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É assim, por um verdadeiro milagre, que estou de volta a Royale, para cumprir uma pena normal. Deixei a ilha com uma pena de oito anos de reclusão disciplinar e, por causa de uma tentativa de salvamento, estou de volta dezenove meses depois.
Reencontro os amigos: Dega sempre contador, Galgani carteiro, Carbonieri, que foi absolvido no caso de minha fuga, Grandet, Bourset, o carpinteiro, e os homens do carrinho: Naric e Quenier. Também Chatal na enfermaria e meu cúmplice na primeira fuga, Maturette, que continua em Royale, como enfermeiro-ajudante.
Os bandidos corsos continuam todos aqui: Essari, Vicioli, Cesari, Razori, Fosco, Maucuer e Chapar, por causa de quem La Griffe foi para a guilhotina, no caso da Bolsa de Marselha. Todas as vedetes da crônica policial dos anos 27 a 35 estão aqui.
Marsino, o assassino de Dufrêne, morreu na semana passada de miséria fisiológica. Nesse dia, os tubarões tiveram uma refeição privilegiada. Deram a eles um dos peritos em pedras preciosas mais bem conceituados de Paris.
Também está aqui Barrat, apelidado “a Comediante”, milionário campeão de tênis em Limoges, que assassinou um motorista e seu amiguinho íntimo, íntimo demais; Está tuberculoso. Barrat era chefe do laboratório e farmacêutico no hospital de Royale. A gente vira tuberculoso, nas ilhas, por contágio através das coxas, segundo um médico brincalhão.
Enfim, a minha chegada em Royale é um verdadeiro terremoto. Quando entro de novo no bloco dos violentos, é um sábado de manhã. Quase todo mundo está lá, e todos, sem exceção, me recebem de braços abertos e manifestam a sua amizade. Até o sujeito dos relógios, que não fala nunca desde aquela famosa manhã em que quase o guilhotinaram por engano, se manifesta e vem me cumprimentar.
– Então, meus velhos, todo mundo vai bem?
– Sim, Papi, seja bem-vindo.
– Você continua com o seu lugar aqui – diz Grandet. – Ficou vago desde o dia em que você foi embora.
– Obrigado para todos. O que há de novo?
– Uma boa notícia.
– O quê?
– Esta noite, em frente, na sala dos “bem comportados”, acharam morto o servente que denunciou você, dando a sua pista de cima do coqueiro. Foi provavelmente coisa de algum amigo, que não quis que você o encontrasse vivo e lhe poupou o trabalho.
– Sem dúvida, bem que eu gostaria de saber quem é para agradecer.
– Um dia, talvez, ele venha a lhe dizer. Acharam o homem hoje de manhã, na chamada, com uma faca fincada no coração. Ninguém viu nem ouviu nada.
– É melhor assim. E o jogo?
– Tudo bem. O seu lugar está aí.
– Bom. Então recomeçamos a viver nos trabalhos forçados a pena de prisão perpétua. Um dia vamos saber como e quando vai acabar esta história.
– Papi, ficamos realmente todos chateados quando soubemos que você tinha oito “cajus” para mastigar na solitária. Agora que você voltou, acho que não há nas ilhas um único homem capaz de lhe negar ajuda para qualquer coisa que seja, mesmo correndo grandes riscos.
– O comandante está chamando você – diz um servente.
Saio com ele. No posto de guarda, vários guardas me cumprimentam gentilmente. Sigo o servente e me encontro com o Comandante Prouillet.
– Tudo bem, Papillon?
– Tudo bem, comandante.
– Estou feliz por você ter sido indultado e lhe dou os parabéns pelo seu ato de coragem com a filhinha do meu colega.
– Obrigado.
– Vou botá-lo como vaqueiro, aguardando que você possa voltar à limpeza de latrinas, com o direito de pescar.
– Se isso não o comprometer demais, ótimo.
– Isso é da minha conta. O guarda da oficina não está mais aqui e eu, daqui a três semanas, vou para a França. Bom, então você volta ao seu lugar amanhã.
– Não sei como agradecer ao senhor, comandante.
– Esperando um mês antes de tentar uma nova fuga – sugere Prouillet, rindo.
Na sala vejo os mesmos homens, o mesmo modo de viver que antes de partir. Os jogadores, categoria à parte, só pensam e vivem em função do jogo. Os homens que têm garotos vivem, comem e dormem com eles. Verdadeiros casais em que a paixão e o amor entre homens tomam conta de todos os pensamentos, noite e dia. Cenas de ciúme, paixões desenfreadas em que a “mulher” e o “homem” se vigiam mutuamente e que provocam crimes inevitáveis se um deles se cansa do outro e bate asas para outros ninhos.
Pela bela Charlie (Barrat), um preto chamado Simplon matou na semana passada um sujeito que se chamava Sidero. É o terceiro que Simplon mata por causa de Charlie.
Faz apenas duas horas que estou no campo e já dois sujeitos vêm falar comigo.
– Diga, Papillon, queria saber se Maturette é o seu garoto.
– Por quê?
– Problema meu.
– Escute bem. Maturette fez uma fuga comigo de 2 500 quilômetros e ele procedeu como homem, é tudo o que lhe posso dizer.
– Quero saber se ele está com você.
– Não, não conheço Maturette pelo sexo. Gosto dele como um amigo, o resto não é da minha conta, salvo se alguém o prejudicar.
– Mas, se um dia ele fosse a minha mulher?
– Então, se ele está de acordo, não vou me intrometer. Mas, se você o ameaçar para que ele se torne o seu garoto, vai ter que acertar contas comigo.
Que os pederastas sejam passivos ou ativos, dá na mesma, tanto uns como os outros afundam na sua paixão sem pensar em outra coisa.
Achei o italiano daquela história do comboio. Veio me cumprimentar. Digo a ele:
– Você ainda aqui?
– Fiz tudo. Minha mãe me mandou 12 000 francos, o guarda tomou 6 000 de comissão, gastei 4 000 para me fazer desinternar, consegui que me mandassem tirar chapa em Caiena e não pude fazer nada. Depois, fiz com que me acusassem por ter ferido um amigo, você o conhece, Razori, o bandido corso.
– Conheço, e então?
– Combinamos que ele faria uma ferida na barriga e fui para o conselho de guerra com ele, ele como acusador e eu como culpado. Nem conseguimos ficar lá. Em quinze dias estava tudo acabado. Fui condenado a seis meses, que curti na reclusão no ano passado. Você nem soube que eu estava lá. Papi, não agüento mais, tenho vontade de me suicidar.
– É melhor que você morra no mar, numa fuga, pelo menos você morrerá livre.
– Estou pronto para qualquer coisa, você tem razão. Se planejar alguma coisa, me avise.
– De acordo.
A vida em Royale recomeça. Agora estou de vaqueiro. Tenho um búfalo chamado Brutus. Pesa 2 000 quilos, é um assassino de búfalos. Já matou dois outros machos.
– É a última oportunidade dele – me diz o guarda Angosti, que cuida desse serviço. – Se matar mais um, vamos abatê-lo.
Hoje de manhã, travo conhecimento com Brutus. O preto da Martinica que o guia deve ficar comigo uma semana para me ensinar. Tornei-me imediatamente amigo de Brutus, mijando no focinho dele: sua grande língua adora recolher o mijo salgado. Em seguida, dei a ele algumas mangas verdes que apanhei no jardim do hospital. Desço com Brutus preso no timão de uma carroça digna do tempo dos reis gauleses, de tão rústica que ela é, e na qual se acha um barril para 3 000 litros de água. Meu trabalho e o do meu chapa Brutus consiste em ir até o mar encher o barril de água e subir esta terrível encosta até o planalto. Aí, abro a torneira do barril e a água escoa pelas valetas, levando tudo o que sobrou da limpeza das latrinas feita na parte da manhã. Começo às 6 horas e lá pelas 9 já acabei.
Depois de quatro dias, o preto da Martinica declara que posso me virar sozinho. Só há um problema: de manhã, às 5 horas, tenho que nadar no laguinho à procura de Brutus, que se esconde, pois não gosta de trabalhar. Como ele tem o focinho muito sensível, prendeu-se nele uma argola de ferro na qual uma corrente de 50 centímetros fica pendurada o tempo inteiro. Quando encontro Brutus, ele se afasta, mergulha e reaparece mais longe. Às vezes levo mais de uma hora para pegá-lo nesta água estagnada e nojenta, cheia de bichos e vitórias-régias. Enfureço-me sozinho: “Fodido! Filho da mãe! Teimoso como um bretão! Você vai sair daí, sim ou não? Seu merda!” Mas ele só reage à puxada na corrente, quando consigo pegá-lo. Às ofensas, ele nem liga. Quando, finalmente, ele sai da água, então se torna meu chapa.
Tenho dois barris de gordura vazios, que enchi de água doce. Começo por tomar um banho, limpar-me bem desta água viscosa do, lago. Depois de eu ter-me ensaboado e enxaguado bem, sobra em geral mais da metade de um barril de água doce. Aí lavo Brutus com água e gordura de coco. Esfrego bastante as partes sensíveis e o borrifo, para limpá-lo. Brutus esfrega então a cabeça nas minhas mãos e, sozinho, vai se colocar na frente do timão da carroça. Nunca o pico com o dardo, como fazia o cara da Martinica. Brutus é grato, pois anda mais depressa comigo do que com ele.
