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É a menor das Ilhas da Salvação. Aquela que fica mais ao norte, também, e a mais batida pelo vento e pelas ondas. Depois de uma baixada estreita que se estende ao longo do mar por todo o litoral, eleva-se rapidamente até um planalto onde estão instalados o posto de guarda dos vigilantes e uma única enfermaria para os presos, uns dez mais ou menos. Para a Ilha do Diabo, oficialmente, não são mandados os condenados comuns, mas apenas os presos e deportados políticos.
Vivem cada um numa casinha coberta de folhas-de-flandres. Às segundas-feiras recebem os víveres crus para a semana e todos os dias recebem um pão. São uns trinta. O enfermeiro é o Dr. Léger, que envenenou toda a família em Lyon ou aí por perto. Os políticos não se dão com os comuns e às vezes escrevem para Caiena, queixando-se de um ou outro preso comum da ilha. Então, este é removido e levado de volta a Royale.
Um cabo liga Royale à Ilha do Diabo, porque muito freqüentemente o mar está agitado demais para que o barco de Royale possa aportar numa espécie de pontão de cimento.
O chefe dos guardas do presídio (são três) chama-se Santori. É um grandalhão sujo e muitas vezes fica com uma barba de oito dias.
– Papillon, espero que você se porte bem na Ilha do Diabo. Não me encha o saco e eu vou deixar você sossegado. Suba para o presídio, vejo você lá.
Na enfermaria encontro seis forçados: dois chineses, dois negros, um sujeito de Bordéus e um de Lille. Um dos chineses me conhece bem, estava junto comigo em Saint-Laurent, preso preventivamente por assassinato. É um indochinês, um sobrevivente da revolta do presídio de Poulo Condor, na Indochina.
Pirata de profissão, atacava os barcos e às vezes assassinava toda a tripulação com a família. Excessivamente perigoso, tem no entanto uma maneira de viver em comum com os outros presos que capta a confiança e a simpatia.
– Como vai, Papillon?
– Bem. E você, Chang?
– Vai indo. Aqui a gente está bem. Você comer comigo. Você dormir lá, perto de mim. Eu cozinhar duas vezes por dia. Você pegar peixe. Aqui bastante peixe.
Santori chega:
– Ah, já se instalou? Amanhã de manhã, você vai com Chang dar de comer aos porcos. Ele leva os cocos e você parte os cocos com um machado. Precisa separar os cocos moles para os leitões que não têm dentes. À tarde, às 4 horas, a mesma coisa. Excetuadas estas duas horas, uma de manhã e outra de tarde, você está livre para fazer o que quiser na ilha. Cada pescador tem que levar 1 quilo de peixe para meu cozinheiro, ou de lagostim. Assim, todo mundo fica satisfeito. Está certo?
– Certo, Sr. Santori.
– Sei que você é um fujão inveterado, mas, como daqui a fuga é impossível, nem vou ligar. De noite, você fica trancado, mas eu sei que há alguns que fogem assim mesmo. Você podia ficar como guarda dos deportados políticos. Todos eles têm um facão de mato. Se você chegar perto das casas deles, vão pensar que você vai roubar um frango ou ovos. Eles podem até matar ou machucar você, porque eles enxergam você, e você não os vê.
Depois de dar de comer a mais de duzentos porcos, fiquei andando pela ilha o dia todo, acompanhado por Chang, que a conhece a fundo. Um velho, com uma longa barba branca, cruzou conosco na picada que dá volta à ilha pela praia. É um jornalista de Nova Caledônia que, durante a guerra de 1914, escrevia contra a França, a favor da Alemanha. Vi também o porco que mandou fuzilar Edith Cavell, a enfermeira inglesa ou belga que salvou os aviadores ingleses em 1917. Este repugnante personagem, grande e gordo, tinha um pau na mão e sovava um peixe enorme, de mais de 1 metro e 50 de comprimento e grosso como a minha coxa.
O enfermeiro também mora numa dessas casinhas que deveriam ser somente dos presos políticos.
O Dr. Léger é uma ótima pessoa. Sujo e atarracado, dele só o rosto é limpo, um rosto emoldurado de cabelos grisalhos e muito compridos sobre o pescoço e as têmporas. Suas mãos estão avermelhadas de feridas mal cicatrizadas, provavelmente provocadas pelo atrito com as asperezas das rochas do mar.
– Se precisar de alguma coisa, venha aqui, que eu arranjo para você. Venha só se estiver doente. Não gosto de que venham me procurar e menos ainda de me procurar para bater papo comigo. Vendo ovos e de vez em quando um frango ou uma galinha. Se matar um leitão escondido, traga um pernil e eu lhe dou um frango e seis ovos. Já que você está aqui, leve este vidro com 120 cápsulas de quinino. Você veio aqui para fugir, se por milagre você conseguir, vai precisar disso na mata.
Pesco quantidades astronômicas de salmonetes de manhã e de noite. Mando de 3 a 4 quilos todos os dias para a cozinha dos guardas. Santori está radiante, nunca ganhou tanta variedade de peixe e de lagostim. Às vezes, mergulhando na maré baixa, pego trezentos lagostins.
O médico Germain Guibert veio ontem à Ilha do Diabo. Como o mar estava bom, veio o comandante de Royale e a Sra. Guibert. Esta mulher admirável é a primeira a pôr os pés nesta ilha. De acordo com o comandante, jamais um civil botou os pés aqui. Pude falar mais de uma hora com ela. Foi comigo até o banco onde Dreyfus sentava olhando para o mar, em direção à França que o rejeitara.
– Se esta pedra polida pudesse contar os pensamentos de Dreyfus… – diz, acariciando a pedra. – Papillon, esta é seguramente a última vez que nós nos vemos, porque todos dizem que daqui a pouco você vai tentar nova fuga. Vou rezar para você conseguir. E eu lhe peço que, antes de partir, fique um minuto nesse banco que eu acariciei e peço que você o acaricie também ao se despedir dele.
O comandante me deu a autorização para mandar pelo cabo, sempre que eu quiser, lagostins e peixe para o doutor. Santori concordou.
– Adeus, doutor, adeus senhora.
Despeço-me deles o mais naturalmente possível antes que a chalupa se afaste do pontão. Os olhos da Sra. Guibert se fixam em mim, imensos, francos, como para dizer: “Lembre-se sempre de nós, e nós não esqueceremos de você nunca mais”.
O banco de Dreyfus fica bem no. alto da ponta norte da ilha. Domina o mar a mais de 40 metros.
Não fui pescar hoje. Num viveiro natural, tenho mais de 100 quilos de salmonetes e, numa pipa de ferro presa por uma corrente, mais de quinhentos lagostins. Assim, não preciso me ocupar com a pesca. Tenho o suficiente para mandar para o médico, para Santori, para o chinês e para mim.
Estamos em 1941, há onze anos que estou na cadeia. Tenho 35 anos. Passei os dez anos mais bonitos da minha vida na cela ou na masmorra. Tive apenas sete meses de liberdade completa com a minha tribo de índios. Os filhos que fui obrigado a ter com minhas duas mulheres índias estão agora com oito anos. Que horror! Como o tempo passou depressa! Mas, olhando para trás, contemplo estas horas, estes minutos, e recordo como custaram a passar quando os’ suportava, como cada um deles ficou integrado nesse calvário.
Trinta e cinco anos! Onde estão Montmartre, a Praça Blanche, Pigalle, o salão de baile do Petit Jardin, o bulevar de Clichy? Onde está Nenette, com seu rosto de madona, verdadeiro camafeu, Nénette que, com seus grandes olhos negros, desesperada, gritou no tribunal: “Não se preocupe, meu querido, estarei com você até lá”? Onde está Raymond Hubert com seu “Seremos absolvidos”? Onde estão os doze viados do júri? E os guardas? e o promotor? Que é feito de meu pai e das famílias que minhas irmãs constituíram sob o jugo alemão?
Quantas fugas! Vejamos, quantas?
A primeira, quando fugi do hospital, depois de derrubar os guardas a cacetadas.
A segunda na Colômbia, em Rio Hacha, A mais bonita. Lá, eu tinha sido completamente vitorioso. Por que fui deixar minha tribo? Um estremecimento de desejo percorre meu corpo. Tenho a impressão de sentir ainda dentro de mim as sensações dos atos do amor com as duas irmãs índias.
Depois a terceira, a quarta, a quinta e a sexta em Barranquilla. Quanto azar nessas fugas! O golpe da missa, tão desgraçadamente malogrado! A dinamite que explodiu! Clousiot, que ficou pendurado pelas calças! E a demora do narcótico!
A sétima, em Royale, onde aquele puto do Bébert Celier me denunciou. Aquela teria dado certo, claro, se não fosse por ele. Se ele tivesse calado a boca, eu estaria livre com meu pobre amigo Carbonieri.
A oitava, a última, a do asilo. Um erro, um grande erro da minha parte, ter deixado o italiano escolher o lugar de entrar no mar. Duzentos metros mais para baixo, perto do matadouro, teríamos certamente mais facilidade para soltar a jangada.
Este banco – onde Dreyfus, condenado inocente, encontrou a coragem de continuar a viver apesar de tudo – deve servir-me para alguma coisa. Nunca me darei por vencido. Tentarei outra fuga.
Sim, esta pedra lisa, polida, em cima desse precipício, onde as ondas batem enraivecidas sem parar, será para mim um apoio e um exemplo. Dreyfus nunca se deixou abater e sempre, até o fim, lutou pela sua reabilitação. É verdade que ele teve Émile Zola com seu famoso Eu Acuso para defendê-lo. Todavia, não fosse um homem de muita fibra, diante de tanta injustiça teria se jogado com certeza no abismo, deste mesmo banco. Ele agüentou o golpe. Não devo ser menos forte do que ele e preciso largar de lado essa idéia de tentar uma nova fuga com a alternativa: vencer ou morrer. Preciso esquecer a palavra morrer, para pensar somente em vencer e ser livre.
Nas longas horas que passo sentado no banco de Dreyfus, meus pensamentos vagueiam, sonham com o passado e constroem um futuro cor-de-rosa. Meus olhos ficam freqüentemente ofuscados por tanta luz, pelos reflexos da crista das ondas. De tanto olhar sem realmente enxergar este mar, conheço todos os caprichos possíveis e imagináveis das ondas que acompanham o vento. O mar, inexoravelmente, sem jamais se cansar, ataca os rochedos mais avançados da ilha. Ele os escava, corrói as rochas, parece dizer à Ilha do Diabo: “Vá embora, você precisa desaparecer, você me estorva quando eu me lanço sobre o continente, você barra o meu caminho. É por isso que cada dia, sem parar, eu arranco um pedacinho de você”. Quando há tempestade, o mar se entrega à loucura e não apenas raspa, arrancando o que consegue destruir, mas ainda procura penetrar em todos os cantos para, pouco a pouco, minar por baixo esses gigantes de pedra, que parecem dizer: “Por aqui não se passa”.
Então descubro uma coisa importantíssima. Justo embaixo do banco de Dreyfus, diante de imensas rochas em forma de ferradura, as ondas atacam, arrebentam e se retiram com violência. As toneladas de água não podem se dispersar, porque ficam presas entre esses dois penedos que formam uma ferradura de cerca de 5 ou 6 metros de largura. À frente fica o penhasco, portanto a água das ondas não tem outra saída senão voltar para o mar.
Isso é muito importante porque, se na hora em que a onda bate e volta, eu me jogar do rochedo com um saco de cocos, mergulhando diretamente dentro dela, sem sombra de dúvida ela me arrastará consigo ao se retirar.
Eu sei onde posso pegar muitos sacos de juta; no mangueirão há sacos à vontade, para o recolhimento dos cocos.
A primeira coisa a fazer é uma experiência. Quando há lua cheia, a maré é mais alta e portanto as ondas são mais fortes. Vou esperar a lua cheia. Um saco de juta bem costurado, cheio de cocos secos com sua casca de fibra, fica bem escondido numa espécie de gruta: para entrar nela, é preciso mergulhar e passar debaixo da água. Descobri essa gruta mergulhando para apanhar lagostins. Eles ficam grudados no teto da gruta, que só recebe ar quando a maré está baixa. Num outro saco, que amarrei ao saco de cocos, coloquei uma pedra que deve pesar 35 ou 40 quilos. Como vou partir com dois sacos de cocos em vez de um e peso 70 quilos, a proporção é a mesma: um saco para 35 quilos.
Estou excitadíssimo com a experiência. Este lado da ilha é tabu. Ninguém jamais poderá imaginar que alguém vá escolher o local mais batido pelas ondas, e portanto o mais perigoso, para fugir.
E, no entanto, é o único lugar de onde, se eu conseguir me afastar da costa, serei levado para o largo e não poderei de maneira alguma ir me espatifar na Ilha Royale.
É deste lugar que eu tenho que sair.
O saco de cocos e a pedra são muito pesados e nada fáceis de carregar. Não consegui empurrá-los para cima do rochedo. A rocha é escorregadia e está sempre molhada pelas ondas. Chang, com quem falei, vai me ajudar. Ele pegou todos os apetrechos de pesca, linhas de fundo, porque, se formos surpreendidos, vamos dizer que fomos colocar as linhas para apanhar tubarões.
– Vamos, Chang. Um pouco mais e vai dar.
A lua cheia clareia a cena como em pleno dia. O barulho das ondas me ensurdece. Chang pergunta:
– Você está pronto, Papillon? Jogue naquela lá.
A onda, de uns 5 metros de altura, levanta-se e se precipita como louca contra o rochedo, vai quebrar debaixo da gente, mas o choque é tão violento, que a crista passa por cima do rochedo e nos molha inteiramente. Apesar disso, a gente joga o saco no momento exato em que ela forma um redemoinho antes de se retirar. Carregado como uma palha, o saco entra no mar.
– Aí, Chang, está bem.
– Espere para ver se saco não voltar.
Menos de cinco minutos depois, desanimado, vejo chegar o saco empoleirado na crista de um imenso vagalhão, de 7, 8 metros de altura ou mais. A onda levanta o saco de cocos e a pedra, e carrega-os em cima da crista, um pouco antes da espuma. E, com uma força espantosa, os devolve para o lugar de onde partiram, um pouco à esquerda. A coisa se espatifa sobre a rocha em frente. O saco se abre, os cocos se espalham e a pedra rola para o fundo do abismo.
Ensopados até os ossos, porque a onda nos molhou inteiramente e praticamente nos derrubou – felizmente para trás, em terra -, esfolados e chateados, Chang e eu, sem olhar mais para o mar, afastamo-nos o mais depressa possível desse lugar maldito.
– Nada bom, Papillon. Nada bom esta idéia de fugir da Ilha do Diabo. É melhor Royale. Do lado sul, você pode sair melhor do que daqui.
– É, mas em Royale a fuga pode ser descoberta em duas horas no máximo. No saco de cocos, só com o impulso da onda, posso ser facilmente apanhado de novo pelas três lanchas da ilha. Ao passo que aqui, para começar, não existem barcos; em segundo lugar, com certeza tenho toda a noite pela frente antes de o pessoal perceber a fuga; depois, podem pensar que eu me afoguei pescando. Na Ilha do Diabo não há telefone. Se eu fugir com mau tempo, não existe chalupa capaz de chegar até aqui. Portanto, é aqui que preciso partir. Mas como?
