174977.fb2 Papillon - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 11

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9 SAINT-JOSEPH

MORTE DE CARBONIERI

Ontem, meu amigo Matthieu Carbonieri levou uma facada em pleno coração. Este assassinato vai desencadear uma série de outros. Ele estava no banheiro, se lavando, e foi com o rosto cheio de sabão que levou essa facada, Quando a gente toma banho, tem o hábito de abrir a faca e deixá-la sob as roupas, a fim de ter tempo de pegá-la se alguém que a gente pensa ser inimigo se aproxima subitamente. Não ter feito isso foi um erro que custou a vida dele. Quem matou meu amigo foi um armênio, um tipo perigoso.

Com a autorização do comandante, ajudado por um outro, desci meu amigo até o cais. Ele é pesado e, descendo o costão, tive que descansar três vezes. Fiz com que lhe amarrassem uma grande pedra aos pés e, em lugar de corda, um fio de ferro. Assim, os tubarões não poderão cortá-lo e ele afundará no mar sem ser devorado por eles.

O sino toca e chegamos ao cais. São 6 horas da tarde. O sol se deita no horizonte. Entramos no bote. No famoso caixão, que serve para todo mundo, abaixada a tampa, Matthieu dorme para sempre Acabou-se para ele.

– Para a frente! Empurrem aí! – grita o guarda à turma.

Em menos de dez minutos, chegamos à corrente formada pelo canal entre Royale e Saint-Joseph. E então, de repente, minha garganta se aperta. Dezenas de barbatanas de tubarões saem da água, girando velozmente num espaço restrito de menos de 400 metros. Aí estão os come-condenados, chegaram ao encontro na hora, no lugar exato.

Que o bom Deus faça com que não tenham tempo de apanhar meu amigo. Os remos são erguidos, em sinal de adeus. Suspendemos a caixa. Enrolado nos sacos de farinha, o corpo de Matthieu escorrega, puxado pelo peso da grande pedra, e rapidamente toca o mar.

Horror! Assim que entrou na água e eu penso que desapareceu, ele torna a subir, erguido no ar por, não sei, sete, dez ou vinte tubarões – quem pode saber? Antes que o bote se afaste, os sacos de farinha que o envolvem são arrancados e então acontece uma coisa inexplicável. Matthieu aparece, cerca de dois ou três segundos, de pé em cima da água. O antebraço direito já foi amputado. Com metade do corpo fora da água, ele avança direto para o bote; depois, no meio de um torvelinho mais forte, desaparece para sempre. Os tubarões passaram sob nosso bote, esbarrando no fundo. Um homem perde o equilíbrio e quase cai na água.

Todo mundo está petrificado, inclusive os guardas. Pela primeira vez, eu tive vontade de morrer. Faltou pouco para que eu me atirasse aos tubarões, a fim de desaparecer para sempre deste inferno.

Lentamente, subo do cais ao barracão. Ninguém me acompanha. Pus a padiola no ombro e chego à planície onde meu búfalo Brutus atacou Danton. Paro e me sento. A noite caiu, são apenas 7 horas da tarde. A oeste, o céu é um pouco iluminado por algumas línguas do sol, que desapareceu no horizonte. O resto é negro, furado por instantes pelo pincel do farol da ilha; tenho o coração pesado.

Merda! Você queria ver um enterro e, ainda por cima, o enterro do seu amigo, não queria? Pois bem, viu e bem visto! Com sino e tudo o mais! Está satisfeito? Sua curiosidade doentia foi satisfeita.

Só falta abotoar o cara que matou seu amigo. Quando? Esta noite. Por que esta noite? É muito cedo, o cara vai estar mais alerta do que nunca. São dez na curriola dele. Não posso me afobar e ter pressa demais nesse golpe. Vejamos, com quantos homens posso contar? Quatro, mais eu: cinco. Está bem. Liquidar o cara. Sim, e, se possível, vou tratar de me mandar. Dessa vez, nada de jangada, de preparação, nada; dois sacos de cocos e me enfio pelo mar. A distância até a costa é relativamente curta, 40 quilômetros em linha reta. Com as ondas, os ventos e as marés, isso deve se transformar em 120 quilômetros. É só uma questão de resistência. Sou forte e devo poder agüentar dois dias no mar, montado a cavalo nos sacos.

Pego a padiola e subo para o barracão. Quando chego à porta, revistam-me, coisa extraordinária. Isso nunca acontece. O guarda em pessoa tira-me a faca.

– Querem que me matem? Por que me desarmam? Sabem que me mandam para a morte, fazendo isso? Se me matarem, a culpa será de vocês.

Ninguém responde, nem os guardas, nem os carcereiros árabes. Abrem a porta e eu entro na sala.

– Não se enxerga nada aqui, por que uma lâmpada só em lugar de três?

– Papi, venha por aqui – Grandet me puxa pela manga.

A sala não está muito ruidosa. Sente-se que alguma coisa grave vai acontecer ou já aconteceu.

– Não tenho mais minha mudinha (faca). Tiraram-me na revista.

– Não vai precisar dela esta noite.

– Por quê?

– O armênio e seu amigo estão na privada.

– Que estão fazendo lá embaixo?

– Estão mortos.

– Quem esfriou eles?

– Eu.

– Andou depressa. E os outros?

– Restam quatro na curriola deles. Paulo me deu sua palavra de homem que não iam se mexer e que esperariam para saber se você está de acordo em parar a coisa por aí.

– Dê-me uma faca.

– Tome, pegue a minha. Fico neste canto. Vá falar com eles.

Avanço para a curriola deles. Agora, meus olhos se acostumaram à pouca luz. Enfim, consigo distinguir o grupo. De fato, os quatro estão de pé diante de suas redes, colados uns aos outros.

– Paulo, você quer falar comigo?

– Sim.

– Só, ou na frente dos seus amigos? Que é que você quer? Deixo, prudentemente, 1 metro e 50 entre mim e eles. Minha faca está aberta dentro da manga esquerda e o cabo está bem colado na palma da minha mão.

– Eu queria lhe dizer que acho que o seu amigo foi suficientemente vingado. Você perdeu seu melhor amigo, nós perdemos dois. Na minha opinião, isso devia parar por aí. Que acha?

– Paulo, tomo nota da sua oferta. O que podemos fazer, se você estiver de acordo, é que as duas curriolas se comprometam a não fazer nada durante oito dias. Enquanto isso, veremos o que se deve fazer. De acordo?

– Está bem.

Afasto-me.

– Então, que foi que eles disseram?

– Que acham que Matthieu, com a morte do armênio e de Sans-Souci, foi suficientemente vingado.

– Não foi, não – diz Galgani.

Grandet não diz nada. Jean Castelli e Louis Gravon estão de acordo em fazer um pacto de paz.

– E você, Papi?

– Primeiro, é preciso lembrar quem matou Matthieu? Foi o armênio. Bem. Propus um acordo. Dei minha palavra a eles, e eles toparam, que durante oito dias ninguém vai fazer nada.

– Não quer vingar Matthieu? – Diz Galgani.

– Velho, Matthieu já foi vingado, dois morreram por ele. Por que matar os outros?

– Pelo menos eles sabiam? Isso é que precisamos descobrir.

– Boa noite a todos, desculpem-me. Vou dormir, se puder. Tenho necessidade de ficar sozinho e me deito em minha rede.

Sinto uma mão que desliza por mim e retira suavemente a faca. Uma voz cochicha docemente na noite:

– Durma se puder, Papi, durma tranqüilo. Nós, de qualquer jeito, cada um por sua vez, vamos ficar de guarda.

A morte de meu amigo, tão brutal, repugnante, aconteceu sem motivo sério. O armênio matou-o porque, à noite, no jogo, ele o obrigara a pagar uma aposta de 170 francos. Aquele corno se sentiu diminuído porque foi obrigado a tomar uma atitude diante de trinta ou quarenta jogadores. Com receio de ser atacado dos dois lados por Matthieu e Grandet, não pudera deixar de obedecer.

Covardemente, matou um homem que era o tipo do aventureiro limpo e direito em seu meio. Esse golpe me atingiu fortemente e não tive senão uma satisfação, a de que os assassinos não viveram mais do que algumas horas depois de seu crime. É bem pequena.

