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12 GEORGETOWN

AVIDA EM GEORGETOWN

A tarde, depois de termos tomado diferentes vacinas, fomos transferidos para a Central de Polícia da cidade, uma espécie de comissariado gigantesco, onde centenas de policiais entram e saem sem parar. O superintendente da polícia de Georgetown, primeira autoridade da polícia, responsável pela tranqüilidade desse porto importante, recebe-nos imediatamente em seu escritório. Ao redor dele, oficiais ingleses vestidos com uniforme cáqui, impecáveis em seus shorts e meias brancas. O coronel nos faz sinal para sentarmos diante dele e, num excelente francês, nos diz:

– De onde vinham quando os encontraram no mar?

– Da penitenciária da Guiana Francesa.

– Queira me dizer o ponto exato de onde se evadiram.

– Eu, da Ilha do Diabo. Os outros, de um campo semipolítico de Inini, perto de Kourou, Guiana Francesa.

– Qual a sua condenação?

– Prisão perpétua.

– E o motivo?

– Assassinato.

– E os chineses?

– Assassinato, também.

– Condenação?

– Prisão perpétua.

– Sua profissão?

– Eletricista.

– E eles?

– Cozinheiros.

– Você é por De Gaulle ou Pétain?

– Não sabemos nada disso. Somos homens prisioneiros e procuramos voltar a viver honestamente em liberdade.

– Vamos dar-lhes uma cela que ficará aberta o dia inteiro e à noite. Ficarão em liberdade depois que examinarmos suas declarações. Se nos disseram a verdade, nada têm a temer. Compreendam, estamos em guerra e temos que tomar mais precauções do que em tempo normal.

Logo, oito dias depois, somos postos em liberdade. Aproveitamos esses oito dias passados na Central de Polícia para adquirir roupas decentes. Foi corretamente vestidos que meus dois amigos chineses e eu nos encontramos, às 9 horas da manhã, na rua, munidos de um cartão de identidade com nossas fotografias.

A cidade, de 250 000 habitantes, é quase toda de madeira, construída à inglesa: ao nível do solo, cimento; o resto em madeira. As ruas e avenidas estão cheias de gente de todas as raças: brancos, gente cor de chocolate, negros, hindus, marinheiros ingleses e americanos, nórdicos, coolies. Estamos um pouco embriagados por nos encontrarmos nessa multidão tão matizada. Há uma alegria transbordante em nós, tão grande em nossos corações, que deve ser percebida em nossos rostos, mesmo nos dos chinas, pois muitas pessoas nos olham e nos sorriem gentilmente.

– Para onde vamos? – diz Cuic.

– Tenho uma indicação. Um policial negro me deu o endereço de dois franceses, em Penitence River.

Segundo as informações, é um bairro onde vivem exclusivamente hindus. Vou a um policial vestido de branco, impecável. Mostro-lhe o endereço. Antes de responder, ele nos pede as carteiras de identidade. Orgulhosamente, eu a entrego. “Muito bem, obrigado.” Então, ele nos põe num bonde, depois de ter falado com o condutor. Saímos do centro da cidade e, vinte minutos depois, o condutor nos faz descer. Deve ser ali. Na rua, perguntamos. “Frenchmen?” Um rapaz nos faz sinal para segui-lo. Nos leva diretamente a uma casa baixa. Assim que me aproximo, três homens saem da casa, com gestos acolhedores:

– Como, você aqui, Papi?

– Não é possível! – diz o mais velho, de cabelos todos brancos.

– Entre. Esta é minha casa. Os chineses estão com você?

– Estão.

– Entrem, sejam bem-vindos.

O velho forçado chama-se Guittou Auguste, vulgo Le Guittou, é um tipo bem característico de Marselha, estava no mesmo grupo que eu no La Martinière, em 1933, há nove anos. Depois de uma fuga mal sucedida, foi dispensado da sua pena principal e ficou cumprindo uma pena acessória; foi nesta situação que tornou a fugir, há três anos, disse-me ele. Dos outros dois, um é Petit-Louis, um cara de Aries, e o outro é um sujeito de Toulon, o Julot. Eles também partiram depois de terminar suas penas principais, mas deveriam ter ficado na Guiana Francesa o mesmo número de anos a que haviam sido condenados, dez e quinze anos (esta segunda pena chama-se duplicata).

A casa tem cinco cômodos: dois quartos, uma cozinha, uma sala de jantar e um escritório. Eles fazem calçados em balata, uma espécie de borracha natural recolhida no mato, que, trabalhada com água quente, torna-se maleável e modela-se bem. O único defeito é que, se fica muito exposto ao sol, o negócio se derrete, porque não é borracha vulcanizada. Procuram evitar isso intercalando folhas de tecido entre as camadas de balata.

Maravilhosamente recebidos, com o coração que o sofrimento enobreceu, Guittou nos arranja um quarto para os três e nos instala nele sem hesitar. Só há um problema, o porco de Cuic, mas Cuic afirma que ele não vai sujar a casa, que irá fazer suas necessidades lá fora.

Guittou diz;

– Bem, vamos ver; por enquanto, pode ficar com ele.

Provisoriamente, preparamos três camas no chão com velhas cobertas de soldado.

Sentados diante da porta, todos os seis fumando alguns cigarros, conto a Guittou todas as minhas aventuras de nove anos. Seus dois amigos e ele escutam com atenção e vivem intensamente minhas aventuras, pois as sentem em suas próprias experiências. Dois conheceram Sylvain e lamentam sinceramente sua horrível morte. Diante de nós passam e repassam pessoas de todas as raças. De vez em quando, entra alguém que compra sapatos ou uma vassoura, pois Guittou e seus amigos também fazem vassouras para ganhar a vida. Fico sabendo por eles que entre forçados e exilados há uns trinta evadidos em Georgetown. Encontram-se à noite num bar do centro, onde bebem juntos rum ou cerveja. Todos trabalham para suprir suas necessidades, conta Julot, e a maioria se comporta bem.

Enquanto tomamos a fresca na sombra, diante da porta da casinha, passa um chinês e Cuic o interpela. Sem me dizer nada, Cuic vai com ele e o maneta também. Não devem ir longe, pois o porco sai atrás. Duas horas depois, Cuic volta com um asno puxando uma pequena carroça. Orgulhoso como Artaban, pára o burrico, com quem fala em chinês. O asno tem jeito de compreender essa língua. Na carroça estão três camas de ferro desmontáveis, três colchões, travesseiros, três malas. A que ele me dá está cheia de camisas, cuecas, malhas, mais dois pares de sapatos, gravatas, etc.

– Onde encontrou isso, Cuic?

– Meus compatriotas me deram. Amanhã iremos visitá-los, você quer?

– Está combinado.

Esperamos que Cuic volte para devolver o asno e a carroça, mas nada disso. Ele desatrela o asno e amarra-o no pátio.

– Eles me deram também o asno e a carroça de presente. Com isto, disseram, eu posso ganhar a vida facilmente. Amanhã de manhã, um conterrâneo meu vai vir para me ensinar.

– Esses chineses andam depressa.

Guittou concorda em que o asno e a carroça fiquem provisoriamente no quintal. Tudo muito bem para nosso primeiro dia livre. À noite, todos os seis ao redor da mesa de trabalho, comemos uma boa sopa de legumes feita por Julot, e um bom prato de macarrão.

– Um de cada vez vai lavar a louça e fazer a limpeza da casa – diz Guittou.

Essa refeição em comum é o símbolo de uma primeira pequena comunidade cheia de calor. Esta sensação de se saber ajudado nos primeiros passos dados na vida livre é bastante reconfortante. Cuic, o maneta e eu somos real e plenamente felizes. Temos um teto, uma cama, amigos generosos que, em sua pobreza, encontraram nobreza bastante para nos ajudar. Que pedir de melhor?

– Que quer fazer esta noite, Papillon? – diz-me Guittou. – Quer ir à cidade, a esse bar onde vão todos os foragidos?

– Eu preferia ficar por aqui esta noite. Vá, se você quiser, não se preocupe por mim.

– Sim, eu vou, pois preciso encontrar uma pessoa.

– Eu ficarei com Cuic e o maneta.

Petit-Louis e Guittou se vestiram, engravataram-se e foram para o centro. Só Julot ficou, para terminar alguns pares de sapatos. Meus camaradas e eu damos uma volta pelas ruas próximas para conhecer o bairro. Tudo aqui é hindu. Muito poucos negros, quase nenhum branco, alguns raros restaurantes chineses.

Penitence River (é o nome do bairro) é um canto das Índias ou de Java. As moças são admiravelmente belas e os velhos usam longos mantos brancos. Muitos andam com os pés nus. É um bairro pobre, mas todo mundo está vestido limpamente. As ruas são mal iluminadas, os bares onde se come e bebe estão cheios de gente, por todo lado há música hindu.

Um negro lustroso, vestido de branco e engravatado, me detém:

– O senhor é francês?

– Sim.

– É um prazer encontrar um compatriota. Quer aceitar um gole?

– Se o senhor quiser, mas estou com dois amigos.

– Não tem importância. Eles falam francês?

– Falam.

Eis-nos os quatro instalados numa mesa de bar, junto da calçada. Esse martiniquenho fala um francês mais elegante do que o nosso. Diz para tomarmos cuidado com os negros ingleses porque, diz ele, são todos mentirosos. “Não são como nós, os franceses: nós temos palavra, eles não.”

Sorrio comigo mesmo ao ver esse negro do Sudão dizer “nós os franceses” e, depois, sinto-me realmente perturbado. Perfeitamente, esse senhor é um francês, um francês mais puro do que eu, penso, pois reivindica sua nacionalidade com calor e fé. Ele é capaz de se deixar matar pela França, eu não. Portanto, é mais francês do que eu. Eu sou o comum.

– É um prazer encontrar um compatriota e falar minha língua, pois falo muito mal o inglês.

– Eu me exprimo correntemente em inglês. Se lhe puder ser útil, estou à sua disposição. Está há muito tempo em Georgetown?

– Oito dias, não mais.

– De onde veio?

– Da Guiana Francesa.

– Impossível! É um fugitivo ou um guarda da penitenciária que quer se passar para De Gaulle?

– Não. Sou um fugitivo.

– E seus amigos?

– Também.

– Senhor Henri, não quero saber o seu passado, é o momento de ajudar a França e de se redimir. Eu estou com De Gaulle e espero embarcar para a Inglaterra. Vá me ver amanhã no Martiner Club, aqui está o endereço. Ficarei feliz se o senhor se juntar a nós.

– Como é seu nome?

– Homère.

– Sr. Homère, não posso me decidir assim de repente, tenho primeiro que me informar sobre minha família e, também, antes de tomar uma decisão tão séria, preciso analisar a situação friamente. Na verdade, St. Homère, a França me fez sofrer muito, tratou-me de modo desumano.

O martiniquenho, com uma flama e um calor admiráveis, procura me convencer com todo o seu coração. É realmente emocionante escutar os argumentos desse homem em favor da França.

Muito tarde, voltamos para casa e, deitado, penso em tudo que me disse esse grande francês. Preciso refletir seriamente sobre sua proposta. Afinal de contas, os tiras, os dedos-duros, os imbecis, a administração penitenciária, isso não é a França. Sinto, bem dentro de mim, que não deixei de amá-la. E dizer que há boches por toda a França! Meu Deus, como devem estar sofrendo os meus e que vergonha para todos os franceses!

Quando acordo, o asno, a carroça, o porco, Cuic e o maneta desapareceram.

– Então, meu chapa, dormiu bem? – perguntam Guittou e seus amigos.

– Sim, obrigado.

– Olhe, quer café com leite ou chá? Café e fatias de pão com manteiga?

– Obrigado – enquanto como, fico olhando eles trabalharem.

Julot prepara a massa de balata no tamanho e medida necessários, põe os pedaços duros na água quente e amassa até ficar mole.

Petit-Louis prepara pedaços de tecido e Guittou faz as solas.