Sol a pino ao meio-dia. Um sol tropical que quase faz ferver o cérebro dentro do crânio. Um sol que calcina todas as plantas que conseguiram brotar, mas não conseguiram crescer até se tornarem bastante fortes para resistir a ele. Um sol que faz evaporar em algumas horas toda poça de água do mar não muito profunda e deixa uma película branca de sal. Um sol que faz dançar o ar. Sim, o ar se mexe, na verdade se mexe diante dos meus olhos e a reverberação de sua luz sobre o mar queima minhas pupilas. Entretanto, outra vez no banco de Dreyfus, tudo isso não me impede de estudar o mar. E, então, percebo que sou um verdadeiro idiota.
O vagalhão, duas vezes maior que todas as outras ondas, que vomitou o saco sobre os rochedos, esmigalhando-o completamente, só se repete a cada sete ondas.
Do meio-dia ao por do sol, fiquei observando se isso era automático, se não havia mudanças bruscas, se não havia alguma alteração na periodicidade e na forma dessa onda gigantesca.
Não, nem uma vez o vagalhão apareceu antes ou depois. Seis ondas de uns 6 metros depois, formando-se a mais de 300 metros da costa, o vagalhão. Aproxima-se reto como um I. Conforme vem vindo, aumenta de volume e altura. Quase sem espuma na crista, ao contrário das outras seis. Muito pouca. Faz um ruído particular, como uma trovoada que rola e vai se extinguindo ao longe. Quando bate nos dois rochedos e se precipita na passagem entre eles e vem chocar no penhasco, a massa de água, muito maior que a das outras ondas, comprime-se, rodopia várias vezes dentro da cavidade, e são necessários dez ou quinze segundos para que o redemoinho, como um turbilhão, encontre novamente a saída e se afaste, arrancando e rolando consigo grandes pedras que não param de ir e vir, com um estrondo parecido ao de centenas de carroças de pedras descarregadas brutalmente.
Coloco uns dez cocos no mesmo saco, enfio uma pedra de mais ou menos 20 quilos e assim que o vagalhão se quebra jogo o saco.
Não consigo acompanhá-lo com os olhos, porque há muita espuma branca dentro do abismo, mas posso vê-lo por um segundo quando a água, como que sugada, se precipita em direção ao mar. O saco não voltou. As seis outras ondas não tiveram força suficiente para devolvê-lo à costa e, quando a sétima se forma, a cerca de 300 metros, o saco já deve ter passado do ponto onde ela nasce, porque não o vejo mais.
Cheio de alegria e de esperança, volto para o presídio. Aí está, descobri uma largada perfeita. Nada de aventuras nesse golpe. Vou fazer mesmo um ensaio mais sério, com os dados exatos: dois sacos de cocos bem amarrados um ao outro e, em cima, 70 quilos de peso, divididos entre duas ou três pedras. Falo com Chang, o chinês, meu camarada de Poulo Condor, que escuta minhas explicações com os ouvidos bem abertos.
– É bom, Papillon, Acho que você descobriu. Eu ajudar você no ensaio de verdade. Esperar maré alta de 8 metros. Logo equinócio.
Ajudado por Chang, aproveitando a maré do equinócio, de mais de 8 metros, jogamos na famigerada onda dois sacos de cocos carregados com três pedras que devem ter uns 80 quilos.
– Como chamar a menina que você quis salvar em Saint-Joseph?
– Lisette.
– Nós chamar a onda que um dia levar você: Lisette. Certo?
– Certo.
Lisette chega com o estrondo de um trem entrando na estação. Formou-se a mais de 250 metros e, aprumada como um penhasco, avança crescendo a cada segundo. É realmente muito impressionante. Ela arrebenta com tanta força, que Chang e eu somos varridos do rochedo e, sozinhos, os sacos caíram dentro do abismo. Percebendo imediatamente numa fração de segundo que não podíamos ficar em cima do rochedo, jogamo-nos para trás, não escapamos do jato de água, mas também não caímos no abismo. Fazemos este ensaio às 10 da manhã. Não há perigo, porque os três guardas estão ocupados no outro lado da ilha com uma vistoria geral. O saco foi embora, distingue-se claramente, bem longe da costa. Será que foi jogado mais longe do ponto onde nasce a onda? Não temos indicação para saber se foi mais longe ou mais perto. As seis ondas que vêm depois de Lisette não chegam a pegá-lo no seu impulso. Outra vez, Lisette se forma e torna a vir. Não traz mais os sacos consigo. Portanto, eles saíram de sua zona de influência.
Subindo depressa no banco de Dreyfus para conseguir enxergá-los mais uma vez, temos a alegria de vê-los por quatro vezes; apareceu muito longe, na crista das ondas, não na direção da Ilha do Diabo, mas indo para o oeste. Indiscutivelmente, a experiência e positiva. Partirei para a grande aventura no dorso de Lisette.
– Lá está, olhe.
Uma, duas, três, quatro, cinco, seis… e lá vem Lisette.
O mar fica sempre agitado na ponta do banco de Dreyfus, mas hoje está particularmente de mau humor. Lisette avança com seu barulho característico. Parece mais enorme ainda, deslocando, sobretudo na base, ainda mais água do que habitualmente. Essa massa monstruosa vai atacar o rochedo mais rapidamente e mais aprumada do que nunca. E, quando rebenta e se precipita no espaço contra as enormes pedras, o golpe parece ainda mais ensurdecedor do que em todas as outras vezes.
– É lá que você diz que a gente vai se jogar? Bom, companheiro, você escolheu o lugar a dedo. Eu não vou. Quero sair daqui, é verdade, mas não me suicidar.
Sylvain fica muito impressionado com a apresentação de Lisette, que acabo de lhe fazer. Está na Ilha do Diabo há três dias e, naturalmente, propus a ele partirmos juntos. Cada um numa jangada. Assim, se ele aceitar, terei um camarada para prosseguir a fuga no continente. No mato, sozinho, não é nada divertido.
– Não tenha medo antes do tempo. Reconheço que, à primeira vista, qualquer um dá para trás. Mas é a única onda capaz de levar a gente bastante longe, de maneira que as outras ondas que vêm atrás não terão a força de nos jogar de novo sobre os rochedos.
– Calma, olhe, nós experimentamos, diz Chang. E certo, depois que você for, não pode voltar à Ilha do Diabo, nem chegar a Royale.
Levei uma semana para convencer Sylvain. Um sujeito cheio de músculos, 1 metro e 80, bem proporcionado em todo o seu corpo de atleta.
– Bom. Admito que vamos ser arrastados para bem longe. Depois, em quanto tempo você acha que a gente chega à Terra Grande, com as marés?
– Francamente, Sylvain, não sei. A deriva pode ser mais ou menos longa, vai depender de muita coisa. O vento quase não vai influir, vamos estar muito dentro da água. Mas, se houver mau tempo, as ondas serão mais fortes e nos levarão mais depressa para a mata. Com sete, oito, ou dez marés, no máximo, devemos ser jogados na praia. Portanto, vai levar de 48 a sessenta horas.
– Como é que você calcula?
– Das ilhas direto até a costa, não são mais de 40 quilômetros. À deriva, é como a hipotenusa de um triângulo retângulo. Veja o sentido das ondas. Mais ou menos, precisamos fazer de 120 a 150 quilômetros, no máximo. Quanto mais a gente se aproximar da costa, mais diretamente as ondas vão nos dirigir e jogar sobre ela. Ã primeira vista, você não acha que um destroço a esta distância da costa vai a 5 quilômetros por hora?
Ele me olha e ouve atentamente minhas explicações. Este rapagão é muito inteligente.
– Não, você não esta falando besteira, reconheço. Se não fosse pelas marés baixas, que vão nos fazer perder tempo, porque são elas que vão nos levar ao largo, com certeza a gente chegaria em menos de trinta horas à costa. Com as marés baixas, acho que você tem razão: entre 48 e sessenta horas, a gente chega à costa.
– Você se convenceu, vai comigo?
– Quase. Suponhamos que a gente está no continente, no mato. O que é que a gente faz?
– Precisamos chegar perto de Kourou. Lá tem uma aldeia bastante importante de pescadores, seringueiros e garimpeiros. É preciso aproximar-se com cuidado, porque tem também uma colônia penal estrangeira. Deve ter certamente umas picadas no mato para chegar até Caiena e até um presídio de chineses, chamado Inini. Precisamos pegar um preso ou um civil negro e obrigá-lo a levar a gente até Inini. Se o cara se portar bem, damos para ele 500 pratas – e que desapareça. Se bancar o durão, vamos obrigá-lo a fugir conosco.
– Que é que vamos fazer em Inini, nesse presídio especial para indochineses?
– O irmão de Chang está lá.
– É, meu irmão estar lá. Ele fugir com vocês, ele encontrar com certeza barco e comida. Se vocês encontrar Cuic-Cuic, vocês ter tudo para fuga. Um chinês nunca faz jogo polícia. Também qualquer chinês vocês encontrar no mato, vocês falar com ele e ele avisar Cuic-Cuic.
– Por que é que chamam seu irmão de Cuic-Cuic? – diz Sylvain.
– Não sei, os franceses batizar ele Cuic-Cuic.
E continua:
– Atenção. Quando vocês quase chegar Terra Grande, vocês encontrar areia. Nunca pisar na areia, ela não boa, ela chupar vocês. Esperar que outra maré leve vocês dentro do mato para poder agarrar cipós e galhos árvores. Senão, vocês fodidos.
– Ah! é, Sylvain. Nunca pisar na areia, nem bem perto da costa. Precisamos esperar até alcançar um galho ou um cipó.
– Tá bom, Papillon. Resolvi.
– Fazendo as duas jangadas iguais, mais ou menos, como temos o mesmo peso, com certeza não vamos ficar muito longe um do outro. Mas nunca se sabe. No caso de a gente se perder, como é que vamos nos encontrar de novo? Daqui não se vê Kourou. Porém quando estava em Royale, você deve ter reparado que à direita de Kourou, aproximadamente a 20 quilômetros, há umas rochas brancas que se enxergam bem quando o sol bate nelas.
– Sei.
– São os únicos rochedos de toda a costa. À direita e à esquerda, até o infinito, é só areia. Essas rochas são brancas por causa da merda dos pássaros. Como ninguém jamais vai até lá, é um esconderijo para se refazer antes de afundar na mata. A gente pode comer ovos e os cocos que levar. Não se pode acender nenhum fogo. O primeiro que chegar espera o outro.
– Quantos dias?
– Cinco. É impossível que em menos de cinco dias o outro não chegue no lugar combinado.
Fazemos as duas jangadas. Usamos sacos duplos, para que sejam mais resistentes. Pedi dez dias a Sylvain para ficar o maior tempo possível treinando a montar a cavalo num saco. Ele faz a mesma coisa. Percebemos que, quando os sacos estão a ponto de virar, é necessário um esforço suplementar para o montador ficar em cima. Sempre que possível, vai ser preciso deitar em cima do saco. Cuidado para não dormir, porque a gente pode perder o saco, caindo na água e não conseguindo mais agarrá-lo. Chang costurou um saquinho impermeável que vou prender no pescoço com uns cigarros e um isqueiro. Vamos ralar dez cocos cada um para levar. Sua polpa nos permitirá agüentar a fome e também matar a sede. Parece que Santori tem uma espécie de bexiga de couro para pôr vinho. Ele não usa isso. Chang, que às vezes vai até a casa do guarda, tentará passar a mão nela.
Vai ser domingo às 10 da noite. A maré, com a lua cheia, terá 8 metros. Lisette estará pois em toda a sua força. Chang vai dar de comer sozinho aos porcos domingo de manhã. Eu vou dormir sábado o dia todo e todo o domingo. Partiremos às 10 horas da noite, a vazante deve começar duas horas depois,
É impossível que meus dois sacos se separem um do outro. Estão amarrados com cordas de cânhamo trançado, arame, e costurados um ao outro com uma linha grossa para velas. Encontramos sacos maiores que os outros e a boca de um está encaixada na boca do outro. Os cocos não vão escapar.
Sylvain não pára de fazer ginástica e eu me deixo massagear as coxas pelas ondas pequenas, que batem sobre elas durante longas horas. Com os golpes repetidos da água sobre minhas coxas e as contrações que sou obrigado a fazer para resistir a cada onda, criei pernas e coxas de ferro.
Num poço abandonado da ilha há uma corrente de cerca de 3 metros. Prendi-a às cordas que seguram meus sacos. Um parafuso de ferro passa através dos anéis. Se por acaso não agüentar mais, eu me amarro aos sacos com a corrente. Talvez assim eu possa dormir sem correr o risco de cair na água e perder minha jangada. Se os sacos virarem, a água vai me despertar e eu os colocarei novamente na posição certa.
– Então, Papillon. Mais três dias.
Sentados no banco de Dreyfus, olhamos para Lisette.
– É, mais três dias, Sylvain. Eu tenho fé que a gente vai conseguir. E você?
– É certo, Papillon. Terça de noite ou quarta de manhã, vamos estar no mato. E então vai ser sopa.
Chang vai ralar dez cocos para cada um. Além das facas, levamos dois sabres roubados do depósito de ferramentas.
O presídio de Inini fica a leste de Kourou. Somente andando de manhã, contra o sol, vamos ter certeza de seguir a direção certa.
– Segunda de manhã, Santori vai ficar bobo – diz Chang. – Eu não falar que você e Papillon desaparecidos antes de segunda 3 horas da tarde, quando guarda acabar sesta.
– E por que é que você não pode chegar correndo e dizer que uma onda carregou a gente enquanto a gente pescava?
– Não, eu nada complicações. Eu dizer: “Chefe, Papillon e Stephen não vir trabalhar hoje. Eu sozinho dei comer aos porcos”. Só isso.
A EVASÃO DA ILHA DO DIABO
Domingo, 7 horas da noite. Acabo de acordar. Propositalmente, durmo desde sábado de manhã. A lua só sai às 9. Lá fora, a noite está negra. Poucas estrelas no céu. Grandes nuvens carregadas de chuva passam correndo em cima de nossas cabeças. Acabamos de sair do barracão. Como muitas vezes vamos pescar clandestinamente de noite ou mesmo passear pela ilha, todos os outros acham a coisa natural.
Um rapaz entra com seu amante, um árabe forte. Com certeza acabaram de fazer o amor num canto qualquer. Olhando-os enquanto levantam a tábua para voltar à enfermaria, penso que, para o árabe, poder fazer o amor com seu amigo duas ou três vezes por dia é o auge da felicidade. Poder satisfazer à saciedade suas necessidades eróticas é coisa que transforma a prisão num paraíso para ele. Para o garoto bonito é o mesmo. Deve ter uns 23 ou 25 anos. Seu corpo é o de um adolescente. Por mais que viva na sombra para conservar sua pele cor de leite, já deixou de ser um Adônis. Na prisão, contudo, tem mais amantes do que poderia pretender se estivesse em liberdade. Além do amante do coração, o árabe, ele pega clientes a 25 francos cada um, exatamente como uma puta da Rua Rochechouart, em Montmartre. Além do prazer que os clientes provocam nele, ganha dinheiro suficiente para ele e seu “homem” viverem comodamente. Eles e seus clientes se dedicam obstinadamente ao vício e, desde o dia em que puseram os pés na prisão, sua cabeça só teve um ideal: o sexo.
O procurador que os fez condenar fracassou na tentativa de castigá-los, colocando-os no caminho da corrupção. É nesta corrupção que eles encontraram a felicidade.
Descida a prancha na bunda do viadinho, ficamos sós, Chang, Sylvain e eu.