Há uma linda bufalazinha que está apaixonada por Brutus; ela nos acompanha, andando ao nosso lado. Não a mando embora, como fazia o outro vaqueiro, antes pelo contrário. Deixo que ela beije Brutus e nos acompanhe aonde quer que a gente vá. Por exemplo, não os incomodo quando eles se beijam e Brutus fica agradecido, pois sobe os 3 000 litros de água a uma velocidade incrível. Parece que ele quer compensar o tempo que me fez perder nas suas sessões de língua com Marguerite, já que a búfala se chama Marguerite.
Ontem, na chamada das 6 horas, houve um pequeno escândalo por causa de Marguerite. O preto da Martinica, parece, desaparecia todos os dias para os lados onde costumava ficar a búfala. Apanhado em flagrante por um guarda, pegou trinta dias de cana. “Coito com animal”, motivo oficial. Pois ontem, na chamada, Marguerite chegou ao campo, passou na frente de mais de sessenta homens e, chegando à altura da do preto, deu um pequeno mugido de reconhecimento, parou, virou-se e ficou à espera. Foi uma gargalhada geral, e o preto ficou cinzento de vergonha.
Tenho que fazer três viagens de água por dia. O que mais demora é os dois carregadores de baixo encherem o barril, mas é relativamente rápido. Às 9 horas já acabei e vou pescar.
Fiz um acordo com Marguerite para tirar Brutus da água. Coçando-a no ouvido, ela emite um som parecido com o de uma égua no cio. Aí Brutus sai sozinho. Embora não tenha mais que me lavar, continuo a lhe dar banho, melhor do que antes. Limpinho e sem o cheiro nauseabundo da água nojenta onde ele passa a noite, agrada mais ainda a Marguerite e fica numa alegria imensa por causa disso!
Voltando do mar, na metade da encosta, há um lugar achatado com uma grande laje. Brutus tem o hábito de tomar fôlego aí durante uns cinco minutos; calço então a carroça e assim ele descansa melhor. Mas hoje de manhã, um outro búfalo, Danton, tão grande quanto ele, nos esperava escondido atrás de pequenos coqueiros que ainda só têm folhas, pois ali é um viveiro de plantas. Danton surge e ataca Brutus, que se afasta; o golpe é desviado, e o outro bate na carroça. Um dos chifres dele penetra no barril. Danton faz esforços desmedidos para se livrar; eu liberto Brutus dos arreios. Então Brutus toma distância, do lado mais alto, pelo menos 30 metros, e a galope se precipita contra Danton. O medo ou o desespero fazem com que este, antes que o meu búfalo o tenha atingido, se livre do barril, deixando nele um pedaço de chifre, mas Brutus não consegue brecar em tempo e bate na carroça, que vira.
Aí assisto a uma coisa muito curiosa. Brutus e Danton encostam os chifres sem se empurrar, esfregam apenas seus imensos chifres um no outro. Parece que estão conversando e, no entanto, eles não berram, resfolegam apenas. Em seguida, a búfala sobe lentamente a encosta, seguida pelos dois machos, que, de vez em quando, param e voltam a esfregar e entrelaçar os chifres. Quando demoram demais, Marguerite geme lânguida e continua em direção ao planalto. Os dois mastodontes, um ao lado do outro, prosseguem na caminhada. Depois de três paradas com a mesma cerimônia, chegamos ao planalto. Damos na parte que está diante do farol, uma praça vazia de aproximadamente 300 metros de comprimento. No fundo, o campo dos forçados; à direita e à esquerda, os prédios dos dois hospitais: para prisioneiros e para militares.
Danton e Brutus continuam seguindo a vinte passos. Marguerite, por sua vez, vai tranqüilamente até a parte central da praça e pára. Os dois inimigos chegam até ela. De vez em quando, ela solta o seu gemido, longo e positivamente sexual. Eles tocam novamente os chifres, mas desta, vez tenho realmente a impressão de que estão se falando, pois ao resfôlego se misturam sons que devem significar alguma coisa,
Depois dessa conversa, um deles sai pela direita, lentamente, e o outro pela esquerda. Vão se colocando nas extremidades da praça. Há, portanto, entre eles, 300 metros. Marguerite, sempre no meio, espera. Entendi: vai haver um duelo nos devidos termos, aceitos pelas duas partes, tendo a jovem búfala como troféu. Aliás, a garota búfala está de acordo, orgulhosa porque os dois apaches vão lutar por ela.
A um berro de Marguerite eles se atiram um sobre o outro. Na trajetória que cada um pode percorrer, cerca de 150 metros, é inútil dizer que os seus 2 000 quilos se multiplicam pela velocidade que eles chegam a alcançar. O choque das duas cabeças é tão violento, que os dois ficam nocauteados durante mais de cinco minutos. As pernas de ambos amoleceram. O mais rapidamente refeito é Brutus, que, a galope, volta a seu lugar. A batalha se prolonga por duas horas. Alguns guardas queriam matar Brutus, mas me opus a isso e, num dado momento, num choque, Danton quebrou o chifre que ele já tinha estragado contra o barril. Fugiu, perseguido por Brutus. A batalha-perseguição se prolongou até o dia seguinte. E por onde passaram – jardins, cemitério, lavanderia – destruíram tudo.
Só depois de terem brigado a noite inteira é que, na manhã seguinte, lá pelas 7 horas, Brutus conseguiu encurralar Danton contra a parede do açougue, que está à beira-mar, e aí enfiou um chifre inteiro na barriga do outro. Para acabar com ele definitivamente, Brutus girou duas vezes sobre si mesmo, a fim de que o chifre também girasse dentro da barriga de Danton. E, no meio de um riacho de sangue e tripas, este caiu vencido, agonizante.
Essa batalha de colossos enfraqueceu Brutus a ponto de eu ter que livrar o seu chifre, para ele poder se levantar. Cambaleando, ele se afastou pelo caminho à beira-mar e lá Marguerite se pôs a andar ao lado dele, amparando com sua cabeça sem chifres o pesado pescoço dele.
Não assisti à noite de comemoração da vitória, pois o guarda responsável pelos búfalos me acusou de ter soltado Brutus e, então, perdi o meu lugar de condutor de búfalos.
Pedi para falar com o comandante a respeito de Brutus.
– Papillon, então, o que foi que aconteceu? Brutus deve ser abatido, ele é perigoso demais. Já são três os belos machos que ele mata.
– Vim aqui justamente para pedir ao senhor para salvar Brutus. Este guarda encarregado dos búfalos não entende nada do assunto. Deixe-me contar para o senhor como Brutus agiu em legítima defesa.
O comandante sorri:
– Estou ouvindo.
– … Portanto, o senhor entendeu, meu comandante, que meu búfalo foi agredido – concluí, depois de ter contado todos os detalhes. – Ainda mais, se eu não tivesse soltado Brutus, Danton o matava preso, incapaz, logo, de se defender, já que ele estava atado à carroça.
– É verdade – diz o comandante.
Nisso, o guarda chega.
– Bom dia, comandante. Estava procurando você, Papillon, pois hoje de manhã você saiu como se fosse trabalhar, mas você não tinha nada para fazer.
– Saí, Sr. Angosti, para ver se conseguia parar essa batalha; infelizmente, eles estavam enfurecidos.
– Sim, é possível, mas agora não terá mais que guiar o búfalo, como eu já disse. Aliás, domingo de manhã, vamos abatê-lo, isso vai dar carne para a penitenciária.
– Não vão fazer isso.
– Não é você que vai me impedir.
– Eu não, mas o comandante. E, se não bastar, o Dr. Germain Guibert, a quem vou pedir para intervir e salvar Brutus.
– Em que você está metendo o nariz?
– Naquilo que é da minha conta. O búfalo, sou eu que o guio e ele é meu camarada.
– Seu camarada? Um búfalo? Você está brincando?
– Olhe, Sr. Angosti, quer me deixar falar um pouquinho?
– Deixe-o tomar a defesa do búfalo dele – diz o comandante.
– Bom, fale.
– O senhor acha, Sr. Angosti, que os bichos falam entre si?
– Por que não? Acho que eles se comunicam.
– Então Brutus e Danton fizeram um duelo de comum acordo.
E de novo explico tudo, do início até o fim.
– Cristacho! – diz o corso -, você é um sujeito curioso, Papillon. Faça um acordo com Brutus, mas, no próximo que ele matar, ninguém o salva, nem o comandante. Ponho você de novo no cargo de vaqueiro. Dê um jeito para o Brutus trabalhar.
Dois dias mais tarde, consertada a carroça pelos operários da oficina, Brutus em companhia de sua legítima esposa, Marguerite, voltava a transportar diariamente água de mar.
As ilhas são extremamente perigosas por causa dessa pseudoliberdade de que gozamos. Sofro ao ver todo mundo confortavelmente acomodado numa vida sem problemas. Uns esperam o fim de sua pena e nada mais, enquanto chafurdam nos seus vícios.
Esta noite, estou esticado na minha rede. No fundo da sala há um jogo infernal, a tal ponto que meus dois amigos, Carbonieri e Grandet, foram obrigados a se juntar para controlá-lo. Um só não dava. Quanto a mim, tento fazer aparecer lembranças do meu passado. Elas se negam a vir: parece que o tribunal nunca existiu. Por mais que eu faça força para esclarecer as imagens difusas deste dia fatal, não consigo ver nenhum personagem nitidamente. Apenas o promotor se apresenta com toda a sua cruel verdade. Meu Deus! Pensava ter vencido você definitivamente quando me vi em Trinidad, na casa de Bowen. Qual é a praga que tu me rogaste, nojento, para que seis fugas não me tenham dado a liberdade? Na primeira, quando tu recebeste, dos trabalhos forçados, a notícia, pudeste dormir tranqüilo? Bem que eu gostaria de saber se tu tiveste medo ou apenas raiva, ao saber que tua presa escapara ao caminho da podridão no qual a jogaras quarenta dias antes. Eu tinha estourado a gaiola. Que fatalidade me perseguiu para que eu tivesse de voltar aos trabalhos forçados onze meses depois? Talvez Deus me tenha punido por eu desprezar a vida primitiva mas tão bela que poderia ter levado pelo tempo que quisesse?