Grandet, como um tigre, com a rapidez digna de um campeão de florete, cortou-lhes o pescoço, antes que tivessem tempo de se pôr em guarda. Imagino: o lugar onde caíram deve estar inundado de sangue. Penso, bestamente: “Tenho vontade de perguntar quem os atirou na privada”. Mas não quero falar. Com as pálpebras fechadas, vejo o sol tragicamente vermelho e violeta, clareando com seus últimos raios esta cena dantesca: os tubarões disputando meu amigo… E aquele tronco de pé, já com o antebraço amputado, avançando para o bote!… Então, é verdade que o sino chama os tubarões e que aqueles sujos sabem que vão lhes servir a bóia quando o sino toca… Vejo ainda aquelas dezenas de barbatanas, lúgubres reflexos prateados, passar como submarinos, girando em círculo… Realmente, eram mais de cem… Para Matthieu, para o meu amigo, acabou-se: o caminho da podridão fez seu trabalho até o fim.

Morto com uma facada, por uma bagatela, aos quarenta anos! Pobre amigo. Eu, por mim, não posso mais. Não. Não. Não. Quero que os tubarões me digiram, mas vivo, arriscando-me pela liberdade, sem sacos de farinha, sem pedra, sem cordas. Sem espectadores, nem forçados, nem guardas. Sem sino. Se tenho que virar bóia, pois bem… vão me apanhar vivo, lutando contra os elementos para chegar a alcançar a Terra Grande.

Acabou-se, bem acabado. Nada de fuga muito bem montada. A Ilha do Diabo, dois sacos de cocos e deixar tudo, seja como for, nas mãos de Deus.

Afinal, não vai passar de uma questão de resistência física. Quarenta e oito ou sessenta horas? Será que um tempo tão longo de imersão na água do mar, e mais o esforço dos músculos das coxas, contraídos sobre os sacos de cocos, não vão em certo momento paralisar minhas pernas? Se tenho a chance de ir à Ilha do Diabo, farei as tentativas. Primeiro sair de Royale e ir à Ilha do Diabo. Depois verei.

– Você está dormindo, Papi?

– Não.

– Quer um pouco de café?

– Se você quiser trazer…

Sento-me sobre a rede, aceitando o quarto de café quente que Grandet me estende com um cigarro aceso.

– Que horas são?

– Uma hora da manhã. Entrei de guarda à meia-noite, mas, como vi que você não parava de se mexer, achei que não estava dormindo.

– Tem razão. A morte de Matthieu me transtornou, mas seu enterro com os tubarões me afetou ainda mais. Aquilo foi horrível, sabe?

– Não me diga nada, Papi, suponho o que possa ter sido. Você não devia ter ido.

– Pensava que a estória do sino era conversa. Depois, com um fio de ferro segurando a grande pedra, eu jamais teria acreditado que os tubarões iam ter tempo de apanhá-lo na queda. Pobre Matthieu, vou continuar a ver aquela horrível cena pelo resto da minha vida. E você, como fez para eliminar tão depressa o armênio e Sans-Souci?

– Eu estava na ponta da ilha, colocando uma porta de ferro no açougue, quando soube que ele tinha matado o nosso amigo. Era meio-dia. Em lugar de subir para o barracão, fui para a oficina com a desculpa de consertar a fechadura. Pude encaixar um punhal, afiado dos dois lados, num tubo de 1 metro. O cabo do punhal era oco e o tubo também. Entrei no barracão, às 5 horas, com o tubo na mão. O guarda me perguntou que era aquilo, respondi que a travessa de madeira de minha cama quebrara e que eu ia utilizar aquele tubo naquela noite. Ainda era dia quando entrei na sala, mas havia deixado o tubo no lavatório. Antes da chamada, tornei a pegá-lo. A noite começava a cair. Rodeado por nossos amigos, encaixei rapidamente o punhal no tubo. O armênio e Sans-Souci estavam de pé em seus lugares, diante de suas redes, Paulo um pouco para trás. Você sabe, Jean Castelli e Louis Gravon são muito valentes, mas são velhos e falta-lhes agilidade para lutar num tumulto bem organizado.

– Eu queria agir antes que você chegasse, para evitar que se metesse naquilo. Com seus antecedentes, se fôssemos apanhados, você ia pegar o máximo. Jean foi ao fundo da sala e apagou um dos lampiões; Gravon, do outro lado, fez a mesma coisa. A sala estava quase sem luz, só com um lampião no meio. Eu tinha uma grande lanterna de bolso, que Dega me deu. Jean saiu na frente, eu atrás. Quando chegou perto deles, ergueu o braço e acendeu a lanterna. O armênio, ofuscado, levou o braço esquerdo aos olhos, eu tive tempo de atravessar-lhe o pescoço com minha lança. Sans-Souci, também ofuscado, atirou a faca para a frente, sem saber bem para onde, no vazio. Dei-lhe um golpe tão forte com minha lança, que o transpassei de lado a lado. Paulo se atirou de barriga no chão e rolou para baixo das redes. Como Jean apagara a lanterna, desisti de perseguir Paulo sob as redes, foi o que o salvou.

– E quem os arrastou para a privada?

– Não sei. Acho que foram os rapazes da curriola deles mesmo, para evitar maiores encrencas.

– Mas devia haver um mar de sangue desgraçado…

– Isso mesmo. Completamente degolados, devem ter-se esvaziado de toda a resina. O golpe da lanterna me ocorreu enquanto eu preparava a minha lança. Um guarda, na oficina, estava trocando as pilhas da dele. Isso me deu a idéia e logo falei com Dega para que me arranjasse uma. Eles podem fazer uma revista em regra. A lanterna já saiu daqui e foi devolvida a Dega por um carcereiro árabe, o punhal também. Portanto, nada de bomba por esse lado. Nada tenho a me reprovar. Eles mataram nosso amigo com os olhos cheios de sabão, eu os matei com os olhos cheios de luz. Estamos quites. Que acha, Papi?

– Você fez muito bem e não sei como lhe agradecer por ter agido tão depressa para vingar nosso amigo e, ainda por cima, por ter tido a idéia de me manter afastado dessa história.

– Não falemos nisso. Fiz o meu dever: você sofreu muito e quer tanto ser livre… Eu é que tinha de agir.

– Obrigado, Grandet. Sim, quero ir embora, mais do que nunca. Ajude-me, também, para que esse negócio pare por aí. Com toda a franqueza, ficaria muito surpreendido se o armênio tivesse posto sua curriola a par antes de agir. Paulo não teria aceitado um assassinato tão covarde. Ele sabia as conseqüências.

– Também penso assim. Só Galgani acha que todos eles são culpados.

– Vamos ver o que vai acontecer às 6 horas. Não vou sair para fazer limpeza nas latrinas. Vou fingir que estou doente, para assistir aos acontecimentos.

Cinco horas da manhã. O guarda do barracão se aproxima de nós:

– Rapazes, vocês acham que devo avisar o posto de guarda? Acabo de descobrir dois caras sangrados na privada!

Esse velho condenado de setenta anos quer nos fazer acreditar, logo nós, que desde às 6 e meia da tarde, hora em que os caras haviam sido esfriados, ele não sabia de nada. A sala deve estar cheia de sangue, pois obrigatoriamente os homens, andando, pisotearam a mancha, que fica bem no meio da passagem.

Grandet responde, no mesmo tom do velho:

– Como? Há dois defuntos na privada? Desde que horas?

– Sei lá! – diz o velho. – Eu estava dormindo desde as 6 horas. Só agora, quando fui mijar, escorreguei numa poça viscosa, quase quebrei a cabeça. Acendi meu isqueiro, vi que era sangue e encontrei os caras na privada.

– Avise e vamos ver.

– Vigilantes! Vigilantes!

– Por que está gritando tão alto, velho resmunguento? Pegou fogo na sua choça?

– Não, chefe. Há dois defuntos estirados na privada.

– Que quer que eu faça? Que os ressuscite? São 5 e 15, às 6 horas a gente vê isso. Não deixe ninguém se aproximar das privadas.

– Isso que você está querendo é impossível. A esta hora, perto do levantar geral, todo mundo vai mijar ou cagar.

– É verdade, espere, vou avisar o chefe da guarda.

Voltam, três guardas, um vigilante-chefe e outros dois. A gente pensa que vão entrar, mas não, ficam na porta gradeada.

– Você disse que há dois mortos na privada?

– Sim, chefe.

– Desde que horas?