– Vocês produzem muito?

– Não. Trabalhamos para ganhar 20 dólares por dia. Com 5 pagamos o aluguel e a comida. Restam 5 para cada um, para gastos variados, para se vestir, etc.

– Vendem tudo?

– Não. Às vezes é preciso que um de nós saia vendendo sapatos e vassouras nas ruas de Georgetown. É duro, a pé, em pleno sol, sair vendendo mercadoria.

– Se for preciso, eu vou de boa vontade. Não quero ser um parasita aqui. Preciso contribuir para ganhar comida.

– Está bem, Papi.

Passeei o dia inteiro pelo bairro hindu de Georgetown. Vejo um grande cartaz de cinema e sinto um desejo louco de ouvir e ver, pela primeira vez em minha vida, um filme falado, em cores. Vou pedir a Guittou que me traga ao cinema esta noite. Andei pelas ruas de Penitence River a manhã toda. A polidez das pessoas me agradou enormemente. Eles têm duas qualidades: são limpos e muito educados. Este dia passado sozinho nas ruas desse bairro de Georgetown é para mim ainda mais grandioso do que minha chegada a Trinidad, há nove anos.

Em Trinidad, no meio de todas as maravilhosas sensações nascidas de me misturar à multidão, eu tinha uma interrogação constante: um dia, antes de duas semanas, no máximo três, eu teria que tornar a partir pelo mar. Qual seria o país que iria me querer? Haveria uma nação para me dar asilo? Qual seria o futuro? Aqui é diferente. Sou definitivamente livre, posso mesmo, se quiser, ir para a Inglaterra e me engajar nas forças francesas livres. Que devo fazer? Se me decidir a ir com De Gaulle, não irão dizer que fui porque não tinha onde me enfiar? No meio de pessoas sadias, não vão me tratar como um forçado que não encontrou outro refúgio e que, por isso, está com eles? Dizem que a França está dividida em duas partes, Pétain e De Gaulle. Como é que um marechal da França não sabe onde está a honra e o interesse da França? Se um dia eu entrar para as forças livres, não vou ser obrigado, mais tarde, a atirar contra franceses?

Aqui vai ser duro, muito duro, conseguir alcançar uma situação aceitável. Guittou, Julot e Petit-Louis estão longe de ser imbecis e trabalham por 5 dólares por dia. Primeiro, preciso aprender a viver em liberdade. Desde 1931 – e estamos em 1942 – sou prisioneiro. Não posso, no primeiro dia da minha liberdade, resolver todas essas incógnitas. Não conheço sequer os primeiros problemas que se apresentam a um homem para abrir caminho na vida. Sou um pouquinho eletricista, mas qualquer operário eletricista sabe mais do que eu. Devo prometer apenas uma coisa a mim mesmo: viver limpamente, pelo menos o mais possível de acordo com uma moral minha.

São 6 horas quando volto para casa.

– Então, Papi, é bom saborear os primeiros bocados de ar da liberdade? Você passeou bastante?

– Sim, Guittou, fui e vim por todas essas ruas deste grande subúrbio.

– Viu os chineses?

– Não.

– Estão no quintal. Seus amigos são vivíssimos. Já ganharam 40 dólares e queriam, a todo custo, que eu ficasse com vinte. Recusei, bem entendido. Vá vê-los.

Cuic está cortando uma couve para seu porco. O maneta lava o asno, que se deixa lavar, alegre.

– Tudo bem, Papillon?

– Sim, e vocês?

– Nós estamos bem contentes, ganhamos 40 dólares.

– Que foi que fizeram?

– Saímos às 3 horas da manhã pelo campo, junto com um conterrâneo nosso, para nos mostrar. Ele havia trazido 200 dólares. Com isso, compramos tomates, alface, berinjelas, enfim, toda espécie de legumes verdes e frescos. Algumas galinhas, ovos e leite de cabra. Fomos ao mercado perto do porto da cidade e vendemos um pouco a pessoas do lugar, primeiro, e depois vendemos tudo aos marinheiros americanos. Ficaram tão contentes com o preço, que amanhã nem vou precisar entrar no mercado: eles me disseram para esperar diante da entrada do porto. Eles vão comprar tudo. Tome, olhe o dinheiro. É sempre o chefe que deve guardar o dinheiro.

– Você sabe, Cuic, que tenho dinheiro e não preciso desse.

– Guarde o dinheiro ou não trabalhamos mais.

– Escute, os franceses vivem com mais ou menos 5 dólares. Nós vamos ficar cada um com 5 dólares e dar 5 à casa, para comida. O resto, a gente põe de lado para devolver aos seus conterrâneos os 200 dólares que eles emprestaram.

– Entendido.

– Amanhã, eu vou com vocês.

– Não, você vai dormir. Se quiser, encontra com a gente às 7 horas, na frente da porta grande do porto.

– Está bem.

Todo mundo está feliz. Primeiro nós, por sabermos que podemos ganhar a vida e não ser uma carga para nossos amigos. Depois Guittou e os outros dois, que, apesar de todo o seu bom coração, deveriam estar se perguntando em quanto tempo nós estaríamos em condições de ganhar nossa vida.

– Para festejar essa verdadeira façanha dos seus amigos, Papillon, vamos fazer 2 litros de pastis.

Julot vai e vem com álcool branco de cana-de-açúcar e ingredientes. Uma hora depois, bebemos pastis como em Marselha. O álcool ajuda, as vozes se elevam e os risos da alegria de viver são mais fortes do que de hábito. Vizinhos hindus, que ouvem que está havendo festa na casa dos franceses, vêm sem cerimônia, fazem-se convidar, três homens e duas moças. Trazem espetinhos de carne de galinha e de porco, bem temperados e apimentados. As duas moças são de uma beleza pouco comum. Vestidas inteiramente de branco, pés nus, com braceletes de prata nos tornozelos esquerdos. Guittou me diz:

– Não cometa gafes. São verdadeiras moças de família. Não vá dizer alguma palavra ousada demais só porque elas estão com os seios descobertos sob o véu transparente. Para elas, isso é natural. Eu não me meti a sebo, porque sou muito velho. Mas Julot e Petit-Louis tentaram, logo no começo, quando viemos para cá, e fracassaram. Elas ficaram muito tempo sem voltar aqui.

Essas duas hindus são de uma beleza maravilhosa. Um ponto tatuado no meio da testa lhes dá um ar estranho. Falam-nos gentilmente e o pouco de inglês que sei me permite compreender que nos desejam boas-vindas a Georgetown.

Esta noite, Guittou e eu fomos ao centro da cidade. Dir-se-ia uma outra civilização, completamente diferente desta em que vivemos. A cidade ferve de gente: brancos, negros, hindus, chineses, soldados e marinheiros em fardas militares e vários marinheiros civis. Um grande número de bares, restaurantes, cabarés e boates iluminam as ruas com suas luzes cruas, como em pleno dia.

Depois da tarde em que assisti pela primeira vez em minha vida à apresentação de um filme colorido e falado, ainda todo aturdido por essa nova experiência, sigo Guittou que me arrasta para um enorme bar. Mais de vinte franceses ocupam um canto da sala. A bebida: cuba-libre (rum e coca-cola).

Todos esses homens são evadidos, forçados. Uns partiram depois de terem sido libertados, haviam terminado suas penas e deveriam fazer a duplicata em regime de livramento condicional. Morrendo de fome, sem trabalho, mal vistos pela população oficial e também pelos civis da Guiana Francesa, preferiram partir para um país onde acreditavam poder viver melhor. Mas é duro, comentam.

– Eu corto lenha no mato por 2 dólares e 50 por dia, para John Fernandes. Desço todos os meses a Georgetown, para passar oito dias. Estou desesperado.

– E você?

– Eu faço coleções de borboletas. Vou caçar no mato e, quando tenho uma boa quantidade de borboletas diversas, arranjo-as numa caixa com vidro e vendo a coleção.

Outros são descarregadores no porto. Todos trabalham, mas mal ganham o suficiente para viver. “É duro, mas a gente é livre”, dizem eles. “A liberdade é tão boa!”

Esta noite, um exilado vem nos ver: Faussard. Paga bebida para todo mundo. Estava a bordo de um navio canadense que, carregado de bauxita, foi torpedeado à saída do rio Demerara. Ele é survivor (sobrevivente) e recebeu dinheiro por ter naufragado. Quase toda a tripulação se afogou. Ele teve a sorte de poder embarcar numa chalupa de salvamento. Conta que o submarino alemão subiu à superfície e que os boches falaram com eles. Perguntaram quantos navios estavam no porto à espera de sair, cheios de bauxita. Responderam que não sabiam e o homem que os interrogava começou a rir: “Ontem”, disse ele, “eu estava em tal cinema em Georgetown. Olhe a metade da entrada”. Abrindo a jaqueta, disse-lhes: “Esta roupa é de Georgetown”. Os incrédulos protestaram contra a potoca, mas Faussard insiste e deve ser verdade. O submarino até mesmo os avisara de que tal barco iria recolhê-los. Efetivamente, foram salvos pelo barco indicado.

Cada um conta sua história. Estou sentado com Guittou ao lado de um velho parisiense de Halles: se apresentou como Petit-Louis da Rua dos Lombards.

– Meu velho Papillon, eu havia arranjado um jeito de viver sem fazer nada. Quando aparecia no jornal o nome de um francês na rubrica “morto lutando pelo rei”, ou a rainha, não lembro mais, procurava um marmorista e mandava fazer a foto de uma lápide tumular em que estava escrito o nome do navio, a data em que fora torpedeado e o nome do francês. Depois, apresentava-me nas ricas mansões dos ingleses e lhes dizia que era preciso que contribuíssem para a compra de uma lápide para o francês morto lutando pela Inglaterra, a fim de que houvesse no cemitério uma lembrança dele. Isso foi assim até a semana passada, quando um filho da puta de Breton, que havia sido dado como morto num torpedeamento, apareceu bem vivo e bem disposto por aí. Visitou algumas bondosas senhoras, justamente algumas daquelas às quais eu havia pedido 5 dólares, cada uma, para o túmulo desse morto que berrava por todo lado que estava bem vivo e que eu jamais em minha vida comprara uma lápide do marmorista. Vou ter que arranjar outra coisa para viver, pois na minha idade não posso mais trabalhar.

Com a ajuda do cuba-libre cada um se exterioriza em altas vozes. Convencidos de que só nós compreendemos o francês, surgem as histórias mais inesperadas.

– Eu, eu faço bonecas de balata – diz um outro – e punhos para bicicletas. Infelizmente, quando as meninas esquecem as bonecas ao sol, no jardim, elas se derretem ou deformam. Imagine o estouro quando me esqueço de que já vendi em tal rua. Dentro de um mês, não posso mais passar de dia pela metade de Georgetown. As bicicletas, a mesma coisa. Quem a deixa no sol, quando torna a pegá-la, fica com as mãos coladas nos punhos de balata que vendi.

– Eu – diz outro – faço chicotinhos com cabeça-de-negra, também de balata. Aos marinheiros, digo que sou um sobrevivente de Mers el-Kébir e que são obrigados a comprar, pois é por culpa deles que estou como estou. Oito em dez compram.

Esse pátio dos milagres moderno me diverte e, ao mesmo tempo, me faz ver que efetivamente não é fácil ganhar o pão.

Um tipo liga o rádio do bar: ouvimos um apelo de De Gaulle. Todo mundo escuta essa voz francesa que, de Londres, encoraja os franceses das colônias e de além-mar. O apelo de De Gaulle é patético, absolutamente ninguém abre a boca. De repente, um dos forçados que bebeu cuba-libre demais se levanta e diz:

– Ah, merda, os caras! Isso até que é bom! De repente aprendi inglês, estou entendendo tudo que ele diz, o Churchill!

Todo mundo rebenta de rir, ninguém se dá ao trabalho de explicar ao cara que ele estava fazendo uma dupla confusão, de língua e de pessoa.