– Vamos andando.
Logo estamos no norte da ilha.
Tiramos as duas jangadas da gruta. Logo ficamos os três molhados. O vento sopra com os uivos característicos do vento desencadeado do alto-mar. Sylvain e Chang me ajudam a puxar minha jangada até o alto do rochedo. Na última hora, resolvo prender o pulso esquerdo à corda do saco. Tenho medo, de repente, de perder o saco e de ser carregado sem ele. Sylvain sobe no rochedo em frente, com a ajuda de Chang. A lua já está bem alta, enxerga-se muito bem. Enrolei uma toalha em volta da cabeça. Temos que esperar seis ondas. Leva tempo.
Chang chega perto de mim. Envolve-me o pescoço, depois me, abraça. Deitado sobre a rocha e abaixado numa depressão da pedra, ele vai segurar minhas pernas para ajudar-me a agüentar a arrebentação de Lisette.
– Mais uma – grita Sylvain -, a outra é a nossa!
Fica na frente da sua jangada, para cobri-la com o corpo e protegê-la contra a água que vai passar sobre ela. Estou na mesma posição e, além disso, para me segurar, tenho as mãos de Chang, que no nervosismo me enfia as unhas na barriga da perna.
Está chegando, a Lisette que vem buscar a gente. Vem empinada como a torre de uma igreja. Com seu costumeiro estrondo ensurdecedor, quebra-se sobre os dois rochedos e afunda em direção ao penhasco.
Atirei-me uma fração de segundo antes de meu companheiro, que parte imediatamente, e nas duas jangadas, coladas uma à outra, Lisette nos arrasta ao largo com uma rapidez vertiginosa. Em menos de cinco minutos estamos a mais de 300 metros da costa. Sylvain ainda não subiu na sua jangada. Eu já estava em cima dela no minuto seguinte. Com um pano branco na mão, empoleirado no banco de Dreyfus, onde teve que trepar depressa, Chang manda seu último adeus. Já faz cinco minutos que saímos do lugar perigoso onde as ondas se formam para ir direto contra a Ilha do Diabo. Aquelas que nos levam são bem mais compridas, quase sem espuma, e tão regulares que vamos à deriva, formando um só corpo com elas, sem balançar e sem que a jangada corra o perigo de virar.
Subimos e descemos estas ondas profundas e altas, levados suavemente para o largo com a vazante.
Ao subir na crista de uma dessas ondas, ainda uma vez, virando completamente a cabeça, posso enxergar o pano branco de Chang. Sylvain não está muito longe de mim, a uns 50 metros em direção ao alto-mar. Várias vezes, ele levanta o braço e o agita em sinal de alegria e de vitória.
A noite não foi dura e sentimos fortemente a mudança de atração do mar. A maré com a qual partimos nos atirou ao largo, esta nos empurra agora para a Terra Grande.
O sol se levanta no horizonte, são portanto 6 horas. Estamos muito junto da água para conseguir avistar a costa. Vejo que estamos bastante longe das ilhas, pois, embora o sol as ilumine completamente, mal se distinguem e não se percebe que são três. Vejo uma massa, só isso. Não podendo distinguir os detalhes, penso que estão a pelo menos 30 quilômetros.
Tenho um sorriso de triunfo; pelo êxito total.
E se eu sentasse na jangada? O vento me empurraria melhor, batendo nas minhas costas.
Pronto, sentei. Desenrolo a corrente e dou uma volta em torno da minha cintura. Com o parafuso bem engraxado, é fácil fechar a porca. Levanto as mãos no ar para secá-las no vento. Vou fumar um cigarro. Pronto. Longamente, profundamente, aspiro as primeiras tragadas e assopro a fumaça docemente. Não tenho mais medo. Porque é inútil descrever a dor de barriga que eu tive antes, durante e depois dos primeiros momentos de ação. Não, não tenho medo, de modo que, terminado o cigarro, resolvo comer um pouco de coco ralado. Como um belo punhado, depois fumo outro cigarro. Sylvain está bastante longe, agora. De tempos em tempos, quando nos encontramos no mesmo momento sobre a crista de uma onda, conseguimos nos enxergar furtivamente. O sol bate com uma força dos diabos sobre o meu crânio, que começa a ferver. Molho minha toalha e enrolo-a na cabeça. Tirei a malha de lã. Apesar do vento, sufoco com ela.
Meu Deus, minha jangada virou e quase me afoguei. Bebi dois bons goles de água salgada. Não conseguia, apesar dos meus esforços, virar os sacos e tornar a subir em cima deles. A culpa é da corrente. Meus movimentos não são bastante livres por causa dela. Enfim, fazendo-a deslizar sempre no mesmo sentido, consegui nadar ao lado dos sacos e respirar profundamente. Experimento livrar-me completamente da corrente, meus dedos procuram inutilmente desaparafusar a porca. Irrito-me e, talvez por estar muito nervoso, não tenho força suficiente nos dedos para desemperrá-la.
Ufa! Enfim, aqui está! Passei um mau pedaço. Fiquei completamente louco, pensando na impossibilidade de me livrar da corrente.
Não me preocupo em endireitar a jangada. Sinto-me esgotado, não tenho bastante força. Subo em cima da jangada. Que importa que a parte de baixo esteja virada para cima? Nunca mais vou ficar amarrado, nem com a corda nem com nada. Já percebi a besteira que fiz na hora da saída, prendendo meu pulso. Isso me servirá de experiência.
O sol, inexoravelmente, queima os meus braços, as minhas pernas. Meu rosto está em fogo. Molhá-lo é pior, acho, porque imediatamente a água se evapora e queima mais ainda.
O vento diminui bastante e, se a viagem é mais cômoda, porque agora as ondas são menos altas, em compensação avanço menos rápido. Muito melhor, portanto, o vento e o mar agitado do que a calmaria.
Tenho cãibras tão fortes na perna direita, que grito, como se alguém pudesse me ouvir. Com o dedo, faço umas cruzes sobre a cãibra, lembrando-me de que minha avó dizia que isso faz a dor passar. O remédio da boa avó fracassa miseravelmente. O sol desceu bastante a oeste. São aproximadamente 4 da tarde, é a quarta maré depois da partida. Parece que esta maré montante puxa com mais força do que a outra em direção à costa.
Agora vejo sempre Sylvain e ele também me vê muito bem. Ele desaparece muito raramente, porque as ondas são pouco profundas. Tirou a camisa e está de peito nu. Sylvain me faz uns sinais. Está mais de 300 metros à minha frente, mas mais para o largo. Parece que está remando com as mãos, pela leve espuma em volta dele. Parece que quer segurar a jangada, para que eu chegue perto dele. Deito em cima dos sacos, mergulhando os braços na água, e remo. Se ele brecar e eu empurrar, será possível diminuir a distância entre nós?
Escolhi bem meu cúmplice nessa evasão, está à altura, cem por cento.
Paro de remar com as mãos. Sinto-me cansado. Preciso guardar minhas forças. Vou comer e tentar virar a jangada. A sacola da comida está embaixo e também a garrafa de couro com a água doce. Estou com sede e com fome. Meus lábios já estão partidos e queimam. A melhor maneira de virar os sacos é pendurar-me neles, na frente da onda, e depois empurrar com os pés na hora em que estão no alto da onda.
Depois de cinco tentativas, tenho a sorte de virar a jangada de uma vez só. Estou esgotado, pelo esforço que acabo de fazer, e subo com dificuldade nos sacos.
O sol está alto no horizonte e em pouco tempo vai desaparecer. É perto de 6 horas. Esperemos que a noite não seja muito agitada, porque vejo que são as longas imersões que me tiram as forças.
Bebo na bolsa de couro de Santori um bom gole de água, depois de comer dois punhados de polpa de coco. Satisfeito, as mãos secas Pelo vento, tiro um cigarro e fumo, deliciado. Antes que escureça, Sylvain agita sua toalha e eu a minha, em sinal de boa noite. Está sempre longe de mim. Estou sentado, com as pernas esticadas. Torço o mais possível minha malha de lã e a visto. Estas malhas, mesmo molhadas, esquentam; e, desaparecido o sol, começo logo a sentir frio.
O vento refresca. Somente as nuvens a oeste estão banhadas de luz rosa no horizonte. Todo o resto, agora, está mergulhado na penumbra do crepúsculo, que se acentua de minuto em minuto. A leste, de onde vem o vento, nenhuma nuvem. Portanto, não há perigo de chuva para a noite.
Não penso absolutamente em nada. Não me pergunto se é bom eu me segurar, não me molhar inutilmente, nem me pergunto se seria preferível, caso o cansaço me vença, amarrar-me aos sacos, ou se isso é muito perigoso depois da experiência que eu tive. Então percebo que eu me sentia preso nos movimentos porque a corrente era muito curta, uma extremidade ficava inutilizada, enrolada nas cordas e nos arames do saco. Esta ponta é facilmente recuperável. Vou ter, então, os movimentos mais livres. Arrumo a corrente e prendo-a de novo na cintura. A porca cheia de graxa funciona sem dificuldade. Não preciso apertá-la demais, como da primeira vez. Assim, me sinto mais tranqüilo, porque tenho um medo louco de pegar no sono e perder a jangada.
É, o vento aumentou e as ondas também. A jangada funciona otimamente, mas com as diferenças de nível cada vez mais acentuadas.
É noite completa. O céu está cravejado de milhões de estrelas e o Cruzeiro do Sul brilha mais que todas as outras,
Não vejo meu companheiro. Esta noite que começa é muito importante, porque, se a sorte permitir que o vento sopre durante toda a noite com a mesma força, vou andar bastante até amanhã de manhã.
Mais a noite avança, mais forte sopra o vento. A lua sai lentamente do mar, está de um vermelho pardacento e, quando, enfim livre, se apresenta enorme, inteira, distingo claramente suas manchas negras, que lhe dão o aspecto de um rosto.
Já são mais de 10 horas da noite. A noite fica cada vez mais clara. À medida que a luz se levanta, o clarão lunar fica mais intenso. As ondas ficam platinadas e sua estranha reverberação queima meus olhos. Não é possível deixar de olhar esses reflexos prateados, mas realmente machucam e queimam meus olhos, que já estão irritados pelo sol e a água salgada.
Por mais que eu mesmo ache que estou exagerando, não tenho vontade de resistir e fumo três cigarros seguidos.
Nada de anormal com a jangada, que, num mar fortemente agitado, sobe e desce sem problemas. Não posso ficar por muito tempo com as pernas esticadas sobre o saco de cocos, porque a posição sentada me dá logo cãibras horríveis.
Estou permanentemente molhado até a cintura. O peito está quase seco, o vento secou a malha, as ondas não me molham acima da cintura. Meus olhos ardem cada vez mais. Fecho-os. De vez em quando, pego no sono. “Você não pode dormir.” Fácil dizer, mas não agüento mais. Merda! Luto contra estes entorpecimentos. É, cada vez que retomo o senso da realidade, sinto uma dor aguda no cérebro. Tiro o isqueiro. De vez em quando me queimo, encostando a chama no braço direito ou no pescoço.
Sinto uma angústia horrível que procuro afastar com toda a minha energia. Será que vou dormir? E, se cair na água, o frio vai me acordar? Fiz bem de me prender de novo com a corrente. Não posso perder esses dois sacos, eles são a minha vida. Vai ser mesmo o diabo se, ao cair na água, eu não acordar mais.
Depois de alguns minutos estou de novo todo molhado. Uma onda rebelde, que com certeza não queria seguir na direção normal das outras, veio chocar em mim do lado direito. Não só ela me molhou mas ainda me jogou de atravessado, e duas outras ondas normais me cobriram completamente, da cabeça aos pés.
A segunda noite está bem adiantada. Que horas poderão ser? Pela posição da lua, que começa a descer a oeste, devem ser mais ou menos 2 ou 3 horas da manhã. Há cinco marés, trinta horas, que estamos na água. Ficar molhado até os ossos me serve para alguma coisa: o frio me acordou completamente. Estou tiritando, mas conservo os olhos arregalados sem esforço. As pernas ficam endurecidas e resolvo dobrá-las, colocando os pés debaixo das nádegas. Levantando-me com as duas mãos, uma de cada vez, consigo sentar-me em cima das pernas. Os dedos dos pés estão gelados, quem sabe se agora vão esquentar.
Fico bastante tempo assim, sentado com as pernas cruzadas. Mudar de posição me fez bem. Tento ver Sylvain, pois a lua ilumina bastante o mar. Só que ela já desceu e, com ela de frente, não consigo distinguir direito. Não, não enxergo nada. Ele não tinha nada para se amarrar aos sacos, será que está ainda em cima deles? Procuro por ele desesperadamente, é inútil. O vento está forte, mas é regular, não muda de repente, e isto é muito importante. Acostumei-me com seu ritmo e meu corpo forma um só volume com os sacos.
De tanto procurar em volta, só tenho uma idéia fixa na cabeça: ver meu companheiro. Seco os dedos no vento e assobio com todas as minhas forças, com os dedos na boca, Escuto. Ninguém responde. Será que Sylvain sabe assobiar com os dedos? Não sei. Devia perguntar para ele antes de partir. Podíamos até fazer dois apitos. Reprovo-me por não ter pensado nisso. Depois coloco as duas mãos diante da boca e grito: “Hu-Hu!” Só o barulho do vento me responde e o chuá-chuá das ondas.
Então, sem me importar mais, levanto-me e, de pé em cima dos sacos, levantando a corrente com a mão esquerda, fico me equilibrando enquanto cinco ondas me carregam na sua crista. Quando chego lá em cima fico completamente de pé e, para descer e tornar a subir, fico agachado. Nada à direita, nada à esquerda, nada pela frente. Será que ele está atrás de mim? Não tenho coragem de ficar de pé e olhar para trás. A única coisa que tenho a impressão de ter visto, sem nenhuma dúvida, é uma linha preta marcada nesta noite de lua. Com certeza é a floresta.
De dia vou ver as árvores, isso me faz bem. “De dia, você vai ver a floresta, Papi! Se Deus quiser, você vai ver também seu companheiro!”
Estiquei de novo as pernas depois de ter esfregado os dedos dos pés. Depois resolvo secar as mãos e fumar um cigarro. Fumo dois. Que horas serão? A lua está bastante baixa. Não lembro mais em quanto tempo antes do nascer do sol ela desapareceu na noite passada. Tento me lembrar com os olhos fechados, recordando as imagens da primeira noite. Inútil. Ah, é! De repente vejo claramente o sol levantar-se a leste e, ao mesmo tempo, uma ponta da lua ainda visível na linha do horizonte, a oeste. Então, devem ser quase 5 horas. A lua é bastante vagarosa para cair no mar. O Cruzeiro do Sul desapareceu há muito tempo, a Ursa Maior e a Ursa Menor também. Somente a estrela Polar brilha mais que todas as outras. Depois que o Cruzeiro do Sul sumiu, a Polar é a rainha do céu.
O vento parece aumentar. Pelo menos está mais denso, por assim dizer, do que durante a noite. Agora, as ondas estão mais fortes e mais profundas; e, na sua crista, a espuma branca é maior do que no começo da noite.
Há trinta horas que estou no mar. Preciso reconhecer que, por enquanto, as coisas vão mais bem do que mal e que o dia mais duro vai ser o que começa.
