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Foi um trompaço tão forte, que só me levantei da queda treze anos mais tarde. Com efeito, não foi um bofetão comum. Para desfechá-lo foi preciso se juntar muita gente
É o dia 26 de outubro de 1932. Tiraram-me às 8 da manhã da cela que ocupo faz um ano na prisão da Conciergerie. Estou barbeado, com boa cara, vestindo meu terno cortado por um bom alfaiate. Camisa branca e gravata borboleta azul-pálido dão o último toque de elegância à minha roupa.
Tenho 25 anos, mas aparento apenas vinte. Os guardas, um tanto impressionados pela minha figura de gentleman, tratam-me cortesmente. Tiraram-me até as algemas. Estamos todos os seis, cinco guardas mais eu, sentados em dois bancos numa sala nua. À nossa frente, uma porta que deve comunicar com a sala do tribunal do júri, pois estamos no Palácio da Justiça do Departamento do Sena, em Paris.
Dentro de alguns instantes, serei julgado por homicídio. Meu advogado, Raymond Hubert, veio cumprimentar-me: “Não há qualquer prova contra você, tenho confiança, seremos absolvidos”. Acho graça nesse “seremos”. Como se ele, o Dr. Hubert, fosse comparecer perante o tribunal como culpado e, se houvesse condenação, também tivesse que sofrê-la.
Um porteiro abre a porta e nos faz passar. Pelos dois batentes escancarados, enquadrado pelos quatro guardas e o sargento, penetro numa sala imensa. Para me aplicar a bofetada, eles cobriram tudo de pano vermelho-sangue: tapetes, cortinas nas altas janelas e até mesmo os magistrados que logo mais vão-me julgar.
– Senhores, a corte!
De uma porta à direita surgem, um após outro, seis homens: o presidente, acompanhado de cinco magistrados. Na poltrona central fica o presidente, à direita e à esquerda estão seus assessores.
Silêncio impressionante na sala. Todos estão de pé. Os juizes se sentam e todo mundo faz o mesmo.
O presidente, sujeito bochechudo e corado, aparência austera, me fixa os olhos sem deixar transparecer qualquer sentimento. Chama-se Bevin. A seguir, ele vai começar a dirigir os debates com imparcialidade e, pela sua atitude, fará todos compreenderem que ele, magistrado de carreira, não está muito convencido da sinceridade das testemunhas e dos policiais. Não, ele não terá responsabilidade alguma no bofetão; será apenas o encarregado de desfechá-lo.
O promotor é o Dr. Pradel, um promotor muito temido por todos os advogados da Vara Criminal. Goza da triste fama de ser o maior fornecedor de carne humana para a guilhotina e as penitenciárias da França e do Ultramar.
Pradel representa a vindita pública. É o acusador oficial e nada tem de humano. Simboliza a Lei; é ele quem maneja a Balança e faz sempre o possível para que ela se incline para o seu lado. Com seus olhos de abutre e abaixando um pouco as pálpebras, olha intensamente para mim, de todas as suas alturas. Primeiro, a altura da poltrona, que o coloca mais alto que eu; depois, a da sua própria estatura, 1 metro e 80 pelo menos, ostentada com arrogância. Não tira seu manto vermelho, mas coloca o chapéu sobre a mesa, na qual apóia as duas mãos enormes como pás de bater roupa. Uma aliança indica que é casado e, no dedinho, à guisa de anel, traz um cravo de ferradura polido e brilhante.
Inclina-se um pouco sobre mim para melhor me dominar. Parece estar dizendo:
“Meu velho, se você pensa que pode escapar, está muito enganado. Não percebe que as minhas mãos são garras e as unhas que vão despedaçá-lo estão muito bem implantadas em minha alma. E, se sou temido por todos os advogados e cotado na magistratura como promotor perigoso, é porque jamais deixo escapar minha presa.
“Não quero saber se você é culpado ou inocente, quero apenas utilizar tudo o que existe contra você: sua vida boêmia em Montmartre, os testemunhos forçados pela polícia e as declarações dos próprios policiais. Com esse monte de sujeiras acumulado pelo juiz de instrução, tenho que pintar seu retrato tão repelente, que os jurados o farão desaparecer da sociedade.”
Parece que o estou ouvindo falar nitidamente, salvo se eu estiver sonhando, pois sinto-me verdadeiramente impressionado por esse devorador de homens:
“Deixe que eu o conduza, acusado, e sobretudo não procure se defender: eu o levarei pelo ‘caminho da podridão’.
“E espero que não acredite na benevolência dos jurados. Não se iluda, esses doze homens nada conhecem da vida.