Sim, preciso fazer as primeiras tentativas para ganhar minha vida e, pelo que vejo com os outros, não vai ser fácil. Não estou preocupado. De 1930 a 1942, perdi completamente a responsabilidade e a habilidade para me conduzir sem ninguém. Um ser que foi prisioneiro por tanto tempo, sem ter que cuidar da comida, de um apartamento, de se vestir; um homem que se manietou, virou, revirou, que habituaram a não fazer nada por si mesmo e a executar automaticamente as ordens mais diversas sem analisá-las; esse homem que em algumas semanas se encontra, de repente, numa grande cidade, que tem de reaprender a andar pelas calçadas sem esbarrar em ninguém, a atravessar uma rua sem se deixar esmagar, a achar natural que a seu comando lhe sirvam de beber ou de comer, este homem tem que reaprender a viver. Por exemplo, tem reações inesperadas. No meio de todos esses forçados que fugiram e exilados clandestinos, misturando em seu francês palavras de inglês ou espanhol, escuto com interesse os casos, e eis que de repente, nesse canto de bar inglês, tenho vontade de ir à privada. Pois bem, é inconcebível, mas durante um quarto de segundo procurei o vigilante ao qual deveria pedir autorização. Foi muito rápido, mas também muito esquisito quando percebi isso: Papillon, agora você não tem que pedir autorização a ninguém se quiser mijar ou fazer outra coisa. No cinema, também, no momento em que a lanterninha procurava lugares para nos sentarmos, tive, num relâmpago, vontade de lhe dizer: “Por favor, não se incomode por mim, não passo de um pobre condenado que não merece nenhuma atenção”. Andando na rua, voltei-me várias vezes no trajeto do cinema ao bar. Guittou, que conhece essa tendência, me disse:

– Por que você se vira tanto para olhar para trás? Está olhando para ver se o guarda o segue? Aqui não há guardas, meu velho Papi. Você os deixou nas ilhas.

Na língua figurada dos presos, a gente diz que é preciso se despojar da casaca dos forçados. É mais do que isso, pois a roupa de um sentenciado não é mais do que um símbolo. É preciso não apenas se despojar da casaca, é preciso também arrancar da alma e do cérebro a marca a fogo de uma matrícula de infâmia.

Uma patrulha de policiais negros ingleses, impecáveis, acaba de entrar no bar. Mesa por mesa, eles vão exigindo os documentos de identidade. Quando chegam ao nosso canto, o chefe olha atentamente todos os rostos. Encontra um que não conhece, o meu.

– Sua carteira de identidade, por favor, senhor.

Eu a dou, ele dá uma olhada, devolve-a e acrescenta:

– Desculpe-me, eu não o conhecia. Seja bem-vindo a Georgetown – e se retira.

Paul, o saboiano, acrescenta, depois que ele vai embora:

– Esses rosbifes são maravilhosos. Os únicos estrangeiros nos quais eles confiam cem por cento são os forçados que fogem. Poder provar às autoridades inglesas que você é um evadido da prisão de forçados é obter a liberdade imediatamente.

Se bem que tenhamos voltado muito tarde para casa, às 7 horas da manhã estou na porta principal do porto. Menos de meia hora depois, Cuic e o maneia chegam com a carroça cheia de legumes frescos, cortados de madrugada, ovos e alguns frangos. Estão sozinhos. Pergunto onde está o conterrâneo que lhes ensinou o trabalho. Cuic responde:

– Ele nos mostrou ontem, é o suficiente. Agora não precisamos de mais ninguém.

– Você foi muito longe buscar isso?

– Sim, a mais de duas horas e meia daqui. Saímos às 3 horas da madrugada e chegamos agora.

Como se fizesse assim há vinte anos, Cuic toma chá quente e bolachas. Sentados no passeio, perto da carroça, comemos, esperando os fregueses.

– Acha que eles vão vir, os americanos de ontem?

– Espero que sim, mas, se não vierem, outros virão.

– E os preços? Como você faz?

– Eu não digo: “Isto custa tanto”. Eu digo: “Quanto me oferece?”

– Mas você não sabe falar inglês.

– É verdade, mas sei mexer os dedos e as mãos. Assim é fácil.

– Primeiro vai você, que fala o suficiente para vender e comprar – me diz Cuic.

– Sim, mas primeiro eu quero ver como você faz.

Não demora muito, chega um automóvel grande, chamado carro de comando. O motorista, um suboficial e dois marinheiros descem. O suboficial sobe na carroça, examina tudo: alfaces, berinjelas, etc. Depois de inspecionar cada coisa, apalpa os frangos.

– Quanto, tudo? – e começa a discussão.

O marinheiro americano fala pelo nariz. Não compreendo nada do que ele diz; Cuic fala uma mistura de chinês e francês. Vendo que não conseguem se entender, chamo Cuic de lado.

– Quanto você gastou?

Ele remexe os bolsos e encontra 17 dólares.

– Cento e oitenta e três dólares.

– Quanto ele está oferecendo?

– Acho que duzentos e dez, não é o bastante.

Eu me aproximo do oficial. Ele me pergunta se falo inglês. Um pouquinho.

– Fale lentamente – digo-lhe.

– O.K.

– Quanto o senhor paga? Não, não é possível, não podemos vender por 210 dólares; 240.

Ele não quer.

Ele faz que vai embora, depois volta, torna a ir, sobe no carro, mas eu sinto que é uma comédia. No momento em que torna a descer, chegam minhas duas belas vizinhas, as hindus, semiveladas. Certamente observaram a cena, pois fingem não nos conhecer. Uma delas sobe na carroça, examina a mercadoria e dirige-se a nós:

– Quanto, tudo?

– Duzentos e quarenta dólares – respondo. Ela diz: “Está bem”.

Mas o americano tira os 240 dólares e dá-os a Cuic, dizendo às hindus que já havia comprado. Minhas vizinhas não se retiram e olham os americanos descarregarem a carroça e carregarem o carro de comando. No último instante, um marinheiro pega o porco, pensando que ele faz parte do negócio. Cuic não quer que levem o porco, é claro. Começa uma discussão, não conseguimos explicar que o porco não estava incluído na venda.

Tento fazer as hindus entenderem isso, mas é muito difícil. Elas não compreendem. Os marinheiros americanos não querem deixar o porco, Cuic não quer devolver o dinheiro, a coisa vai virar bagunça. O maneta já pegou uma tábua da carroça, quando passa um jipe da polícia militar americana. O suboficial apita. A polícia militar se aproxima. Eu digo a Cuic para devolver o dinheiro, ele não quer ouvir nada. Os marinheiros estão com o porco e não querem devolvê-lo. Cuic está plantado diante do carro deles, impedindo-os de ir embora. Um grupo de curiosos, bastante numeroso, formou-se em torno da cena barulhenta. A polícia americana dá razão aos americanos e, aliás, não entendem nada do que falamos. Pensam, sinceramente, que quisemos enganar os marinheiros.

Não sei mais o que fazer, quando me lembro de que tenho o número do telefone do Mariner Club, com o nome do martiniquenho. Dou-o ao oficial de polícia, dizendo: “Intérprete”. Ele me leva até um telefone. Ligo e tenho a sorte de encontrar meu amigo gaullista. Peço-lhe que explique ao policial que o porco não estava à venda, que é domesticado, que é como um cachorro para Cuic e que havíamos esquecido de dizer aos marinheiros que ele não entrava no negócio. Depois, passo o telefone para o policial. Três minutos bastam para que ele compreenda tudo. Ele mesmo pega o porco e o devolve a Cuic, que, todo feliz, toma-o nos braços e coloca-o na carroça. O incidente acaba bem e os meus amigos amarelos riem como crianças. Todo mundo vai embora, tudo terminou bem.

A noite, em casa, agradecemos às hindus, que riem bastante deste caso.

Estamos em Georgetown há três meses. Hoje nos instalamos na metade da casa de nossos amigos hindus. Dois quartos claros e espaçosos, uma sala de jantar, uma pequena cozinha com fogão a carvão de lenha e um quintal imenso com um canto coberto de zinco para estábulo. A carroça e o asno estão abrigados. Vou dormir sozinho numa grande cama, comprada a preço de ocasião, com um bom colchão. No quarto ao lado, cada um numa cama, ficam os meus dois amigos chineses. Temos também uma mesa, seis cadeiras e dois tamboretes. Na cozinha, todos os utensílios necessários para cozinhar. Depois de ter agradecido a Guittou e seus amigos pela hospitalidade, tomamos posse da nossa casa, como diz Cuic.

Diante da janela da sala de jantar que dá para a rua está uma poltrona de junco, como um trono, presente das hindus. Na mesa da sala de jantar, num jarro, algumas flores trazidas por Cuic.

Esta impressão de meu primeiro lar, humilde mas limpo, esta casa clara e asseada que me rodeia, primeiro resultado de três meses de trabalho em equipe, me dá confiança em mim e no futuro.

Amanhã é domingo, não há mercado, portanto a gente está livre o dia inteiro. Assim, nós três decidimos oferecer um almoço em nossa casa a Guittou, seus amigos, às hindus e seus irmãos. O convidado de honra será o chinês que ajudou Cuic e o maneta, aquele que lhe deu de presente o asno e a carroça e que nos emprestou os 200 dólares para que pudéssemos iniciar nosso comércio. Em seu guardanapo, ele encontrará os 200 dólares e um bilhete de agradecimento, da nossa parte, escrito em chinês.

Depois do porco, que ele adora, sou eu que tenho toda a amizade de Cuic. Ele tem constantes atenções para comigo: sou o mais bem vestido dos três e freqüentemente ele chega em casa com uma camisa, uma gravata ou uma calça para mim. Tudo isso, ele compra com seu dinheiro. Cuic não fuma, também quase não bebe, seu único vício é o jogo. Só sonha com uma coisa: ter bastante economia para ir ao clube dos chineses e jogar.

Para vender nossos produtos comprados de madrugada, não temos nenhuma dificuldade séria. Já falo bastante bem o inglês para comprar e vender. Cada dia, ganhamos de vinte a 35 dólares os três. É pouco, mas estamos muito satisfeitos por termos encontrado tão depressa um meio de ganhar nossa vida. Não vou sempre com eles comprar, se bem que obtenha melhores preços do que eles, mas agora sou sempre eu que vendo. Muitos marinheiros americanos e ingleses que são destacados para vir à terra fazer compras para seus navios me conhecem. Gentilmente discutimos a venda, sem botar muito calor na discussão. Há um bom cara, cantineiro ítalo-americano de um rancho de oficiais americanos, que sempre fala comigo em italiano. Fica feliz da vida por eu lhe responder em sua língua e só discute para se divertir. No fim, acaba sempre comprando pelo preço que pedi no começo da conversa.

Entre as 8 e meia e as 9 horas da manhã, a gente está de volta a casa. O maneta e Cuic deitam-se depois de nós três termos comido uma refeição ligeira. Eu vou ver Guittou ou minhas vizinhas vêm à nossa casa. Nada de muita faxina a fazer: varrer, lavar roupa, arrumar as camas, manter a casa limpa, as duas irmãs fazem tudo isso para nós, por quase nada, 2 dólares por dia. Aprecio plenamente isso de ser livre sem angústia pelo futuro.

MINHA FAMÍLIA HINDU

O meio de locomoção mais empregado nesta cidade é a bicicleta. Portanto, comprei uma bicicleta para ir a qualquer lugar sem problema. Como a cidade é plana, assim como seus arredores, pode-se percorrer longas distâncias sem esforço. Na bicicleta há dois porta-bagagens muito fortes, um na frente e outro atrás. Posso, portanto, como muitos nativos, levar facilmente duas pessoas.

Pelo menos duas vezes por semana, dou um passeio de uma hora ou duas com minhas amigas hindus. Elas ficam loucas de alegria e começo a perceber que uma delas, a mais moça, está quase apaixonada por mim.