Ontem, por ter ficado exposto diretamente ao sol das 6 da manhã às 6 da noite, fiquei tremendamente cozido e assado. Hoje, com o sol batendo de novo em cima de mim, não vai ser fácil atravessar o dia. Meus lábios já estão rachados e, no entanto, estou ainda no frescor da noite. Ardem tanto quanto os olhos. Os braços e as mãos, a mesma coisa. Se puder, não vou descobrir os braços. Se for possível agüentar a malha de lã, vou ficar vestido com ela. O que me arde terrivelmente, também, é entre as coxas e o ânus. Nesse lugar, não é por causa do sol, mas da água salgada e da fricção em cima dos sacos.
De qualquer maneira, meu caro, queimado ou não, você está fugindo e, para estar onde está, vale bem a pena agüentar isto e muito mais. As perspectivas de chegar vivo na Terra Grande são 90 por cento positivas e isto é alguma coisa, é ou não é? Nem que eu chegue completamente esfolado e vivo pela metade, não é preço caro por uma viagem dessas e um resultado desses. Imagine que não vi um único tubarão. Estão todos de férias? Você não pode negar que é um cara de muita sorte. Desta vez, você vai ver, vai dar certo. De todas as fugas muito estudadas, muito preparadas, afinal, a fuga bem sucedida vai ser a mais idiota. Dois sacos de cocos e depois o vento e o mar levam você. Não precisa sair de Saint-Cyr para saber que todo destroço volta para a praia.
Se o vento e as ondas continuarem durante o dia com a mesma força desta noite, com certeza vamos chegar à terra durante a tarde.
O monstro dos trópicos surge atrás de mim. Parece bastante decidido a torrar tudo hoje, porque sai com todo o fogo. Ele expulsa a noite de lua em dois tempos. Não espera nem sair completamente de seu leito, para já se impor como o dono, o rei indiscutível dos trópicos. O vento num instante já ficou quase morno. Em uma hora vai fazer calor. Uma primeira sensação de bem-estar se desprende de todo o meu corpo. Mal os primeiros raios me tocam, um doce calor me percorre da cintura até a cabeça. Levanto a toalha feito um capuz, expondo o rosto ao sol, como se estivesse diante de um fogo de lenha. O monstro, antes de me queimar, quer me fazer sentir que ele é a vida antes de ser a morte.
O sangue corre fluido nas minhas veias e até minhas coxas molhadas sentem a circulação deste sangue vivificador.
Vejo claramente a floresta, o topo das árvores. Tenho a impressão de que não está muito longe. Vou esperar que o sol suba mais um pouco, para ficar de pé em cima dos sacos e ver se consigo enxergar Sylvain.
Em menos de uma hora, o sol já está alto. É, vai fazer calor, diabo! Meu olho esquerdo está meio fechado e grudado. Pego um pouco de água nas mãos em concha e esfrego. Arde. Tiro a malha: fico de peito nu alguns instantes antes que o sol me queime demais.
Uma onda mais forte que as outras me carrega por baixo e me leva bem para o alto. Na hora em que ela engrossa, antes de descer, vejo meu amigo por um segundo. Está sentado de peito nu sobre sua jangada. Não me viu: Está a menos de 200 metros de mim, um pouquinho para a frente, à esquerda. O vento está sempre forte e, para me aproximar dele, que está à minha frente, quase que na mesma linha, resolvo enfiar a malha só nos braços, levantá-los no ar e segurar a parte de baixo com a boca. Certamente este tipo de vela vai me empurrar mais rápido do que ele.
Mantenho a vela durante cerca de meia hora. Mas a malha me machuca os dentes e as forças que preciso gastar para resistir ao vento me esgotam depressa demais. Quando paro, contudo, tenho a sensação de ter andado mais rapidamente do que se tivesse me deixado carregar pelas ondas.
Hurra! Acabei de ver o meu amigo. Está a menos de 100 metros. Mas o que é que está fazendo? Não parece estar preocupado em saber onde estou. Quando outra onda me levanta bastante, torno a vê-lo uma, duas, três vezes. Notei distintamente que ele estava com a mão direita sobre os olhos, observando o mar. Olhe para trás, seu idiota! Deve ter olhado para o meu lado, de certo, mas não conseguiu me ver.
Fico de pé e assobio. Subindo do fundo da onda, vejo Sylvain de pé na minha frente. Levanta a malha no ar. Dissemo-nos bom dia pelo menos umas vinte vezes antes de tornar a sentar. Cada onda que sobe, acenamos um para o outro; e por sorte ele sobe ao mesmo tempo que eu. Nas duas últimas ondas, ele estende os braços em direção à floresta, que agora podemos distinguir muito bem. Estamos a menos de 10 quilômetros. Perdi o equilíbrio e caí em cima da jangada. Ao ver meu camarada e a mata tão próxima, uma alegria imensa me invade, uma emoção tão grande, que choro como uma criança. Nas lágrimas que limpam meus olhos purulentos, vejo mil cristais de todas as cores e penso bestamente: parecem os cristais de uma igreja. Deus está com você hoje, Papi. É no meio dos elementos monstruosos da natureza, o vento, a imensidão do mar, a profundeza das ondas, a abóbada verde imponente da floresta, que a gente se sente infinitamente pequeno relativamente a tudo que nos cerca e, talvez, sem procurá-lo, encontramos Deus, tocamos nele. Assim como o sentia de noite nas mil horas que passei nas masmorras lúgubres onde estava enterrado vivo sem um raio de luz, toco nele hoje, neste sol que se levanta para devorar aquilo que não tem força suficiente para suportá-lo, toco realmente em Deus, sinto-o em volta de mim, dentro de mim. Ele sussurra mesmo no meu ouvido: “Você sofre e vai sofrer mais ainda, mas desta vez resolvi ficar com você. Você será livre e vencerá, prometo”.
Nunca ter recebido instrução religiosa, não conhecer o a-bê-cê da religião cristã, ser ignorante ao ponto de não saber quem é o pai de Jesus e se sua mãe era realmente a Virgem Maria e seu pai um carpinteiro ou um cameleiro, toda essa ignorância crassa não nos impede de encontrar Deus quando realmente o procuramos, e chegamos a identificá-lo com o vento, o mar, o sol, a mata, as estrelas, até com os peixes que ele teve que semear em profusão para que o homem se alimente.
O sol subiu rapidamente. Devem ser mais ou menos 10 horas da manhã. Estou completamente seco da cintura até a cabeça. Molhei a toalha e tornei a colocá-la como um capuz em volta da cabeça. Coloco a malha porque meus ombros, meus braços e minhas costas queimam horrivelmente. Até minhas pernas, que, no entanto, são freqüentemente molhadas pela água, estão vermelhas como camarões.
Com a costa mais próxima, a atração é mais forte e as ondas se dirigem quase que perpendicularmente na sua direção. Vejo os detalhes da floresta, o que me faz supor que hoje de manhã, em quatro ou cinco horas, nos aproximamos de um modo estranhamente rápido. Graças à minha primeira fuga, sei calcular as distâncias. Quando se distinguem bem os detalhes das coisas, a gente está a menos de 5 quilômetros; percebo a diferença de distância entre os troncos das árvores e, da crista de uma onda mais alta, posso distinguir bem claramente uma árvore imensa caída, atravessada, molhando sua folhagem no mar.
Olhe, golfinhos e pássaros! Espero que os golfinhos não se divirtam a empurrar a jangada. Ouvi dizer que eles costumam empurrar em direção à costa os destroços ou os homens e que, além disso, os afogam com os golpes de seu focinho com a melhor das intenções, procurando ajudá-los. Não, eles dão voltas e mais voltas, são uns três ou quatro, vieram farejar, ver o que é, mas vão embora sem ao menos roçar na minha jangada. Ufa!
Meio-dia, o sol está bem em cima da minha cabeça. Está mesmo com a intenção de fazer um assado comigo. Meus olhos supuram sem parar e a pele dos meus lábios e do nariz já foi embora. As ondas são mais curtas e raivosamente se precipitam, com um ruído ensurdecedor, em direção à costa.
Vejo Sylvain quase continuamente. Ele não desaparece quase nunca, as ondas não são mais muito profundas. De vez em quando, ele se vira e levanta o braço. Está sempre de peito nu, a toalha em cima da cabeça.
Não são mais ondas grandes, são pequenas ondas que nos levam para a costa. Existe uma espécie de barra onde elas chocam com um ruído espantoso; depois, vencida a barra cheia de espuma, afundam, atacando a floresta.
Estamos a menos de 1 quilômetro da costa. Percebo os pássaros brancos e rosados, com suas plumas aristocráticas, que passeiam ciscando na areia. São milhares… Quase nenhum deles voa a mais de 2 metros de altura. Estes pequenos vôos curtos são para não se molharem com a espuma. Há muita espuma e o mar está de um amarelo lamacento, nojento. Estamos tão perto, que enxergo nos troncos das árvores a linha suja que a água deixa na sua altura máxima.
O barulho das ondas não chega a cobrir os gritos agudos desses milhares de aves pernaltas de todas as cores. Pam! Pam! Mais 2 ou 3 metros. Pluft! Toquei o fundo, estou a seco, sobre a areia. Não há água suficiente para me levar. Pelo sol, são 2 horas da tarde. Há quarenta horas que parti. Foi anteontem, às 10 da noite, depois de duas horas de maré vazante. Portanto, é a sétima maré e é normal que eu esteja no seco: é a maré baixa. A maré alta vai começar lá pelas 3. De noite, vou estar no mato. Guardo a corrente, para não ser arrancado dos sacos, porque o momento mais difícil será aquele em que as ondas vão começar a passar em cima de mim, por falta de fundo, e vão me levar consigo. Não vou poder flutuar antes de pelo menos duas ou três horas de montante.
Sylvain está à minha direita, na frente, a mais de 100 metros. Olha para mim e faz uns gestos. Penso que ele quer gritar alguma coisa, mas sua garganta parece que não pode emitir som algum, senão eu ouviria. As ondas desapareceram, estamos em cima da areia, sem nenhum outro ruído para nos perturbar a não ser os gritos das aves pernaltas. Eu estou mais ou menos a 500 metros da floresta, e Sylvain a 100 ou 150 metros de mim, na minha frente. Mas o que é que está fazendo esta grande besta? Está de pé e abandonou a jangada. Está louco? Ele não pode andar, senão vai afundar um pouco a cada passo e talvez não consiga mais voltar até a jangada. Quero assobiar, não posso. Tenho ainda um pouco de água, esvazio a bolsa, depois tento gritar para ele parar. Não consigo emitir nenhum som. Da lama saem algumas bolhas de gás, é apenas uma crosta fina, embaixo está o lodo, e o sujeito que se deixar apanhar está mesmo frito.
Sylvain vira de novo para mim, me olha e faz sinais que não compreendo. Eu faço grandes gestos para ele, querendo dizer: não, não, não se mova da jangada, você nunca vai chegar até a floresta! Como está atrás dos seus sacos de cocos, não sei se está perto ou longe da jangada. No começo penso que deve estar bastante perto e que, no caso de afundar, ele pode se pendurar nela.
De repente, percebo que ele se afastou bastante e que está afundado na lama sem poder se desgrudar e voltar para a jangada. Um grito chega até onde estou. Então, deito-me de bruço sobre meus sacos e afundo as mãos na areia, puxando com todas as minhas forças. Os sacos avançam e eu chego a deslizar mais de 20 metros. É então que, andando em linha oblíqua à esquerda, quando me ponho de pé, vejo, sem ser mais atrapalhado pelos sacos, meu companheiro, meu amigo, enterrado até a barriga. Está a mais de 10 metros de sua jangada. O terror me devolve a voz e eu grito: “Sylvain! Sylvain! Não se mexa, deite na areia! Se puder, solte as pernas!” O vento leva as minhas palavras e ele as compreende. Abaixa e levanta a cabeça para dizer sim. Fico de novo de bruços e arranco a lama fazendo deslizar os sacos. A raiva me dá forças sobre-humanas e bastante rapidamente avanço na sua direção mais de 30 metros. Demorei mais de uma hora certamente, mas estou bastante perto dele, talvez a 50 ou 60 metros. Enxergo mal.
Sentado, com as mãos, os braços, o rosto cheio de lodo, tento enxugar o olho esquerdo, pois entrou lama salgada que arde e me impede de ver, não só desse olho, mas também do outro, do direito. Para ajudar, meu olho direito começa a chorar. Enfim, vejo-o; não está mais deitado, está de pé, só o seu peito se ergue acima da lama.
A primeira onda acaba de passar. Pulou por cima de mim, sem todavia me desgrudar, e foi se espalhar mais longe, cobrindo a areia com sua espuma. Passou também por cima de Sylvain, que está ainda com o peito de fora. Rapidamente penso: “Mais as ondas vão chegando, mais a lama vai ficar mole. Preciso chegar até ele, custe o que custar”.
Uma energia de animal que vai perder sua cria apodera-se de mim e, como uma mãe que quer arrancar seu filho do perigo iminente, puxo, puxo, puxo sobre esta lama para chegar até ele. Ele me olha sem uma palavra, sem um gesto, seus olhos grudados nos meus, que o devoram. Meus olhos cravados nele só se preocupam de não largar seu olhar e se desinteressam completamente de ver onde afundo as mãos. Arrasto-me um pouco, mas, por causa de duas outras ondas que passaram em cima de mim, cobrindo-me completamente, a areia ficou menos consistente e eu avanço muito menos rapidamente do que uma hora atrás. Uma onda enorme acaba de passar, quase me afogou e quase me desprendeu. Sento para ver melhor. Sylvain está na lama até as axilas. Estou a menos de 40 metros dele. Ele me olha intensamente. Percebo que ele sabe que vai morrer, afundado lá dentro, como um pobre imbecil, a 300 metros da terra prometida.
Torno a deitar e a arrancar esta lama que agora está quase líquida. Meus olhos e os seus estão fixos uns nos outros. Ele me faz sinal como para dizer que eu não insista, para não fazer mais esforços. Continuo, mesmo assim, e estou a menos de 30 metros quando chega uma onda grande que me cobre com sua massa de água e quase me arranca dos sacos, que, desprendendo-se, avançam 5 ou 6 metros.
Quando a onda passa, olho. Sylvain desapareceu. A lama, recoberta de uma leve camada de água espumosa, está completamente lisa. Nem mesmo a mão do meu pobre amigo aparece para me dar um último adeus. Minha reação é horrivelmente bestial, repugnante, o instinto de conservação acaba com qualquer sentimento: “Você está vivo. Você está sozinho e quando estiver no mato, sem amigo, não vai ser mole conseguir fugir”.
Uma onda que se quebra nas minhas costas, porque estou sentado, chama-me à ordem. Dobrou-me em dois e o golpe foi tão forte, que perco a respiração durante alguns minutos. A jangada desliza ainda alguns metros e somente então, olhando a onda morrer perto das árvores, choro Sylvain: “Estávamos tão perto! Se você não tivesse se movido… A menos de 300 metros das árvores! Por quê? Mas, me diga, por que você fez uma besteira dessa? Como você podia supor que essa crosta seca era bastante firme para permitir que você chegasse a pé até a costa? O sol? A reverberação? O que sei eu? Você não conseguia mais resistir a esse inferno? Diga-me por que um homem como você não conseguiu agüentar assar-se algumas horas mais?