Lali e Zoraima, meus dois amores, esta tribo sem polícias, sem outra lei que a maior compreensão entre os seres que a constituem, sim, estou aqui por culpa minha, mas tenho que pensar numa única coisa: fugir, fugir ou morrer. Quando soubeste que eu fora preso novamente e voltara para os trabalhos forçados, se tu tiveste de novo o teu sorriso de vencedor do tribunal, pensando: “Tudo está bem assim, ele está de novo no caminho da podridão onde o coloquei”, tu te enganas. Jamais minha alma ou meu espírito pertencerão a este caminho degradante. Tu tens só o meu corpo: teus guardas, teu sistema penitenciário constatam todo dia, duas vezes por dia, que estou presente e isto te basta. Seis horas da manhã: “Papillon?” – “Presente.” Seis horas da tarde: “Papillon?” – “Presente.” Está tudo bem. Já há seis anos que nós o seguramos, ele já deve ter começado a apodrecer e, com um pouco de sorte, num dia próximo, o sino chamará os tubarões para recebê-lo com todas as honras, no festim diário que lhes oferece gratuitamente o teu sistema de eliminação por desgaste.
Tu te enganas, teus cálculos não estão certos. Minha presença física nada tem a ver com a minha presença moral. Queres que eu te diga uma coisa? Não pertenço aos trabalhos forçados, não assimilei nada dos hábitos dos meus colegas, nem dos hábitos dos meus amigos mais íntimos. Sou candidato permanente à fuga.
Estou conversando com meu acusador, quando dois homens se aproximam da minha rede:
– Está dormindo, Papillon?
– Não.
– Queríamos falar com você.
– Falem. Falando baixinho, aqui não dá para ninguém ouvir.
– Bem, estamos preparando uma revolta.
– Seu plano?
– Mataremos todos os árabes, todos os guardas, todas as esposas dos guardas, com as crianças, porque são sementes de tiras. Para isso, eu, Arnaud, e meu amigo Hautin, com a ajuda de quatro homens que estão de acordo, atacaremos o depósito de armas do comandante. Estou trabalhando lá para manter as armas em bom estado. Tem 23 metralhadoras e mais de oitenta fuzis, carabinas e Lebel. A ação será feita de…
– Pare, não diga mais nada. Me nego a topar. Agradeço a confiança, mas não estou de acordo.
– A gente pensava que você acreditaria ser o chefe da revolta. Deixa eu lhe dar os detalhes que estudamos e vai ver que não tem fracasso possível. Faz cinco meses que estamos preparando o golpe. Já temos mais de cinqüenta homens de acordo.
– Não me dá nenhum nome, me nego a ser o chefe e mesmo a atuar nesse golpe.
– Por quê? Você nos deve uma explicação, depois da confiança que tivemos em lhe dizer tudo.
– Não pedi para você contar os seus projetos. Depois, só faço na vida o que quero e não o que os outros querem. Além disso não sou um assassino em série. Posso matar alguém que me fez algo de grave, mas não mulheres e crianças que não me fizeram nada. O mais grave, vocês não estão vendo e eu vou dizer a vocês: mesmo que a revolta der certo, vocês vão fracassar.
– Por quê?
– Porque a coisa principal, fugir, não é possível. Vamos admitir que cem homens sigam a revolta, como é que vão partir? Há apenas dois barcos nas ilhas. No máximo, não agüentam mais de quarenta presos, as duas. O que vão fazer com os outros sessenta?
– Nós estaremos entre os quarenta que vão partir com os barcos.
– È o que você está imaginando, mas os outros não são mais cretinos que vocês, estarão armados como vocês e, se eles tiverem um pouco de miolo na cabeça, depois de eliminar aqueles de que você falou, vocês vão começar a atirar uns contra os outros, para ter o direito de subir num barco. O mais importante é que, estes dois barcos, nenhum país vai querer recebê-los, os telegramas vão chegar antes de vocês em todos os países para onde poderiam ir, ainda mais com uma legião de mortos deixados atrás de vocês. Em qualquer lugar a que cheguem serão presos e devolvidos à França. Vocês sabem que voltei da Colômbia, sei muito bem o que estou dizendo. Dou a minha palavra de que, depois de um golpe desse, eles devolvem a gente de qualquer lugar.
– Bom. Então, você recusa.
– Recuso.
– É a última palavra?
– É a minha decisão irrevogável.
– Então, vamos, não temos mais nada a fazer aqui.
– Espere um pouco. Peço para vocês não falarem desse projeto com nenhum dos meus amigos.
– Por quê?
– Porque sei de antemão que eles vão recusar; então, não adianta.
– Muito bem.
– Acham que não podem abandonar este projeto?
– Sinceramente, não, Papillon.
– Não entendo o ideal de vocês, já que, muito seriamente, estou explicando que, mesmo que a revolta dê certo, vocês não vão ficar livres.
– Queremos sobretudo nos vingar. E agora que você explicou que é impossível chegar a um país que receba a gente, então entraremos no mato e organizaremos uma turma na selva.
– Dou a minha palavra de que não falarei disso nem ao meu melhor amigo.
– Disso estamos certos.
– Bom, uma última coisa: me avisem oito dias antes para eu ir para Saint-Joseph, a fim de que eu não esteja aqui quando a coisa acontecer.
– Você será avisado em tempo para mudar de ilha.
– Não posso fazer nada para que vocês mudem de idéia? Querem combinar outra coisa comigo? Por exemplo, roubar quatro carabinas e numa noite atacar o posto que guarda os barcos, sem matar ninguém, tomarmos um barco e fugirmos juntos.
– Não, sofremos demais. O principal para a gente é a vingança, mesmo que nos custe a vida.
– E as crianças? E as mulheres?
– Tudo isso é a mesma coisa, o mesmo sangue, tudo isso tem que morrer…
– Não falemos mais nisso.
– Você não nos deseja boa sorte?
– Não. Digo para vocês: desistam, há coisas melhores para fazer do que esta porcaria.
– Você não admite que a gente tenha o direito de se vingar.
– Admito, mas não com inocentes.
– Boa noite.
– Boa noite. Não falamos nada, certo, Papi?
– Certo, caras!
E Hautin e Arnaud vão embora. Essa não, curiosa história! São dois doidos esses sujeitos e, além disso, dizem que têm cinqüenta ou sessenta comprometidos e na hora H mais de cem! História de doido! Nenhum dos meus amigos tocou no assunto, parece certo que os dois caras só falaram com gajos que estão por fora. Não é possível que homens da autêntica malandragem estejam nesse golpe. E isso ainda é mais grave porque na malandragem tem verdadeiros assassinos, mas é fora dela que estão os facínoras capazes desse tipo de coisa.
Esta semana, discretamente, tomei informações sobre Arnaud e Hautin. Arnaud foi condenado, parece que injustamente, à prisão perpétua, por um negócio que não merecia nem dez anos. Os jurados o condenaram tão severamente porque no ano anterior o irmão dele tinha sido guilhotinado por ter matado um tira. O promotor falou mais do irmão que dele mesmo, para criar uma atmosfera de hostilidade, e ele foi condenado a essa pena terrível. Além disso, contam que foi horrivelmente torturado quando o prenderam, sempre por causa do que o irmão tinha feito.
Hautin nunca conheceu a liberdade, está na cadeia desde os nove anos de idade. Antes de sair de um reformatório, aos dezenove anos, matou um sujeito, na véspera do dia em que ia ser libertado para entrar na marinha, onde se alistara para sair do reformatório. Deve estar um pouco louco, pois seu projeto era, parece, chegar à Venezuela, trabalhar numa mina de ouro e fazer explodir a perna para receber uma grande indenização. Sua perna está paralisada por causa de uma injeção de não sei que produto, que ele fez voluntariamente em Saint-Martin-de-Ré.
Grande lance teatral. Hoje de manhã, na chamada, convocaram Arnaud, Hautin e o irmão de meu amigo Matthieu Carbonieri. Jean, o irmão dele, é padeiro, portanto fica no cais, perto das barcas.
Foram enviados a Saint-Joseph sem explicação e sem motivo aparente. Tento saber. Não transpira nada; no entanto, Arnaud estava a quatro anos na manutenção das armas e Jean Carbonieri há cinco anos era padeiro. Pode ser um simples acaso. Deve ter havido uma traição, mas que tipo de traição e até onde?
Resolvo falar com meus três amigos íntimos: Matthieu Carbonieri, Grandet e Galgani. Nenhum dos três sabe de nada. Portanto, estes Hautin e Arnaud só procuraram presos que não eram do meu meio.
– Por que falaram comigo, então?
– Porque todo mundo sabe que você quer fugir a qualquer preço.
– Mas não a este preço.
– Não perceberam a diferença.
– E seu irmão Jean?
– Não sei como é que ele foi suficientemente estúpido para se envolver nessa história.
– Pode ser que aquele que fez o serviço o tenha envolvido sem que ele tenha nada a ver com o caso.
Os acontecimentos se precipitam. Esta noite assassinaram Girasolo na hora em que ele estava entrando nas privadas. Acharam sangue na camisa do vaqueiro da Martinica. Quinze dias depois de uma instrução excessivamente rápida e com base nas declarações de um outro preto que foi posto no isolamento, o antigo vaqueiro foi condenado à morte por um tribunal especial.