Seu pai, que eu nunca tinha visto, veio ontem. Não mora muito longe da minha casa, mas nunca tinha vindo nos visitar e eu só conhecia seus irmãos. É um velho grande, com barba muito longa, branca como a neve. Seus cabelos também são platinados e descobrem uma fronte inteligente e nobre. Só fala hindu, sua filha traduz. Convida-me para ir visitá-lo em sua casa. Não é longe, de bicicleta, manda que a princesinha, como ele chama a filha, me diga. Prometo-lhe que irei visitá-lo logo.

Depois de comer alguns doces, tomando chá, ele vai embora, não sem que eu tenha notado que examinou os menores detalhes da casa. A princesinha está toda feliz por ver seu pai ir embora satisfeito com a visita e conosco.

Tenho 36 anos e estou com muito boa saúde, sinto-me jovem ainda e todo mundo, felizmente, me considera jovem: não aparento mais de 30 anos, dizem todos os amigos. Ora, essa pequena está com dezenove anos e tem a beleza de sua raça, calma e cheia de fatalismo em seu modo de pensar. Seria para mim um presente do céu amar e ser amado por essa moça esplêndida.

Quando nós três saímos, ela sempre senta no bagageiro da frente e sabe muito bem que ficando bem sentada, com o busto ereto, quando eu tenho que forçar os pedais, preciso me inclinar um pouco para a frente e fico muito próximo de seu rosto. Se ela joga a cabeça para trás, vejo toda a beleza de seus seios nus sob o véu, melhor do que se não estivessem cobertos por gaze. Seus grandes olhos negros brilham intensamente por ocasião dessas quase apalpadelas e sua boca, vermelho-escuro na pele mate, entreabre-se com vontade de ser beijada. Dentes admiráveis e de brilhante beleza completam essa boca maravilhosa. Ela tem um jeito de pronunciar certas palavras, de fazer aparecer uma pontinha da língua rosa na boca entreaberta, que tornaria libertinos os santos mais santos que nos deu a religião católica.

Devemos ir ao cinema, hoje à noite, só nós dois. Sua irmã está com dor de cabeça, dor de cabeça essa que me parece simulada para nos deixar a sós. Ela chega com um vestido de musselina branca que vai até os tornozelos, os quais, quando ela anda, aparecem nus, rodeados por três aros de prata. Está calçada com sandálias cujas tiras douradas passam pelo grande artelho. Isso torna seu pé muito elegante. Na narina direita, ela colocou uma conchinha minúscula de ouro. O véu de musselina na cabeça é curto e cai-lhe ligeiramente abaixo das espáduas. Uma fita dourada o mantém preso ao redor da cabeça. Da fita até o meio da testa pendem três fios guarnecidos com pedras de todas as cores. Linda fantasia. Quando balança, é claro, deixa ver a tatuagem muito azul da fronte.

Toda a família hindu e a minha, representada por Cuic e o maneta, nos olha partir, com rostos felizes por nos verem exteriorizar nossa felicidade. Todos têm ar de saber que vamos voltar noivos do cinema.

Bem sentada sobre a almofada no bagageiro de minha bicicleta, rodamos os dois para o centro. É num longo trecho de uma avenida mal iluminada que essa moça esplêndida, por iniciativa própria, me aflora a boca num beijo rápido e furtivo. Era tão inesperado que ela tomasse a iniciativa, que eu quase caí da bicicleta.

Mãos nas mãos, sentados no fundo da sala, eu lhe falo com os dedos e ela responde. Nosso primeiro dueto de amor, nessa sala de cinema, onde passava um filme que não vimos, foi completamente mudo. Seus dedos, suas unhas longas, bem cuidadas e esmaltadas, as pressões das palmas das mãos cantam e me comunicam bem melhor do que se ela falasse todo o amor que tem por mim e o desejo de ser minha. Ela reclinou a cabeça em meu ombro, o que me permite dar-lhe beijos no rosto tão puro.

Esse amor tão tímido, tão demorado em desabrochar, transformou-se depressa em paixão total. Eu lhe expliquei, antes que ela fosse minha, que não podia me casar com ela, pois já era casado na França. Isso deixou-a contrariada durante um dia. Uma noite, ficou comigo, em minha casa. Por causa de seus irmãos, disse-me, e por causa de certos vizinhos e vizinhas hindus, preferia que eu fosse morar com ela na casa de seu pai. Aceitei e instalei-me na casa de seu pai, que mora só com uma jovem hindu, uma parenta afastada, que o serve e cuida da casa. Não fica muito longe da casa em que Cuic mora, 500 metros, mais ou menos. Meus dois amigos vêm me visitar todos os dias e passam uma boa hora conosco. Muitas vezes comem conosco.

Continuamos, sempre, nossa venda de legumes no porto. Saio às 6 e meia e quase sempre minha hindu me acompanha. Uma grande garrafa térmica cheia de chá, um pote de geléia e um pão torrado num grande saco de couro vêm comigo e ficam esperando Cuic e o maneta, para que tomemos o chá juntos. Ela mesma prepara esse lanche e faz questão absoluta do ritual: tomarmos os quatro juntos a primeira refeição do dia. Em sua bolsa há todo o necessário: uma pequena toalha bordada e com renda que, muito cerimoniosamente, ela estende sobre o passeio, que varre antes com uma escova, e sobre a qual põe as quatro xícaras de porcelana com seus pires. E, sentados no passeio, muito seriamente, tomamos nossa primeira refeição.

É gozado estar no passeio, tomando chá, como se estivéssemos numa sala, mas ela acha isso natural e Cuic também. Aliás, eles não fazem caso algum das pessoas que passam, e acham normal agir assim. Não quero contrariá-la. Ela fica tão contente por nos servir e passar geléia nas torradas, que, se eu não quisesse, iria deixá-la triste.

Sábado passado aconteceu uma coisa que me deu a chave do mistério. De fato, há dois meses que estamos juntos e, freqüentemente, ela me dá pequenas quantidades de ouro. São sempre pedaços de jóias quebradas: a metade de um anel de ouro, um brinco só, um pedaço de corrente, um quarto ou metade de uma medalha ou moeda. Como não tenho necessidade disso para viver, se bem que ela me diga para vendê-lo, guardo-os em uma caixa. Tenho quase quatrocentos gramas. Quando lhe pergunto de onde vem aquilo, ela me arrasta, me beija, ri, mas não dá nenhuma explicação.

Pois bem, sábado, às 10 horas da manhã, minha hindu me pediu que levasse seu pai, já não lembro mais para onde, de bicicleta: “Meu pai”, disse-me ela, “indicará o caminho. Vou ficar em casa para arrumá-la um pouco”. Intrigado, penso que o velho quer fazer uma visita longe e de bom grado concordo em levá-lo.

Sentado no bagageiro da frente, sem falar, pois ele apenas fala hindu, tomo os caminhos que ele me aponta. É longe, há mais de uma hora que eu pedalo. Chegamos a um bairro rico, perto do mar. Nada além de belas mansões. A um sinal do “sogro”, eu paro e observo. Ele tira uma pedra redonda e branca de sob a túnica e se ajoelha no primeiro degrau de uma casa. Rolando a pedra sobre o degrau, canta. Passam-se alguns minutos, uma mulher vestida de hindu sai da casa, aproxima-se dele e lhe dá alguma coisa, sem dizer uma palavra.

De casa em casa, ele repete a cena até as 16 horas. É uma cena longa e não consigo compreendê-la. Na última mansão, é um homem vestido de branco que vem até ele. Faz com que se levante e, com um braço enfiado no dele, leva-o para a casa. Fica lá dentro mais de um quarto de hora e torna a sair, acompanhado pelo senhor, que, antes de deixá-lo, beija-lhe a testa ou, antes, os cabelos brancos. Voltamos para casa, eu pedalo o mais depressa que posso, para chegar logo, pois passa das 4 e meia.

Antes do anoitecer, felizmente, estamos em casa. Minha linda hindu, Indara, primeiro leva o pai, depois salta-me ao pescoço e cobre-me de beijos, arrastando-me para o chuveiro, para que eu tome um banho. Roupa limpa e fresca está à minha espera e, lavado, barbeado e trocado, sento-me à mesa. Ela mesma me serve, como de hábito. Quero interrogá-la, mas ela se mexe para lá e para cá, bancando a muito ocupada, para adiar o maior tempo possível o momento das perguntas. Ardo por saber. Sei, no entanto, que não se deve jamais forçar um hindu ou um chinês a dizer qualquer coisa. Há sempre um tempo a respeitar antes de interrogar. Então, eles falam por si sós, pois adivinham, sabem que a gente espera uma confidência deles e, se acham o cara digno, fazem-na. Foi isso que aconteceu com Indara.

Depois que, deitados, fizemos longamente o amor, quando ela, satisfeita, pousou no vão de minha axila nua o rosto ainda ardente, falou, sem me olhar:

– Sabe, querido, quando papai vai buscar ouro, ele não age mal, ao contrário. Chama os espíritos para que protejam a casa em que rola sua pedra. Para agradecer, em geral, dão-lhe um pedaço de ouro. É um velho costume de nossa terra, em Java.

É o que a minha princesa me conta. Mas, um dia, uma de suas amigas conversa comigo no mercado. Nessa manhã, nem ela nem os chineses haviam chegado ainda. A bonita moça, de Java também, contou-me uma outra coisa:

– Para que você trabalha, uma vez que vive com a filha do feiticeiro? Ela não tem vergonha de fazer você se levantar tão cedo, mesmo quando está chovendo? Com o ouro que o pai dela ganha, você poderia viver sem trabalhar. Ela não sabe amá-lo, pois não devia deixá-lo levantar-se tão cedo.

– E o que o pai dela faz? Explique-me, pois eu não sei de nada.

– O pai dela é um feiticeiro de Java. Se quiser, ele chama a morte para você ou sua família. O único jeito de escapar ao sortilégio que ele faz com sua pedra mágica é dar-lhe bastante ouro, para que a faça rolar em sentido contrário daquele que chama a morte. Então, desfaz todos os malefícios e chama, ao contrário, a saúde e a vida para você e todos os que moram em sua casa.

– Isso não é nada parecido com o que Indara me contou.

Prometo a mim mesmo fazer uma verificação, para saber qual das duas tem razão. Alguns dias depois, eu estava com meu “sogro” de longa barba branca na beira de um riacho que atravessa Penitence River e deságua no Demerara. A atitude dos pescadores hindus me esclareceu amplamente. Cada um lhe oferecia um peixe e se afastava o mais depressa possível da margem. Compreendi. Não há mais necessidade de perguntar nada a ninguém.

Para mim, meu sogro feiticeiro não me incomoda em nada. Ele só me fala em hindu e acha que já compreendo um pouco. Não chego jamais a apreender o que ele quer dizer. Isso tem seu lado bom: não se pode estar sempre de acordo. Ele me arranjou trabalho, apesar de tudo: tatuo as frontes de todas as mocinhas de treze a quinze anos. Algumas vezes, ele me descobre os seios delas e tatuo neles folhas ou pétalas de flores em cor, rosa e azul, deixando o bico surgir como o pistilo de uma flor. As corajosas, pois é muito doloroso, fazem-se tatuar em amarelo-canário o círculo negro em volta do bico do seio e algumas, mais raramente, querem o bico do seio em amarelo.

Diante da casa, ele colocou uma tabuleta escrita em hindu onde está anunciado, parece: “Artista tatuador – Preço módico – Trabalho garantido”. Esse trabalho é bem pago e tenho duas satisfações: admirar os lindos seios das javanesas e ganhar dinheiro.

Cuic encontrou um restaurante à venda, perto do porto. Todo orgulhoso, ele me conta a novidade e propõe que o compremos. O preço está acertado, 800 dólares. Vendendo o ouro do feiticeiro, mais as nossas economias, podemos comprar o restaurante. Vou vê-lo. Fica numa rua pequena, mas muito perto do porto. Lá fervilha de gente a toda hora. Uma sala bastante grande, quadriculada em branco e preto, oito mesas à esquerda, oito à direita, no meio uma mesa redonda onde podem ser expostos os antepastos e as frutas. A cozinha é grande, espaçosa, bem iluminada. Dois grandes fornos e dois fogões imensos.