As marolas se sucedem sem parar com um barulho de trovoada. Chegam cada vez mais próximas umas às outras e sempre maiores. Toda vez fico inteiramente coberto e toda vez deslizo mais alguns metros, sempre sobre a lama. Lá pelas 5 horas, as marolas se transformam de repente em ondas, eu desencalho e flutuo. As ondas, agora, quase não fazem barulho. A trovoada das marolas acabou. O saco de Sylvain já entrou no meio da vegetação.
Chego, não muito depressa, e sou depositado a apenas 20 metros da floresta virgem. Quando a onda se retira, estou de novo a seco, sobre a areia, e plenamente resolvido a não me mexer de meu saco até ter um galho ou um cipó nas mãos. Uns 20 metros. Levo mais de uma hora antes de chegar a um lugar bastante fundo e ser novamente levantado e levado para dentro do mato. A onda que me empurrou, rugindo, me jogou sobre as árvores. Solto o parafuso e me livro da corrente. Não vou jogá-la fora, pode ser que eu precise dela.
Rápido, antes que o sol se ponha, penetro no mato meio nadando, meio caminhando, porque lá também há lama que suga a gente. A água penetra muito longe dentro do mato e, quando a noite cai, eu ainda não estou no seco. Um cheiro de podre chega até o meu nariz e tem tanto gás que meus olhos ardem. Estou com as pernas cheias de capim e folhas. Ainda empurro o saco de cocos. Cada vez que dou um passo, meus pés apalpam antes o terreno debaixo da água, e é só quando este não afunda que vou em frente.
Passo minha primeira noite em cima de uma grande árvore caída. Um monte de bichos passa em cima de mim. Meu corpo arde e queima. Acabo de colocar a malha, depois de amarrar bem o saco de cocos, que puxei para cima da árvore e prendi dos dois lados. Nos sacos está a vida, porque os cocos abertos me permitirão comer e agüentar o rojão. Meu facão está preso ao pulso direito. Estico-me, esgotado, em cima da árvore, no ponto onde dois galhos formam uma espécie de nicho grande, e adormeço antes de ter tempo de pensar em nada. Talvez tenha murmurado duas ou três vezes “Pobre Sylvain!”, antes de cair no sono como uma pedra.
São os gritos dos pássaros que me acordam. O sol penetra muito longe dentro da floresta, chega horizontalmente; deve ser então 7 ou 8 da manhã. Em volta de mim está cheio de água, o mar deve estar na montante. É, talvez, o fim da décima maré.
Sessenta horas desde que saí da Ilha do Diabo. Não percebo se estou longe do mar. De qualquer maneira, vou esperar que a água se retire, para ir à beira do mar secar-me e tomar um pouco de sol. Não tenho mais água doce. Restam ainda três punhados de polpa de coco, que como deliciado; passo um pouco de coco também sobre minhas feridas. A polpa, graças ao óleo que contém, abranda minhas queimaduras. Depois fumo dois cigarros. Penso em Sylvain, desta vez sem egoísmo. Antes de tudo, será que eu não devia ter fugido sem um amigo? Eu tinha mesmo a pretensão de me safar sozinho. Então, nada está mudado, só uma grande tristeza aperta o meu coração e eu fecho os olhos, como se isso pudesse me impedir de ver a cena do afundamento do meu pobre amigo. Para ele, está tudo acabado.
Firmei bem os sacos dentro do nicho e começo a tirar um coco. Consigo descascar dois, batendo-os com todas as minhas forças contra a árvore, no meio das pernas. Preciso bater na ponta, para que a casca se abra. É melhor do que com o facão. Como um coco fresco inteirinho e bebo o pouco de água muito açucarada que ele contém. Rapidamente, o mar se retira e posso andar na areia com facilidade e chegar até a praia.
O sol está brilhante e o mar de uma beleza sem igual. Demoradamente olho para o lugar onde suponho que Sylvain desapareceu. Minhas roupas ficam secas depressa e também meu corpo, que lavei com água salgada tirada de um buraco. Fumo um cigarro. Ainda um último olhar para o túmulo do meu amigo e entro na floresta, caminhando sem muita dificuldade. Com o saco em cima do ombro, lentamente, vou me enfiando debaixo das árvores. Em menos de duas horas encontro finalmente um terreno que nunca fica inundado. Nenhuma marca aos pés das árvores, para indicar que a maré chega até aqui. Vou acampar aqui e descansar bem durante 24 horas. Vou abrir os cocos aos poucos, retirar a polpa para colocá-la toda dentro do saco, pronta para eu comer quando quiser. Posso acender um fogo, mas acho que não é prudente.
O resto do dia e da noite se passou sem histórias. O barulho dos pássaros me acorda ao nascer do sol. Acabo de tirar a polpa dos cocos e, com uma pequena trouxa no ombro, dirijo-me para o oeste.
Lá pelas 3 da tarde encontro uma picada. É um caminho de apanhadores de borracha natural, madeireiros ou fornecedores dos garimpeiros. A picada é estreita mas limpa, sem galhos atravessados, deve ser usada continuamente. De vez em quando, algumas pegadas de burro ou de mula sem ferradura. Em alguns buracos de barro seco, percebo marcas de pés de homem, o dedão distintamente moldado na lama. Resolvo caminhar até anoitecer. Vou mascando coco, isso me alimenta e ao mesmo tempo tira a sede. Algumas vezes, com esta mistura bem mastigada, cheia de óleo e de saliva, esfrego o nariz, os lábios e o rosto. Meus olhos ficam muitas vezes colados e estão cheios de pus. Assim que puder, vou lavá-los com água doce. No saco, junto com os cocos, eu tinha uma caixa vedada com um pedaço de sabonete, um aparelho de barbear Gillette, doze lâminas e um pincel. Recuperei-a intata.
Caminho com o facão na mão, mas não preciso usá-lo porque o caminho está livre de obstáculos. Percebo até, nas beiradas, cortes recentes de galhos. Por esse caminho passa gente, preciso ir com cuidado.
A floresta não é a mesma que eu conheci na minha primeira fuga, a de Saint-Laurent-du-Maroni. Essa tem duas camadas e não é tão cerrada como a do Maroni. A primeira vegetação vai até 5 ou 6 metros de altura e, mais para cima, a abóbada da floresta fica a mais de 20 metros. É dia só do lado direito do caminho. Do lado esquerdo, é quase noite.
Caminho rapidamente, às vezes encontro alguma clareira, formada por um incêndio provocado pelo homem ou por um raio. Percebo alguns raios de sol. Sua inclinação mostra que não está muito longe de se pôr. Dou-lhe as costas, dirigindo-me para o leste, em direção à aldeia dos negros de Kourou ou à penitenciária do mesmo nome.
De repente, é noite. Não posso andar de noite. Vou entrar na floresta e procurar um lugar para me deitar.
A mais de 30 metros da picada, bem abrigado debaixo das folhas lisas de uma espécie de bananeira, deito em cima de um montão dessas folhas, que cortei com o facão. Vou dormir imediatamente, no seco, e tenho sorte de não estar chovendo. Fumo dois cigarros.
Não estou muito cansado nesta noite. O coco me sustenta. Só a sede seca minha boca e não consigo ter saliva facilmente.
A segunda parte da fuga começou e esta é a terceira noite que passei sem incidentes desagradáveis na Terra Grande.
Ah, se Sylvain estivesse aqui comigo! Não está, meu caro Papillon, o que é que você pode fazer? Para agir, você nunca na vida precisou de alguém que lhe desse conselho ou apoio. Você é homem ou não é? Não seja besta, Papillon, apesar do desgosto natural pela perda de seu amigo, apesar de estar sozinho no mato, você não deixa de ser forte. Estão muito longe os caras de Royale, Saint-Joseph e da Ilha do Diabo, há seis dias que você os deixou. Kourou deve estar informada. Os guardas do presídio dos estrangeiros, os negros da aldeia, todos já devem saber. Deve haver um posto de polícia ali também. Será conveniente ir até a aldeia? Não conheço nada dos arredores. O presídio fica entre a aldeia e o rio. É tudo o que sei de Kourou.
Em Royale, tinha pensado em agarrar o primeiro cara que aparecesse e obrigá-lo a me levar às proximidades do presídio de Inini, onde se encontram os chineses e portanto Cuic-Cuic, o irmão de Chang. Para que mudar o plano? Se na Ilha do Diabo concluíram que nós nos afogamos, não há perigo nenhum. Mas, se acharam que houve uma evasão, Kourou se torna perigosa. Como há um presídio de estrangeiros, deve estar cheio de árabes e, portanto, de caçadores de homens em quantidade. Cuidado, Papi! Nada de erros. Não se deixe apanhar. Você tem que enxergar o cara, seja quem for, antes que ele veja você. Conclusão: não devo andar pela picada e sim pelo mato, ao lado do caminho. Você cometeu um grande erro correndo o dia todo por esta picada, tendo o facão como única arma. Não foi leviandade, não: foi uma loucura. Então, amanhã vou andar pelo mato.
Levanto cedinho; acordado pelos gritos dos animais e dos pássaros que saúdam o nascer do dia, desperto junto com a floresta. Para mim, também começa um outro dia. Engulo um punhado de coco bem mastigado. Passo um pouco no rosto e me ponho a caminho.
Bem perto da picada, mas no meio das árvores, caminho com bastante dificuldade, porque, apesar de os cipós e os galhos não serem muito grandes, preciso afastá-los para seguir em frente. De qualquer maneira, fiz bem em sair do caminho, porque ouço um assobio. Na minha frente, a picada segue reta por uns 50 metros. Não vejo a pessoa que assobia. Ah, aí vem ela! É um negro do Sudão. Carrega um fardo no ombro e um fuzil na mão direita. Está com uma camisa cáqui e um short, as pernas nuas e os pés descalços. Com a cabeça abaixada, não tira os olhos do chão, as costas dobradas pelo peso do fardo volumoso.
Escondido atrás de uma árvore grande, na beirada mesmo do caminho, espero, com o facão preparado, que ele chegue perto de mim. Na hora em que ele passa na frente da árvore, caio em cima dele. Minha mão direita agarra no ar o braço que segura o fuzil e, torcendo-o, obrigo-o a largá-lo. “Não me mate! Tenha dó de mim, pelo amor de Deus!” Está de pé, com a ponta da minha faca encostada do lado esquerdo de seu pescoço. Abaixo e agarro o fuzil, uma velha espingarda de um cano só, mas que deve estar carregada de pólvora e chumbo até o pescoço. Armo o gatilho e, afastando-me 2 metros, ordeno:
– Ponha de lado o fardo, deixe-o cair. Não tente fugir correndo, porque eu o mato.
O pobre negro, aterrorizado, obedece. Depois olha para mim.
– O senhor é um foragido?
– Sou.
– Que é que o senhor quer? Tudo que eu tenho, pode pegar. Mas, por favor, não me mate, tenho cinco filhos. Pelo amor de Deus, me deixe vivo.
– Cale a boca. Como é que você se chama?
– Jean.
– Aonde vai?
– Levar mantimentos e remédios aos meus dois irmãos, que estão cortando lenha no mato.
– De onde você vem?
– De Kourou.
– Você é da aldeia?
– Nasci lá.
– Conhece Inini?
– Conheço, às vezes faço uns biscates com os chineses do presídio.
– Está vendo isso?
– O que é?
– Uma nota de 500 francos. Você escolhe: ou faz o que eu mando e eu lhe dou de presente esses 500 francos e devolvo o fuzil; ou você recusa, ou tenta me enganar, e então eu o mato. Escolha.
– O que é que eu tenho que fazer? Vou fazer tudo que o senhor mandar, mesmo sem ganhar nada.
– Você precisa me levar sem nenhum risco até perto do presídio de Inini. Depois que eu tiver entrado em contato com um chinês, você pode partir. Entendido?
– Está certo.
– Não tente me enganar, senão você é um homem morto.
– Não, eu juro que vou ajudar o senhor, honestamente.
Ele tem leite condensado. Tira seis latas e dá para mim, e também um pão de 1 quilo e toicinho defumado.
– Esconda seu saco no mato, pode pegar mais tarde. Olhe, aqui está uma marca na árvore que eu fiz com o facão.
Bebo uma lata de leite. Ele me dá também uma calça comprida novinha, um macacão de mecânico. Visto-o, sem largar a espingarda.
– De agora em diante, Jean, tome cuidado para ninguém ver a gente, porque, se alguém nos descobrir, a culpa é sua e, então, pior para você.
Jean sabe andar no mato melhor do que eu e custo a ir atrás dele, tão facilmente ele se desvia dos galhos e dos cipós. Esse desgraçado anda completamente à vontade no mato.
– O senhor veja, em Kourou ficamos sabendo que dois condenados fugiram das ilhas. Também quero ser honesto com o senhor: vai ser muito perigoso quando a gente passar perto do presídio de Kourou.
– Você parece bom e honesto, Jean. Espero não estar me enganando. Como você acha que é melhor para a gente ir a Inini? Pense que a minha segurança é a sua vida, porque, se os guardas ou os caçadores de homens me apanharem, vou ser obrigado a matar você.
– Como devo chamar o senhor?
– Papillon.
– Bom, Sr. Papillon, precisamos entrar completamente dentro do mato e passar bem longe de Kourou. Garanto que eu levo o senhor até Inini pela floresta.
– Confio em você. Vá pelo caminho que você achar mais seguro.
No interior da floresta, andamos com muita cautela, mas, depois que deixamos as proximidades da picada, percebo que o negro está mais calmo. Não sua mais tanto e sua fisionomia está menos contraída; ele se sente como que tranqüilizado.
– Parece que você tem menos medo agora, Jean.
– Sim senhor, Sr. Papillon. Perto do caminho era muito perigoso para o senhor, e então era perigoso para mim também.
Avançamos rapidamente. Esse preto é inteligente, nunca se afasta mais de 3 ou 4 metros de mim.
– Pare, quero fazer um cigarro.
– Tome um maço de Gauloises.
– Obrigado, Jean, você é um bom sujeito.
– Sou mesmo, muito bom. Veja o senhor, sou católico e sofro de ver como vocês presos são tratados pelos guardas brancos.
– Você viu muitos? Onde?
– No presídio estrangeiro de Kourou. Dá dó de ver eles morrendo aos poucos, destruídos por este trabalho de cortar a lenha, pela febre e a disenteria. Nas ilhas, vocês estão melhor. É a primeira vez que eu vejo um condenado como o senhor em perfeita saúde.
– É, a gente está melhor nas ilhas.
Sentamos um pouco num grande galho de árvore. Ofereço-lhe uma de suas latas de leite, Ele recusa e prefere mastigar a polpa do coco.
– Sua mulher é jovem?
– É, tem 32 anos. Eu tenho quarenta. Temos cinco filhos, três meninas e dois meninos.
– Você ganha bem a vida?
– Com o pau-rosa, a gente se defende mais ou menos e minha mulher lava e passa a roupa para os guardas. Isso ajuda um pouquinho. Somos muito pobres, mas dá para matar a fome e os meninos vão para a escola. Eles têm sempre sapatos para pôr.
Pobre negro que acha que, porque seus filhos têm sapatos, está tudo bom. É quase do meu tamanho, seu rosto de negro não tem nada de antipático. Pelo contrário, seus olhos mostram claramente que é um homem dotado de sentimentos, trabalhador, sadio, bom pai de família, bom marido, bom cristão.
– E o senhor, Papillon?
– Eu, Jean, estou tentando tornar a viver. Estou enterrado vivo há dez anos, nunca paro de fugir para chegar um dia a ser como você, livre com uma mulher e filhos, sem fazer mal a ninguém nem com o pensamento. Você mesmo disse, esta prisão é podre e um homem de respeito deve fugir desta sujeira.