“Olhe para eles, alinhados à sua frente. Olhe para esses doze patetas que Paris importou de afastadas vilas da província. São pequenos-burgueses, aposentados, comerciantes. Não adianta descrevê-los melhor. Não vai querer que eles compreendam os 25 anos que você tem e a vida que você leva em Montmartre. Para eles, Pigalle e a Place Blanche são o inferno e todas as pessoas que vivem à noite são inimigas da sociedade. Estão orgulhosos por serem jurados no tribunal do Sena. Além disso, garanto que se sentem frustrados pela vida que levam como pequenos burgueses.
“E você aí, jovem e bonito, pode ficar sabendo que não vou ter escrúpulos em pintá-lo como um Don Juan noturno de Montmartre. Assim, logo de saída, transformarei esses jurados em inimigos seus. Você está muito bem vestido, deveria ter vindo com roupas esfarrapadas. Foi um grande erro de tática. Não vê que eles têm inveja da sua roupa? Eles sempre usaram roupas feitas e jamais se viram vestidos por um alfaiate, nem mesmo em sonhos”.
São 10 horas e os debates se abrem. Na minha frente, seis magistrados, entre eles um promotor agressivo, que utilizará todo o seu poder maquiavélico, toda a sua inteligência, para convencer aqueles doze palhaços de que sou culpado e que o veredicto só pode ser a prisão perpétua ou a guilhotina.
Vou ser julgado pela morte de um protetor de batotas, rufião e dedo-duro da boca do lixo de Montmartre. Não há prova alguma, mas os policiais – promovidos a cada vez que descobrem o autor de um delito – vão sustentar que sou eu o culpado. Não tendo provas, vão jurar que possuem informações “confidenciais”, que não deixam qualquer dúvida. Uma testemunha preparada por eles, verdadeiro disco gravado na Chefatura de Polícia, um homem chamado Polein, será a peça mais eficiente da acusação. Como sustento que não o conheço, o presidente, em dado momento, me pergunta, muito imparcialmente:
– Você diz que a testemunha está mentindo. Muito bem. Mas por que estaria mentindo?
– Senhor presidente, se eu passo noites sem dormir desde que fui preso, não é de remorso pelo assassínio de Roland le Petit, pois não fui eu. É justamente porque eu procuro saber o motivo que levou essa testemunha a ficar tão encarniçadamente contra mim. Cada vez que a acusação fraquejava, ele vinha com novos elementos para reforçá-la. Cheguei à conclusão, senhor presidente, de que a polícia o pegou num flagrante muito sério e que fez um acordo com ele: “Vamos esquecer o caso, mas você tem que acusar o Papillon”.
Nem eu podia imaginar como estava certo, pois Polein, apresentado no tribunal como homem honesto e de folha limpa, foi preso e condenado alguns anos mais tarde por tráfico de cocaína.
O advogado Hubert procura defender-me mas não está à altura do promotor. Somente o Dr. Bouffay consegue, graças à sua calorosa indignação, manter em xeque por alguns instantes o promotor. Infelizmente, isso dura pouco e a habilidade de Pradel leva a melhor nesse duelo. Além disso, ele adula os jurados, já cheios de orgulho por estarem sendo tratados, por aquele impressionante personagem, como iguais e colaboradores.
Às 11 horas da noite termina a partida de xadrez. Meus defensores estão em xeque-mate. Eu, inocente, sou condenado.
A sociedade francesa, representada pelo promotor geral Pradel, acaba de eliminar, por toda a vida, um moço de 25 anos. E sem qualquer constrangimento. O prato bem cheio me é apresentado pela voz fria do presidente Bevin.
– Acusado, levante-se.
Levanto-me. Silêncio total no recinto, respirações suspensas. Meu coração bate um pouco mais depressa. Os jurados olham para mim ou abaixam a cabeça; parecem estar envergonhados.
– Acusado, já que os jurados responderam “sim” a todas as perguntas menos uma, a da premeditação, você está condenado à pena de prisão perpétua com trabalhos forçados. Tem alguma coisa a dizer?
Mantenho-me calmo, minha atitude é normal, apenas aperto com mais força a barra do banco dos réus.
– Sim, senhor presidente, tenho a dizer que sou inocente e que sou vítima de uma trama policial.
Do canto das senhoras elegantes, convidadas, de categoria, sentadas atrás da corte, chega um murmúrio aos meus ouvidos. Exclamo, em voz controlada:
– Silêncio, mulheres cheias de jóias que vêm aqui para gozar emoções mórbidas. A farsa terminou. Um homicídio foi solucionado pela sua polícia e sua Justiça; vocês, então, devem estar satisfeitas!