RESTAURANTE E BORBOLETAS

Fizemos o negócio. Indara mesmo vendeu todo o ouro que possuíamos. O papai primeiro ficou surpreendido por eu jamais haver tocado nos pedaços de ouro que ele dava à filha para nós dois. Disse:

– Eu os dei a vocês para que aproveitassem. São de vocês dois, não têm que me perguntar se podem dispor deles. Façam o que quiser.

Meu “sogro-feiticeiro” não é nada mau. Ela é uma coisa à parte, como amante, como mulher e como amiga. Nunca corremos o risco de brigar, porque ela sempre responde sim a tudo que digo. Só se arrepia um pouco quando tatuo as maminhas de suas compatriotas.

Portanto, eis-me dono do restaurante Victory, na Rua Water, em pleno coração do porto da cidade de Georgetown. Cuic ficará na cozinha, ele gosta disso, é a sua profissão. O maneta fará as compras e o chow mein, uma espécie de macarrão chinês. É feito da seguinte maneira: farinha de trigo misturada e amassada com quantidades de gemas de ovos. Sem água, essa massa é trabalhada dura e longamente. É uma massa dura como pedra, ao ponto de ele ter que trabalhá-la pulando com a coxa em cima de um bastão bem polido, fixado no centro da mesa. Com uma coxa à cavalo por cima do bastão, que ele segura com sua única mão, corre, saltando num só pé, ao redor da mesa, surrando assim a massa, que, trabalhada com essa força, torna-se logo uma massa leve e deliciosa. Por fim, um pouco de manteiga acaba de lhe dar um gosto exótico.

Esse restaurante, que fora à falência, rapidamente adquire fama. Ajudada por uma jovem hindu muito bonita, chamada Daya, Indara serve os numerosos clientes que acorrem para degustar a comida chinesa. Todos os forçados fugitivos vêm. Os que têm dinheiro pagam; os outros comem de graça. “Dá sorte dar de comer aos que têm fome”, diz Cuic.

Um só inconveniente: a atração das duas garçonetes, uma das quais é Indara. As duas exibem os seios nus sob o ligeiro véu de seus vestidos. E mais, abriram os vestidos, dos tornozelos até os quadris. Quando fazem certos movimentos, descobrem a perna toda e a coxa, até bem em cima. Os marinheiros americanos, ingleses, suecos, canadenses e noruegueses comem, alguns duas vezes por dia, para gozar o espetáculo. Meus amigos chamam meu restaurante de restaurante dos olheiros. Eu represento o patrão. Para todo mundo, eu sou o boss. Não há caixa registradora, as garçonetes me trazem o dinheiro, que ponho no bolso, e dou troco quando é necessário.

O restaurante abre às 8 da noite e fica aberto até 5 ou 6 horas da manhã. Não vale a pena dizer que, ali pelas 3 horas da manhã, todas as putas do bairro que fizeram uma boa noite vêm comer, com seu homem ou com um cliente, um frango ao curry ou uma salada de feijão. Também tomam cerveja, principalmente inglesa, uísque, rum de cana-de-açúcar do país, muito bom, com soda ou coca-cola. Como se tornou o ponto de encontro dos franceses em fuga, sou o refúgio, o conselheiro, o juiz e o confidente de toda a colônia de forçados e exilados.

Isso às vezes me traz encrencas. Um colecionador de borboletas me explica sua maneira de caçar no mato. Corta um papelão em forma de borboleta, depois cola sobre ele as asas da borboleta que quer caçar. O papelão é afixado na ponta de um bastão de 1 metro. Quando caça, ele segura o bastão com a mão direita e faz movimentos de modo que a falsa borboleta pareça estar voando. Enfia-se pelo mato, sempre em clareiras onde o sol penetra. Sabe as horas de aparição de cada espécie. Há espécies que não vivem mais de 48 horas. Então, quando o sol banha essa clareira, as borboletas que acabam de sair do casulo precipitam-se para a luz, procurando fazer o amor o mais depressa possível. Quando percebem a isca, vêm de longe para se precipitar sobre ela. Se a falsa borboleta é um macho, é um macho que vem para lutar. Com a mão esquerda, onde segura a redinha, rapidamente ele o apanha.

A bolsa tem um estreitamento, que permite que o caçador continue a apanhar borboletas sem temer que as outras escapem,

Se a isca for feita com as asas de uma fêmea, os machos vêm para beijá-la e o resultado é o mesmo.

As mais belas borboletas são as da noite, mas, como batem freqüentemente em obstáculos, é difícil encontrar uma com as asas intatas. Quase todas têm as asas esfrangalhadas. Para apanhar essas borboletas noturnas, ele sobe no alto de uma grande árvore e faz um quadrado com pano branco, que ilumina por trás com luz de carbureto. As grandes borboletas da noite, com 15 a 20 centímetros da ponta de uma asa à outra, vêm colar-se ao pano branco. Basta, então, asfixiá-las, comprimindo-lhes bem depressa e com bastante força o tórax, sem esmagá-lo. Não se pode deixar que se debatam, porque estragariam as asas, perdendo parte do valor.

Tenho sempre numa vitrina pequenas coleções de borboletas, de moscas, de pequenas serpentes e de vampiros. Há mais compradores do que mercadoria. Assim, os preços são altos.

Um americano me desenhou uma borboleta com as asas de trás de um azul-aço e as superiores de um azul-claro. Ofereceu-me 500 dólares se eu encontrasse uma borboleta dessa espécie. Trata-se, aliás, de uma borboleta hermafrodita.

Falando com o caçador, ele me disse que uma vez tivera uma nas mãos, muito bonita, que lhe haviam pago 50 dólares e que ficara sabendo depois, por um colecionador sério, que aquela espécie valia quase 2 000 dólares.

– O americano está querendo embrulhar você, Papillon – disse-me o caçador. – Está pensando que você é idiota. Mesmo que a peça valesse só 1 500 dólares, ele estaria se aproveitando sordidamente da sua ignorância.

– Tem razão, ele é um sujo. E se nós o tapearmos?

– Como?

– Teríamos que fixar numa borboleta fêmea, por exemplo, as asas de um macho ou vice-versa. O difícil é descobrir como fixá-las, sem que se perceba.

Depois de várias tentativas infelizes, conseguimos colar perfeitamente, sem que se note, duas asas de um macho num magnífico exemplar de fêmea: introduzimos as pontas numa minúscula incisão, depois colamos com leite de balata. Segura bem, a ponto de se poder erguer as asas coloridas. Pomos a borboleta sob o vidro, junto com outras, numa coleção qualquer de 20 dólares, como se eu jamais a tivesse visto. Assim que o americano a percebe, tem o topete de vir com uma nota de 20 dólares na mão, para comprar a coleção. Eu digo que ela já estava prometida, que um sueco encomendou uma caixa e que aquela é para ele.

Em dois dias, o americano pegou aquela caixa nas mãos pelo menos umas dez vezes. Enfim, não agüentando mais, ele me chama.

– Compro a borboleta do meio por 20 dólares e você fica com a coleção.

– O que essa borboleta tem de extraordinário? – e ponho-me a examinar; depois me espanto: – Veja só, mas é uma borboleta hermafrodita!

– Que está dizendo? Sim, é verdade. Antes, eu não tinha muita certeza – diz o americano. – Através do vidro não se via bem. Dá licença? – examina a borboleta de todos os lados e diz: – Quanto quer por ela?

– Um dia não me disse que um exemplar assim tão raro vale 500 dólares?

– Repeti isso a vários caçadores de borboletas e não quero me aproveitar da ignorância do que apanhou este aqui.

– Então, 500 dólares ou nada.

– Compro-a, guarde-a para mim. Tome, aqui estão 60 dólares que tenho comigo, como sinal de que a compra está feita. Dê-me um recibo, amanhã eu trarei o resto. E, principalmente, tire-a dessa caixa.

– Está bem, vou guardá-la noutro lugar. Aqui está seu recibo.

Bem, na hora de abrir a casa, o descendente de Lincoln lá está. Examina de novo a borboleta, dessa vez com uma pequena lupa. Tenho um medo terrível quando ele a vira do outro lado. Satisfeito, faz o pagamento, põe a borboleta numa caixa que trouxe, pede-me outro recibo e vai embora.

Dois meses depois sou levado pela polícia. Chegando ao comissariado, o superintendente da polícia explica-me em francês que fui preso por ter sido acusado de trapaça por um americano:

– É o sujeito da borboleta na qual você colou asas – diz o comissário. – Graças a esse estratagema, vendeu-a por 500 dólares.

Duas horas depois, Cuic e Indara lá estão com um advogado. Ele fala muito bem o francês. Explico-lhe que nada sei de borboletas, que não sou caçador, nem colecionador. Vendo as caixas para ajudar os caçadores, que são meus clientes, que foi o americano que ofereceu 500 dólares, não eu que os pedi, e que, aliás, ele a examinara para ter certeza de que ela era o que pensava, que o ladrão, então, era ele, pois nesse caso a borboleta valeria cerca de 2 000 dólares.

Dois dias depois, passo ao tribunal. O advogado me serve também de intérprete. Repito minha tese. Em seu favor, o advogado tem um catálogo com preços de borboletas. Um espécime parecido está cotado no livro a acima de 1 500 dólares. O americano é duramente criticado pelo tribunal. Terá, ainda por cima, que pagar os honorários do meu advogado, mais 200 dólares.

Todos os duros e hindus estão reunidos, festejamos a libertação com pastis feito em casa. Toda a família de Indara foi ao tribunal, estão orgulhosos de ter na família – depois da absolvição – um super-homem. Pois eles não eram patetas, e duvidavam muito de que eu não tivesse colado as asas.

Pronto, fomos obrigados a vender o restaurante, isso devia acontecer. Indara e Daya eram bonitas demais e aquela espécie de strip-tease delas, sempre apenas esboçado sem jamais continuar, desvairava ainda mais aqueles marinheiros sanguíneos do que se fosse um desnudamento integral. Tendo reparado que, quanto mais colocavam suas maminhas embaixo do nariz dos marujos, mais recebiam de gorjeta, bem inclinadas sobre a mesa, nunca acabavam de fazer a conta ou encontrar o troco certo. Depois desse tempo de exposição bem calculado, endireitavam-se e diziam: “E a minha gorjeta?” – “Ah!” Os pobres caras eram generosos e aqueles amorosos acesos, sem jamais serem apagados, não sabiam bem onde estavam com a cabeça.

Um dia, aconteceu o que eu previa. Um enorme diabo de um ruivo cheio de sardas não se contentou em ver apenas a coxa inteira descoberta: a uma aparição fugaz da calcinha, ergueu a mão e seus dedos de bruto, mantendo a minha javanesa presa como que a um torno. Como ela estava com um jarro de vidro na mão, não levou muito tempo para quebrá-lo na cabeça dele. Com o golpe, ele larga a calça e desaba. Corro para erguê-lo. Os amigos dele pensam que eu vou espancá-lo e, antes que eu diga ui, recebo um soco magistral em pleno olho. Talvez o marinheiro-boxeador tenha mesmo querido defender seu chapa. Ou queria surrar o marido da linda hindu, responsável pelo que não podia acontecer com ela? Sabe-se lá! De qualquer modo, meu olho recebe o direto bem em cheio. Ele conta muito depressa com sua vitória, pois se coloca em guarda de boxe diante de mim e grita: Boxe, boxe, man! Com um pontapé nas partes, seguido por uma cabeçada à Papillon, o boxeador se estende ao comprido.

A balbúrdia se torna geral. O maneta sai da cozinha em meu socorro e distribui golpes de bastão, usando o porrete que serve para fazer macarrão especial. Cuic chega com um longo garfo nos dentes e mergulha na confusão. Um vagabundo parisiense, aposentado dos bailes de gaita da Rua da Lappe, serve-se de uma cadeira como clava. Achando-se certamente desprotegida pela perda de sua calcinha, Indara se retira da batalha.