– Vou ajudar honestamente o senhor a conseguir isso. Vamos andando.
Com um maravilhoso senso de orientação, sem nunca hesitar no seu caminho, Jean me leva diretamente aos arredores do presídio dos chineses, onde nós chegamos quando a noite já caiu há umas duas horas. De longe ouvem-se uns disparos, não se vê luz alguma. Jean explica que, para chegar mesmo perto do presídio, precisamos evitar um ou dois postos avançados. Resolvemos parar para passar a noite.
Estou morto de cansaço, tenho medo de pegar no sono. E se eu estiver enganado a respeito do negro? Se for um farsante e me tomar a espingarda enquanto eu estiver dormindo e me matar? Ele ganharia em dobro me matando: livra-se do perigo que represento para ele e recebe uma recompensa por matar um fujão.
É, ele é muito inteligente. Sem falar, sem esperar, deita para dormir. Tenho ainda minha corrente e o parafuso. Tenho receio de prendê-lo, porque acho que ele pode desaparafusá-lo tão bem quanto eu e, agindo com precaução, se eu estiver dormindo, não vou perceber nada. Logo, vou tentar não dormir. Tenho um maço inteiro de Gauloises. Vou fazer tudo para não dormir. Não posso confiar nesse homem, que, além de tudo, é honesto, e naturalmente me considera um bandido.
A noite é completamente negra. Ele está deitado a 2 metros de mim, eu só enxergo o branco da planta de seus pés nus. A floresta tem os ruídos característicos da noite: ouço sempre o berro do macaco de papo grande, grito rouco e possante que se ouve a quilômetros. É muito importante, pois se for regular é porque seu bando pode comer ou dormir tranqüilo. Não revela terror nem perigo, portanto não há animais ferozes nem homens fazendo a ronda.
Completamente tenso, agüento sem muito esforço o sono, ajudado por algumas queimaduras de cigarros e sobretudo por uma nuvem de mosquitos absolutamente decididos a me sugar todo o sangue. Poderia livrar-me deles passando saliva misturada com fumo. Se passar este suco de nicotina, fico livre dos mosquitos, mas sem eles sinto que vou pegar no sono. Só posso esperar que esses mosquitos não sejam portadores de malária ou de febre amarela.
Aqui estou eu, saído, provisoriamente talvez, do caminho da podridão. Quando entrei nele, tinha 25 anos, em 1931. Estamos em 1941. São dez anos. Foi em 1932 que Pradel, o promotor sem coração, conseguiu, por meio de um requisitório impiedoso e desumano, jogar-me jovem e forte nesse poço que é a penitenciária; fossa cheia de líquido visguento, que deveria me dissolver lentamente e me fazer desaparecer. Consegui, enfim, a primeira parte da fuga. Saí do fundo desse poço e estou na boca. Preciso mobilizar toda a minha energia e a minha inteligência para ganhar a segunda parte.
A noite corre lentamente, mas vai passando e eu não durmo. Nem larguei o fuzil. Fiquei tão acordado, ajudado pelas queimaduras e pelas picadas dos mosquitos, que nem uma vez a arma caiu da minha mão. Posso ficar satisfeito comigo mesmo, não arrisquei minha liberdade capitulando sob o peso de tanto esforço. O espírito foi mais forte do que a matéria e eu me felicito quando ouço os primeiros gritos dos pássaros que anunciam o próximo nascer do dia. Os que “se levantam mais cedo que os outros” são o prelúdio do que não se faz esperar por muito tempo.
O negro senta-se, depois de ter-se espreguiçado com todo o corpo, e começa a coçar os pés.
– Bom dia, o senhor não dormiu?
– Não.
– Que besteira, já falei para o senhor que não precisava ter medo de mim. Decidi ajudar o senhor, para que tenha êxito no seu plano.
– Obrigado, Jean. O dia vai demorar a penetrar na floresta?
– Ainda mais de uma hora. Somente os bichos percebem tanto tempo antes de todo mundo que o dia vai nascer. Nós vamos ver um pouco de claridade daqui a uma hora. Empreste-me a sua faca, Papillon.
Sem hesitar, dou a faca para ele. Ele anda dois ou três passos e corta um galho de uma planta gorda. Dá um pedaço grande para mim e guarda o outro.
– Beba a água que está dentro e passe um pouco no rosto.
Nessa estranha bacia, bebo e me lavo. O dia já chegou. Jean devolve a faca. Acendo um cigarro e Jean também fuma. Vamos andando. É lá pelo meio do dia, depois de ter patinhado muitas vezes dentro de grandes poças de lama muito difíceis de atravessar, que, sem nenhum encontro, bom ou ruim, chegamos aos arredores do presídio de Inini.
Chegamos perto de uma verdadeira estrada de acesso ao presídio. Uma estreita linha de estrada de ferro corre ao lado desse amplo terreno desbravado. “São trilhos”, diz ele, “por onde passam somente os carros empurrados pelos chineses. Esses carros fazem um barulho terrível, a gente ouve de longe.” Assistimos à passagem de um deles, em cima está um banco onde ficam sentados dois guardas. Atrás, dois chineses com longas varas de madeira freiam o vagão. Saem faíscas das rodas. Jean explica que as varas têm uma ponta de aço e que servem para empurrar ou para brecar.
A estrada é muito movimentada. Passam uns chineses carregando nos ombros rolos de cipós, outros um porco-do-mato; e outros, ainda, montes de folhas de coqueiro. Todas essas pessoas parecem dirigir-se ao presídio. Jean diz que há muitas razões para ir ao mato: caçar, procurar cipós para fazer móveis, folhas de coco para fazer esteiras que protegem os legumes da horta do calor do sol, caçar borboletas, abelhas, cobras, etc. Certos chineses têm permissão para ir ao mato durante algumas horas, depois de terminar a tarefa imposta pela administração. Todos têm que voltar antes das 5 da tarde.
– Tome, Jean. Aqui estão os 500 francos e a sua espingarda (que antes eu descarreguei). Tenho a minha faca e o meu facão. Pode ir. Obrigado. Deus lhe pague melhor do que eu por ter ajudado um desgraçado a tentar viver de novo. Você foi honesto, obrigado mais uma vez. Espero que, quando contar essa história a seus filhos, você diga: “Aquele condenado parecia um bom rapaz, não me arrependo de tê-lo ajudado”.
– Sr. Papillon, é tarde, não vou poder andar muito antes da noite. Fique com a espingarda, fico com o senhor até amanhã de manhã. Gostaria, se o senhor quiser, de chamar eu mesmo o chinês que o senhor escolher para avisar o seu amigo. Ficará com menos medo de mim do que se ele encontrar um branco foragido. Deixe que eu vá pela estrada. Mesmo um guarda, se aparecer, não vai estranhar a minha presença. Direi que vim procurar pau-rosa para o entreposto de madeira Symphorien de Caiena. Tenha confiança em mim.
– Então, tome seu fuzil, vão achar estranho ver um homem desarmado no mato.
– É verdade.
Jean está plantado no caminho. Vou assobiar de leve quando aparecer o chinês que eu escolher.
– Bom dia, sinhô – diz em patoá um velhinho chinês que carrega no ombro um tronco de bananeira, certamente um palmito, delicioso de comer. Assobio, porque este velho educado que cumprimentou Jean (foi o primeiro a cumprimentar) me agrada.
– Bom dia, chinês. Pare, eu falar com você.
– Que querer, sinhô? – e pára.
Falam por uns cinco minutos. Não ouço a conversa. Dois chineses passam, carregam uma corça grande enfiada numa vara. Está pendurada pelos pés, sua cabeça raspa o chão. Passam sem cumprimentar o negro, mas falam alguma coisa em chinês para o seu patrício, que responde com duas ou três palavras.
Jean manda o velho entrar no mato. Chegam até onde estou. Aproximando-se, ele estende a mão.
– Você fugiu?
– E.
– De onde?
– Da Ilha do Diabo.
– Bom – ele ri e me olha com seus olhos puxados. – Bom, como você chamar?
– Papillon.
– Eu não conhecer.
– Eu, amigo Chang, Cang Vauquien, irmão Cuic-Cuic.
– Ah! Bom – e me dá novamente a mão. – Que querer você?
– Avisar Cuic-Cuic que eu espero ele aqui.
– Impossível.
– Por quê?
– Cuic-Cuic roubar sessenta patos chefe de presídio. Chefe querer matar Cuic-Cuic. Cuic-Cuic fugiu.
– Há quanto tempo?
– Dois meses.
– Foi por mar?
– Não sei. Eu ir presídio falar outro chinês amigo íntimo Cuic-Cuic. Ele resolver. Você não sair daqui. Eu voltar essa noite.
– A que horas?
– Não sei. Mas eu voltar trazer comida para você, cigarros, você não acender fogo aqui. Eu assobiar La Madelon. Quando você ouvir, você sair na estrada. Compreender?
– Compreendi.
E ele vai embora.
– O que é que você acha, Jean?
– Nada está perdido porque, se o senhor quiser, nós voltamos para trás até Kourou e eu arranjo para o senhor um barco, comida e uma vela para partir por mar.
– Jean, eu vou muito longe, é impossível ir completamente só. Obrigado pela oferta. No pior dos casos pode ser que eu aceite.
O chinês deu um pedaço grande de palmito para a gente. Comemos. É fresco e delicioso, com um gosto pronunciado de avelã. Jean vai ficar vigiando, confio nele. Passo suco de fumo no rosto e nas mãos, porque os mosquitos começam a atacar.
– Papillon, alguém está assobiando La Madelon.
Jean me acorda.
– Que horas são?
– Não muito tarde, talvez 9 horas.
Saímos na estrada. A noite está negra. Aproxima-se aquele que está assobiando, eu respondo. Ele se aproxima, está bastante perto, eu ouço mas não enxergo. Sempre assobiando, um de cada vez, chegam perto da gente. São três. Cada um deles toca na minha mão. A lua vai aparecer logo mais.
– Vamos sentar na beira da estrada – diz um deles em francês perfeito. – Na sombra ninguém vai ver a gente.
Jean veio para perto de nós.
– Coma antes, depois pode falar – diz o letrado do bando.
Jean e eu comemos uma sopa de legumes bem quente. Esquenta a gente e resolvemos guardar o resto da comida para mais tarde. Bebemos chá açucarado, quente, com sabor de hortelã; é delicioso.
– Você é o amigo íntimo de Chang?
– Sou, ele me disse que viesse procurar Cuic-Cuic para fugir com ele. Eu já fugi uma vez, fui muito longe, até a Colômbia. Sou um bom marinheiro, é por isso que Chang quer que eu leve seu irmão. Ele confia em mim.
– Muito bem. Quais são as tatuagens de Chang?
– Um dragão no peito, três pontos na mão esquerda. Ele me disse que estes três pontos são a marca de que ele foi um dos chefes da revolta de Poulo Condor. Seu melhor amigo é outro chefe da revolta, chama-se Van Hue. Tem um braço cortado.
– Sou eu – diz o intelectual. – Você é mesmo amigo de Chang; portanto, é nosso amigo. Escute bem: Cuic-Cuic ainda não conseguiu partir por mar porque não sabe dirigir um barco. Além disso, está sozinho, está na floresta, a uns 10 quilômetros daqui. Faz carvão de lenha. Uns amigos vendem o carvão e levam o dinheiro para ele. Quando tiver guardado bastante, vai comprar um barco e procurar alguém para fugir pelo mar com ele. Onde está, não há perigo nenhum. Ninguém pode chegar na espécie de ilha onde ele está, porque é cercada de areia movediça. Qualquer um afunda no barro, se se aventurar sem saber. Virei buscá-lo de madrugada, para levá-lo até Cuic-Cuic. Venha conosco.
Seguimos pela beira da estrada, porque a lua surgiu e está bastante claro para enxergar a uns 50 metros. Chegamos a uma ponte de madeira e ele diz:
– Desça para debaixo da ponte. Durma lá, virei procurar você amanhã de manhã.
Apertamos as mãos e eles partem. Andam sem se esconder. Se forem apanhados, dirão que foram verificar umas armadilhas colocadas no mato durante o dia. Jean diz:
– Papillon, você não dorme aqui. Você dorme no mato, eu durmo aqui. Quando ele vier, eu chamo você.
– Tá.
Volto para o mato e adormeço feliz, depois de fumar alguns cigarros, a barriga cheia de sopa gostosa.
Van Hue chega antes do nascer do dia. Para ganhar tempo, seguimos pela estrada até amanhecer. Caminhamos depressa durante mais de quarenta minutos. De repente, o dia desponta e ouve-se ao longe o ruído de um carro que avança sobre a linha. Entramos no meio das árvores.
– Adeus, Jean, obrigado e boa sorte. Que Deus o abençoe, você e sua família.
Insisto para que ele aceite os 500 francos. Explicou-me, no caso de não dar certo a coisa com Cuic-Cuic, como chegar até a sua aldeia contorná-la e voltar pelo caminho onde eu o encontrei. Ele precisa passar por lá duas vezes por semana. Aperto a mão deste nobre negro da Guiana e ele pula para a estrada.
– Para a frente – diz Van Hue, penetrando no mato.
Sem hesitar, orienta-se e nós avançamos bastante depressa, porque a floresta não é impenetrável. Ele evita cortar com seu facão os galhos ou os cipós que o atrapalham; prefere afastá-los.
Em menos de três horas, estamos diante de um charco de lama. Nenúfares em flor e grandes folhas verdes estão presos no barro. Seguimos pela borda do banco de lama.
– Cuidado para não escorregar, senão você desaparece sem nenhuma esperança de sair – adverte Van Hue, que acaba de me ver escorregar.
– Vá indo, eu sigo você e vou prestar mais atenção.
Na nossa frente, uma ilhota, a uns 150 metros. Do meio da minúscula ilha sai um pouco de fumaça. Deve ser da carvoaria. Vejo um jacaré dentro do barro, só aparecem os olhos. Do que será que se alimenta nesse barro o crocodilo?
Depois de andar mais de 1 quilômetro pela margem dessa espécie de lago de lama, Van Hue pára e começa a cantar em chinês aos berros. Um sujeito se aproxima da borda da ilha. É baixo e veste somente um short. Os dois chinas conversam. Demoram e começo a perder a paciência, quando, finalmente, eles param.
– Não vamos lá – diz Van Hue.
Sigo-o, voltamos pelo mesmo caminho.
– Está tudo bem, é um amigo de Cuic-Cuic. Cuic-Cuic foi caçar, não vai demorar para voltar, precisamos esperar aqui.
Sentamos. Menos de uma hora depois, Cuic-Cuic chega. É um Sujeitinho seco, amarelo, com dentes muito polidos, olhos inteligentes e francos.
– Você é amigo de meu irmão Chang?
– Sou.
– Está bem. Você pode partir,. Van Hue.
– Obrigado – diz Van Hue.
– Tome, leve essa perdiz.
– Não, obrigado.
Aperta minha mão e vai embora.
Cuic-Cuic me leva atrás de um porco que anda à sua frente. Ele o segue de perto.
– Preste bem atenção, Papillon. O menor passo em falso e você afunda. Se acontecer um acidente, não podemos nos ajudar um ao outro, porque então não é um, mas dois que desaparecem. O caminho para atravessar nunca é o mesmo porque a lama se mexe, mas o porco encontra sempre uma passagem. Uma vez tive que esperar dois dias para passar.