– Guardas – diz o presidente -, levem o condenado.
Antes de sumir, ouço uma voz que grita:
– Não ligue, meu homem, eu irei lá buscar você.
É a minha Nénette, boa e valente, que reafirma o seu amor.
Os homens do meu ambiente que estão na sala aplaudem. Eles conhecem muito bem a história desse caso e assim demonstram que estão orgulhosos de mim por eu não ter “dado o serviço” nem denunciado ninguém.
De volta à sala onde nos achávamos antes do início dos debates, os guardas colocam-me as algemas e um deles ajusta uma corrente entre o meu pulso direito e o seu pulso esquerdo. Nem uma palavra. Peço um cigarro. O sargento me dá um. Cada vez que o ponho ou tiro da boca, o guarda tem de levantar ou abaixar o braço, para acompanhar o movimento.
Fumo, de pé, mais ou menos os três quartos do cigarro. Ninguém diz nada. Eu é que olho para o sargento e digo: “Vamos”.
Descendo as escadas, escoltado por uns doze guardas, chego ao pátio interno do Palácio. A “viúva alegre” lá está à nossa espera. Não tem divisões internas. Todos se sentam juntos nós bancos, mais ou menos dez pessoas. O sargento dá a ordem: “Conciergerie”.
Quando chegamos ao último castelo, que foi de Maria Antonieta, os guardas me entregam ao chefe da guarda, que passa recibo. Vão embora sem dizer nada, mas antes, para minha surpresa, o sargento me aperta as duas mãos algemadas.
O guarda-chefe pergunta:
– Quanto te lascaram?
– Prisão perpétua.
– Não é possível!
Olha para os guardas e compreende que é verdade. Esse carcereiro de cinqüenta anos, que viu tantas coisas e conhece muito bem o meu caso, me diz estas boas palavras:
– Olhe, que sujos! Mas eles estão loucos!
Com bons modos, tira-me as algemas e tem a gentileza de levar-me pessoalmente a uma cela de paredes estofadas, especialmente preparada para os condenados à morte, os loucos, os muito perigosos ou os condenados à prisão perpétua.
– Coragem, Papillon -, diz ele, fechando a porta atrás de mim. – Vou mandar algumas roupas e a comida que você tinha na outra cela. Coragem!
– Obrigado, chefe. Creia, tenho coragem e acho que minha prisão perpétua ficará atravessada na garganta deles.
Alguns minutos depois, ouço um arranhado na porta.
– O que é?
Uma voz responde:
– Não é nada. Estou só pendurando um cartão.
– Por quê? O que está escrito nele?
– “Trabalhos forçados perpétuos. Vigiar atentamente.”
Eu penso: “Eles são mesmo loucos. Acreditam, por acaso, que o choque da avalancha que caiu sobre minha cabeça pode me perturbar e me levar ao suicídio? Sou e serei corajoso. Lutarei contra tudo e contra todos. A partir de amanhã começarei a agir”.
Na manhã seguinte, tomando meu café, perguntei a mim mesmo: “Vou apelar? Por quê? Terei mais sorte diante de outro tribunal? E quanto tempo vou perder com isso? Um ano, talvez dezoito meses… e para quê? Para receber vinte anos em vez da perpétua?”
Como estou bem decidido a escapar, o prazo não importa. Lembro-me da frase de um condenado que perguntou ao presidente do tribunal: “Doutor, quanto tempo dura a prisão perpétua na França?”
Caminho sem parar em volta da minha cela. Mandei um telegrama à minha mulher para consolá-la, e outro a uma irmã que procurou defender-me, sozinha, contra todos.
Cai o pano, é o fim da peça. Os meus devem estar sofrendo mais do que eu, e meu pobre pai, no fundo da sua província, deve sofrer muito para carregar uma cruz tão pesada.
Tenho um sobressalto: mas afinal, eu sou inocente! Sou, mas para quem? Sim, para quem sou inocente? Digo para mim mesmo: “Sobretudo, nunca se divirta contando que é inocente, todo mundo iria dar risada. Pegar prisão perpétua por causa de um rufião e, ainda por cima dizer que foi outro quem o matou, seria muito gozado! O melhor é calar a boca”.
Como jamais durante a minha prisão preventiva, tanto na Santé como na Conciergerie, eu tinha imaginado receber uma condenação tão pesada, nunca tinha me preocupado em saber o que poderia ser o “caminho da podridão”.
Muito bem. A primeira coisa a fazer: entrar em contato com homens já condenados, capazes, no futuro, de serem companheiros de fuga.