– Não sei, acabo de encontrá-los, quando fui mijar.

– Quem são?

– Não sei.

– Está bem, velho cabeçudo, vou lhe dizer. Um é o armênio. Vá ver.

– De fato, são o armênio e Sans-Souci.

– Bem, vamos esperar a chamada – e eles vão embora.

Seis horas, o primeiro sino toca. Abrem a porta. Os dois distribuidores de café passam de lugar em lugar, atrás seguem os distribuidores de pão.

Seis e meia, o segundo sino. O dia nasceu e o corredor está cheio de marcas dos pés que pisaram no sangue esta noite.

Os dois comandantes chegam. O dia já vai alto. Oito vigilantes e o médico os acompanham.

– Todo mundo em pêlo, em posição de sentido, diante de suas camas! Mas é um verdadeiro açougue, há sangue por todo lado!

O segundo comandante é o primeiro a entrar nas latrinas. Quando sai, está branco como linho:

– Eles foram completamente degolados. Claro, ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, não é?

Silêncio absoluto.

– Você, velho, é o guarda da sala; estes homens estão numa fria. Doutor, há quanto tempo eles estão mortos, aproximadamente?

– Oito a dez horas – diz o médico.

– E você os descobriu só às 5 horas? Não viu nada, não ouviu nada?

– Não, eu sou duro de orelha, quase não enxergo, e ainda por cima tenho setenta anos nas costas, dos quais quarenta de prisão. Então, o senhor compreende, durmo bastante. Às 6 horas estava dormindo e foi a vontade de mijar que me acordou às 5 horas. Foi uma sorte, porque de hábito só acordo com o sino.

– Tem razão, foi uma sorte – diz, ironicamente, o comandante. – Para nós, também. Então todo mundo dormiu tranqüilo a noite toda, vigilantes e condenados. Padioleiros, retirem aqueles dois cadáveres e levem-nos para o anfiteatro. Quero que lhes faça autópsia, doutor. E vocês, um por um, saiam para o pátio, todos nus.

Um de cada vez, passados diante dos comandantes e do doutor. Examinam minuciosamente os homens, todas as partes do corpo. Ninguém tem ferimentos, vários têm Salpicos de sangue. Explicam que escorregaram ao irem à privada. Grandet, Galgani e eu somos examinados mais minuciosamente que os outros.

– Papillon, qual é o seu lugar? – remexem toda a minha mochila. – E a sua faca?

– Minha faca foi tomada às 7 horas da noite, na porta, pelo vigilante.

– É verdade – diz o guarda. – Ele fez um barulhão, dizendo que queríamos que o assassinassem.

– Grandet, esta faca é sua?

– É, sim, está no meu lugar, portanto é minha – ele examina escrupulosamente a faca, limpa como um centavo novo, sem uma mancha.

O médico volta das privadas e diz:

– Foi um punhal com fio duplo que serviu para degolar aqueles homens. Foram mortos de pé. Não dá para compreender. Um condenado não se deixa degolar como um coelho, sem se defender. Deveria haver alguém ferido.

– O senhor mesmo está vendo, doutor, ninguém tem nem mesmo um arranhão.

– Aqueles dois homens eram perigosos?

– Demais, doutor. O armênio devia ser, seguramente, o assassino de Carbonieri, que foi morto ontem no lavatório, às 9 horas da manhã.

– Negócio claro – diz o comandante. – De qualquer modo, guardem a faca de Grandet. Para o trabalho, todo mundo, menos os doentes. Papillon, você se declarou doente?

– Sim, comandante.

– Não perdeu tempo em vingar o seu amigo. Não sou pateta, você sabe. Infelizmente, não tenho provas e sei que não as encontraremos. Ainda uma última vez, ninguém tem nada a declarar? Se um de vocês pode esclarecer esse duplo crime, dou minha palavra que será solto e enviado para a Terra Grande.

Silêncio absoluto.

Toda a curriola do armênio declarou-se doente. Vendo isso, Grandet, Galgani, Jean Castelli e Louis Gravon também dizem que não se sentem bem, no último momento. A sala fica vazia de seus 120 homens. Ficam cinco da minha curriola e quatro da curriola do armênio, mais o relojoeiro, o guarda-rancho, que reclama sem parar por causa da limpeza que vai ter de fazer, e dois ou três outros duros, um dos quais é um alsaciano, o grande Sylvain.

Esse homem vive sozinho entre os duros, não tem amigos. Autor de um ato pouco comum que lhe rendeu vinte anos, é um homem de ação muito respeitado. Sozinho, atacou um vagão postal, no rápido Paris-Bruxelas, matou os dois guardas a pancadas, jogou os sacos postais pela janela e, recolhidos por cúmplices ao longo da via, eles renderam uma soma importante.

Sylvain, vendo as duas curriolas cochichando, cada qual em seu canto, e ignorando que havíamos feito o acordo de não agir uma contra a outra, permitiu-se tomar a palavra:

– Espero que vocês não vão se bater em tumulto arranjadinho, gênero dos três mosqueteiros?

– Por hoje não – diz Galgani. – Ficará para mais tarde.

– Por que mais tarde? Não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje – diz Paulo -, mas eu não vejo razão para nos matarmos. Que acha, Papillon?

– Uma pergunta só: vocês sabiam o que o armênio ia fazer?

– Minha palavra de homem, Papi, não sabíamos de nada e quer saber o que lhe digo? Não sei como receberia a notícia se o armênio não tivesse morrido.

– Então, se é assim, por que não parar essa história para sempre? – diz Grandet.

– Nós estamos de acordo. Apertemos as mãos e não se fala mais nesse triste negócio.

– Entendido.

– Sou testemunha – diz Sylvain. – Fico satisfeito por ver isso acabado.

– Não se fala mais.

À noite, às 6 horas, o sino toca. Não me posso impedir, ao escutá-lo, de rever a cena da véspera, e meu amigo com metade do corpo erguido, vindo para o bote. A imagem é tão impressionante, mesmo 24 horas depois, que não desejo, nem por um segundo, que o armênio e Sans-Souci sejam levados pela horda dos tubarões.

Galgani não diz uma palavra. Ele sabe o que aconteceu com Carbonieri. Olha para o nada, balançando as pernas que pendem à direita e à esquerda de sua rede. Grandet ainda não voltou. 0 dobre de finados terminara bem há uns dez minutos quando Galgani sem me olhar, sempre balançando as pernas, diz à meia voz:

– Espero que nenhum pedaço daquele armênio sujo seja comido por um dos tubarões que engoliram Matthieu. Seria péssimo se eles, separados em vida, fossem se encontrar na barriga de um tubarão.

Vai ser realmente um vazio para mim a perda desse amigo nobre e sincero. É melhor que eu vá embora de Royale e aja o mais depressa possível. Todos os dias me repito isto.

UMA FUGA DOS LOUCOS

– Como estamos em guerra e as punições foram reforçadas em caso de evasão falhada, não é o momento de arriscar uma fuga, não é, Salvidia?

O italiano do plano do ouro do comboio e eu discutimos no banho, depois de termos lido o cartaz que nos comunica as novas disposições em caso de evasão. Eu lhe digo:

– Mas não é porque isso nos arrisca a sermos condenados à morte que vai me impedir de partir. E você?

– Eu, Papillon, não agüento mais e vou fugir. Aconteça o que acontecer. Pedi para trabalhar no asilo de loucos como enfermeiro. Sei que na despensa do asilo há dois tonéis de 225 litros, o suficiente para fazer uma jangada. Um está cheio de óleo de oliva, o outro de vinagre. Bem ligados um ao outro, de modo a não poderem se separar em caso algum, parece que assim haveria uma boa chance de alcançar a Terra Grande. Não há vigilância por trás do muro que rodeia o pavilhão dos loucos. Lá dentro há apenas a vigilância permanente de um guarda-enfermeiro, ajudado por duros, sobre os que se fazem de doentes. Quer ir comigo lá para cima?

– Como enfermeiro?

– Impossível, Papillon. Você sabe que nunca lhe darão um emprego no asilo. Sua localização afastada no barracão, sua pouca vigilância, tudo faz com que não mandem você para lá. Mas poderia ir para lá como louco.