Um velho forçado, chamado Garvel e apelidado “o Saboiano”, vem falar comigo no tanque do pátio.
– Papi, estou com um problema, pois fui eu que matei Girasolo. Gostaria de salvar o pretão, mas estou com medo de ser guilhotinado. A este preço, não me apresento. Mas, se achasse um meio para pegar apenas três ou cinco anos, me entregaria.
– Qual é a sua pena de trabalhos forçados?
– Vinte anos.
– Já fez quantos?
– Doze.
– Ache o meio de pegar a prisão perpétua, assim você não ira para a reclusão.
– Como fazer isso?
– Me deixe pensar, hoje à noite lhe digo.
A noite chega. Digo a Garvel:
– Você não pode ser denunciado e depois confessar os fatos.
– Por quê?
– Você corre o risco de ser condenado à morte. O único meio para escapar à reclusão é pegar a prisão perpétua. Você tem que denunciar a si mesmo. Motivo: você não pode, em boa consciência, deixar guilhotinarem um inocente. Escolha um guarda corso como defensor. Direi a você o nome depois de ter falado com ele. Temos que agir depressa. Seria pena se eles liquidassem rápido demais o crioulo. Espere dois ou três dias.
Falei com o guarda Collona, ele me dá uma idéia fantástica: eu mesmo o levo até o comandante e digo que Garvel me pediu que o defendesse e o acompanhasse para confessar; que eu assegurei a ele que, após um gesto de dignidade desses, era impossível que o condenassem à morte; que, no entanto, o caso era gravíssimo e que devia contar com uma condenação à prisão perpétua.
Deu tudo certo. Garvel salvou o pretão, que foi posto em liberdade na hora. A falsa testemunha da acusação recebeu um ano de cadeia. Robert Garvel pegou a prisão perpétua.
Isso se deu faz dois meses. Garvel, só agora que tudo acabou, me explica o resto. Girasolo era o homem que, depois de ter sabido dos pormenores da conspiração para a revolta, da qual tinha aceito participar, denunciou Arnaud, Hautin e Jean Carbonieri. Não sabia, felizmente, de mais nenhum nome.
Diante da enormidade da denúncia, os guardas não acreditaram. No entanto, por medida de precaução, mandaram para Saint-Joseph os três presos delatados, sem dizer nada para eles, nem interrogá-los, nem nada.
– Que explicação você deu, Garvel, para o assassinato?
– Que ele tinha roubado meu canudo. Que eu dormia na frente dele, o que era verdade, e que de noite eu tirava o meu canudo do rabo e o escondia debaixo do cobertor que me serve de travesseiro. Uma noite, fui à privada; quando voltei, o meu canudo tinha desaparecido. Acontece que, em volta de mim, só um homem não estava dormindo, era Girasolo. Os guardas acreditaram na minha explicação, nem me disseram que ele tinha denunciado uma revolta.
– Papillon! Papillon! – gritam no pátio, chamando.
– Presente.
– Pegue suas coisas. Embarque para Saint-Joseph.
– Ah! que merda!
A guerra acaba de estourar na França. Trouxe uma disciplina nova: os chefes de serviço responsáveis por uma fuga serão destituídos. Os prisioneiros capturados em fuga, condenados à morte. As autoridades considerarão que a fuga é motivada pelo desejo de se juntar às forças francesas que traem a pátria. Tolera-se tudo, menos a fuga.
O Comandante Prouillet foi embora faz mais de dois meses. Não conheço o novo comandante. Nada feito. Despeço-me dos meus amigos. Às 8 horas tomo a barca para Saint-Joseph.
O pai de Lisette não está mais no campo de Saint-Joseph. Ele foi para Caiena com a família, na semana passada. O comandante de Saint-Joseph se chama Dutain, é do Havre. É ele que me recebe. Chego só, aliás, e no cais sou entregue ao guarda de serviço pelo guarda-chefe da barca, com alguns documentos que me acompanham.
– Você é o Papillon?
– Sim, comandante.
– Você é um curioso personagem – diz ao consultar o meu processo.
– Por que curioso?
– Porque você é dado como perigoso, de todos os pontos de vista, principalmente numa anotação com tinta vermelha: “Em contínuo estado de preparação para a fuga”. Mas, depois, há uma adenda: “Tentou salvar a filha do comandante de Saint-Joseph no meio dos tubarões”. Eu tenho duas netas, quer vê-las?
Ele chama as gurias de três e cinco anos, que, loirinhas, entram na sala acompanhadas por um jovem árabe, todo vestido de branco, e uma mulher morena, muito bonita.
– Querida, está vendo este homem? Foi ele que tentou salvar a sua afilhada, Lisette.
– Oh! me deixe apertar-lhe a mão – diz a moça.
Apertar a mão de um forçado é a maior honra que se possa lhe fazer. Nunca se dá a mão a um forçado. Fico comovido com a sua espontaneidade e com seu gesto.
– Sim, eu sou a madrinha de Lisette. Somos muito ligados com os Grandoit. O que você vai fazer por ele, querido?
– Primeiro, ele vai para o campo; depois, você vai me dizer o emprego que você quer que eu lhe dê.
– Obrigado, comandante, obrigado, minha senhora. Pode me dizer o motivo por que me mandaram aqui para Saint-Joseph? É quase uma punição.
– A meu ver, não há motivo. Só que o novo comandante receia que você fuja.
– Não está errado.
– Aumentaram as sanções contra os responsáveis por uma fuga. Antes da guerra, era possível que o oficial viesse a perder um galão; agora, é automático, sem falar do resto. É por isso que ele mandou você para cá. Prefere que fuja de Saint-Joseph, onde ele não tem responsabilidade, do que de Royale, que fica exatamente sob a sua jurisdição.
– Quanto tempo o senhor deve ficar aqui, comandante?
– Dezoito meses.
– Não posso esperar tanto tempo, mas vou encontrar um meio de voltar a Royale, para não prejudicar o senhor.
– Obrigado – diz a mulher. – Estou feliz por saber que é tão nobre. Se precisar de qualquer coisa, venha aqui com toda a confiança. Você, papai, dê a ordem ao posto de guarda do campo para que deixem Papillon me visitar quando ele pedir.
– Vou pedir, querida. Mohamed, acompanhe Papillon até o campo, e você, Papillon, escolha a choça para a qual quer ser designado.
– Oh! para mim, é fácil: o bloco dos perigosos.
– Não é difícil – diz rindo o comandante.
Prepara um documento, que entrega a Mohamed.
Deixo a casa que serve de moradia e de escritório ao comandante, à beira do cais, a antiga casa de Lisette, e, acompanhado pelo jovem árabe, chego ao campo.
O chefe do posto de guarda é um velho corso muito violento e assassino conhecido. Chama-se Filissari.
– Então, Papillon, é você que está chegando? Você sabe que eu sou inteiramente bom ou inteiramente ruim. Não tente fugir comigo porque, se fracassar, mato você que nem um coelho. Daqui a dois anos, vou ter a aposentadoria, não quero que me aconteça nada agora.
– O senhor sabe que sou amigo de todos os corsos. Não vou dizer ao senhor que não vou fugir, mas, se fugir, vou dar um jeito para que seja numa hora em que o senhor não esteja de serviço.
– Assim está bom, Papillon. Então, não vamos ser inimigos. Os jovens, você entende, eles podem agüentar melhor os aborrecimentos de uma fuga, mas eu, já viu! Na minha idade e na véspera da aposentadoria, não dá pé. Então, está entendido? Vai para o bloco que lhe indicaram.
Estou no campo, numa sala exatamente igual à de Royale, de cem a 120 detentos. Lá estão Pierrot le Fou, Hautin, Arnaud e Jean Carbonieri. Logicamente eu deveria ficar na patota de Jean, já que é o irmão de Matthieu, mas Jean não tem o nível do irmão e, por causa da amizade dele com Hautin e Arnaud, não me convém. Por isso, deixo-o de lado e vou me instalar perto de Carrier, o bordelês, alcunhado Pierrot le Fou.
A Ilha de Saint-Joseph é mais selvagem que Royale, um pouco menor, mas parece maior por ser mais comprida. O campo se acha a meia altura da ilha, pois ela é composta de dois planaltos superpostos. No primeiro, o campo; no planalto lá de cima, a temível reclusão. Entre parênteses: os reclusos continuam a ir tomar banho todo dia durante uma hora. Esperemos que isso prossiga sempre assim.
Todo dia, ao meio-dia, o árabe que trabalha na casa do comandante me traz três marmitas superpostas, presas num ferro achatado que acaba com um cabo de madeira. Ele deixa as três marmitas e leva as da véspera. A madrinha de Lisette me manda todo dia exatamente a mesma coisa que ela preparou para a família.
Domingo, fui visitá-la para agradecer. Passei a tarde falando com ela e brincando com as crianças. Ao acariciar estas cabecinhas loiras, pensei que às vezes é difícil saber qual é o nosso dever. É terrível o perigo que paira sobre as cabeças desta família, caso os dois trouxas ainda estejam com as mesmas idéias. Depois da denúncia de Girasolo, em que os guardas não acreditaram (não os isolaram, apenas os transferiram para Saint-Joseph), se eu abrir a boca para que os isolem, confirmo a veracidade e a gravidade da primeira delação. E qual seria, então, a reação dos guardas? É melhor calar.
