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Embarco por último e, empurrado por Chocolat, o barco avança para o rio. Nada de vela, mas dois bons remos, um manejado por Cuic, na frente, o outro por mim. Em menos de duas horas entramos no rio.
Chove há mais de uma hora. Um saco de farinha tingido me serve de chapéu; Cuic igualmente tem um e o maneta também. O rio é rápido e sua água cheia de turbilhões. Apesar da força da corrente, em menos de uma hora estamos no meio do curso de água. Ajudados pela vazante, três horas depois passamos entre dois faróis. Sei que o mar está próximo, pois os faróis ficam bem no ponto da embocadura. Vela e cutelo no ar, saímos do Kourou sem nenhum aborrecimento. O vento nos pega de lado com uma tal força, que sou obrigado a fazê-lo deslizar sobre a vela. Entramos no mar duramente e, como uma flecha, passamos o canal, afastando-nos rapidamente da costa. Diante de nós, a 40 quilômetros, o farol de Royale nos indica a rota.
Há treze dias eu estava por trás daquele farol, na Ilha do Diabo. Esta saída de noite no mar, esse rápido afastamento da Terra Grande, não é saudado por uma explosão de alegria por meus amigos chineses. Esses filhos do céu não têm a mesma maneira de exteriorizar seus sentimentos que temos nós. Uma vez no mar, Cuic-Cuic diz apenas, em voz normal:
– Saímos muito bem.
O maneta acrescenta:
– Sim, entramos no mar sem nenhuma dificuldade.
– Estou com sede, Cuic-Cuic. Passe-me um pouco o cantil. Depois de me ter servido, eles também tomam um bom gole de rum.
Parti sem bússola, mas em minha primeira fuga eu havia aprendido a me orientar pelo sol, pela lua, as estrelas e o vento. Portanto, sem hesitar, com o mastro apontado para a Polar, enfio-me pelo alto-mar. O barco se comporta bem: sobe nas ondas com leveza e quase não balança. Como o vento era forte, já de manhã nos vemos muito longe da costa e das Ilhas da Salvação. Se a operação não fosse muito arriscada, eu teria me aproximado da Ilha do Diabo para, rodeando-a, contemplá-la à vontade de longe.
Durante seis dias, tivemos um tempo agitado, mas sem chuva e sem tempestade. O vento muito forte nos empurrou depressa para o oeste. Cuic-Cuic e Hue são admiráveis companheiros. Nunca se queixam, nem do mau tempo, nem do sol, nem do frio da noite. Só tem um problema: nenhum deles quer pegar o leme e dirigir o barco durante algumas horas, para que eu possa dormir. Três a quatro vezes por dia, fazem comida. Todos os frangos e galos já foram comidos. Ontem, brincando, eu disse a Cuic:
– Quando vamos comer o porco?
Ele ficou na maior infelicidade.
– Esse animal é meu amigo e, antes de alguém matá-lo para comer, vai ter que me matar primeiro.
Meus camaradas cuidam bem de mim. Não fumam para que eu possa fumar o quanto quiser. Constantemente há chá quente. Fazem tudo, sem que seja preciso eu lhes dizer nada.
Há sete dias que partimos. Não posso mais. O sol bate com tal ardor, que até mesmo os chineses estão cozidos como camarões. Vou dormir. Amarro o leme e deixo só um pedacinho de vela. O barco vai como o vento sopra. Durmo como uma pedra por mais de quatro horas.
Sou despertado, em sobressalto, por uma sacudidela muito forte. Quando passo água no rosto, fico agradavelmente surpreendido ao constatar que Cuic me barbeou enquanto eu dormia e não senti nada. Meu rosto está também untado de óleo, pelo cuidado dele.
Desde ontem à tarde eu faço oeste-quarto-sul, pois acho que subi muito para o norte. Esse barco pesado tem a vantagem, além de se manter bem no mar, de não derivar facilmente. Acho que é por isso que subi demais, contei com a deriva e quase não houve. Olhe, um balão dirigível! É a primeira vez em minha vida que vejo um. Não parece estar vindo na nossa direção e está longe demais para que se perceba seu tamanho.