– Isso é muito difícil, Salvidia. Quando um doutor classifica você de biruta, está lhe dando praticamente o direito de fazer qualquer coisa que queira. De fato, você é reconhecido como irresponsável por seus atos. Percebe a responsabilidade que um médico assume quando admite isso e assina o diagnóstico? Você pode matar um duro, até mesmo um guarda ou a mulher de um guarda, ou um filho. Você pode fugir, cometer não importa qual delito, a Justiça não tem mais nenhum recurso contra você. O máximo que poderiam lhe fazer é enfiá-lo em uma cela acolchoada, em pêlo, com a camisa-de-força. Esse regime não pode durar mais do que um certo tempo, um dia eles têm que suavizar o tratamento. Resultado: por não importa qual ação muito grave, inclusive fuga, você não paga coisa alguma.

– Papillon, tenho confiança em você, gostaria de fugir com você. Faça o possível para ir ficar junto comigo, como louco. Como enfermeiro, eu poderia ajudá-lo a preparar o golpe o melhor possível e aliviá-lo nos momentos mais duros. Reconheço que deve ser terrível encontrar-se, não estando doente, no meio daqueles seres tão perigosos.

– Vá para. o asilo, Romeo, eu vou estudar o caso a fundo, vou procurar me informar sobre os primeiros sintomas de loucura, para conseguir convencer o médico. Não é má idéia fazer com que o médico me considere irresponsável.

Começo a estudar seriamente a coisa. Não há nenhum livro sobre o assunto na biblioteca da prisão. Cada vez que posso, discuto com homens que foram doentes durante um tempo mais ou menos longo. Consigo, aos poucos, obter uma idéia bastante clara:

1.° Todos os loucos têm dores atrozes no cérebro;

2.° Freqüentemente têm zumbido nas orelhas;

3.° Como são muito nervosos, não podem ficar muito tempo deitados na mesma posição sem serem sacudidos por uma verdadeira descarga de nervos que os acorda e os faz sobressaltarem-se, com o corpo todo tenso a ponto de quebrar.

Portanto, é preciso fazer com que descubram esses sintomas sem os indicar diretamente. Minha loucura deve ser justamente o bastante perigosa para obrigar o doutor a tomar a decisão de me mandar para o asilo, mas não violenta a ponto de justificar os maus-tratos dos vigilantes: camisa-de-força, surras, supressão de alimento, injeção de brometo, banho frio ou quente demais, etc. Se eu representar bem o papel, devo conseguir embrulhar o médico.

Há uma coisa em meu favor: por que, qual seria a razão para eu me tornar um simulador? Se o médico não encontrar qualquer explicação lógica para esta pergunta, é provável que eu possa ganhar a partida. Não há outra solução para mim. Recusaram-se a me mandar para a Ilha do Diabo. Não posso mais suportar o barracão depois do assassinato de meu amigo Matthieu. Para o inferno as hesitações! Está decidido. Segunda-feira vou à consulta. Não. Não devo eu mesmo me apresentar como doente. É melhor que um outro faça isso e que esse outro esteja de boa-fé. Tenho que fazer uma ou duas cenas anormais na saia. Então, o chefe da choça vai falar com o guarda e ele próprio marcará minha consulta.

Há três dias que não durmo, não me lavo e não me barbeio. Masturbo-me várias vezes por noite e como muito pouco. Ontem, perguntei ao meu vizinho por que tirou de meu lugar uma fotografia que jamais existiu. Ele jurou por todos os deuses que não havia tocado em minhas coisas. Inquieto, mudou de lugar. Quase sempre, a comida fica numa tina alguns minutos antes de ser distribuída. Acabo de me aproximar da tina e, na frente de todo mundo, mijei lá dentro. A coisa esfriou o ambiente, mas minha cara deve ter impressionado todo mundo, ninguém murmurou uma palavra, só meu amigo Grandet me disse:

– Papillon, por que fez isso?

– Porque esqueceram de pôr sal – e sem prestar atenção em mais ninguém fui buscar minha tigela e estendi-a para o chefe da choça, para que me servisse.

Num silêncio total, todo mundo me olhou comer minha sopa.

Esses dois incidentes bastaram para que nesta manhã eu me encontre diante do médico, sem ter pedido.

– Então, vai ou não vai, doutor? – repito minha pergunta.

O médico, estupefato, me olha. Eu o encaro com olhos deliberadamente muito naturais.

– Vai, sim – diz o médico. – E você, está doente?

– Não.

– Então, por que veio para consulta?

– Por nada. Disseram-me que o senhor estava doente. É um prazer ver que isso não é verdade. Até logo.

– Espere um pouco, Papillon. Sente-se aí, na minha frente. Olhe para mim.

E o médico me examina os olhos com uma lanterna que emite um pequeno feixe de luz.

– Você não viu nada, médico. Que esperava descobrir? Sua luz não é bastante forte, mas assim mesmo acho que você compreendeu, não é? Diga-me, você viu eles?

– O que? – diz o médico.

– Não banque o trouxa, porra! Você é doutor ou veterinário? Não vá me dizer que não teve tempo de vê-los antes que se escondessem, ou me toma por um idiota completo.

Tenho os olhos brilhantes de fadiga. Meu aspecto, nem barbeado, nem lavado, pesa a meu favor. Os guardas escutam, assombrados, mas não faço nenhum gesto violento que possa justificar sua intervenção. Conciliando e entrando no meu jogo para não me excitar, o médico se levanta e põe a mão no meu ombro. Continuo sentado.

– Sim, eu não queria lhe dizer, Papillon, mas tive tempo de vê-los.

– Está mentindo, médico. (Mantenho o sangue-frio.) Porque você não viu nada, absolutamente! O que eu pensei que você estivesse procurando são os três pontinhos pretos que tenho no olho esquerdo. Só consigo vê-los quando olho para o vazio ou quando leio. Quando pego um espelho, vejo nitidamente meu olho, mas nem sinal dos três pontos. Eles se escondem mal eu pego o espelho para vê-los.

– Levem-no para o hospital – diz o médico. – Levem-no imediatamente, sem que ele volte ao barracão. Papillon, você disse que não está doente? Talvez seja verdade, mas acho-o muito fatigado, por isso vou pô-lo alguns dias no hospital, para descansar. Você quer?

– Isso não me incomoda. No hospital ou no barracão, tudo a mesma coisa: são as ilhas.

O primeiro passo está dado. Meia hora depois, encontro-me no hospital, numa cela bem iluminada, uma boa cama bem limpa, com roupas brancas. Na porta, um cartão: “Em observação”. Pouco a pouco, sugestionado a fundo, me transformo em palerma. É um jogo perigoso: o tique de entortar a boca e apertar o lábio inferior entre os dentes, esse tique estudado num caco de espelho escondido, eu o trabalhei tão bem, que chego a me surpreender fazendo-o sem ter tido a intenção. É preciso não se divertir muito tempo nessa brincadeira, Papi. À força de se obrigar a se sentir virtualmente desequilibrado, isso pode ser perigoso e deixar taras. No entanto, é preciso fingir a fundo, se quiser conseguir resultado. Entrar no asilo, ser classificado como irresponsável e depois empreender a fuga com meu amigo, não vai ser fácil. Fuga! Essa palavra mágica me transporta, já me vejo sentado sobre os dois tonéis, impelido para a Terra Grande em companhia de meu amigo, o enfermeiro italiano.

O médico passa todos os dias para visita. Examina-me longamente, sempre nos falamos polida e gentilmente. Ele está perturbado, o cara, mas ainda não está convencido. Portanto, vou informá-lo de que tenho pontadas na nuca, primeiro sintoma.

– Como vai, Papillon? Dormiu bem?

– Sim, doutor. Obrigado, vou indo. Obrigado pelo Match que me emprestou. Quanto a dormir, isso é outra coisa. De fato, atrás da minha cela há uma bomba, certamente para regar não sei o quê, mas o pam-pam que o braço da bomba faz a noite inteira chega até a minha nuca e parece que faz eco lá dentro: pam-pam! E isso a noite inteira. É impossível dormir. Eu agradeceria se me mudasse de cela.

O médico volta-se para o guarda-enfermeiro e murmura rapidamente:

– Há alguma bomba?

O guarda faz sinal que não com a cabeça.

– Vigilante, mude-o de cela. Aonde quer ir?

– O mais longe possível dessa maldita bomba, no fim do corredor. Obrigado, doutor.