Escolhi um sujeito de Marselha, chamado Dega. Iria certamente encontrá-lo no barbeiro. Ele vai todo dia fazer a barba. Peço licença para ir lá também. De fato, quando chego, eu o encontro, encostado na parede. Vejo-o justamente quando ele, disfarçadamente, faz passar um outro à sua frente, a fim de poder ficar mais tempo esperando. Coloco-me ao seu lado, afastando um outro sujeito. Murmuro rapidamente:
– Então, Dega, como vão as coisas?
– Vão indo, Papi. Peguei quinze anos, e você? Me disseram que te salgaram direitinho.
– Sim. Peguei a perpétua.
– Você vai apelar?
– Não. O que é preciso é comer bem e fazer cultura física. Conserve as forças, Dega, porque certamente precisaremos ter bons músculos. Você está “carregado”?
– Sim, tenho dez “sacos” (*) em libras esterlinas. E você?
(*) 10 000 francos de 1932 ou seja, cerca de 5 000 de 1969 (mais ou menos NCr$ 3 800,00).
– Um bom conselho: “carrega” logo. Teu advogado é o Hubert? É uma besta, ele nunca lhe vai entregar o “canudo”. Manda a sua mulher com o “canudo” carregado procurar o Dante. Ela que o entregue a Domingos, o Rico, e eu garanto que ele chegará até você.
– Cuidado, o guarda está olhando.
– Então, aproveitando para conversar? – diz o guarda.
– Não é nada – responde Dega. – Ele está me dizendo que está doente.
– Que é que ele tem? Uma indigestão de grades? – O gordo carcereiro cai na gargalhada.
Essa é a vida. Já estou no “caminho da podridão”. Eles morrem de rir, gozando da desgraça de um moço de 25 anos condenado por toda a vida.
E recebi o “canudo”. É um tubo de alumínio, cuidadosamente polido, que se abre desenroscando-se pelo meio. Tem uma rosca macho e uma fêmea. Contém 5 600 francos em notas novas. Quando me é entregue, beijo esse tubo de 6 centímetros de comprimento, da espessura do polegar; sim, beijo-o antes de colocá-lo no ânus. Respiro forte para fazê-lo subir ao cólon. É o meu cofre. Podem me deixar pelado, me abrir as pernas, me fazer tossir, dobrar em dois, ninguém descobrirá se tenho alguma coisa escondida. Ele subiu bem para cima, entrou no intestino grosso. Faz parte de mim mesmo. É a minha vida, a minha liberdade que trago comigo… é o caminho da vingança, pois eu penso sempre em me vingar! Aliás, só penso nisso.
Já é noite. Estou só em minha cela. Uma forte lâmpada no teto permite que o guarda me vigie por um orifício na porta. A luz possante ofusca meus olhos. Coloco o lenço dobrado sobre os olhos, pois a claridade é realmente insuportável. Estendido no colchão sobre a cama de ferro, sem travesseiro, evoco todos os detalhes do desgraçado processo.
Chegado a este ponto, para que se possa compreender a continuação desta longa narrativa, para que se percebam as bases que me serviram de sustentáculo em minha luta, precisarei talvez me alongar bastante para contar tudo que passou pela minha mente nos primeiros dias em que me tornei um enterrado vivo.
O que hei de fazer quando conseguir escapar? Pois agora estou com o canudo e não duvido um só instante de que um dia hei de fugir.
Em primeiro lugar, voltarei a Paris o mais depressa possível. O primeiro a liquidar é Polein, a falsa testemunha. Depois, os dois tiras. Mas dois policiais não bastam, tenho que matar todos os agentes da polícia. Pelo menos, o maior número possível. Ah, já sei! Uma vez livre, volto a Paris. Encho uma mala de explosivos. Quantos quilos, não sei; dez, quinze ou vinte. E procuro calcular quantos explosivos seriam necessários para fazer o maior número de vítimas.
Dinamite? Não, é preferível cheddite. E por que não nitroglicerina? Bom, não tem importância; pedirei instruções àqueles que sabem mais do que eu. Mas os policiais que me dêem um crédito de confiança, hei de fazer as contas e eles serão bem servidos.
Continuo de olhos fechados e com o lenço sobre as pálpebras. Vejo nitidamente a mala, de aparência inofensiva, carregada de explosivos, e o despertador, bem regulado, que acionará o detonador. Atenção, ela tem que explodir às 10 horas da manhã, na sala de relatórios da Polícia Judiciária, no Quai des Orfèvres n.° 36, primeiro andar. Nessa hora, lá estarão pelo menos 150 investigadores, reunidos para receber ordens e ouvir os relatórios. Quantos degraus para subir? Não posso me enganar.