Na choça, Arnaud e Hautin quase não falam comigo. Ê melhor assim, as nossas relações são amáveis, mas sem familiaridade. Jean Carbonieri não fala comigo, ficou magoado porque não topei me instalar junto dele. Nós somos uma patota de quatro: eu, Pierrot le Fou, Marquetti, segundo prêmio de Roma no violino (que freqüentemente toca horas a fio, o que me deixa melancólico) e Marsori, um corso de Seta.
Não falei nada com ninguém e me parece que ninguém está informado da preparação da revolta abortada em Royale. Continuarão com as mesmas idéias? Os três trabalham num serviço pesado. Eles devem puxar, ou melhor, levantar grandes pedras com uma correia. Estas pedras servem para fazer uma piscina no mar. Uma grande pedra é presa com correntes, prende-se nela uma outra corrente comprida de 15 ou 20 metros e, pela direita e pela esquerda, cada forçado, com sua correia em volta do busto e dos ombros, pega com um gancho um elo da corrente. E, então, de uma vez só, exatamente como animais, puxam a pedra até o seu destino. No sol, é um serviço muito pesado e principalmente deprimente.
Tiros de fuzil, de mosquetão, de revólver, do lado do cais. Entendi: os loucos passaram à ação. O que acontece? Quem venceu? Sentado na sala, não me mexo. Todos os presos dizem:
– É a revolta!
– A revolta? Que revolta?
Ostensivamente, quero que fique claro que não sei de nada.
Jean Carbonieri, que não foi trabalhar hoje, vem para perto de mim, branco como um morto, apesar do rosto queimado pelo sol. Baixinho, ouço:
– É a revolta, Papi.
Friamente, respondo:
– Que revolta? Não estou a par.
Os tiros de fuzis continuam. Pierrot le Fou entra correndo na sala.
– É a revolta, mas parece que fracassaram. Que turma de loucos! Papillon, puxa a tua faca. Pelo menos vamos matar o maior número possível antes de morrer!
– Vamos – repete Carbonieri -, vamos matar quantos pudermos!
Chissilia tira uma navalha. Todo mundo pega uma faca aberta na mão. Digo para eles:
– Não sejam estúpidos. Quantos somos?
– Nove.
– Que sete joguem a arma fora. Mato o primeiro que ameaçar um guarda. Não tenho vontade de ser fuzilado nesta sala como um coelho. Você está nesse golpe?
– Não.
– E você?
– Nem eu.
– E você?
– Não sabia de nada.
– Bem. Aqui somos todos homens da malandragem, ninguém sabia nada dessa revolta dos porra-loucas. Entenderam?
– Sim.
– Cada um de nós precisa compreender que abrir a boca é reconhecer que está a par de alguma coisa. Os que fizerem isso serão abatidos. Não vai haver vantagem nenhuma para aquele que for imbecil a ponto de falar. Joguem as armas na latrina, eles não vão demorar a chegar.
– E se foram os presos revoltados que ganharam?
– Se foram os presos, eles que dêem um jeito para completar a vitória com uma fuga. Mas eu, a este preço, não quero, e vocês?
– Nós também não – dizem juntos os oito, inclusive Jean Carbonieri.
Não disse uma palavra do que eu sei, ou seja, que o tiroteio parou, os presos perderam. De fato, o massacre previsto não poderia já estar acabado.
Os guardas chegam feito loucos, empurrando com coronhadas, pauladas, pontapés os trabalhadores do serviço de pedras. Obrigam-nos a entrar no bloco ao lado, no qual todos se precipitam. Os violões, as mandolinas, os jogos de xadrez e de damas, as lâmpadas, os banquinhos, as garrafas de óleo, o açúcar, o café, as roupas brancas, tudo é espezinhado com raiva, destruído e jogado fora. Eles se vingam sobre tudo o que não é regulamentar.
Ouvem-se dois tiros, com certeza de revólver.
Há oito blocos no campo, eles fazem a mesma coisa em todos e, de vez em quando, com violentas coronhadas. Sai um homem pelado, correndo para as celas disciplinares, furiosamente espancado pelos guardas encarregados de levá-lo para a masmorra.
Eles vão em frente, à direita, ao nosso lado. Agora se encontram na sétima choça. Só falta a nossa. Estamos os nove aqui, cada um no seu lugar. Dos que estavam fora trabalhando, nenhum voltou. Cada um de nós está petrificado no seu lugar. Ninguém fala. Estou com a boca seca, pensando: “Oxalá um fodido qualquer não aproveite a oportunidade para me abater impunemente!”
– Estão chegando – diz Carbonieri, morto de medo.
Eles se atiram para dentro, mais de vinte, todos de fuzil ou revólver, prontos para disparar.
– Como – grita Filissari – ainda não estão pelados? O que estão esperando, monte de lixo? Vamos fuzilar vocês. Fiquem pelados, não estamos com vontade de tirar a roupa dos cadáveres.
– Senhor Filissari…
– Cale a boca, Papillon! Agora não dá mais para pedir perdão. O que vocês tentaram fazer é grave demais! E, nessa sala de perigosos, vocês estavam todos na jogada, com certeza!
Os olhos lhe pulam da cara, estão injetados de sangue, com reflexos assassinos, não há engano possível.
– Temos direito de defesa – diz Pierrot.
Resolvo arriscar a bolada toda de uma vez:
– Me espanta que um napoleonista como o senhor queira assassinar inocentes. Quer atirar? Pois muito bem, nada de discurso, não nos interessa. Atire, mas merda, atire depressa! Eu achava que você era um homem, velho Filissari, um verdadeiro napoleonista, me enganei. Não faz mal. Vamos, nem quero ver você quando atirar, eu vou lhe dar as costas. Todos, dêem as costas a estes guardas, para que não possam dizer que a gente ia atacar.
E todos, como se fossem um homem só, voltaram as costas. Os guardas ficam espantados com a minha atitude, ainda mais que (soubemos depois) Filissari tinha fuzilado dois infelizes nas outras choças.
– O que é que você ainda tem para dizer, Papillon?
Ainda de costas, respondo:
– Esta história de revolta, não acredito nela. Por que uma revolta? Para matar os guardas? E fugir? Para ir aonde? Eu sou um homem de fuga, volto de muito longe, da Colômbia. Pergunto: qual é o país que daria asilo a assassinos fugidos? Como se chama este país? Não sejam estúpidos, nenhum homem digno deste nome pode estar envolvido numa história como essa.
– Você talvez, mas Carbonieri? Ele está, tenho certeza, porque hoje de manhã Arnaud e Hautin estranharam que ele não tinha se declarado doente, para não ir ao trabalho.
– Simples impressão, tenho certeza.
Viro-me para ele:
– Vai entender logo. Carbonieri é meu amigo, ele conhece todos os detalhes de minha fuga, não dá para ele continuar a ter ilusões, ele sabe qual é o resultado final de uma fuga depois de uma revolta.
Aí chega o comandante. Fica do lado de fora. Filissari sai e o comandante diz:
– Carbonieri!
– Presente.
– Levem eles para a cela, sem brutalidade. Guarda fulano, acompanhe-o. Saiam todos, que fiquem aqui apenas os guardas-chefes. Vamos, tragam todos os presos dispersos na ilha. Não matem ninguém, tragam para o campo todos, sem exceção.
Na sala entram o comandante, o subcomandante e Filissari, que volta com quatro guardas.
– Papillon, acaba de acontecer algo muito grave – diz o comandante. – Como comandante da penitenciária, devo assumir uma responsabilidade muito importante. Antes de tomar certas medidas, quero obter rapidamente algumas informações. Eu sei que, numa ocasião tão crucial, você se teria negado a falar em particular comigo, por isso vim aqui. Foi assassinado o guarda Duclos. Tentaram tomar as armas depositadas na minha casa; trata-se, portanto, de uma revolta. Só tenho alguns minutos, confio em você: sua opinião?
– Se tivesse havido uma revolta, será que não estaríamos a par? Por que não nos teriam informado? Quantas pessoas estariam comprometidas? A estas três perguntas que faço, comandante, vou responder, mas antes quero que o senhor me diga quantos homens se mexeram, depois de terem matado o guarda e tomado a arma dele.
– Três.
– Quem são?
– Arnaud, Hautin e Marceau.
– Entendi. Qualquer que seja o seu ponto de vista, concluo que não houve revolta.
– Você mente, Papillon – diz Filissari. – Esta revolta devia se dar em Royale, Girasolo a tinha denunciado, mas nós não acreditamos. Hoje, percebo que tudo o que ele disse era verdade. Portanto, você está nos enganando, Papillon!
– Mas, então, se são vocês que têm razão, eu sou um frouxo e Pierrot le Fou também e Galgani e todos os bandidos corsos de Royale e os homens da zona. Apesar do que aconteceu, não acredito. Se tivesse havido uma revolta, os chefes seríamos nós e nenhum outro.
– Não posso aceitar o que você está me dizendo. Ninguém está envolvido nisso? Impossível.
– Onde está a ação dos outros? Além desses três loucos, alguém se mexeu? Será que alguém mais teve um gesto, esboçado que seja, para tomar o posto de guarda onde se encontram quatro guardas armados, mais o chefe, o Sr. Filissari, com carabinas? Quantos barcos há em Saint-Joseph? Só uma chalupa. E então: uma chalupa para seiscentos homens? Nós somos doidos, somos? E matar para fugir! Vamos supor que vinte consigam fugir; é só para se fazerem prender em qualquer lugar e serem devolvidos. Comandante, ainda não sei quantos homens os seus guardas ou o senhor mesmo mataram, mas estou quase certo de que eram todos inocentes. E, agora, o que significa isso, destruir as poucas coisas que possuímos? Sua ira parece justificada, mas não esqueça que o dia em que não deixar um mínimo de vida agradável para os forçados, neste dia, então sim, pode ocorrer uma revolta, a revolta dos desesperados, a revolta de um suicídio coletivo; morrer por morrer, morreremos todos juntos: guardas e forçados. Sr. Dutain, falei de coração aberto, acredito que o senhor mereça de nós toda a franqueza, pelo simples fato de ter vindo até a gente para se informar antes de tomar decisões. Deixe-nos em paz.