A porta se fecha, eu me encontro só em minha cela. Um ruído quase imperceptível me alerta, estão me observando pelo visor, certamente é o médico, pois não ouvi os passos se afastarem quando eles se retiraram. Então, depressa, estendo o punho para a parede que esconde a bomba imaginária e grito, não muito alto: “É melhor parar, sua máquina suja! Não vai acabar de regar nunca, jardineiro de meia tigela?” E deito-me na cama, a cabeça escondida sob o travesseiro.

Não ouvi o pequeno pedaço de cobre se fechar sobre o visor, mas percebi passos que se afastavam. Conclusão: o cara do visor era mesmo o médico.

À tarde me mudaram de cela. A impressão que dei nesta manhã deve ter sido boa, pois, para me acompanhar alguns metros, até o fim do corredor, vieram dois guardas e dois enfermeiros; Como não me dirigiram a palavra, também não falei. Limitei-me a acompanhá-los, sem dizer uma palavra. Dois dias depois, o segundo sintoma: ruídos nas orelhas.

– Como vai, Papillon? Terminou a revista que lhe mandei?

– Não, não consegui ler, passei o dia inteiro e uma parte da noite tentando sufocar o mosquito ou mosca que fez um ninho na minha orelha. Enfiei um pedaço de algodão, não adiantou. O barulho das asas dele não pára: zum-zum-zum… E, ainda mais, faz umas cócegas desagradáveis, e o zumbido é contínuo. Isso acaba enervando, doutor. Que acha? Como não consegui asfixiá-lo, talvez consiga afogá-lo. Que me diz?

Meu tique da boca não pára e vejo que o médico já, o notou. Segura-me a mão e olha-me bem nos olhos. Eu sinto que esta perturbado e aflito.

– Sim, meu caro Papillon, vamos afogá-lo. Chatal, mande fazer-lhe uma lavagem nas orelhas.

Toda manhã, essas cenas se repetem com variantes, mas o doutor não está com jeito de se decidir a me mandar para o asilo.

Chatal, por ocasião de uma injeção de brometo, avisou-me:

– Tudo bem, por enquanto. O médico está seriamente abalado, mas ainda pode demorar muito até que ele o mande para o asilo. Mostre ao médico que você pode ser perigoso, se quiser que ele se decida logo.

– Como vai, Papillon? – o médico, acompanhado por guardas-enfermeiros e por Chatal, cumprimenta-me gentilmente, abrindo a porta de minha cela.

– Pare seu carro, doutor – minha atitude é agressiva. – Sabe muito bem que não vou bem. E quero saber quem de vocês é cúmplice do cara que me tortura.

– Quem o tortura? Quando? Como?

– Primeiro, quero saber se você conhece os trabalhos do Dr. d’Arsonval?

– Sim, eu espero…

– Sabe que ele inventou um oscilador de ondas múltiplas para ionizar o ar em volta de um doente atacado de úlceras duodenais? Com esse oscilador, pode-se enviar correntes elétricas aonde se quiser. Pois bem, imagine que um inimigo meu instalou um aparelho desses no hospital de Caiena. Cada vez que estou dormindo bem tranqüilo, ele aperta um botão, a descarga me atinge em plena barriga e nas coxas. Eu me distendo de repente, dando um salto de mais de 10 centímetros de altura em minha cama. Como quer que eu possa agüentar tudo isso e dormir? Esta noite o troço não parou. Assim que começo a fechar os olhos, pam!, a corrente chega. Todo o meu corpo se distende, como uma mola que se solta. Não posso mais, doutor! Avise a todo mundo que o primeiro que eu descobrir que é cúmplice do cara vai ser esfriado. Não tenho arma, é verdade, mas tenho bastante força para estrangulá-lo, seja ele quem for. Para bom entendedor, meia palavra basta! E deixe-me em paz com seus “bons dias” hipócritas e seus “como vai, Papillon?” Repito, doutor: pare seu carro!

O incidente deu resultado. Chatal me disse que o médico avisou aos guardas para prestarem muita atenção. Que nunca abrissem a porta de minha cela sem serem dois ou três, e que falassem sempre gentilmente comigo. Ele está sofrendo de mania de perseguição, disse o médico, é preciso mandá-lo o quanto antes para o asilo.

– Acho que, com um vigilante, eu posso me encarregar sozinho de levá-lo para o asilo – propôs Chatal, para evitar que me enfiem a camisa-de-força.

– Papi, você comeu bem?

– Sim, Chatal, estava bom.

– Quer vir comigo e com o Sr. Jeannus?

– Aonde nós vamos?

– Até o asilo, levar uns remédios. Assim, você dará um passeio.

– Vamos.

E nós três saímos do hospital a caminho do asilo. Enquanto andamos, Chatal fala; depois, a certo momento, quando estamos quase chegando, diz:

– Você não está cansado de ficar no barracão, Papillon?

– Oh, sim. Estou cheio, principalmente depois que meu amigo Carbonieri não está mais lá.

– Por que não fica alguns dias no asilo? Assim, o cara do aparelho talvez não o encontre para lhe dar choques.

– É uma idéia, meu caro, mas acha que vão me aceitar, mesmo eu não sendo doente da cabeça?

– Deixe comigo, eu falo por você – diz o guarda, todo feliz ao ver que eu caí na falsa armadilha de Chatal.

Enfim, eis-me no asilo, com uma centena de loucos. Não é mole viver com malucos! Em grupos de trinta a quarenta, tomamos ar no pátio, enquanto os enfermeiros limpam as celas. Todo mundo vive completamente nu. Felizmente faz calor. Para mim, deixaram-me a cueca.

Acabo de receber um cigarro aceso do enfermeiro. Sentado ao sol, penso em que já estou ‘ali há cinco dias e não consegui entrar em contato com Salvidia.

Um louco se aproxima de mim. Sei a história dele, chama-se Fouchet. Sua mãe havia vendido a casa para enviar-lhe 15 000 francos por um vigilante, a fim de que ele se evadisse. O guarda devia ficar com 5 000 e entregar-lhe 10 000. O tal guarda embolsara tudo e depois partira para Caiena. Quando Fouchet soube, por outra via, que a mãe tinha lhe enviado a grana e perdera tudo inutilmente, tornara-se louco furioso e no mesmo dia atacara os vigilantes. Dominado, não tivera tempo de causar mal a ninguém. Desde esse dia, há três ou quatro anos, ele está com os loucos.

– Quem é você – olho esse pobre homem, jovem, cerca de trinta anos, plantado diante de mim e que me interroga.

– Quem sou? Um homem como você, nem mais, nem menos.

– Sua resposta é besta. Vejo que é um homem, pois você tem um pau e culhões: se você fosse mulher, teria um buraco. Estou perguntando quem é você. Quer dizer, como se chama.

– Papillon.

– Papillon? Você é uma borboleta? Coitado de você. Uma borboleta voa e tem asas, onde estão as suas?

– Perdi.

– Trate de encontrá-las, assim você poderá fugir. Os guardas não têm asas. Com as suas asas, você vai sacanear eles. Me dê o cigarro.

Antes que eu tenha tempo de dá-lo, ele o arranca de meus dedos. Depois, senta-se à minha frente e fuma com delícia.

– E você, quem é? – pergunto-lhe.

– Eu, eu sou o pato. Cada vez que eles têm que me dar alguma coisa que me pertence, me fazem de bobo.

– Por quê?

– Porque fazem. Também, eu mato guardas o mais que posso. Esta noite, enforquei dois. Mas não conte nada a ninguém.

– Por que você os enforcou?

– Porque eles roubaram a casa de minha mãe. Imagine só, minha mãe me mandou a casa dela e eles, como a acharam bonita, ficaram com ela e moram lá dentro. Não fiz bem em enforcá-los?

– Tem razão. Assim eles não podem aproveitar a casa da sua mãe.

– Aquele guarda gordo, que você está vendo lá embaixo, atrás das grades, está vendo? Ele também mora na casa. Eu vou acabar com ele também, pode confiar no que digo.

Nesse ponto, ele se levanta e vai embora.

Ufa! Não é divertido ser obrigado a viver no meio de loucos, e é perigoso. À noite, há gritos de todos os lados; e, quando há lua cheia, os loucos ficam mais excitados do que nunca. Como a lua pode influir na agitação dos loucos? Não posso explicar, mas constatei isso uma porção de vezes.