O sol que se reflete em seu metal de alumínio dá-lhe reflexos prateados e tão brilhantes, que não se pode fixar o olhar. Mudou de rota, dir-se-ia que se dirige para nós. De fato, ele cresce rapidamente e em menos de vinte minutos está sobre nós. Cuic e o maneta estão surpreendidos por ver tal engenho e não param de papaguear em chinês.
– Falem francês, em nome de Deus, para que eu os entenda!
– Salsicha inglesa – diz Cuic.
– Não, isso não é uma salsicha. É um dirigível.
O aparelho é enorme, pode-se vê-lo bem, agora que está baixo e gira ao nosso redor, em círculos estreitos. Aparecem bandeiras e fazem sinais. Como não compreendemos nada, não podemos responder. O dirigível insiste, passando ainda mais perto de nós, ao ponto de podermos distinguir as pessoas na carlinga. Depois vão direto para a terra. Menos de uma hora depois, chega um avião que passa várias vezes em cima de nós.
O mar engrossa e de repente o vento se torna mais forte. O horizonte está claro de todos os lados, não há perigo de chuva.
– Olhe – diz o maneta.
– Onde?
– Lá embaixo, naquele ponto, na direção do lugar onde deve estar a terra. Àquele ponto preto é um navio.
– Como é que você sabe?
– Acho que é. E digo mais: é um caçador rápido.
– Por quê?
– Porque não solta fumaça.
De fato, boa hora depois, distinguimos nitidamente um navio de guerra cinzento, que está com todo jeito de se dirigir diretamente para nós. Ele cresce – portanto deve avançar com uma velocidade prodigiosa -, com a proa voltada para nós, a tal ponto que eu começo a ter medo de ele chegar perto demais. Seria perigoso, pois o mar está forte e sua esteira contrária às ondas poderia fazer a gente virar.
É um torpedeiro de bolso, o Tarpon, podemos ler quando, esboçando um semicírculo, ele se mostra em todo o seu comprimento. Bandeira inglesa tremulando na proa, o caçador, depois de fazer o semicírculo, vem para cima de nós, lentamente, por trás. Cuidadosamente, mantém-se à mesma altura que nós, na mesma velocidade que nós… Uma parte da tripulação está na ponte, vestida com o uniforme azul da Marinha inglesa. Da passarela, com um alto-falante à boca, um oficial de branco grita:
– Stop. You stop!
– Desça as velas, Cuic!
Em menos de dois minutos, vela e cutelo são arriados. Sem vela, ficamos quase parados, só as ondas nos empurram. Não posso ficar muito tempo assim, sem correr perigo. Um barco que não tem impulso próprio, motor ou vento, não obedece ao leme. Isso é muito perigoso, quando as ondas são altas. Servindo-me das mãos como amplificador, grito:
– O senhor fala francês, capitão?
Um outro oficial pega o alto-falante do primeiro:
– Sim, capitão, eu entendo francês.
– Que é que vocês querem?
– Subir o barco de vocês a bordo.
– Não, é muito perigoso. Não quero que rebentem meu barco.
– Somos um barco de guerra que vigia o mar, vocês têm que obedecer.
– Pouco me importa, nós não estamos fazendo guerra.
– Vocês não são náufragos de um navio torpedeado?
– Não. Nós somos evadidos do bagne francês.
– Que bagne, que é isso? Que quer dizer bagne?
– Prisão, penitenciária; Convict em inglês. Hard labour.
– Ah! Sim, sim, compreendo. Caiena?
– Sim, Caiena.
– Para onde vão?
– Honduras britânica.
– Não é possível. Têm que rumar para sul-quarto-oeste e ir para Georgetown. Obedeçam, é uma ordem.
– O.K.
Digo a Cuic para subir as velas e partimos na direção dada pelo torpedeiro.