– E aqueles que estão comprometidos? – fala de novo Filissari.
– Vocês que os procurem. Nós não sabemos de nada, não podemos ser úteis para vocês a esse respeito. Repito, esta história é uma loucura de porra-loucas, nada temos a ver com isso.
– Senhor Filissari, depois dos homens entrarem na choça dos perigosos, mande fechar as portas até nova ordem. Dois guardas na porta, nenhuma sevícia contra esses homens e nada de destruir o que lhes pertence. Vamos.
E foi embora com os outros guardas.
Ufa! Livramos por pouco. Ao fechar a porta, Filissari me sai com esta:
– Você teve sorte que eu seja napoleonista!
Em menos de uma hora, quase todos os homens do nosso bloco já entraram. Faltam dezoito: os guardas percebem que, na sua precipitação, os fecharam em outros blocos. Quando eles se juntam a nós, ficamos sabendo o que aconteceu, pois estes homens estavam no serviço. Um ladrão me conta baixinho:
“Imagine, Papi, que a gente tinha puxado uma pedra de quase 1 tonelada durante 400 metros mais ou menos. O caminho onde içamos as pedras não tem trechos muito íngremes e chegamos até um poço a mais ou menos 50 metros da casa do comandante. Este poço sempre serviu de parada. Está à sombra dos coqueiros e na metade do caminho que a gente tem que fazer. Então, paramos, como de costume, puxamos um grande balde de água fresca e bebemos. Alguns molharam o lenço para botar na cabeça. Como a parada é de uns dez minutos, o guarda também se sentou na beirada do poço. Ele tirou o capacete e estava enxugando a testa e a cabeça com um grande lenço, quando Arnaud se aproximou por trás com uma enxada na mão sem levantá-la, assim ninguém podia gritar para avisar o guarda. Levantar a enxada e abater o gume bem no meio da cabeça do guarda foi um movimento que durou só um segundo. Com a cabeça aberta em dois, o guarda se esticou sem um grito. Assim que ele caiu, Hautin. que estava naturalmente colocado na frente dele, apanhou o fuzil e Marceau lhe tirou o cinturão com o revólver. De revólver na mão, Marceau se voltou para a turma toda e disse: “É uma revolta. Quem estiver com a gente, que nos siga”. Nenhum dos serventes se mexeu, nem gritou, e nenhum dos homens da turma de serviço manifestou a intenção de segui-los. Arnaud nos olhou a todos – prossegue o cara – e nos diz: “Corja de covardes, vamos mostrar para vocês o que é ser homem!” Arnaud tomou o fuzil das mãos de Hautin e os dois correram na direção da casa do comandante. Marceau ficou aí, um pouco afastado. Ele tinha na mão o revólver grande e dava ordens: “Não se mexam, não falem, não gritem. Vocês, árabes sujos, deitem de cara no chão”. De lá onde estava, vi tudo o que aconteceu.
“Quando Arnaud estava subindo a escada para entrar na casa do comandante, o árabe que trabalha lá, nesse momento preciso, abriu a porta com duas crianças, com uma no colo e dando a mão à outra. Os dois ficaram espantados, o árabe com a guria no colo deu um pontapé em Arnaud. Este quis matar o árabe, mas o cara se defendeu botando a criança na frente dele. Ninguém gritou. Nem o árabe, nem os outros. Quatro ou cinco vezes, o fuzil foi dirigido de ângulos diversos contra o árabe. Toda vez, ele botava a guria na frente do cano. Sem subir a escada, Hautin segurou a bainha das calças do árabe. Ele estava para cair e, aí, de uma vez só, jogou a guria contra o fuzil de Arnaud. Desequilibrando-se na escada, Arnaud, a guria e o árabe, que Hautin puxava pela perna, caíram embolados. Aí surgiram os primeiros gritos, no início das crianças, depois do árabe, seguidos pelos insultos de Arnaud e Hautin. O árabe pegou no chão, mais rápido do que eles, a arma que tinha caído, mas segurou-a com a mão esquerda e apenas pelo cano. Hautin pegou novamente a perna dele nas mãos. Arnaud lhe segurou o braço direito e lhe deu uma chave de braço. O árabe jogou o fuzil a mais de 10 metros.
“No momento em que os três se precipitavam para apanhá-lo, houve o primeiro tiro, foi um guarda do serviço de folhas secas. O comandante apareceu pela janela e começou a dar tiros, um em cima do outro, mas, com medo de ferir o árabe, atirou no lugar onde estava o fuzil. Hautin e Arnaud fugiram na direção do campo pela estrada à beira-mar, perseguidos pelos tiros. Hautin, com sua perna dura, corria mais devagar e foi abatido antes de chegar ao mar. Arnaud entrou na água, você sabe, entre a piscina em construção e a dos guardas. Lá está sempre cheio de tubarões. Arnaud foi cercado pelos tiros, já que um outro guarda veio ajudar o comandante e o guarda das folhas secas. Arnaud estava atrás de uma grande pedra.
“- Se entregue – gritaram os guardas – e nós poupamos a sua vida!
“- Nunca – respondeu Arnaud -, prefiro servir de bóia para os tubarões, assim nunca mais verei suas caras de fodidos.
“E entrou no mar, direto no lugar dos tubarões. Acho que ele levou um tiro, porque, num determinado momento, parou. Apesar disso, os guardas continuaram a atirar. Ele continuou caminhando, sem nadar. O peito dele ainda não tinha afundado todo na água, quando os tubarões atacaram. Vimos muito bem quando ele deu um soco num tubarão que, metade fora da água, se jogou sobre ele. Depois, foi totalmente esquartejado pelos tubarões, que puxavam por todos os lados, sem cortar os braços nem as pernas. Em menos de cinco minutos, tinha desaparecido.
“Os guardas deram pelo menos cem tiros de fuzil na massa constituída por Arnaud e os tubarões. Só morreu um tubarão, cujo corpo chegou na praia de barriga para cima. Como tinham chegado guardas por todos os lados, Marceau pensou em salvar a pele jogando a arma no poço, mas os árabes se levantaram e, com pauladas, com pontapés e com os próprios punhos, o empurraram na direção dos guardas, dizendo que ele estava metido no golpe. Embora estivesse cheio de sangue e com as mãos para cima, os guardas o mataram com tiros de revólver e fuzil e, para acabar com ele, um guarda lhe esmagou a cabeça com uma coronhada de carabina usada como tacape.
“Todos os guardas descarregaram os revólveres sobre Hautin. Cada um tinha 36 tiros; morto ou vivo, ele levou quase 150 tiros. Os sujeitos que foram mortos por Filissari são homens que os árabes denunciaram como se tivessem tentado, no início, seguir Arnaud e que depois desistiram por medo. Mentira pura, porque, se tinha cúmplices, ninguém se mexeu.”
Já faz dois dias que estamos todos trancados nas salas correspondentes a cada categoria. Ninguém sai para trabalhar. Na porta, as sentinelas se revezam a cada duas horas. Proibido falar de um bloco para o outro. Proibido aproximar-se das janelas. É da passagem formada pelas duas fileiras de redes que, ficando um pouco recuado, pela porta gradeada, um preso pode ver o pátio. Como reforços, chegaram guardas de Royale. Nenhum preso sai. Os árabes também estão controlados. Todo mundo está trancado. De vez em quando, sem grito, sem brutalidade, vê-se passar um homem pelado que, seguido por um guarda, se dirige para as solitárias. Pelas janelas laterais, os guardas olham com freqüência para dentro da sala. Na porta, uma à direita, uma à esquerda, ficam as duas sentinelas. A duração do plantão é curta, duas horas, mas não se sentam nunca, nem botam a arma a tiracolo: a carabina fica encostada no braço, pronto para atirar.
Resolvemos jogar pôquer em pequenos grupos de cinco. Nada de marselhesa, nem de jogos com muita gente, são muito barulhentos. Marquetti, que tocava uma sonata de Beethoven no violino, foi obrigado a parar.
– Pára com esta música. Nós, guardas, estamos de luto.
Uma tensão pouco comum paira não só na choça, mas no campo inteiro. Nada de café. Nada de sopa. Uma bola de pão pela manhã, corned-beef ao meio-dia, corned-beef à noite, uma lata para cada quatro homens. Como aqui não destruíram nada, temos café e algum alimento: manteiga, óleo, farinha, etc. As outras choças não têm mais nada. Quando a fumaça do fogo para fazer café saiu das privadas, um guarda mandou apagar o fogo. Era um velho de Marselha, velho duro, chamado Niston, que estava fazendo café para vender. Teve o peito de responder ao guarda:
– Se você quiser que se apague o fogo, venha apagá-lo você mesmo.
Então, o guarda atirou várias vezes pela janela. Café e fogo foram rapidamente destroçados.
Niston recebeu uma bala na perna. Tamanha é a tensão, que a gente pensou que eles começavam a nos fuzilar e nos jogamos todos de bruços no chão.