Os guardas fazem relatórios sobre os loucos em observação. Comigo, fazem experiências. Por exemplo, esquecem-se de me levar para o pátio, de propósito. Esperam para ver se eu reclamo. Ou, então, não me dão uma das refeições. Tenho uma vara com um barbante e faço os gestos de um pescador.

– Estão mordendo a isca, Papillon?

– Não podem morder! Imagine que, sempre que eu pesco, há um peixinho que me acompanha por todo lado e, quando um grande vai morder, o pequeno adverte: “Dê o fora, não morda, é Papillon que está pescando”. Por isso, nunca consigo pescar nada. Mas continuo assim mesmo. Talvez, um dia, apareça um peixe que não acredite nele.

Ouço o guarda dizer ao enfermeiro:

– Então, ele está bem ruinzinho!

Quando me fazem comer na mesa comum do refeitório, jamais posso acabar o prato de lentilhas. Há um gigante, de 1 metro e 90, pelo menos, com braços, pernas e tronco peludos como os de um macaco, que me escolheu como vítima. Primeiro, senta-se sempre a meu lado. As lentilhas são servidas muito quentes; então é preciso esperar que esfriem, para a gente poder comer. Com uma colher de madeira, pego um pouco, assoprando, e consigo comer algumas colheradas. Ele, Ivanhoé – ele pensa que é Ivanhoé -, pega seu prato, põe as mãos em funil, e engole tudo num piscar de olhos. Depois, pega o meu, rispidamente, e faz a mesma coisa. Depois de limpar o prato, joga-o de maneira ruidosa à minha frente, olhando-me com os enormes olhos injetados de sangue, com o ar de quem diz: “Viu como se come lentilhas?” Começo a ficar chateado com Ivanhoé e, como ainda não fui classificado como louco, decidi usá-lo para dar o golpe final. Estamos de novo num dia de lentilhas. Ivanhoé não me tapeará mais. Está sentado a meu lado. Seu rosto de idiota está radiante: saboreia antecipadamente a alegria de comer suas lentilhas e as minhas. Puxo para a minha frente um jarro pesado e grande, cheio de água. Assim que o gigante pega meu prato, ergue-o e começa a deixar as lentilhas caírem em sua garganta, levanto-me e, com toda força, quebro o jarro de água na cabeça dele. O gigante desaba com um grito de animal. No mesmo instante, todos os loucos começam a se atirar uns contra os outros, armados com pratos. Desencadeia-se uma balbúrdia espantosa. O tumulto coletivo é orquestrado por gritos de todos os tipos.

Carregado, encontro-me logo na minha cela, onde quatro fortes enfermeiros me puseram depressa e sem contemplações. Grito como um perdido que Ivanhoé me roubou a carteira com a cédula de identidade. Desta vez, consegui! O médico decidiu me classificar como irresponsável por meus atos. Todos os guardas estão de acordo em reconhecer que sou um louco pacífico, mas que tenho momentos muito perigosos. Ivanhoé está com um belo curativo na cabeça. Parece que a abri em mais de 8 centímetros. Felizmente, ele não passeia nas mesmas horas que eu.

Pude falar com Salvidia. Já conseguiu a duplicata da chave da despensa onde os tonéis estão guardados. Está tentando reunir fio de ferro suficiente para uni-los. Digo-lhe que tenho medo de que os fios de ferro rebentem devido à pressão que os tonéis irão fazer no mar; que seria melhor ter cordas, seriam mais elásticas. Vai tentar arranjá-las, deve haver cordas e fios de ferro. É preciso que ele faça, também, três chaves: uma da minha cela, uma do corredor que dá para ela e uma da porta principal do asilo. As rondas são pouco freqüentes. Um só guarda para cada turno de quatro horas. Das 9 horas à 1 hora da manhã e da 1 às 5 horas. Dois dos guardas, quando estão de vigia, dormem o tempo todo e não fazem nenhuma ronda. Contam com o condenado-enfermeiro que fica de turno com eles. Portanto, tudo vai ser questão de paciência. Um mês, no máximo, para darmos o golpe.

O guarda-chefe me deu um cigarro ruim, aceso, quando entrei no pátio. Mesmo ruim, ele me parece delicioso. Olho esse rebanho de homens nus, cantando, chorando, fazendo gestos desordenados, falando sozinhos. Todos molhados ainda do banho que cada um toma antes de entrar no pátio, seus corpos martirizados por surras recebidas ou por pancadas que eles mesmos se deram, marcas dos cordões da camisa-de-força apertada demais. É bem o espetáculo do fim do caminho da podridão. Quantos desses loucos foram reconhecidos como responsáveis por seus atos pelos psiquiatras da França? Titin – a gente o chama de Titin – é do meu grupo de 1933. Matou um cara em Marselha, depois pegou um fiacre, pôs sua vítima dentro, mandou que o cocheiro tocasse para um hospital e, ao chegar lá, disse: “Tomem, cuidem dele, acho que está doente”. Preso na mesma hora, os jurados tiveram o descaramento de não lhe reconhecer nenhuma atenuante, nem ao menos a da irresponsabilidade. No entanto, é preciso que a gente já esteja biruta para fazer um negócio desses. O mais imbecil dos caras, normalmente, saberia que ia ser fisgado. Aí está Titin, sentado a meu lado. Tem uma disenteria permanente. É um verdadeiro cadáver ambulante. Olha-me com seus olhos cinzentos, sem inteligência. Diz:

– Tenho macaquinhos na barriga, companheiro. Há uns que são maus. Eles me mordem os intestinos e é por isso que cago sangue, quando eles estão zangados. Outros, uma raça de peludos, bem cheios de pêlos, têm as mãos suaves como a pluma. Eles me acariciam docemente e impedem que os macacos maus me mordam. Quando esses macaquinhos bons querem me defender, não cago sangue.

– Você se lembra de Marselha, Titin?

– Puxa, se me lembro de Marselha. Muito bem, até. A praça da Bolsa com os botecos e a rapaziada…

– Você lembra do nome de alguns? O Ange, o Lucre? O Gravat? Clement?

– Não, não me lembro de nomes, só me lembro de um cocheiro sacana que me levou ao hospital com um amigo doente e que disse que eu era o causador da doença do meu amigo. É só.

– E os seus amigos?

– Não sei.

Pobre Titin, dou-lhe minha ponta de cigarro e me levanto com uma imensa piedade no coração por esse pobre ser que vai morrer como um cão. Sim, é muito perigoso coabitar com loucos, mas o que fazer? Em todo caso, é o único modo, suponho, de preparar uma fuga sem condenação.

Salvidia está quase pronto. Já tem duas das chaves, só falta a da minha cela. Arranjou também uma corda muito boa e, além disso, fez uma outra com os fios do tecido da maca que, segundo me disse, são formados por cinco outros fios. Por esse lado, tudo vai bem.

Tenho pressa de passarmos à ação, pois é realmente duro continuar desempenhando meu papel nesta comédia. Para ficar na parte do asilo em que se encontra minha cela, tenho que arranjar uma crise de vez em quando.

Arranjei uma tão bem representada, que os guardas-enfermeiros me puseram numa banheira com água muito quente e me deram duas injeções de brometo. A banheira é coberta por um tecido muito resistente, de modo que não posso sair. Só minha cabeça fica de fora, por um buraco. Estou nesse banho há mais de duas horas, com essa espécie de camisa-de-força, quando entra Ivanhoé. Fico terrificado pelo modo como aquele bruto me olha. Tenho um medo tremendo de que ele me estrangule. Não posso sequer me defender, já que estou com os braços debaixo do pano.

Ele se aproxima de mim, seus grandes olhos me fitam atentamente, tem o ar de procurar saber onde já viu essa cabeça que emerge dali como de um buraco de guilhotina. Seu hálito e seu cheiro de podridão me inundam o rosto. Tenho vontade de gritar por socorro, mas temo torná-lo ainda mais furioso com meus gritos. Fecho os olhos e espero, certo de que ele vai me estrangular com suas grandes mãos de gigante. Não vou esquecer tão cedo esses segundos de terror. Enfim, ele se afasta de mim, anda pela sala, depois vai até os registros da água. Fecha a água fria e abre inteiramente a água fervente. Berro, como um perdido, pois estou a ponto de cozinhar completamente. Ivanhoé sai. Há vapor na sala inteira, sufoco-me respirando-o e faço esforços sobre-humanos, em vão, para tentar rebentar este pano miserável. Enfim, chegam em meu socorro. Os guardas viram o vapor que saía pela janela. Quando me tiram daquela água fervente, tenho queimaduras horríveis e sofro como um danado. Principalmente nas coxas e nas partes onde a pele saiu. Besuntado de ácido pícrico, deitam-me na pequena sala de enfermaria do asilo. Minhas queimaduras são tão graves, que resolvem chamar o doutor. Algumas injeções de morfina me ajudam a passar as primeiras 24 horas. Quando o médico me pergunta o que aconteceu, digo-lhe que um vulcão surgiu na banheira. Ninguém compreende o que aconteceu. E o guarda-enfermeiro acusa o que preparou o banho de ter regulado mal as saídas de água.