Conclusão: cinco americanos seriamente feridos na cabeça, outros com dois furos do garfo de Cuic em várias partes do corpo. Há sangue por todo lado. Um policial negro coloca-se à porta, para que ninguém saia. Felizmente, pois chega um jipe da polícia militar. Polainas brancas e bastão erguido, eles querem entrar à força e, vendo todos os seus marinheiros cheios de sangue, certamente têm intenção de vingá-los. O policial negro os repele, depois coloca o braço e o bastão atravessados na porta e diz: “Her Majesty Police” (Polícia de Sua Majestade).

Só quando chegam os policiais ingleses é que nos deixam sair e subir no tintureiro. Somos levados ao comissariado. Além de mim, que tenho o olho preto, nenhum de nós está ferido, o que faz com que não queiram acreditar em nossa legítima defesa.

Oito dias depois, no tribunal, o presidente aceita nossa tese e nos põe em liberdade, salvo Cuic, que pega três meses por pancadas e ferimentos. Era difícil encontrar uma explicação para os múltiplos furos duplos distribuídos em profusão por Cuic.

Como, para completar, em menos de quinze dias ele tivera seis encrencas, não podíamos mais apoiá-lo. Os marinheiros decidiram não considerar essa briga como terminada e, como há gente que vem todo dia com novidades, como saber se são amigos ou inimigos?

Portanto, vendemos o restaurante, pelo mesmo preço que havíamos pago. É verdade que, com a má fama que tinha adquirido, não havia fila de compradores.

– Que vamos fazer, maneta?

– Enquanto esperamos que Cuic saia, vamos descansar. Não podemos recuperar a carroça e o asno, porque os vendemos junto com a clientela. O melhor é não fazer nada, descansar. Depois, a gente vê.

Cuic saiu. Diz que foi bem tratado: “O único aborrecimento”, conta, “foi que fiquei perto de dois condenados à morte”. Ora, os ingleses têm um hábito sujo: avisam ao condenado, 45 dias antes da execução, que ele vai ser enforcado, numa corda bem alta e curta, a tal dia e tal hora, porque a rainha recusou sua graça. “Então”, conta Cuic, “todas as manhãs os condenados gritam um para o outro: ‘Um dia a menos, Johnny, só restam tantos dias!’ E o outro não parava de insultar seu cúmplice o dia inteiro.” Fora isso, Cuic estava tranqüilo e com boa aparência.

A CABANA DE BAMBU

Pascal Fosco desceu das minas de bauxita. É um dos homens que haviam tentado um ataque a mão armada contra o correio de Marselha. Seu cúmplice foi guilhotinado. Pascal é o melhor de todos nós. Bom mecânico, não ganha mais do que 4 dólares por dia; mas, mesmo com isso, sempre arranja um jeito de ajudar um ou dois forçados em dificuldades.

Essa mina de terra de alumínio fica bem longe, no mato. Uma cidadezinha se formou em torno do acampamento, onde vivem operários e engenheiros. No porto carrega-se sem cessar, o minério em numerosos cargueiros. Tenho uma idéia: por que não iríamos montar um cabaré naquele povoado perdido na mata? As pessoas de lá devem se aborrecer demais à noite.

– É verdade – me diz Fosco -, lá não há nenhuma distração. Lá não tem nada.

Indara, Cuic, o maneta e eu, alguns dias depois, estamos num barco, que em dois dias de navegação nos leva pelo rio até Mackenzie, nome da mina.

O acampamento dos engenheiros, dos chefes e dos operários especializados é limpo, claro, com casinhas confortáveis, todas munidas de tela metálica para proteger dos mosquitos. O povoado, em si, é uma nojeira. Nenhuma casa de tijolo, de pedra ou cimento. Nada mais do que taperas feitas de barro e bambus, tetos de folhas de palmeiras selvagens ou, as mais modernas, de folhas de zinco. Quatro bares horríveis regurgitam de clientes. Os marinheiros lutam para conseguir uma cerveja quente mesmo. Nenhum estabelecimento tem geladeira.

Pascal tem razão, há o que fazer nesse povoado. Afinal de contas, estou em fuga, é aventura, não posso viver normalmente como meus companheiros. Trabalhar para ganhar apenas o indispensável para viver, isso não me interessa.

Como as ruas ficam pegajosas de barro quando chove, escolho um lugar mais elevado, um tanto retirado do centro do povoado. Estou certo de que não vai ser inundado quando chover, nem por dentro, nem ao redor da construção que pretendo fazer.

Em dez dias, ajudados por carpinteiros negros que trabalham na mina, construímos uma sala retangular de 20 metros de comprimento por 8 de largura. Trinta mesas de quatro lugares permitirão que 120 pessoas se sentem comodamente. Um estrado onde se exibirão os artistas, um bar da largura da sala e uma dúzia de banquinhos altos. Ao lado do cabaré, uma outra construção com oito cômodos, onde poderão viver muito bem dezesseis pessoas.

Quando desci a Georgetown para comprar material, cadeiras, mesas, etc, contratei quatro jovens negras esplêndidas para atender aos clientes. Dava, que trabalhava no restaurante, resolveu ir conosco. Um coolie vai martelar o velho piano que aluguei. Falta o espetáculo.

Depois de muita confusão e blá-blá-blá, consegui convencer duas javanesas, uma portuguesa, uma chinesa e duas morenas a abandonarem a prostituição e a se tornarem artistas de strip-tease. Uma velha cortina vermelha comprada de um vendedor de bugigangas servirá para começar e encerrar o espetáculo.

Subo com todo mundo, numa viagem especial que um velho pescador chinês concorda em fazer para mim com sua barcaça. Uma casa de bebidas forneceu-me toda espécie imaginável de líquido a crédito. Confia em mim: pagarei a cada trinta dias, por tudo que for sendo vendido. Em compensação, ela me fornecerá as bebidas que forem necessárias. Um velho fonógrafo e discos usados darão a música quando o pianista parar de martirizar o piano. Toda espécie de vestidos, saias, meias pretas e coloridas, ligas, soutiens, ainda em bom estado e que escolhi, por suas cores berrantes, na casa de um hindu que havia recolhido dos despojos de um teatro ambulante, formarão o “guarda-roupa” de minhas futuras “artistas”.

Cuic comprou todo o material de madeira e o que era necessário aos quartos; Indara, os vidros e todo o necessário para um bar; eu. me encarrego das bebidas e cuido da parte artística. Para conseguir isso tudo em uma semana, foi preciso se virar. Enfim, está pronto, material e pessoas ocupam o barco todo.

Dois dias depois, chegamos ao acampamento. As dez moças produzem uma verdadeira revolução nesse povoado perdido no meio da mata. Cada um carregando um embrulho, subimos à “Cabana de Bambu”, nome que demos à nossa boate. Os ensaios começaram. Ensinar minhas “artistas” a se porem nuas em pelo não é coisa fácil. Primeiro, porque falo muito mal o inglês e minhas explicações não são bem compreendidas; depois, em toda a sua vida, elas se despiram depressa, para despachar logo o cliente. Ao passo que agora tudo é ao contrário: quanto mais lentamente elas o fazem, mais sexy é a coisa. Para cada moça há uma tática diferente a empregar. Esse modo de agir deve, também, aproveitar bem as roupas.

A marquesa de espartilho cor-de-rosa e vestido de crinolina, com grandes calças de rendas brancas, despe-se lentamente, escondida por um biombo, diante de um grande espelho no qual o público pode admirar pouco a pouco cada pedaço de carne que ela descobre.

Depois, há a Rápida, uma moça de ventre liso, morena, cor de café com leite muito claro, magnífico exemplar de sangues misturados, certamente filha de um branco com uma negra já clara. Sua tez de grão de café apenas dourada ao fogo faz sobressair suas formas perfeitamente bem equilibradas. Longos cabelos negros caem, naturalmente ondulados, pelas espáduas divinamente arredondadas. Seios cheios, altos e arrogantes, apesar de seu peso, dardejam duas pontas magníficas um pouquinho mais escuras do que a carne. Essa é a Rápida. Todas as peças de sua roupa abrem-se com zíper. Ela se apresenta em calças de vaqueiro, com um chapéu muito amplo na cabeça e uma blusa branca cujos punhos terminam por franjas de couro. Ao som de uma marcha guerreira, ela aparece em cena e se descalça, fazendo cada sapato voar do pé de cada vez. A calça se abre dos dois lados das pernas e cai de repente aos seus pés. A blusa se abre em dois pedaços, por um fecho de correr em cada braço.

Para o público, o golpe é violento, pois os seios nus aparecem como em cólera por terem estado fechados durante tanto tempo. Com as coxas e o busto nus, ela abre as pernas, olha o público bem de frente, tira o chapéu e joga-o a uma das primeiras mesas.

A Rápida não faz trejeitos, nem gestos de pudor para tirar as calcinhas. Desabotoa ao mesmo tempo os dois lados da pequena peça e mais a arranca do que retira. Em traje de Eva, seu sexo aveludado aparece e, no mesmo momento, uma outra moça lhe passa um enorme leque de plumas inteiramente aberto com o qual ela se esconde.

A Cabana de Bambu está cheia de rebentar no dia da inauguração. O estado-maior da mina está lá inteirinho. A noite termina com o pessoal dançando e o dia já vai alto quando os últimos clientes vão embora. É um verdadeiro sucesso, não se podia esperar melhor. Temos despesas, mas os preços são muito altos, isso compensa, e o cabaré em plena mata terá em muitas noites, acredito sinceramente, mais clientes do que espaço a oferecer.

Minhas quatro garçonetes negras não conseguem dar conta do serviço. Com vestidos muito curtos, decote bem aberto, um turbante vermelho na cabeça, também impressionaram de modo favorável a clientela. Indara e Daya supervisionam cada qual uma parte da sala. No bar, o maneta e Cuic cuidam de atender aos pedidos da sala. E eu, em toda parte, corrigindo o que está errado ou ajudando quem esteja atrapalhado.

– Eis um sucesso certo – diz Cuic, quando garçonetes, artistas e patrão se encontram finalmente sozinhos na grande sala.

Comemos todos juntos, como uma família, patrão e empregados, mortos de fadiga, mas felizes com o resultado. Todo mundo vai se deitar.

– Então, Papillon, você não vai levantar?

– Que horas são?

– Dezoito horas – me diz Cuic. – Sua princesa nos ajudou. Há duas horas que ela está de pé. Tudo está em ordem, pronto para recomeçar a noite.

Indara chega com uma bacia de água quente. Barbeado, lavado, fresco e disposto, eu a pego pela cintura e entramos na Cabana de Bambu, onde sou recebido por mil perguntas.

– Estava bem, boss?

– Eu me despi direitinho? Ou acha que não estava bem?

– Estou cantando certo? O que vale é que, felizmente, o público é fácil.

Essa nova equipe é verdadeiramente simpática. Essas putas transformadas em artistas levam o trabalho a sério e parecem felizes por terem deixado sua profissão anterior. O negócio vai bem, não se pode querer melhor. Apenas uma dificuldade: para tantos homens solitários, muito poucas mulheres. Todos os clientes queriam ficar acompanhados, se não a noite inteira, pelo menos algum tempo, por uma moça, principalmente uma artista. Isso desperta ciúmes. De vez em quando, por acaso, duas mulheres estão na mesma mesa e há protestos por parte dos clientes.

As negrinhas são também solicitadas, primeiro porque são bonitas e depois porque nesse mato não há mulheres. Por trás do bar, de vez em quando, Daya passa a servir e conversa com todos. Pouco mais de uma vintena de homens gozam da presença da hindu, realmente uma beleza rara.

Para evitar ciúmes e reclamações dos clientes para ter uma artista em sua mesa, instituí uma loteria. Depois de cada número de nu ou de canto, uma grande roda numerada de 1 a 32, um número por mesa e dois números para o bar, decide onde a moça deve ficar. Para participar da loteria, é preciso comprar um bilhete que custa o preço de uma garrafa de uísque ou de champanha.