Ouve-se um motor atrás de nós, é uma chalupa que saiu do torpedeiro e nos alcança depressa. Um marinheiro, com o fuzil em bandoleira, está de pé na proa. A chalupa vem pelo lado direito, encosta-se a nós completamente, sem parar nem pedir que a gente pare. Com um salto, o marinheiro passa para o nosso barco. A chalupa continua e volta para o caçador.
– Good afternoon (boa tarde) – diz o marinheiro.
Avança para mim, senta-se a meu lado, depois pega o leme e dirige o barco mais para o sul do que eu estava fazendo. Abandono-lhe a responsabilidade de dirigir, observando seu modo de trabalhar. Ele sabe manobrar muito bem, não há dúvida nesse ponto. Apesar de tudo, fico em meu lugar. Nunca se sabe.
– Cigarros?
Ele pega três maços de cigarros ingleses e dá um a cada um de nós.
– Com certeza – diz Cuic – deram-lhe os maços de cigarros quando ele desembarcou, pois ele não deve andar por aí com três maços.
Rio da reflexão de Cuic, depois observo o marinheiro inglês, que sabe manejar o barco melhor do que eu. Tenho toda a liberdade para pensar. Desta vez, a fuga deu certo para sempre. Sou um homem livre, livre. Um calor sobe-me à garganta; acredito mesmo que lágrimas saem dos meus olhos. É verdade. Estou definitivamente livre, uma vez que, com a guerra, nenhum país devolve evadidos.
Antes que a guerra termine, terei tempo de me fazer estimar e conhecer, não importa em que país eu me estabeleça. O único inconveniente é que com a guerra eu talvez não possa escolher o país em que quiser ficar. Isso não tem importância, não interessa onde eu viva, terei tempo de ganhar a estima e a confiança da população e das autoridades por meu modo de viver, que deverá ser irrepreensível. Até melhor: exemplar.
A segurança de ter, enfim, vencido o caminho da podridão é tal, que não penso em outra coisa. Enfim, você ganhou, Papillon! Ao fim de nove anos, você é de novo vencedor. Obrigado, meu Deus, talvez você não tenha podido fazê-lo antes, mas seus caminhos são misteriosos, não me queixo de você, pois graças à sua ajuda ainda sou jovem, sadio e livre.
É pensando no caminho percorrido nesses nove anos de trabalho forçado, mais os dois anos de cadeia cumpridos na França, antes (num total de onze), que sigo o braço estendido do marinheiro, que me indica: “a terra”.
Às 17 horas, depois de contornar um farol apagado, entramos num enorme rio, o Demerara. A chalupa reaparece, o marinheiro me devolve o leme e vai se colocar à frente. Recebe pelo ar uma grossa corda, que amarra no banco da frente. Ele mesmo desce as velas e, suavemente puxados pela chalupa, subimos uma vintena de quilômetros nesse rio amarelo, seguidos pelo torpedeiro a uns 200 metros. Depois de um cotovelo, uma grande cidade surge:
– Georgetown – grita o marinheiro inglês.
De fato, é na capital da Guiana Inglesa que entramos, suavemente puxados pela chalupa. Muitos cargueiros e navios de guerra. Canhões sobre pequenas torres estão alinhados à beira do rio. Há todo um arsenal, tanto nas unidades navais como em terra.
É a guerra. No entanto, há mais de dois anos que estamos em guerra, mas eu não havia sentido. Georgetown, a capital da Guiana Inglesa, porto importante no Rio Demerara, está cem por cento em pé de guerra. Uma cidade em armas me causa uma impressão esquisita. Assim que encostamos num embarcadouro militar, o torpedeiro que nos seguia aproxima-se lentamente e também encosta. Cuic com seu porco, Hue com uma trouxinha na mão e eu sem nada, subimos os três para o cais. Nenhum civil nesse embarcadouro, reservado para a Marinha. Somente marinheiros e militares. Um oficial chega, reconheço-o. É aquele que me falou em francês do torpedeiro. Gentilmente, ele me estende a mão e diz:
– Você está com boa saúde?
– Sim, capitão.
– Perfeito. No entanto, tem que passar pela enfermaria, onde vai tomar várias injeções. Seus amigos também.