Salvidia acaba de sair, depois de me untar com pomada pícrica. Está pronto e me faz reparar que é uma sorte eu estar na enfermaria, pois, caso a fuga fracasse, poderemos voltar para essa parte do asilo sem sermos vistos. Ele deverá fazer rapidamente uma chave da enfermaria. Acaba de tirar o molde num pedaço de sabão. Amanhã teremos a chave. Eu é que devo dizer o dia em que me sentir suficientemente curado para aproveitar o primeiro turno de um dos guardas que não fazem ronda.

Marco para esta noite, durante a guarda da 1 às 5 horas da manhã. Salvidia não está de serviço. Para ganhar tempo, ele vai esvaziar o tonel de vinagre às 11 horas da noite. O outro, o de óleo, vamos rolá-lo cheio, pois o mar está muito ruim e talvez o óleo possa nos servir para acalmar as vagas quando o derramarmos na água.

Tenho uma calça de sacos de farinha cortada nos joelhos e um blusão de lã, uma boa faca na cintura. Tenho também um saco impermeável que vou pendurar no pescoço; nele estão cigarros e um isqueiro de estimação. Salvidia preparou uma mochila impermeável com farinha de mandioca embebida em óleo e açúcar. Mais ou menos uns 3 quilos, me disse ele. Ê tarde. Sentado em minha cama, espero meu companheiro. Meu coração dá fortes pancadas. Dentro de alguns instantes, a fuga vai começar. Que a sorte e Deus me favoreçam! Que eu consiga sair para sempre do caminho da podridão!

É estranho: dedico ao passado apenas um pensamento rápido, que vai para meu pai e minha família. Nenhuma imagem do tribunal, dos jurados ou do promotor.

No momento em que a porta está se abrindo, relembro, a contragosto, Matthieu carregado de pé pelos tubarões.

– Papi, a caminho!

Sigo-o. Rapidamente, ele fecha a porta e esconde a chave num canto do corredor.

– Depressa, vamos.

Chegamos à despensa, a porta está aberta. Tirar o tonel vazio é uma brincadeira. Ele envolve o tonel com cordas, eu com fios de ferro. Pego a mochila de farinha e na noite preta começo a rolar meu tonel para o mar. Ele vem atrás, com o tonel de óleo. Felizmente, ele é muito forte e consegue controlá-lo com facilidade nesta descida quase vertical.

– Devagar, devagar, tome cuidado para que ele não pegue velocidade.

Espero-o, para o caso dele soltar seu tonel, que assim seria forçado a parar, ao bater contra o meu. Desço de costas, eu na frente e o tonel atrás. Sem qualquer dificuldade, chegamos lá embaixo. Há um pequeno acesso ao mar, mas primeiro devemos transpor rochedos que são difíceis de ultrapassar.

– Esvazie o tonel. Não vamos poder passar pelos rochedos com ele cheio.

O vento sopra com força e as vagas rebentam raivosamente contra os rochedos. Pronto, está vazio.

– Enfie a rolha, bem apertada. Espere, ponha esta placa de lata por cima. Os buracos estão feitos. Enfie bem as pontas.

Com o barulho do vento e das vagas, as pancadas não podem ser ouvidas.

Bem presos um ao outro, não é fácil erguer os dois tonéis acima dos rochedos. Cada um deles é de duzentos e vinte e cinco litros. São volumosos e difíceis de manejar. O lugar escolhido por meu amigo para entrarmos no mar não facilita as coisas.

– Empurre para cima, em nome de Deus! Erga um pouco. Cuidado com essa onda!

Nós dois fomos derrubados, com tonéis e tudo, e jogados com força contra o rochedo.

– Cuidado! Eles podem rachar. E nós podemos quebrar a perna ou um braço!

– Acalme-se, Salvidia. Passe na frente, para o mar, ou venha aqui por trás. Lá, está bem localizado. Puxe para você, de uma vez, assim que eu gritar. Vou empurrar, ao mesmo tempo, e certamente vamos nos distanciar dos rochedos. Mas, para isso, é preciso primeiro nos mantermos firmes no lugar, mesmo quando a onda nos cobrir.

Gritando essas ordens ao meu companheiro, no meio da barulhada do vento e das ondas, creio que ele as entendeu: um enorme vagalhão cobre completamente o compacto bloco que formamos, os tonéis, ele e eu. É então que, raivosamente, com todas as minhas forças, empurro a jangada. Ele também puxa, seguramente, pois de repente nos encontramos soltos e levados pela onda. Ele sobe nos tonéis antes de mim e, no momento em que subo, por minha vez, uma enorme vaga nos apanha por baixo e nos atira como uma pluma sobre um rochedo pontudo, mais avançado que os outros. A espantosa pancada é tão forte que os tonéis se desmancham, os pedaços se espalham por todos os lados. Quando a vaga se retira, leva-me a mais de vinte metros do rochedo. Nado e deixo-me levar por uma outra vaga, que rola direto sobre a costa. Aterrisso, praticamente sentado, entre dois rochedos. Tenho tempo de me agarrar antes de ser arrastado de novo. Contundido por toda parte, consigo sair dali, mas quando piso em seco, percebo que meu amigo foi arrastado para mais de cem metros cio ponto em que havíamos entrado no mar.

Sem precauções, grito: “Salvidia! Romeo! Onde você está?” Nada me responde. Aniquilado, deito-me no chão, tiro as calças, o blusão de lã e me encontro nu, só com a cueca. Meu Deus, meu amigo, onde está ele? E grito de novo, o mais alto que posso: “Onde você está?” Apenas o vento, o mar, as vagas me respondem. Fico ali, sem saber quanto tempo, atônito, completamente aniquilado, física e moralmente. Depois, choro de raiva, jogando para longe o saquinho com cigarro e isqueiro que pendurara ao pescoço, gentileza fraternal feita pelo meu amigo, pois ele não fumava.

De pé, rosto ao vento, encarando aquelas vagas monstruosas que acabavam de destruir tudo, ergo meu punho e insulto os céus: “Sujos, porcos, nojentos, pederastas, vocês não têm vergonha de se encarniçar assim contra mim. Pervertidos, sujos, filhos da puta”. E não chega. Continuo contra Deus: “Um bom Deus, você? Nunca mais pronunciarei o seu nome! Você não merece!”

O vento abaixa e essa calma aparente me faz bem e me traz de volta à realidade.

Vou tornar a subir para o asilo e, se puder, vou entrar de novo na enfermaria. Com um pouco de sorte, vai ser possível.

Subo o costão com uma única idéia: entrar e tornar a me deitar em meu colchão. Nem visto, nem reconhecido. Sem aborrecimentos, chego ao corredor da enfermaria. Saltei o muro do asilo, pois não sei onde Salvidia pôs a chave da porta principal.

Sem procurar muito, encontro a chave da enfermaria. Entro e fecho a porta atrás de mim, com duas voltas. Vou à janela e jogo a chave bem longe, ela cai do outro lado do muro. E eu me deito. A única coisa que poderia me denunciar é minha cueca molhada. Tiro-a e vou torcê-la na privada. Com a colcha cobrindo-me o rosto, vou me esquentando aos poucos. O vento e a água do mar me puseram gelado. Será que meu amigo se afogou, realmente? Talvez tenha sido carregado para mais longe do que eu e conseguido se agarrar na ponta da ilha. Será que não voltei depressa demais? Devia ter esperado mais um pouco. Reprovo-me por ter admitido muito depressa que meu companheiro estava perdido.

Na gaveta da mesinha de cabeceira há dois comprimidos para dormir. Engulo-os sem água. Minha saliva basta para fazê-los descer.