O chefe do posto de guarda, neste momento, ainda é Filissari. Ele corre feito louco, acompanhado por seus quatro guardas. O guarda que atirou explica o que aconteceu, é um tipo de Auvergne. Filissari o insulta em corso, e o outro, que não entende bulhufas, não sabe o que responder:
– Não entendo…
Voltamos para as nossas redes. A perna de Niston sangra.
– Não diga que estou ferido, podem acabar comigo lá fora.
Filissari se aproxima da grade. Marquetti fala com ele em corso. Ele diz:
– Faça seu café, o que acaba de acontecer não se repetirá.
E vai embora.
Niston teve a sorte de a bala não ter ficado dentro: penetrou na parte inferior do músculo e saiu na metade da perna. Amarram a perna dele para estancar o sangue e fazem um curativo com vinagre.
– Papillon, saia.
São 8 horas da noite, portanto já está escuro.
O guarda me chama, não o conheço, deve ser um bretão.
– Por que vou sair a esta hora? Não tenho nada para fazer aí fora.
– O comandante quer falar com você.
– Diga para ele vir aqui. Eu não saio.
– Recusa?
– Sim, recuso.
Meus amigos me cercam. Fazem um círculo à minha volta. O guarda fala da porta fechada. Marquetti vai até a porta e diz:
– Não deixaremos Papillon sair sem a presença do comandante.
– Mas é ele que o manda buscar.
– Diga para vir ele mesmo.
Uma hora depois, dois jovens guardas aparecem na porta. Estão acompanhados pelo árabe que trabalha na casa do comandante. Aquele que o salvou e que impediu a revolta.
– Papillon, sou eu, Mohamed. Venho buscá-lo, o comandante quer falar com você, ele não pode vir até aqui.
Marquetti me diz:
– Papi, o sujeito está armado com um fuzil.
Saio então do círculo dos meus amigos e me aproximo da porta. De fato, Mohamed tem um fuzil debaixo do braço. Nos trabalhos forçados acontecem as coisas mais incríveis. Um forçado oficialmente armado de fuzil!
– Venha – me diz o árabe -, estou aqui para lhe proteger e defender, se for necessário.
Custo a acreditar.
– Venha conosco!
Saio, Mohamed se coloca ao meu lado e os dois guardas atrás. Vou falar com o comandante. Passando pelo posto de guarda, na saída do campo, Filissari me diz:
– Papillon, espero que você não tenha nada contra mim.
– Nem eu, pessoalmente, nem ninguém na choça dos perigosos. Nos outros lugares, não sei.
Descemos até o comando. A casa e o cais estão iluminados com lâmpadas de carbureto que tentam espalhar luz à sua volta, sem conseguir. No caminho, Mohamed me dá um maço de cigarros. Ao entrar na sala fortemente iluminada com duas lâmpadas de carbureto, vejo, sentados, o comandante de Royale, o subcomandante, o comandante de Saint-Joseph, o da reclusão e o segundo-comandante de Saint-Joseph.
Fora, entrevi, vigiados por guardas, quatro árabes. Reconheci dois que estavam no serviço em questão.
– Chegou Papillon – diz o árabe.
– Boa noite, Papillon – diz o comandante de Saint-Joseph.
– Boa noite.
– Sente aqui, nessa cadeira.
Estou de frente para todo mundo. A porta da sala está aberta para a cozinha, onde a madrinha de Lisette me faz um aceno amistoso.
– Papillon – diz o comandante de Royale -, você é considerado pelo Comandante Dutain como um homem digno de confiança, redimido pela tentativa de salvamento da afilhada de sua esposa. Eu só o conheço pelas anotações oficiais que apresentam você como perigoso, de todos os pontos de vista. Quero esquecer essas anotações e acreditar no meu colega Dutain. Vamos ao assunto: vai chegar, sem dúvida, uma comissão de inquérito e todos os presos de todas as categorias terão de declarar o que sabem. É certo que você e mais alguns outros têm uma grande influência sobre todos os condenados e eles seguirão fielmente as instruções de vocês. Queremos saber qual é a sua opinião sobre a revolta e também se, mais ou menos, você está prevendo o que atualmente a sua choça, primeiro, e depois as outras, poderiam declarar.
– Eu não tenho nada a dizer, não tenho que influenciar os outros. Se a comissão vem com a intenção de fazer realmente um inquérito, nessa atmosfera de agora os senhores serão todos destituídos.
– O que você está dizendo, Papillon? Impedi a revolta, eu e meus colegas de Saint-Joseph!
– Talvez o senhor possa se salvar, mas não os chefes de Royale.
– Explique-se!
E os dois comandantes de Royale se levantam e sentam logo em seguida.
– Se continuarem a falar oficialmente em revolta, estão todos perdidos. Se aceitarem as minhas sugestões, todos se salvarão menos Filissari.
– Que sugestões?
– Primeiro, que a vida retome seu curso normal, imediatamente, a partir de amanhã de manhã. Só se a gente puder conversar é que se pode ter influência sobre todo mundo, a respeito do que os caras devem declarar à comissão. Correto?
– Sim – diz Dutain. – Mas por que nós, segundo você, estamos numa situação delicada?
– Vocês, de Royale, não são apenas os chefes de Royale, mas também chefes das três ilhas.
– Sim.
– Acontece que receberam uma denúncia de Girasolo delatando uma revolta em preparação. E indicando os chefes: Hautin e Arnaud.
– Carbonieri também – acrescenta o guarda.
– Não, isto não é verdade. Carbonieri era inimigo pessoal de Girasolo desde Marselha, então ele o incluiu gratuitamente na história. Mas a revolta, os senhores não acreditaram nela. Por quê? Porque ele disse que a revolta tinha como objetivo matar mulheres, crianças, árabes e guardas, coisa que parecia impossível. Por outro lado, haveria só duas chalupas para oitocentos homens em Royale e um para seiscentos em Saint-Joseph. Nenhum homem sério podia aceitar se envolver numa história dessas.
– Como é que sabe tudo isso?
– Problema meu. Mas, se continuarem a falar em revolta, nem que me façam sumir, e mais ainda se o fizerem, tudo isso será dito e provado. Então aparecerá a responsabilidade de Royale, que mandou estes homens a Saint-Joseph, mas sem separá-los um do outro. Embora reconheça que era difícil acreditar nessa história de loucos, a medida lógica era mandar um deles para a Ilha do Diabo e o outro para Saint-Joseph. E, se o inquérito descobrir isso, vocês não escaparão a sanções graves. Se falarem em revolta, continuo insistindo, vão se afundar. Então, devem aceitar as minhas sugestões: primeiro, como já disse, que a partir de amanhã a vida recomece normalmente; segundo, que todos os homens encarcerados nas celas por serem suspeitos de ter conspirado saiam imediatamente, e que não sejam interrogados sobre a sua cumplicidade na revolta, já que ela não existiu; terceiro, que imediatamente Filissari seja enviado a Royale, para a sua segurança pessoal, porque, se não houve revolta, como justificar o assassinato dos três homens? E também porque esse guarda é um assassino nojento e, quando agiu durante o incidente, estava com um medo louco e queria matar todo mundo, inclusive a gente lá na choça. Se aceitarem estas sugestões, farei com que todo mundo declare que Arnaud, Hautin e Marceau agiram de modo a fazer todo o mal possível antes de morrer. O que eles fizeram era imprevisível. Eles não tinham nem cúmplices, nem confidentes. Afinal de contas, são sujeitos que resolveram se suicidar desse modo, matar o maior número possível de pessoas antes de serem mortos eles mesmos, o que provavelmente estavam querendo. Se quiserem, eu vou ficar na cozinha e poderão assim discutir para me dar uma resposta.
Entro na cozinha e fecho a porta, A Sra. Dutain me aperta a mão, me dá um café e conhaque. O árabe Mohamed diz:
– Você não disse nada em meu favor?
– Isso é da conta do comandante. Já que ele lhe deu uma arma, é que tem a intenção de lhe fazer indultar.
A madrinha de Lisette me diz, baixinho:
– Você mandou brasa no pessoal de Royale.
– Claro, para eles era fácil demais aceitar uma revolta em Saint-Joseph, onde todo mundo devia estar informado, menos o seu marido.
– Papillon, ouvi tudo e logo entendi que você queria nos favorecer.
– É verdade, Sra. Dutain.
A porta se abre.
– Entre, Papillon – diz um guarda.
– Sente, Papillon – diz o comandante de Royale. – Após deliberação, concluímos por unanimidade que você tinha provavelmente razão. Não houve revolta. Os três forçados tinham resolvido se suicidar, matando antes a maior quantidade possível de gente. Portanto, amanhã a vida continua como antes. O Sr. Filissari será transferido hoje mesmo para Royale. Seu caso é da nossa conta e a este respeito não lhe pedimos nenhuma colaboração. Esperamos que você mantenha a sua palavra.
– Contem comigo. Até logo.
– Mohamed e os guardas, levem Papillon à sala. Façam entrar Filissari, ele vai conosco a Royale.
No caminho, digo a Mohamed que espero que ele seja posto em liberdade. Ele me agradece.
– Então, o que queriam os guardas?
Num silêncio absoluto, conto em voz alta, palavra por palavra, exatamente o que aconteceu.
– Se houver alguém que não está de acordo ou que pensa poder criticar este acordo que fiz com os guardas em nome de todos, que o diga.
Em coro, todos estão de acordo.
– Você acha que eles acreditaram que não tem mais ninguém envolvido?
– Não, mas se não quiserem cair, eles têm que acreditar. E nós, se não quisermos aborrecimentos, também temos que acreditar.