De fato, o porco preto fareja e rapidamente se embrenha na lama. O chinês fala com ele na sua língua. Fico desconcertado de ver esse animalzinho que lhe obedece como um cão. Cuic-Cuic observa e eu arregalo os olhos, assombrado. O porco chega do outro lado sem nunca afundar mais do que alguns centímetros. Rapidamente, meu novo amigo se embrenha por sua vez e diz:
– Ponha os pés nas marcas dos meus. Precisa andar bem depressa, porque os buracos que o porco deixou se apagam imediatamente.
Atravessamos sem dificuldade. Nunca cheguei a ficar com a lama acima da barriga da perna e, mesmo assim, só no final.
O porco fez dois desvios compridos, o que nos obrigou a andar em cima dessa crosta firme por mais de 200 metros. O suor escorre de todos os lados. Não posso dizer que sentia somente medo, estava realmente aterrorizado.
Na primeira parte do trajeto, perguntava-me se meu destino queria que eu morresse como Sylvain. Tornava a ver o coitado no seu último instante e, embora estivesse bem acordado, enxergava seu corpo, mas seu rosto parecia ter os meus traços. Que impressão me produziu essa passagem! Não vai ser fácil esquecê-la.
– Dê-me a mão.
Cuic-Cuic, o Sujeitinho que é só pele e osso, ajuda-me a pular na beirada.
– Bom, meu caro, não vai ser aqui que os caçadores de homens vão procurar a gente.
– Ah, quanto a isso, pode ficar sossegado!
Penetramos na ilhota. Um cheiro de gás carbônico me pega a garganta. Tusso. É a fumaça das duas carvoarias que queimam. Aqui não tem perigo de que venham os mosquitos. A sota-vento, envolvida na fumaça, uma choça, um casebre com telhado de folhas e as paredes também igualmente de folhas, trançadas como esteiras. Uma porta e, na frente dela, o pequeno chinês que vi antes de Cuic-Cuic.
– Bom dia, sinhô.
– Fale francês com ele e não patoá, é um amigo de meu irmão.
O china, um homem de tamanho reduzido, me examina da cabeça aos pés. Satisfeito com sua inspeção, me estende a mão, sorrindo com uma boca desdentada.
– Entre, sente.
É limpo o único cômodo desse casebre. Alguma coisa cozinha no fogo, num caldeirão. Só existe uma cama feita de galhos de árvores, a 1 metro do chão pelo menos.
– Ajude-me a fazer um lugar para ele dormir essa noite.
– Tá bom, Cuic-Cuic.
Em menos de meia hora, meu catre está pronto. Os dois chineses põem a mesa e nós comemos uma sopa deliciosa, depois arroz com carne e cebolas.
O sujeito, amigo de Cuic-Cuic, e aquele que vende o carvão de lenha. Não mora na ilha, por isso, quando escurece, ficamos sozinhos, Cuic-Cuic e eu.
– Pois é, roubei todos os patos do chefe do presídio e é por isso que fugi.
Com os nossos rostos iluminados por alguns instantes pelas chamas do pequeno fogo, sentamos um em frente ao outro. Examinamo-nos e, falando, cada um de nós procura conhecer e compreender o outro.
O rosto de Cuic-Cuic não é bem amarelo. Com o sol, seu amarelo natural ficou cor de cobre. Seus olhos bastante oblíquos, de um preto brilhante, olham bem de frente quando ele fala. Fuma uns cigarros compridos feitos por ele mesmo com folhas de fumo preto.
Eu continuo fumando um cigarro enrolado num papel de arroz que o maneta trouxe.
– Então tive que fugir, porque o chefe, o dono dos patos, queria me matar, faz três meses. O azar é que perdi no jogo, não só o dinheiro dos patos, mas também o do carvão das duas carvoarias.
– Onde é que você joga?
– No mato. Toda noite, tem o jogo dos chineses do presídio de Inini e dos libertos que vêm de Cascade.
– Você resolveu embarcar?
– Mal consigo agüentar a espera e, quando vendi o carvão de lenha, pensei em comprar um barco, em encontrar um sujeito que saiba lidar com ele e que queira ir comigo. Mas, em três semanas, com a venda do carvão, a gente vai poder comprar o barco e ir embora, já que você sabe dirigir.
– Eu tenho algum dinheiro, Cuic-Cuic. Não precisamos esperar a venda do carvão para comprar o barco.
– Então está bom. Existe um bom barco para vender por 1500 francos. É um negro, cortador de lenha, que vende.
– Bom, você já viu?
– Vi.
– Quero ver também.
– Amanhã vou ver Chocolat, é o nome dele. Conte-me a sua fuga, Papillon. Achava que era impossível fugir da Ilha do Diabo. por que é que meu irmão não saiu com você?
Falo da fuga, da onda Lisette, da morte de Sylvain.
– Entendi por que Chang não quis partir com você. É mesmo arriscado. Você é um homem privilegiado pela sorte, é por isso que conseguiu chegar vivo até aqui. Fico contente,
Há mais de três horas que eu e Cuic-Cuic conversamos. Dormimos cedo, porque ele quer ir de madrugada procurar Chocolat. Depois de colocar um galho enorme no fogo para durar a noite toda, deitamos. A fumaça me faz tossir e me fecha a garganta, mas tem uma vantagem: nem um mosquito.
Esticado no meu catre, coberto com uma boa coberta, bem quentinho, fecho os olhos. Não consigo pegar no sono. Estou excitado demais. É, a fuga está indo bem. Se o barco for bom, antes de oito dias estou no mar. Cuic-Cuic é baixo, seco, mas deve ter uma força fora do comum e uma resistência a toda prova. Com certeza é honesto e correto com seus amigos, mas deve ser também muito cruel com seus inimigos. É difícil ler o rosto de um asiático, não exprime nada. Todavia, seus olhos depõem a seu favor.
Adormeço e sonho com um mar banhado de sol, meu barco vencendo alegremente as ondas, no caminho da liberdade.
– Quer café ou chá?
– O que é que você está tomando?
– Chá.
– Quero chá.
O dia está nascendo, o fogo ficou aceso desde ontem, a água ferve numa panela. Um galo canta seu alegre cocorocó. Os pássaros não cantam à nossa volta, com certeza a fumaça das carvoarias os espanta. O porco preto está deitado embaixo da cama de Cuic-Cuic. Deve ser um preguiçoso, porque continua dormindo. Uns biscoitos feitos de farinha de arroz assam na brasa. Depois de me servir de chá, meu amigo corta pela metade um biscoito, besunta-o de margarina e dá para mim. Comemos bastante. Como três biscoitos bem assados.
– Vou sair, acompanhe-me. Se alguém gritar ou assobiar, não responda. Não tem perigo, ninguém consegue vir aqui. Mas, se você aparecer na beira da lama, podem matar você com um tiro de fuzil.
O porco se levanta aos gritos de seu dono. Come e bebe, depois sai, nós vamos atrás dele. Vai direto pela areia adentro. Bastante longe do lugar de onde viemos ontem, desce. Depois de andar uns 10 metros, volta. Não gostou da passagem. Depois de três tentativas, consegue passar. Cuic-Cuic, imediatamente e sem susto, percorre a distância até a terra firme.
Cuic-Cuic vai voltar só à noitinha. Comi sozinho a sopa que ele colocou no fogo. Depois de apanhar oito ovos no galinheiro, fiz uma pequena omeleta de três ovos com margarina. O vento mudou de direção e a fumaça das duas carvoarias na frente da cabana se dirige para o outro lado. Ao abrigo da chuva que caiu à tarde, deitado calmamente na minha cama de madeira, não fui incomodado pelo gás carbônico.
De manhã, dei uma volta na ilha. Quase no centro, há uma clareira bastante grande. As árvores caídas e a lenha cortada indicam que é dali que Cuic-Cuic tira a lenha para fazer carvão. Vejo também um monte enorme de argila branca, de onde ele tira certamente a terra necessária para cobrir a lenha, para que ela se queime sem chama. As galinhas vão ciscar na clareira. Um rato enorme foge debaixo dos meus pés e, uns metros mais além, encontro uma cobra morta de uns 2 metros de comprimento. Sem dúvida foi o rato que acabou de matá-la.
Durante todo esse dia passado sozinho na ilhota, fiz uma série de descobertas. Por exemplo, encontrei uma família de tamanduás. A mãe e três filhotes. Um enorme formigueiro estava em revolução à volta deles. Uns dez macacos minúsculos pulam de árvore em árvore na clareira. À minha chegada, os sagüis gritam de partir o coração.
Cuic-Cuic volta à tardinha.
– Não vi Chocolat nem o barco. Ele teve que procurar mantimentos em Cascade, a aldeia onde fica a casa dele. Você comeu bem?
– Comi.
– Quer mais?
– Não.
– Trouxe dois pacotes de fumo pardo, é fumo grosso, de soldado, mas só tinha esse.
– Obrigado, tanto faz. Quando Chocolat sai, quanto tempo fica na aldeia?
– Dois ou três dias, mas eu vou amanhã mesmo e pretendo insistir todos os dias, porque não sei quando ele foi.
No dia seguinte, cai uma chuva torrencial. Mesmo assim, Cuic-Cuic parte, nu em pêlo. Carrega suas roupas debaixo do braço, embrulhadas num plástico. Não o acompanho.
– Não vale a pena você se molhar – ele me diz.
A chuva acabou. Pelo sol, deve ser entre 10 e 11 horas. Uma das duas carvoarias, a segunda, desmoronou com a violência da chuva. Aproximo-me para ver o desastre. O dilúvio não conseguiu apagar completamente a lenha. Ainda sai fumaça do monte disforme. De repente, esfrego os olhos antes de olhar de novo, tão inesperado é o que estou enxergando: cinco sapatos se destacam da carvoaria. Percebo em seguida que estes sapatos estão, cada um, acompanhados de um pé e uma perna. Então, há pelo menos três homens assando dentro da carvoaria. Nem preciso descrever minha primeira reação: dá um certo arrepio nas costas descobrir uma coisa dessas. Debruço-me e, empurrando com o pé um pouco de carvão de lenha meio calcinado, descubro o sexto pé.
O Cuic-Cuic é fogo: ele incinera em série os caras que ele liquida. Fico tão impressionado, que logo me afasto da carvoaria e vou até a clareira para apanhar um pouco de sol. Preciso de calor. Pois é, nessa temperatura sufocante, de repente sinto frio e tenho necessidade de um raio do bom sol dos trópicos.
Ao ler isso, vão pensar que é ilógico, que eu devia suar depois de uma descoberta semelhante. Bom, não suo: estou enregelado de frio, congelado moral e fisicamente. Só muito tempo depois, mais de uma hora, as gotas de suor começam a escorrer da minha testa, porque, quanto mais penso, mais me convenço de que, depois de falar para ele que eu tinha bastante dinheiro no canudo, é um milagre se ainda estou vivo. Ou será que ele está me guardando para me colocar numa terceira carvoaria?
Lembro-me de que seu irmão Chang me contou que ele foi condenado por pirataria e assassinato a bordo de um junco. Quando eles atacavam um navio para pilhá-lo, suprimiam toda a família, em nome de razões políticas. São sujeitos já acostumados aos assassinatos em série. Por outro lado, eu estou prisioneiro aqui. É uma situação tremenda.
Vejamos, vamos fazer os cálculos. Se eu matar Cuic-Cuic na ilhota e o colocar também na carvoaria, ninguém vai saber de nada.
Mas o porco não vai me obedecer, não entende nem francês, esse desgraçado desse porco manso. Então, nada de sair da ilha. Se eu capturar o china, ele vai me obedecer, mas, depois de obrigá-lo a me tirar da ilha, vou precisar matá-lo em terra firme. Se eu o jogar dentro da areia, vai desaparecer, mas deve haver uma razão para ele queimar os caras e não jogá-los dentro da areia como seria mais fácil. Pelos guardas, nem me incomodo; mas, se os chineses amigos dele descobrem que o matei, vão se transformar em caçadores de homens e, com seu conhecimento do mato, vai ser fogo ter os caras na traseira.
Cuic-Cuic tem só um fuzil de um cano, desses que são carregados pela boca. Nunca larga ele, nem para fazer a sopa. Dorme com ele e o carrega até quando se afasta da cabana para ir à latrina. Preciso estar sempre com a minha faca pronta, mas preciso também dormir. Bom, e eu que o escolhi como sócio para fugir!
Não comi o dia todo. Ainda não tomei uma decisão, quando ouço cantarem. É Cuic-Cuic que vem voltando. Escondido atrás dos galhos, vejo-o chegar. Carrega um pacote na cabeça e só quando ele está bem perto da margem é que eu apareço. Sorrindo, ele me passa o fardo enrolado num saco de farinha, pula ao meu lado e rápido dirige-se para o casebre. Vou atrás dele.
– Boas notícias, Papillon, Chocolat voltou. Tem ainda o barco. Diz que pode levar uma carga de mais de 500 quilos sem afundar. O que você está levando aí são sacos de farinha para fazer a vela e um cutelo. É a primeira carga. Amanha vamos levar os outros, porque você irá comigo para ver se o barco serve.
Tudo isso, Cuic-Cuic explica sem se virar. Caminhamos enfileirados: primeiro o porco, depois ele e em seguida eu. Penso rapidamente que ele não parece ter planejado me torrar na carvoaria, já que amanhã vai me levar para ver o barco e começa a fazer despesas para a fuga. Comprou até os sacos de farinha.
– Olhe, uma carvoaria despencou. Foi a chuva, sem dúvida. Caiu um tamanho pé-d’água, que não é de espantar.
Não vai nem ver a carvoaria e entra direto na cabana. Não sei mais o que dizer, nem que decisão tomar. Fazer de conta que não vi nada é pouco aceitável. Pode parecer estranho que durante o dia todo eu não tenha chegado perto da carvoaria, que fica a 25 metros da cabana.
– Você deixou apagar o fogo?
– Deixei, não reparei.
– Mas você não comeu?
– Não, não estava com fome.
– Está doente?
– Não.
– Então, por que é que não comeu a sopa?
– Cuic-Cuic, sente-se, preciso falar com você.
– Espere eu acender o fogo.
– Não. Quero falar com você já, enquanto ainda é dia.
– O que que tem?
– Tem que a carvoaria despencou e, quando isso aconteceu, apareceram três homens que você estava assando lá dentro. Quero uma explicação.
– Ah, é por isso que eu estava achando você esquisito!
E, sem se emocionar nem um pouquinho, olha bem para mim:
– Depois desta descoberta, você não ficou sossegado. Eu compreendo você, é natural. Tive até muita sorte de você não ter me esfaqueado pelas costas. Escute, Papillon, esses três sujeitos eram três caçadores de homens. Bom, faz uma semana, ou dez dias, eu vendi uma boa quantidade de carvão para Chocolat. O chinês que você viu me ajudou a tirar os sacos da ilha. É uma história complicada: com uma corda de mais de 200 metros, puxamos uma fileira de sacos, que deslizam na lama. Enfim, daí até um riacho onde estava a barca de Chocolat, deixamos um bocado de marcas. Uns sacos meio arrebentados deixaram cair uns pedaços de carvão. Foi então que o primeiro caçador de homens começou a rodear. Pelos gritos dos bichos, percebi que tinha alguém no mato. Vi o sujeito sem que ele me visse. Atravessar do lado oposto onde ele estava e surpreendê-lo por trás não foi difícil. Morreu sem mesmo ver quem o matou. Eu sabia que a lama devolve os cadáveres, que, depois de afundar, voltam à superfície no fim de alguns dias; então, eu o trouxe para cá e o botei na carvoaria.