Esta idéia (eu pensava) tem duas vantagens. Primeiro, evita qualquer reclamação. Quem ganha aproveita a companhia da boneca durante uma hora em sua mesa, pelo preço da garrafa de bebida que é servida da seguinte maneira: enquanto a artista, completamente nua, é escondida pelo imenso leque, faz-se girar a roda. Quando sai o número, a moça sobe a um grande prato de madeira pintado de cor de prata, quatro rapazes o erguem e levam-no à feliz mesa ganhadora. Ela mesma abre o champanha, toma um gole, sempre nua, desculpa-se e, cinco minutos depois, vai sentar-se, de novo vestida.

Durante seis meses, tudo correu bem, mas a estação de chuvas passou e chegou uma clientela nova. São os catadores de ouro e diamantes que vasculham livremente esta terra tão rica de aluviões. Procurar ouro e brilhantes com meios arcaicos é excessivamente duro. Assim, todo mundo anda armado e, quando têm um saquinho de ouro ou um punhado de brilhantes, os caras não resistem à tentação de gastá-los loucamente. As moças, em cada garrafa, recebem uma grande porcentagem. Daí, beijando o cliente, elas derramarem no balde de gelo o champanha ou uísque, para que a garrafa acabe mais depressa. Alguns, apesar do álcool ingerido, percebem a coisa e suas reações são tão brutais, que fui obrigado a mandar pregar mesas e cadeiras.

Com a nova clientela, aconteceu o que tinha de acontecer. A gente chamava uma das moças de “Flor de Canela”. Efetivamente, sua pele tinha a cor da canela. Essa nova boneca, que tirei dos antros de Georgetown, deixava os clientes completamente loucos com seu modo de se despir.

Quando era sua vez de entrar, trazíamos um canapé de cetim branco para o palco e não apenas ela se punha em pelo com uma ciência perversa pouco comum, mas também, depois de ficar nua como um verme, deitava-se no canapé e acariciava a si mesma. Seus longos dedos afilados deslizavam por toda a carne nua, brincando com o próprio corpo, dos cabelos às pontas dos pés. Nenhuma parte escapava às suas apalpadelas. Inútil dizer qual era a reação desses homens, frustrados pela mata e cheios de álcool.

Como era muito interesseira, ela exigira que, para participar de sua loteria, os jogadores deveriam pagar o preço de duas garrafas de champanha e não só de uma, como faziam para as outras. Depois de jogar inutilmente várias vezes, tentando a sorte e se esforçando por ganhar Flor de Canela, um mineiro atarracado, portador de uma barba negra bem espessa, não encontrou outro jeito, quando minha hindu passou vendendo os números do último strip de Flor de Canela, senão o de comprar os trinta números da sala. Só restaram, portanto, os dois números do bar.

Certo de ganhar, depois de ter pago as sessenta garrafas de champanha, o barbudo esperava, confiante, o desnudamento de Flor de Canela e a extração da loteria. Flor de Canela estava muito excitada, por ter bebido muito nessa noite. Eram 4 horas da manhã quando começou sua última apresentação. Com a ajuda do álcool, ela foi mais sensual do que nunca e seus gestos ainda mais ousados do que de costume. Rrrrran! Fizemos girar a roleta, que, com seu pequeno indicador de chifre, vai mostrar o ganhador.

O barbudo baba de excitação, depois de ter visto a exibição da boneca Flor de Canela. Espera, está certo de que ela vai lhe ser servida, em pêlo, sobre o prato prateado, coberta com o famoso leque de plumas e, entre suas magníficas coxas, as duas garrafas de champanha. Catástrofe! O cara dos trinta números perde. É o 31 que ganha; é o bar, portanto. Primeiro, ele não entende bem a tragédia e só percebe completamente quando vê a artista ser erguida e colocada no balcão. Então, o barbudo fica louco, derruba a mesa que está à sua frente e em dois saltos está no bar. Sacar o revólver e dar três tiros na moça foi coisa que não durou três segundos.

Flor de Canela morreu em meus braços. Eu a pegara depois de pôr aquele animal a dormir com um golpe de cassetete da polícia americana, que trago sempre comigo. Por estar repreendendo uma garçonete, por causa da sua bandeja, me atrasei na minha intervenção, o que deu tempo para o animal cometer a loucura. Resultado: a polícia fechou a Cabana de Bambu e voltamos para Georgetown.

Eis-nos de novo em nossa casa. Indara, como uma verdadeira hindu, fatalista, não muda de caráter. Para ela, essa ruína não tem nenhuma importância. A gente faz outra coisa, é tudo. Os chineses, do mesmo jeito. Nada muda em nosso harmonioso grupo. Nem uma reprovação por minha idéia barroca de tirar as moças na sorte, idéia que, no entanto, foi a causa do nosso fracasso. Com nossas economias, depois de ter pago escrupulosamente todas as nossas dívidas e dar uma soma em dinheiro à mãe de Flor de Canela, não ficamos de mau humor. Todas as noites, vamos ao bar onde os forçados se reúnem. Passamos noites encantadoras, mas Georgetown, por causa das restrições da guerra, começa a me cansar. Quanto ao mais, minha princesa nunca foi ciumenta e eu sempre tive toda liberdade. Mas, agora, ela não me larga um só instante e fica horas sentada a meu lado, em qualquer lugar onde eu esteja.

As probabilidades de comerciar em Georgetown se complicam. Assim, um belo dia, sinto vontade de partir da Guiana Inglesa para outro país. Não é nada arriscado, há a guerra. Nenhum país nos devolverá, pelo menos é o que suponho.

FUGA DE GEORGETOWN

Guittou está de acordo. Ele também acha que devem existir países melhores e mais fáceis de se viver do que a Guiana Inglesa. Começamos a preparar uma fuga. De fato, sair da Guiana Inglesa é um delito muito grave. Estamos em tempo de guerra e nenhum de nós tem passaporte.

Chapar, que se evadiu de Caiena depois de ser desinternado, está aqui há três meses. Trabalha, por 1 dólar e 50 por dia, fazendo doces numa confeitaria chinesa. Ele também quer ir embora de Georgetown. Um forçado de Dijon, Deplanque, e um bordelês também são candidatos à fuga. Cuic e o maneta preferem ficar. Sentem-se bem aqui.

Como a saída do Demerara é extremamente vigiada e está sob o fogo dos ninhos de metralhadoras, dos lança-torpedos e de canhões, copiaremos exatamente um barco de pesca inscrito em Georgetown e sairemos, fazendo-nos passar por ele. Eu me recrimino por não ter reconhecimento para com Indara e não corresponder como deveria ao seu amor total. Mas não posso fazer nada, ela se gruda tanto a mim, que isso me irrita; agora, ela me enerva. Os seres simples, claros e sem inibições em seus desejos, não esperam que a pessoa que amam os solicite para fazer amor. Essa hindu reage exatamente como as irmãs índias de Guajira. No momento em que sentem vontade de se expandir, oferecem-se e, se a gente não as toma, a ofensa é muito grave. Uma dor verdadeira e tenaz germina no mais profundo de meu eu e isso me irrita, pois, mais do que às irmãs índias, não quero fazer Indara sofrer e tenho que me esforçar para que ela goze o mais possível em meus braços.

Ontem, assisti à coisa mais linda que se pode ver, do ponto de vista mímico, como expressão do que a gente sente. Na Guiana Inglesa existe uma espécie de escravatura moderna. Os javaneses vêm trabalhar nas plantações de algodão, de cana-de-açúcar ou de cacau com contratos de cinco e dez anos. O marido e a mulher são obrigados a sair todos os dias para o trabalho, a menos que estejam doentes. Quando o médico não os considera doentes, eles têm que dar um mês de trabalho suplementar ao fim do contrato. E outros meses se acrescentam, ainda, por delitos menores. Como todos são jogadores, endividam-se até o pescoço na plantação e, para pagar seus credores, assinam, para receber um prêmio, um prolongamento de um ou vários anos.

Praticamente, não saem mais. Para eles, que são capazes de apostar suas mulheres e cumprir escrupulosamente a palavra, uma só coisa é sagrada: os filhos. Fazem tudo para mantê-los frees (livres). Passam as maiores dificuldades e privações, mas muito raramente um de seus filhos assina um contrato com a plantação.

Pois bem, hoje é o casamento de uma moça hindu. Todo mundo está vestido com mantos compridos: as mulheres de voal branco e os homens com túnicas brancas que descem até os pés. Muitas flores de laranjeira. A cena, depois de várias cerimônias religiosas, desenrola-se no momento em que o noivo vai levar sua mulher. Os convidados ficam à esquerda e à direita da porta da casa. De um lado, mulheres; do outro, homens. Sentados na soleira da porta aberta, o pai e a mãe. Os noivos beijam seus parentes e passam entre as duas fileiras, que têm alguns metros de comprimento. De repente, a noiva escapa do braço do marido e corre para sua mãe. A mamãe tapa os olhos com uma das mãos e com a outra manda-a de volta ao marido.

Este estende os braços e chama, ela faz gestos com os quais demonstra que não sabe o que fazer. Sua mãe deu-lhe a vida e, muito bem, ela representa uma criança saindo do ventre de sua mãe. Depois, a mãe lhe deu o seio. Ela vai esquecer isso tudo para seguir o homem que ama? Talvez, mas não seja apressado, diz ela com gestos, espere mais um pouco, deixe-me contemplar ainda estes pais tão bons que, até eu encontrar você, foram a razão de minha vida.

Então, ele também faz mímica, com a qual faz compreender que a vida exige que ela seja, também, esposa e mãe. Tudo isso ao som de cantos de jovens e rapazes que lhes respondem. Por fim, depois de ter escapado mais uma vez dos braços do marido, é ela própria quem dá alguns passos, correndo, salta nos braços do marido, que a leva bem depressa para a carroça, com guirlandas de flores, que os espera.

A fuga é minuciosamente preparada. Um barco grande e comprido, com uma boa vela, uma bujarrona e um leme de primeira qualidade, são preparados com precauções para que a polícia não perceba.

No rio Penitence, o riozinho que desemboca no grande rio, o Demerara, escondemos o barco num trecho que passa pelo nosso bairro. Está exatamente pintado e numerado como um barco de pesca de chineses matriculado em Georgetown. Iluminada pelos faróis, apenas a tripulação é diferente. Para dar bem a impressão que queremos, não podemos ficar de pé, pois os chineses do barco copiado são pequenos e magros, nós somos altos e fortes.

Tudo se passa sem maiores complicações e saímos calmamente do Demerara para entrar no mar. Apesar da alegria de termos saído e de termos evitado o perigo de sermos descobertos, uma só coisa me impede de saborear completamente esse êxito: é o fato de ter partido como um ladrão, sem ter avisado minha princesa hindu. Não estou contente comigo mesmo. Ela, seu pai e sua raça não me fizeram mais do que o bem e em troca eu lhes paguei com o mal. Não procuro encontrar argumentos para justificar minha conduta. Acho que é pouco elegante o que fiz e não estou nada contente comigo. Ostensivamente, deixei 600 dólares em cima da mesa, mas o dinheiro não paga essas coisas recebidas.

Devemos navegar durante 48 horas na direção norte-norte. Retomando minha antiga idéia, quero ir para as Honduras britânica. Para isso, teremos que pegar dois dias em alto-mar.

A fuga é formada por cinco homens: Guittou, Chapar, Barrière (um bordelês), Deplanque (um cara de Dijon) e eu, Papillon, capitão, responsável pela navegação.

Mal completamos trinta horas de mar, somos apanhados por uma tempestade espantosa, seguida de uma espécie de tufão, um ciclone. Relâmpagos, trovões, chuva, vagalhões enormes e desordenados, vento de furacão turbilhonando no mar levam-nos, sem que possamos resistir, numa louca e dramática cavalgada sobre um mar que eu jamais havia visto ou imaginado. Pela primeira vez, em minha experiência, os ventos giram mudando de direção, ao ponto de os alísios serem completamente anulados, e a tormenta nos fazer valsar em direção oposta. Se isso durasse oito dias, voltaríamos aos trabalhos forçados nas ilhas.