Hoje de manhã, às 7 horas, esvaziaram todas as celas do bloco disciplinar. Havia mais de 120 homens. Ninguém saiu para o trabalho, mas todas as salas foram abertas e o pátio está cheio de forçados que, em liberdade, falam, fumam, tomam sol, ou ficam na sombra, à vontade. Niston foi para o hospital. Carbonieri me diz que tinham colocado a indicação “Suspeito de cumplicidade na revolta” em pelo menos oitenta das cem portas das ceias.
Agora que estamos todos reunidos, ficamos sabendo a verdade. Filissari só matou um homem, os dois outros foram mortos por jovens guardas, ameaçados por homens que, encurralados e pensando que os outros fossem matá-los, investiam de faca aberta, para tentar matar pelos menos um antes de morrer. E foi assim que uma verdadeira revolta – que, felizmente, fracassou no nascedouro – se tornou o original suicídio de três forçados, tese aceita por todo mundo: administração e condenados. Ficou uma lenda ou uma história verdadeira, não sei exatamente, algo entre estas duas palavras.
Dizem que o enterro dos três mortos do campo, além de Hautin e Marceau, foi feito do modo seguinte: como há apenas um caixão com corrediça para jogar os cadáveres no mar, os guardas os botaram todos na canoa e os cinco de uma vez foram jogados ao mar. Isso foi feito na suposição de que os últimos teriam o tempo de afundar com as pedras nos pés, enquanto seus amigos eram devorados pelos tubarões. Disseram-me que nenhum dos cadáveres conseguiu desaparecer no mar e que os cinco, à noitinha, dançaram um bailado de mortalha branca, verdadeiros bonecos animados pelo focinho ou pelo rabo dos tubarões neste festim digno de Nabucodonosor. Os guardas e os remadores teriam, inclusive, fugido diante de tanto horror.
A comissão veio e ficou quase cinco dias em Saint-Joseph e dois em Royale. Não me fizeram interrogatório especial, foi igual aos outros. Pelo Comandante Dutain, soube que tudo correu do melhor modo possível. Deram licença a Filissari até a aposentadoria, portanto ele não vai voltar. Mohamed foi indultado. O Comandante Dutain recebeu um galão a mais.
Como há sempre insatisfeitos, um bordolês me perguntou ontem:
– E o que é que nós ganhamos por ter feito um acordo com os guardas?
Olho o sujeito:
– Quase nada: cinqüenta ou sessenta forçados não vão fazer cinco anos de reclusão disciplinar por cumplicidade na revolta, você acha que isso não é nada?
Essa tempestade felizmente se acalmou. Uma espécie de tácita cumplicidade entre guardas e forçados descontrolou completamente a famosa comissão que, talvez, só queria isso: que tudo se ajeitasse da melhor maneira.
Eu, pessoalmente, não ganhei nem perdi nada, a não ser que meus colegas me agradeceram por terem escapado a uma vida que certamente ia ser mais severa. Pelo contrário, a vida agora até melhorou: chegaram até a suprimir a tarefa de içar pedras. Esse horrível serviço foi abolido. Agora são búfalos que puxam as pedras e os forçados as botam no lugar. Carbonieri voltou para a padaria. Por mim, procuro voltar para Royale. De fato, aqui não há oficina, é portanto impossível construir uma jangada.
A chegada de Pétain ao governo fez piorarem as relações entre forçados e guardas. Todo o pessoal da administração declarou bem alto que é petainista, a ponto de um gualda normando me dizer:
– Quer que eu lhe diga uma coisa, Papillon? Eu nunca fui republicano.
Nas ilhas, ninguém tem rádio e não se recebem notícias. Além do mais, dizem que, na Martinica e em Guadalupe, abastecemos os submarinos alemães. Há sempre polêmicas.
– Merda, quer que eu lhe diga, Papi? É agora que a gente precisa se revoltar para dar as ilhas aos franceses de De Gaulle.
– Você acha que o Grand Charles precisa dos forçados? Para quê?
– Eh! Para conseguir mais 2 000 ou 3 000 homens!
– Leprosos, trouxas, tuberculosos, doentes de disenteria? Você está brincando! Este sujeito não é um fodido para se meter com os forçados.
– E os 2 000 que ainda estão sadios?
– Isso já é outra coisa. Mas nem por serem homens sadios são bons para a guerra. Você acha que a guerra é um assalto a mão armada? Um assalto dura dez minutos; a guerra dura anos. Para ser um bom soldado, é preciso ter a fé do patriota. Que você goste disso ou não, a verdade é que não vejo aqui um sujeito capaz de dar a vida pela França.
– E por que a gente dana a vida pela França, depois de tudo o que ela nos fez?
– Então, está vendo que tenho razão. Ainda bem que o Grand Charles tem outros homens além de vocês para fazer a guerra. Fico doente só de pensar que esses alemães nojentos estão na nossa casa! E pensar que há franceses colaborando com os boches! Os guardas aqui, sem exceção, declaram que estão com Pétain.
O conde de Berac diz:
– Seria uma maneira de um condenado se redimir.
Aí se dá o seguinte fenômeno: nunca antes um sujeito falava em se redimir. E agora todo mundo, homens da malandragem e da periferia, todos esses coitados estão vendo um clarão de esperança.
– Para ser incorporados às fileiras de De Gaulle, Papillon, não devemos fazer esta revolta?
– Lamento muito, mas não tenho que me redimir aos olhos de ninguém. Estou me lixando para a justiça francesa e seu capítulo Reabilitação. Já me declarei reabilitado eu mesmo, meu dever é fugir e, depois de livre, ser um homem normal que vive numa sociedade sem ser um perigo para ela. Não acho que um sujeito possa provar essa coisa de um outro modo. Estou, portanto, a favor de qualquer ação voltada para uma fuga. Tomar as ilhas para De Gaulle é coisa que não me interessa e tenho certeza de que a ele também não. Além disso, se você fizer um negócio desses, sabe o que vão dizer os caras importantes? Que vocês tomaram as ilhas para se libertarem, e não para fazer um gesto em favor da França livre. E, além disso, quem tem razão? De Gaulle ou Pétain? Não sei absolutamente de nada. Sofro como um pobre fodido porque meu país foi invadido, penso nos meus, em meus pais, minhas irmãs, minhas sobrinhas.
– Não devemos ser bestas, não é para se preocupar tanto por causa de uma sociedade que não teve nenhuma piedade pela gente.
– Mas isso é normal, porque os tiras e o sistema judiciário francês, e estes policiais e estes guardas, nada disso é a França; é uma gang feita de pessoas com mentalidade completamente deformada. Quantos destes caras não estão dispostos hoje a se tornar criados dos alemães? Quer apostar que a polícia francesa prende compatriotas para entregá-los às autoridades alemãs? Bom. Eu digo e repito, não topo uma revolta, qualquer que seja o motivo. Topo uma fuga, mas que fuga?
Discussões muito graves se travam entre os clãs. Uns são a favor de Pétain, os outros estão com De Gaulle. No fundo, não se sabe nada porque não temos, como já disse, nenhum rádio, nem com os guardas, nem com os prisioneiros. As notícias chegam pelos barcos que passam e trazem um pouco de farinha, de legumes secos e de arroz. Para nós, a guerra, vista de tão longe, é difícil de entender.
Teria chegado a Saint-Laurent-du-Maroni, parece, um aliciador das forças livres. Nos trabalhos forçados, não se sabe de nada, a não ser que os alemães ocuparam a França toda.
Um incidente divertido: chegou um padre em Royale e fez um sermão depois da missa. Disse:
– Se as ilhas forem atacadas, vocês receberão armas para ajudar os guardas a defender a terra da França.
É autêntico. Engraçado, esse padre, e só podia pensar muito mal da gente! Pedir aos prisioneiros para defender sua cela! Só faltava essa, nos trabalhos forçados!
A guerra, para nós, se traduz no seguinte: dobrado o efetivo de guardas, desde o simples vigilante ao comandante e guarda-chefe; muitos fiscais, alguns com um sotaque alemão ou alsaciano muito forte; muito pouco pão: recebemos quatrocentos gramas; muito pouca carne.
Enfim, a única coisa que aumentou é o preço da fuga fracassada: condenado à morte e executado. Pois, na acusação, acrescentam: “Tentou passar para as fileiras dos inimigos da França”.
Estou em Royale já faz quase quatro meses. Tornei-me amicíssimo do médico Germain Guibert. Sua esposa, uma senhora excepcional, me pediu que lhe fizesse uma horta para ajudá-la a viver com esse regime de cinto apertado. Fiz uma horta com alfaces, rabanetes, vagens, tomates e berinjelas. Ela está encantada e me trata como um bom amigo.
Esse médico nunca apertou a mão de um guarda, de qualquer patente, mas freqüentemente apertou a minha ou a de alguns forçados que ele soube conhecer e estimar.
Depois de devolvido à liberdade, entrei novamente em contato com o Dr. Germain Guibert, por intermédio do Dr. Rosenberg. Ele me enviou uma fotografia dele e de sua esposa na Canebière, em Marselha. Estava de volta de Marrocos e me dava os parabéns por me saber livre e feliz. Morreu na Indochina, ao tentar salvar um ferido que tinha ficado para trás. Era um indivíduo excepcional e sua mulher era digna dele. Quando fui à França, em 1967, tive vontade de visitá-la. Mas desisti, porque ela tinha deixado de me escrever, depois que eu lhe pedi um atestado em meu favor, o que ela fez, aliás. Mas, depois, nunca mais deu sinal de vida. Não sei a causa desse silêncio, mas guardo na minha alma, para os dois, a mais alta gratidão pelo modo como me trataram no seu lar em Royale.
Depois de alguns meses, consegui voltar para Royale.