– E os outros dois?
– Foi três dias antes de você chegar. A noite era escuríssima e silenciosa, o que é muito raro na floresta. Aqueles dois estavam em volta do brejo desde o anoitecer. Um deles, quando a fumaça ia na sua direção, tinha às vezes acessos de tosse. Foi esse ruído de tosse que me anunciou a presença dele. Antes do amanhecer, tentei passar pela lama do lado oposto ao local onde eu tinha percebido a tosse. Para encurtar a história, vou lhe dizer que degolei o primeiro caçador de homens. Não teve tempo nem de gritar. O outro, armado com um fuzil de caça, estava tão empenhado em espiar através da vegetação da ilha para ver o que que se passava lá dentro, que se descobriu. Derrubei ele com um tiro de espingarda e, como não estava morto, enterrei minha faca no coração dele. São esses, Papillon, os três caras que você descobriu na carvoaria. Eram dois árabes e um francês. Atravessar a lama com um deles nas costas não foi fácil. Tive que dar duas viagens porque pesavam demais. Enfim, consegui colocá-los na carvoaria.
– Foi isso mesmo que aconteceu?
– Foi, Papillon, juro.
– Por que é que você não botou eles na areia?
– Já falei para você, a lama devolve os cadáveres. Às vezes caem lá dentro uns veados grandes e uma semana depois sobem à superfície. A gente sente o cheiro de carne podre até que os corvos os devoram. Logo, seus gritos e vôos chamam a atenção dos curiosos, Papillon, eu juro, comigo você não precisa ter medo de nada. Tome, para você ter mais certeza, pegue o fuzil se quiser. Pode ficar com ele.
Tenho uma vontade louca de aceitar a arma, mas me domino e o mais naturalmente possível digo:
– Não, Cuic-Cuic. Se estou aqui, é porque me sinto com um amigo, em segurança. Amanhã, você precisa queimar os sapatos dos homens, pois não sabemos o que pode acontecer quando a gente for embora daqui. Não estou com vontade de ser acusado, mesmo ausente, de três assassinatos.
– Tá, vou tornar a queimá-los amanhã. Mas fique sossegado, nunca ninguém vai botar os pés nesta ilha. É impossível passar sem afundar.
– E com uma balsa de borracha?
– Não tinha pensado nisso.
– Se alguém trouxer a polícia até aqui e eles encasquetarem de vir até a ilha, acredite que com uma balsa eles vão poder passar, e por isso que precisamos sair o mais rápido possível.
– De acordo. Amanhã vamos acender de novo a carvoaria, que aliás não está nem apagada. Só é preciso fazer duas chaminés de ventilação.
– Boa noite, Cuic-Cuic.
– Boa noite, Papillon. E repito, durma bem, pode confiar em mim.
Puxo uma coberta até o queixo, aproveito o calor que ela me dá. Acendo um cigarro. Menos de dez minutos depois, Cuic-Cuic está roncando. Seu porco ao seu lado respira com força. O fogo não tem mais chamas, mas o tronco da árvore – cheio de brasas que ficam avermelhadas quando a brisa penetra no casebre – dá uma impressão de paz e de serenidade. Saboreio esse conforto e adormeço com um pensamento: ou amanhã eu acordo e então tudo irá bem entre Cuic-Cuic e eu, ou o chinês é um artista melhor do que Sacha Guitry para esconder suas intenções e contar histórias, e então não verei mais o sol, porque sei coisas demais a seu respeito e isso pode incomodá-lo.
Com uma caneca de café na mão, o especialista em assassinatos em série me acorda e, como se nada tivesse acontecido, deseja-me um bom dia com um sorriso magnificamente cordial. O dia desponta.
– Tome, tome o seu café, pegue uma bolacha, já está com margarina.
Depois de comer e beber, me lavo lá fora, apanhando a água dentro de um tonel que está sempre cheio.
– Você quer me ajudar, Papillon?
– Quero – digo sem maiores perguntas.
Puxamos pelos pés os cadáveres meio queimados. Reparo, sem dizer nada, que os três têm a barriga aberta: o simpático china deve ter procurado nas tripas deles se tinham algum canudo. Será que eram mesmo caçadores de homens? Por que não seriam caçadores de borboletas ou de animais? Ele os matou para se defender ou para roubá-los? Enfim, chega de pensar nisso. São de novo colocados num buraco da carvoaria, bem cobertos de lenha e de argila. Duas chaminés de ventilação são abertas e a carvoaria volta às suas duas funções: fazer carvão de lenha e transformar em cinzas os defuntos.
– Vamos andando, Papillon.
O porquinho encontra uma passagem em pouco tempo. Como carneirinhos, atravessamos a lama. Sinto uma angústia insuportável na hora de me arriscar a passar por cima dela. O afundamento de Sylvain deixou em mim uma impressão tão forte, que não posso me aventurar despreocupadamente. Enfim, pingando suor frio, caminho atrás de Cuic-Cuic. Cada um dos meus pés pisa na marca dos seus. Não há problema: se ele passa, devo passar.
Mais de duas horas de caminhada nos levam ao lugar onde Chocolat corta lenha. Não encontramos ninguém na floresta e portanto não precisamos nos esconder.
– Bom dia, sinhô.
– Bom dia, Cuic-Cuic.
– Como vai?
– Vai indo.
– Mostre o barco ao meu amigo.
O barco é muito forte, uma espécie de barcaça de carga. É muito pesada, mas firme. Enfio minha faca em todo lugar. Não penetra em nenhum ponto mais de meio centímetro. O fundo também está intato. A madeira com a qual o barco foi fabricado é de primeira qualidade.
– Por quanto quer vender?
– Dois mil e quinhentos francos.
– Dou dois mil.
Negócio fechado.
– Este barco não tem quilha. Pago 500 francos mais, mas você precisa pôr uma quilha, um leme e um mastro. A quilha deve ser de madeira de lei, o leme também. O mastro tem que ter 3 metros de madeira leve e flexível. Quando vai ficar pronto?
– Daqui a oito dias.
– Aqui estão duas notas de 1 000 e uma de 500 francos. Vou rasgá-las em dois, dou a outra metade na entrega. Guarde as três metades das notas com você. Entendeu?
– Está certo.
– Quero permanganato, um tonel de água, cigarros e fósforos, comida para quatro homens por um mês: farinha, óleo, café e açúcar. Estes mantimentos vão ser pagos à parte. Você vai me entregar tudo no rio, o Kourou.
– Sinhô, não posso acompanhar o senhor na embocadura.
– Não pedi isso. Falei para você me entregar o barco no rio e não na enseada.
– Aqui estão os sacos de farinha, uma corda, agulhas e linha para vela.
Voltamos, Cuic-Cuic e eu, para o nosso esconderijo. Chegamos tarde da noite, sem aborrecimentos. Na volta, ele carregou o porco nas costas, porque o bicho estava cansado.
Hoje estou sozinho de novo, costurando a vela, quando ouço uns gritos. Escondido no meio das árvores, aproximo-me da lama e olho do outro lado: Cuic-Cuic discute com o chinês intelectual e gesticula. Tenho a impressão de que ele quer atravessar até a ilha e Cuic-Cuic não quer. Cada um deles está com um facão na mão. O mais exaltado é o maneta. Espero que não me mate Cuic-Cuic. Resolvo me mostrar. Assobio. Eles se viram na minha direção.
– O que é que está acontecendo, Cuic-Cuic?
– Quero falar com você, Papillon – grita o outro. – Cuic-Cuic não quer me deixar passar.
Depois de mais dez minutos de discussão em chinês, o porco os precede e chegam os dois à ilha. Sentados na cabana, cada um com uma caneca de chá na mão, espero que decidam falar.
– É isso – diz Cuic-Cuic. – Ele quer a todo custo fugir com a gente. Eu explico que não tenho nada com esse negócio, que é você que paga e manda em tudo. Não quer acreditar em mim.
– Papillon – diz o outro -, Cuic-Cuic é obrigado a me levar com ele.
– Por quê?
– Foi ele, dois anos atrás, que me cortou o braço numa briga por uma questão de jogo. Me fez jurar que eu não o matava. Jurei, com uma condição: toda a vida vai ter que me sustentar, ou pelo menos enquanto eu exigir. Agora, ele vai embora, nunca mais vou ver ele em toda a minha vida. Por isso, ou ele deixa você partir sozinho, ou me leva também.
– Essa é boa! Acontece cada coisa comigo! Escute, concordo em levar você. O barco é bom e grande, podemos partir juntos, os três. Se Cuic-Cuic estiver de acordo, eu levo você.
– Obrigado – diz o maneta.
– O que é que você diz, Cuic-Cuic?
– Se você quer, eu concordo.
– Uma coisa importante. Você pode sair do presídio sem ser declarado desaparecido e procurado por evasão e chegar ao rio antes da noite?
– Não tem problema. Posso sair desde 3 horas da tarde e. em menos de duas horas, estou na beira do rio.
– De noite, você pode achar o lugar, Cuic-Cuic, para a gente embarcar seu amigo sem perder tempo?
– Posso, sem dúvida nenhuma.
– Venha daqui a uma semana, para saber o dia da saída.
O maneta vai embora alegre, depois de apertar a minha mão. Vejo-os quando se despedem na outra margem. Eles apertam as mãos antes de se deixarem. Está tudo bem. Quando Cuic-Cuic está de novo na cabana, eu começo outra vez:
– Você fez um contrato muito gozado com o seu colega: aceitar sustentá-lo a vida toda é um truque fora do comum. Por que é que você cortou o braço dele?
– Uma briga de jogo.
– Era melhor que você tivesse matado ele.
– Não, porque é um grande amigo. No conselho de guerra a que fui levado por causa disso, ele me defendeu de todo jeito, dizendo que me atacou e que eu agi em legítima defesa. Eu aceitei livremente o acordo, preciso respeitá-lo com muita honestidade. A única coisa é que eu não tinha coragem para contar o negócio para você, porque você é que está pagando toda a fuga.
– Está certo, Cuic-Cuic, não falemos mais nisso. Quando estiver livre, se Deus quiser, você pode fazer o que bem entender.
– Vou manter minha palavra.
– O que pensa fazer, se um dia ficar livre?
– Um restaurante. Sou um ótimo cozinheiro e ele é especialista em chow mein, uma espécie de espaguete chinês.
Este incidente me deixou de bom humor. Essa história é tão gozada, que não consigo deixar de provocar Cuic-Cuic.
Chocolat manteve a palavra: cinco dias mais tarde está tudo pronto. Com uma chuva forte, fomos ver o barco. Não preciso fazer nenhuma crítica. Mastro, leme e quilha foram adaptados perfeitamente, com material de primeira qualidade. Numa espécie de cotovelo do rio, o barco espera a gente com o tonel e os mantimentos. Falta avisar o maneta. Chocolat se encarrega de ir até o presídio para falar com ele. Para evitar o perigo de se aproximar até a margem para apanhá-lo, ele mesmo vai levá-lo diretamente a um lugar seguro.
A saída do rio Kourou está marcada por dois faróis. Se chover, podemos sair sem risco nenhum bem no meio do rio, sem içar as velas, bem entendido, para não sermos vistos. Chocolat deu para a gente tinta preta e um pincel. Vamos pintar na vela um grande K e o número 21. Esse K 21 é a matrícula de um barco de pesca que, às vezes, sai para pescar de noite. No caso de sermos vistos desenrolar a vela na saída para o mar, vão pensar que é o outro barco.
Vai ser amanhã à noite, às 19 horas, uma hora depois do anoitecer. Cuic-Cuic afirma que vai encontrar o caminho e assegura que me levará direto para o esconderijo. Vamos deixar a ilha às 5 horas, para aproveitar uma hora de dia para andar.
A volta à choupana é alegre. Cuic-Cuic, sem se virar, porque eu caminho atrás dele, carrega o porquinho no ombro e não pára de falar:
– Enfim, vou deixar a colônia. Graças a você e a meu irmão Chang, estarei livre. Talvez um dia, quando os franceses saírem da Indochina, eu possa voltar ao meu país.
Em suma, ele confia em mim; e, sabendo que gostei do barco, está contente como uma criança. Durmo pela última noite na ilha, minha última noite na terra da Guiana, espero.
Se sair do rio e entrar no mar, será a liberdade, na certa. O único perigo é o naufrágio, porque desde a guerra não devolvem mais os foragidos de nenhum país. Quanto a isso, pelo menos, a guerra serve para alguma coisa, tem uma vantagem para a gente. Se nos apanham, somos condenados à morte, é verdade, mas vão precisar primeiro nos prender. Penso em Sylvain: estaria aqui comigo, perto de mim, se não tivesse cometido aquela imprudência. Adormeço redigindo um telegrama: “Senhor promotor Pradel – Enfim, definitivamente, venci o caminho da podridão onde o senhor me jogou. Foram necessários nove anos”‘.
O sol está bastante alto quando Cuic-Cuic me acorda. Chá e bolachas. Está tudo cheio de caixas. Vejo duas gaiolas de vime.
– O que é que vai fazer com essas gaiolas?
– Vou pôr as galinhas para a gente comer na viagem.
– Você é doido, Cuic-Cuic! Não vamos levar as galinhas.
– Eu quero levar.
– Está doente? Se por causa da vazante saímos pela manhã e as galinhas e os galos resolvem gritar e cantar no rio, você não percebe o perigo?
– Mas não vou jogar fora as galinhas.
– Asse-as e coloque-as na gordura e no óleo. Ficarão conservadas e nos três primeiros dias a gente papa elas.
Finalmente convencido, Cuic-Cuic parte em busca das galinhas, mas os gritos das primeiras quatro que ele conseguiu apanhar devem ter feito sentir o cheiro da fumaça às outras, porque o chinês não conseguiu agarrar mais nenhuma, foram todas se esconder na floresta. Mistério: os animais pressentiram, não sei como, o perigo.
Carregados como burros, atravessamos a lama atrás do porco. Ele me suplicou para levar o porco com a gente.
– Você garante que ele não vai gritar?
– Juro que não. Ele fica quieto quando eu mando. Mesmo quando um tigre duas ou três vezes perseguiu a gente, e ficava dando voltas para nos pegar, ele não gritou. E, no entanto, estava com todos os pêlos do corpo em pé.
Convencido da boa fé de Cuic-Cuic, concordo em levar seu porco querido. Quando chegamos ao esconderijo, já é noite. Chocolat está lá com o maneta. Duas lâmpadas elétricas me permitem verificar tudo. Não falta nada: as argolas da vela passadas no mastro, o Cutelo arrumado no seu lugar, pronto para ser içado. Cuic-Cuic faz duas ou três vezes a manobra que eu indico. Rapidamente, ele fica sabendo o que eu espero dele. Pago o negro, que foi tão correto. Ele é tão simples, que trouxe fita colante e as metades das notas. Pede para eu colar para ele. Nem por um instante pensou que eu poderia tirar o dinheiro dele. As pessoas que não têm maus pensamentos em relação às outras são boas e direitas. Chocolat era um homem bom e honesto. Depois que viu como tratam os forçados, não teve nenhum remorso em ajudar três deles a fugir desse inferno.
– Adeus, Chocolat. Boa sorte para você e sua família.
– Muito obrigado.