Esse tufão, aliás, foi memorável, eu soube depois em Trinidad, pelo Sr. Agostini, o cônsul francês. O tufão derrubou mais de 6 000 coqueiros da sua plantação. Esse tufão em forma de verruma serrou, completamente, os coqueiros à altura de um homem. Casas foram arrancadas e levadas pelos ares para muito longe, caindo na terra ou no mar. Perdemos tudo: víveres e bagagens, assim como os tonéis de água. O mastro se quebrou, ficando com menos de 2 metros, sem vela, e, o mais grave, o leme se quebrou. Por milagre, Chapar salvou um pequeno remo e é com esse pequeno pau que tento dirigir o barco. Para completar, ficamos todos nus em pêlo para confeccionarmos uma espécie de vela. Usamos tudo, paletós, calças e camisas. Nós cinco estamos de cuecas. Essa vela, fabricada com nossas roupas e costurada com um rolinho de arame que havia a bordo, quase nos permite navegar com o mastro quebrado.

Os ventos alísios retomaram seu curso e aproveito para tentar ir direto ao sul, para alcançar não importa que terra, até mesmo a Guiana Inglesa. A condenação que nos espera por lá será bem-vinda. Meus camaradas se comportaram dignamente durante e depois, eu não diria mais essa tempestade, pois não seria o bastante, mas sim esse cataclismo, esse dilúvio, esse ciclone, melhor.

É somente no fim de seis dias, dos quais dois de completa calmaria, que vemos terra. Com o pedaço de vela que o vento enfuna, apesar dos furos, não podemos navegar exatamente como queremos. O pequeno remo não é suficiente para dirigir firmemente a embarcação. Estando em pêlo, temos queimaduras ardentes em todo corpo, o que diminui nossa força para lutar. Nenhum de nós tem pele sobre o nariz, os narizes estão em carne viva. Os lábios, os pés, as entrecoxas e as coxas também estão com a carne completamente à mostra. A sede nos atormenta a tal ponto, que Deplanque e Chapar chegaram a beber água salgada. Depois dessa experiência sofrem mais ainda. Há, apesar da sede e da fome que nos atazanam, algo de bom: ninguém, absolutamente ninguém, se queixa. Nenhum de nós jamais dá um conselho a outro. O que quer beber água salgada, o que joga água do mar em seu corpo, dizendo que isso refresca, logo percebe sozinho que a água salgada abre chagas e queima ainda mais pela evaporação.

Sou o único a ter os olhos completamente abertos e sãos, todos os meus camaradas estão com os olhos cheios de pus, que se colam constantemente. Os olhos precisam ser lavados, custe o que custar, apesar da dor, porque faz bem abrir os olhos e enxergar direito. Um sol de chumbo nos ataca as queimaduras com tal intensidade, que é quase irresistível. Deplanque, meio louco, fala em se atirar na água.

Há mais de uma hora me parecia distinguir terra no horizonte. Bem entendido, eu me dirigi imediatamente para ela sem dizer nada, pois não tinha certeza. Pássaros chegam e voam ao nosso redor; portanto, não me enganei. Seus gritos advertem meus camaradas, que, embrutecidos pelo sol e pela fadiga, deitaram-se no fundo do barco, protegendo o rosto do sol com os braços.

Guittou, depois de enxaguar a boca para conseguir fazer sair algum som, me diz:

– Está vendo terra, Papi?

– Estou.

– Em quanto tempo acha que podemos chegar?

– Cinco ou sete horas. Escutem, meus amigos, eu não posso mais. Além das mesmas queimaduras que vocês, estou com as nádegas em carne viva por causa do atrito na madeira do banco e por causa da água do mar. O vento não está muito forte, estamos avançando tão lentamente, que meus braços têm cãibras constantemente e minhas mãos estão adormecidas de apertar durante tanto tempo o remo que nos serve de leme. Querem aceitar uma coisa? Vamos retirar a vela e estendê-la sobre o barco, para nos abrigarmos desse sol de fogo até a noite. O barco irá à deriva, sozinho, para a terra. É preciso fazer isso, a menos que algum de vocês queira tomar meu lugar ao leme.

– Não, não, Papi. Vamos fazer isso e dormir todos, menos um, à sombra da vela.

É ao sol, às 13 horas, que faço tomarem essa decisão. Com uma satisfação animal, deito-me no fundo do barco, enfim à sombra. Meus camaradas cederam-me o melhor lugar para que, na frente, eu possa receber o ar de fora. O que está de guarda fica sentado, mas abrigado à sombra da vela. Todo mundo, mesmo o homem de guarda, mergulha rapidamente no nada. Rendidos de fadiga e gozando essa sombra que enfim nos permite escapar ao sol inexorável, adormecemos.

Um berro de sirena acorda todo mundo de repente. Afasto a vela, é noite lá fora. Que horas podem ser? Quando me sento em meu lugar, ao leme, uma brisa fresca acaricia todo meu pobre corpo pelado e imediatamente sinto frio. Mas que sensação de bem-estar não ser queimado!

Erguemos a vela. Depois de ter limpado os olhos com água do mar – felizmente, só um deles é que está ardendo e supurado -, vejo terra nitidamente à minha direita e à minha esquerda. Onde estamos? Para qual das duas devo me dirigir? Mais uma vez, ouve-se o uivo da sirena. Compreendo que o sinal vem da terra da direita. Que diabo quer dizer?

– Onde você acha que estamos, Papi? – diz Chapar.

– Francamente, não sei. Se essa terra não for isolada e se isso for um golfo, talvez estejamos na ponta da Guiana Inglesa, a parte que vai do Orinoco (grande rio da Venezuela, que faz fronteira). Mas, se a terra da direita é cortada por uma grande distância da que está à esquerda, então esta terra é uma ilha e é Trinidad. À esquerda seria a Venezuela, portanto estaríamos no golfo de Paria.

Minhas lembranças das cartas marítimas, que tive ocasião de estudar, dão-me essa alternativa. Se é Trinidad à direita e Venezuela à esquerda, qual das duas vamos escolher? Essa decisão põe o nosso destino em jogo. Não vai ser muito difícil, por causa desse gostoso vento fresco, nos dirigirmos para a costa. Por enquanto, não vamos nem para uma, nem para outra. Em Trinidad estão os rosbifes, mesmo governo da Guiana Inglesa.

– Temos certeza de sermos bem tratados – diz Guittou.

– Sim, mas que decisão vão tomar por termos deixado, em tempo de guerra, seu território sem autorização e clandestinamente?

– E a Venezuela?

– Não sabemos como é por lá – diz Deplanque. – Na época do Presidente Gómez, os forçados eram obrigados a trabalhar nas estradas em condições extremamente penosas, depois eram devolvidos à França.

– Sim, mas agora não é assim. Estamos em guerra.

– Eles, segundo o que ouvi dizer em Georgetown, não estão em guerra, são neutros.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Então é perigoso para nós.

Distinguimos luzes na terra da direita e também na da esquerda. Mais uma vez a sirena, que desta vez dá três uivos em seguida. Sinais luminosos aparecem na costa da direita. A lua acaba de sair, está bastante longe de nós, mas em nossa trajetória. Em frente, dois imensos rochedos negros e pontudos emergem do mar, muito altos. Deve ser esse o motivo da sirena: avisam-nos de que é perigoso.

– Olhe, bóias flutuantes! Há uma porção delas. Por que não esperamos o dia agarrados a uma delas? Baixe a vela, Chapar.

Ele desce imediatamente aqueles trapos de calças e camisas que pretensiosamente eu chamo de vela. Contendo o barco com o remo, amarro a uma das bóias a ponta da embarcação que, felizmente, ficou com um bom pedaço de corda pendurado no gancho, um pedaço que o tufão não conseguiu arrancar. Pronto, estamos amarrados. Não diretamente nessa estranha bóia, porque ela não tem nada em que possa ser amarrada a corda, mas ao cabo que a liga a outra bóia. Estamos bem amarrados ao cabo dessa delimitação de um canal, sem dúvida. Sem nos preocuparmos com os uivos que a costa da direita continua a emitir, deitamo-nos todos no fundo do barco, cobertos com a vela, para nos protegermos do vento. Um doce calor invade-me o corpo transido pelo frio e o frescor da noite e certamente sou um dos primeiros a começar a roncar.

O dia é claro quando acordo. O sol está saindo de sua cama, o mar está um pouco agitado e seu azul-verde indica que o fundo é de coral.

– Que vamos fazer? Decidimos ir à terra? Estou morrendo de fome e sede.

É a primeira vez que alguém se queixa depois desses dias de jejum, exatamente sete dias, hoje.

– Estamos tão perto da terra, que não vai ser difícil alcançá-la – foi Chapar que falou.

Sentado em meu lugar, vejo claramente diante de mim, depois dos dois rochedos que surgem no mar, a fratura da terra. Portanto, à direita é Trinidad, à esquerda a Venezuela. Sem nenhuma dúvida, estamos no golfo de Paria e, se a água está azul e não amarelada pelos aluviões do Orinoco, é porque estamos na corrente do canal que passa entre os dois países e se dirige para o largo.

– Que vamos fazer? É melhor voltarmos, pois é muito grave a decisão que vamos tomar. À direita, a ilha inglesa de Trinidad; à esquerda, a Venezuela. Por força das condições do barco e do nosso estado físico, temos que ir o mais depressa possível para a terra. Há dois liberados entre nós: Guittou e Corbière. Nós três, Chapar, Deplanque e eu, estamos numa situação mais perigosa. Cabe a nós decidirmos. Que dizem?

– O mais certo é ir para Trinidad. A Venezuela é o desconhecido.

– Não temos necessidade de tomar decisões. Essa lancha que vem chegando vai decidir por nós – diz Deplanque.

Uma lancha, de fato, avança rapidamente para nós. Lá está, pára a mais de 50 metros. Um homem pega um alto-falante. Percebo uma bandeira que não é inglesa. Cheia de estrelas, muito bonita, eu nunca vi essa bandeira em minha vida. Mais tarde, essa bandeira vai ser a “minha bandeira”, a da minha nova pátria, para mim, o símbolo mais emocionante, o de ter, como todo homem normal, reunidas num pedaço de pano, as qualidades mais nobres de um grande povo, meu povo.

– Quién sois vosotros? (Quem são vocês?)

– Somos franceses.

– Están locos? (Estão loucos?)

– Por quê?

– Porque son amarrados a minas. (Porque estão amarrados a minas.)

– É por isso que não se aproximam?

– Sim. Desamarrem, depressa.

– Pronto.

– Em três segundos, Chapar desfaz o nó da corda. Estávamos nem mais, nem menos, amarrados a uma cadeia de minas flutuantes. Um milagre não termos saltado pelos ares, explica-me o comandante da lancha à qual somos amarrados. Sem subir a bordo, a tripulação nos passa café, leite quente bem açucarado, cigarros.

– Vão para a Venezuela, serão bem tratados, eu lhes asseguro. Não podemos rebocá-los para terra porque temos que ir buscar com urgência um homem gravemente ferido no farol de Barimas. Principalmente, não tentem ir a Trinidad, pois há nove chances em dez que vocês choquem em uma mina, e então…

Depois de um “Adiós, buena suerte” (Adeus, boa sorte), a lancha vai embora. Deixaram-nos 3 litros de leite. Arranjamos a vela. Já às 10 horas da manhã, o estômago quase estourando por causa do café com leite, um cigarro à boca, sem tomar nenhuma precaução, dirijo-me para a areia do fim de uma praia, onde umas cinqüenta pessoas reunidas esperavam para ver quem chegava na estranha embarcação, encimada por um mastro quebrado e uma vela de camisas, calças e paletós.