo ela irá a seguir, Karellen? E vocês continuarão a servi-la?

«Estranho: tudo a minha volta está inalterado. Não sei por quê, mas pensei que…»

Jan estacou. Ficou um momento procurando as palavras e depois fechou os olhos, num esforço para se controlar. Não havia mais lugar para medo ou pânico. Ele tinha um dever a cumprir — um dever para com os homens e um dever para com Karellen.

Lentamente, a princípio, como um homem que acordasse de um sonho, recomeçou a falar:

— Os prédios à minha volta, o chão, as montanhas, tudo parece de vidro, posso ver através de tudo. A Terra está se dissolvendo, já quase não tenho peso. Vocês tinham razão: eles acabaram de brincar com os seus joguetes.

«Só faltam alguns segundos. As montanhas já estão se dissolvendo, como se fossem anéis de fumaça. Adeus, Karellen, Rashaverak, tenho pena de vocês. Embora não consiga entender, eu vi o fim de minha raça. Tudo o que nós alcançamos subiu em direção às estrelas. Talvez fosse isso o que as velhas religiões queriam dizer. Mas numa coisa erraram: pensavam que a humanidade era muito importante, mas somos apenas uma raça em… vocês sabem quantas? Só que agora nos transformamos em algo que vocês nunca serão.

«Lá se vai o rio. Mas o céu continua igual. Mal posso respirar. Estranho ver a Lua brilhando ainda, lá em cima. Ainda bem que a pouparam, mas ela agora vai se sentir solitária…

«Que luz! Vindo de baixo de onde estou, de dentro da Terra, brilhando para cima, através das rochas, do solo, de tudo, cada vez mais brilhante, ofuscante…»

Numa silenciosa concussão de luz, o coração da Terra liberou todas as energias que acumulara. Durante algum tempo, as ondas gravitacionais cruzaram e voltaram a cruzar o sistema solar, perturbando ligeiramente as órbitas dos planetas. Depois, os restantes filhos do Sol retomaram seus ve- lhos caminhos, como rolhas que, flutuando num lago plácido, transpõem as diminutas ondulações causadas pela queda de uma pedra.

Nada sobrara da Terra; eles tinham sugado os últimos átomos de sua substância. Tinham-nos alimentado, através de sua inconcebível metamorfose, como o alimento contido num grão de centeio nutre a plantinha, enquanto ela sobe em direção ao Sol.

A seis bilhões de quilômetros além da órbita de Plu-tão, Karellen sentava-se diante de uma tela subitamente escurecida. A ficha estava completa, a missão, terminada; ele estava de partida para o mundo que deixara havia tanto tempo. O peso dos séculos abatia-se sobre ele, bem como uma tristeza que nenhuma lógica podia dispersar. Não lamentava o destino do homem: seu pesar era pela sua própria raça, para sempre privada da grandeza por forças que não podia vencer.

Apesar de tudo o que havia conseguido, pensou Karellen, apesar de seu domínio sobre o universo físico, seu povo não era melhor do que uma tribo que tivesse passado toda a sua existência numa planície plana e poeirenta. Ao longe estavam as montanhas, onde moravam o poder e a beleza, onde o trovão ribombava sobre as geleiras e o ar era limpo e puro. Lá, o Sol continuava a andar, transfigurando os picos com sua glória, quando a Terra, embaixo, estava imersa em escuridão. Mas eles só podiam olhar e maravilhar-se; jamais poderiam escalar aquelas alturas.

Entretanto, Karellen sabia que agüentariam firmes até o fim. Esperariam sem desesperar, fosse qual fosse o destino que lhes coubesse. Serviriam à Mente Suprema porque não tinham outro remédio, mas, mesmo servindo-a, não perderiam a alma.

A grande tela de controle iluminou-se, por um momento, de um sombrio tom de rubi. Sem qualquer esforço consciente, Karellen leu a mensagem que os desenhos transmitiam. A nave estava deixando os limites do sistema solar. As energias que impeliam a Stardrive estavam acabando depressa, mas já tinham feito seu trabalho.

Karellen ergueu a mão e a imagem mudou mais uma vez. Uma única estrela reluziu no centro da tela. Ninguém diria, àquela distância, que o Sol alguma vez tivesse possuído planetas, ou que um deles acabasse de se perder. Durante muito tempo, Karellen ficou olhando para aquele abismo, cada vez maior, ao mesmo tempo em que muitas recordações lhe passavam pela mente vasta e labiríntica. Numa despedida silenciosa, saudou os homens que conhecera, tivessem eles dificultado ou ajudado seus propósitos.

Ninguém ousou perturbá-lo ou interromper-lhe os pensamentos. Pouco depois, ele virava as costas para o Sol minguante.