Estou dormindo quando, sacudido, vejo o guarda-enfermeiro diante de mim. A sala está cheia de sol e a janela aberta. Três doentes olham lá de fora.

– Então, Papillon? Você dorme como uma pedra. São 10 horas da manhã. Ainda não tomou seu café? Está frio. Olhe, beba.

Mal desperto, percebo que, no que concerne a mim, parece que não há nada de anormal.

– Por que me acordou?

– Porque, como suas queimaduras já sararam, precisamos da cama. Você vai voltar para a cela.

– Está bem, chefe.

E eu o sigo. Ao passar pelo pátio, ele me deixa lá. Aproveito para secar minha cueca ao sol.

Há três dias que a fuga fracassou. Não se falou nada. Vou de minha cela para o pátio, do pátio para minha cela. Salvidia não apareceu mais, portanto ele morreu, coitado, certamente arrebentado contra os rochedos. Eu mesmo escapei de boa e seguramente me salvei porque estava atrás ao invés de estar na frente. Como saber? É preciso que eu saia do asilo. Vai ser difícil fazer com que acreditem que estou curado ou, pelo menos, apto a voltar ao barracão; vai ser mais difícil do que foi vir para o asilo. Agora preciso convencer o doutor de que estou melhor.

– Sr. Rouviot (é o enfermeiro-chefe), sinto frio à noite. Prometo não sujar minhas roupas. Por que não me dá uma calça e uma camisa, por favor?

O guarda está estupefato. Olha-me, muito espantado, depois me diz:

– Sente-se aqui comigo, Papillon. Conte-me, que há?

– Estou surpreendido, chefe, de me encontrar aqui. É o asilo; portanto, estou entre os loucos? Será que, por acaso, perdi o rumo? Por que estou aqui? Diga-me, chefe, por gentileza.

– Meu velho Papillon, você esteve doente, vejo que está com ar de estar melhor. Quer trabalhar?

– Sim.

– Que quer fazer? – Qualquer coisa.

E eis-me vestido, ajudo a limpar as celas. Nesta noite deixaram minha porta aberta até as 9 horas e foi somente quando o guarda da noite começou seu turno que me fecharam.

Um cara de Auvergne, condenado-enfermeiro, falou comigo pela primeira vez ontem à noite. Estávamos a sós no posto de guarda. O guarda ainda não havia chegado. Eu não conhecia esse cara, mas ele me conhecia bem, e disse:

– Não vale a pena continuar a luta, meu chapa.

– Que quer dizer?

– Deixe disso! Pensa que não manjei a sua jogada? Sou enfermeiro de birutas há sete anos e desde a primeira semana percebi que você era um simulador.

– Então, e daí?

– Daí, lamento sinceramente que tenha fracassado em sua fuga com Salvidia. Para ele, isso custou a vida. Sinceramente, tenho pena, porque era um bom amigo, apesar de ele não ter me dito nada, mas não o quero mal por isso. Se precisar de alguma coisa, é só me dizer, ficarei contente em lhe ser útil.

Seus olhos têm um olhar tão franco, que não duvido de sua retidão. E, se não ouvi ninguém falar bem dele, também não ouvi falar mal; portanto, deve ser um bom rapaz.

Pobre Salvidia! Deve ter havido um barulhão quando perceberam que ele sumiu. Encontraram os pedaços dos tonéis devolvidos pelo mar. Têm certeza que ele foi devorado pelos tubarões. O médico fez um barulho dos diabos por causa do óleo jogado fora. Diz que, com a guerra, não é fácil de se conseguir óleo.

– Que me aconselha a fazer?

– Vou fazer com que nomeiem você para o grupo que sai do asilo todos os dias para ir buscar víveres no hospital. Será um passeio. Comece a se comportar bem. E, em dez conversas, mantenha oito dentro do bom senso. Nunca se deve sarar muito depressa.

– Obrigado. Como é seu nome?

– Dupont.

– Obrigado. Não vou esquecer seus bons conselhos.

Faz quase um mês que tentei a fuga. Seis dias depois encontraram o corpo do meu companheiro flutuando. Por um acaso inexplicável, os tubarões não o comeram. Mas outros peixes devoraram, parece, suas entranhas e uma parte da perna, segundo me conta Dupont. Seu crânio estava quebrado. Devido ao adiantado grau de decomposição, não fizeram autópsia. Pergunto a Dupont se há possibilidade de eu mandar uma carta. Seria preciso fazê-la chegar às mãos de Galgani, para que a enfie dentro do saco do correio na hora de selá-lo.

Escrevo para a mãe de Romeo Salvidia, na Itália:

“Minha senhora, seu filho morreu sem ferros nos pés. Morreu no mar, corajosamente. Morreu livre, lutando valentemente para conquistar sua liberdade. Prometemo-nos mutuamente escrever às nossas famílias se alguma desgraça acontecesse a um de nós. Cumpro este doloroso dever, beijando-lhe filialmente as mãos.

Um amigo de seu filho,

Papillon”.

Depois de cumprido o meu dever, decido não pensar mais nesse pesadelo. É a vida. Resta sair do asilo, chegar à Ilha do Diabo, custe o que custar, e tentar outra fuga.

O guarda nomeou-me jardineiro de seu jardim. Há dois meses que me comporto bem e fiz com que ele me apreciasse de tal maneira, que o viado do guarda não quer me largar mais. O cara de Auvergne disse que, em sua última visita, o médico queria me fazer sair do asilo para me por no barracão em “saída de experiência”. O guarda se opôs, dizendo que seu jardim jamais estivera tão bem cuidado.

Então, hoje de manhã, arranquei todos os morangueiros e joguei-os no lixo. No lugar de cada morangueiro, plantei uma pequena cruz. Tantos morangueiros, tantas cruzes. Contar o escândalo não vale a pena. O gordo e pesado guarda-chefe quase estourou, tão grande foi sua indignação. Ele babava e bufava, querendo falar, mas os sons não queriam sair. Finalmente, sentado num carrinho de mão, ele chorou lágrimas verdadeiras. Fui um tanto pesado, mas o que fazer?

O médico não levou a coisa para o lado trágico. Esse doente, insiste, deve ser posto em “saída de experiência” e ir para o barracão, a fim de se readaptar à vida normal. Foi de estar sozinho no jardim que lhe veio essa idéia bizarra.

– Diga-me, Papillon, por que arrancou os morangueiros e pôs cruzes no lugar?

– Não posso explicar essa ação, doutor, e peço desculpas ao vigilante. Ele gostava tanto dos morangueiros, que estou realmente desolado. Vou pedir ao bom Deus que lhe dê outros.

Eis-me no barracão. Reencontro meus amigos. O lugar de Carbonieri está vazio, ponho minha rede ao lado desse espaço vazio, como se Matthieu continuasse lá.

O doutor me fez bordar em meu blusão: “Em tratamento especial”. Ninguém, a não ser o médico, pode me dar ordens. Ele me ordenou que catasse folhas, das 8 às 10 horas da manhã, diante do hospital. Bebi o café e fumei alguns cigarros em companhia do médico, em uma poltrona, diante da casa. Sua mulher está sentada conosco e o médico tenta fazer com que eu fale de meu passado, ajudado pela sua mulher.

– E então, Papillon, e depois? Que foi que lhe aconteceu depois que deixou os índios pescadores de pérolas?…

Passo todas as tardes com essas duas pessoas admiráveis.

– Venha me visitar todos os dias, Papillon – disse-me a mulher do doutor. – Primeiro, porque quero vê-lo; depois, para ouvir as histórias que lhe aconteceram.

Todo dia, passo algumas horas com o médico e sua mulher, às vezes só com a mulher dele. Obrigando-me a contar minha vida passada, eles estão persuadidos de que isso contribui para me equilibrar definitivamente. Decidi pedir ao médico que me mande à Ilha do Diabo.

Está feito: devo partir amanhã. Esse doutor e sua mulher sabem por que vou à Ilha do Diabo. Foram tão bons comigo, que não quis enganá-los:

– Doutor, não agüento mais esta prisão, faça com que me mandem para a Ilha do Diabo, faça com que eu escape ou estoure, mas que isto acabe!

– Eu o compreendo, Papillon. Este sistema de repressão me desgosta, esta administração é podre. Então, adeus e boa sorte!