Será preciso calcular rigorosamente o tempo necessário para que a mala chegue da rua ao destino no segundo exato em que deve explodir. E quem carregará a mala? Bem, aí é que tenho de bancar o corajoso. Chego de táxi, bem diante da porta da Polícia Judiciária, e digo aos dois guardas de serviço, com voz imperativa: “Me subam esta mala na sala dos relatórios, eu já os acompanho. Digam ao comissário Dupont que essa mala foi enviada pelo inspetor-chefe Dubois e que eu já vou subir”.
Mas será que obedecem? E se, por acaso, nesse monte de imbecis, eu caio sobre os dois únicos inteligentes da corporação? Então estará tudo perdido. Será preciso encontrar outra coisa. Procuro, procuro, não podendo admitir que não consiga encontrar um meio cem por cento garantido.
Levanto-me para beber um pouco de água. De tanto pensar, estou com dor de cabeça.
Torno a me deitar sem o lenço, os minutos se escoam lentamente. E esta luz, esta luz na minha cara, Deus do céu! Molho o lenço e torno a colocá-lo. A água fresca me faz bem e, com o peso da água, o lenço adere melhor às pálpebras. Daqui por diante empregarei sempre este meio.
Essas longas horas em que arquiteto minha futura vingança são tão intensas, que eu me vejo agindo exatamente como se o projeto estivesse em vias de execução. Toda a noite e mesmo durante uma parte do dia, estou vagando por Paris, como se a minha fuga já fosse fato consumado. Tenho certeza, hei de escapar e de voltar a Paris. Bem entendido, a primeira coisa a fazer será apresentar a conta a Polein e, em seguida, aos policiais. E os jurados? Esses calhordas vão continuar a viver tranqüilos? Decerto voltaram para casa, esses nojentos, satisfeitíssimos por haverem cumprido o seu Dever, com D maiúsculo, arrotando importância, inchados de orgulho, bancando os heróis junto aos vizinhos e às respectivas patroas, que os esperam, despenteadas, para papar a sopa.
Muito bem. Que fazer, então, com os jurados? Nada. São uns pobres cretinos. Não estão preparados para serem juizes. Se um cara for guarda-civil ou alfandegário aposentado, ele reage como guarda-civil ou alfandegário. Se for leiteiro, como um labrego qualquer. Eles ficaram embasbacados pela oratória do promotor, que não teve dificuldade em pô-los no saco. Eles são verdadeiramente irresponsáveis. Então está decidido, julgado e acertado: não lhes farei mal nenhum.
Ao descrever todos esses pensamentos, que realmente passaram pela minha cabeça já faz tantos anos e que agora voltam em tropel com uma terrível nitidez, penso até que ponto o silêncio absoluto, o isolamento completo, total, infligido a um homem moço, fechado numa solitária, podem provocar, antes de causarem a loucura, uma verdadeira vida imaginativa. Tão intensa, tão viva, que o homem literalmente se desdobra. Ele sai voando e vai passear onde melhor lhe parece. Rememora sua casa, seu pai, sua mãe, sua família, sua infância, as diversas etapas da sua vida. E, além de tudo isso, viaja pelos castelos da Espanha que o seu espírito fecundo inventa, com imaginação tão incrivelmente aguda, que, nesse desdobramento fabuloso, chega a crer que vive tudo aquilo que está sonhando.
Trinta e seis anos já se passaram, mas é sem o menor esforço de memória que a minha caneta corre para relembrar o que realmente pensei naquele momento da minha vida.
Pois bem, não vou fazer mal aos jurados. Mas, o promotor público? Ah, esse não me escapa! Aliás, tenho para ele uma receita já pronta, dada por Alexandre Dumas em O Conde de Monte Cristo: aquele sujeito metido no calabouço e que deixavam morrer de fome.
É ele o grande responsável. Abutre vestido de vermelho, merece ser executado da maneira mais horrível. Logo depois de liquidar Polein e os tiras, tratarei exclusivamente dessa ave de rapina. Alugarei uma casa isolada. Deverá ter uma adega muito profunda, com paredes espessas e uma porta pesada. Se a porta não for bastante grossa, eu a forrarei com um colchão e estopa. Quando tiver a casa, localizarei e raptarei o homem. Como já terei pregado anéis de ferro na parede, amarro-o com uma corrente logo que chegar. Então começo a degustar a boa sopa!
Estou em frente dele, vejo-o com extraordinária precisão através das minhas pálpebras fechadas. Sim, olho-o da mesma maneira que ele me olhava no tribunal. A cena é tão clara e nítida, que sinto o calor do seu hálito no meu rosto, pois estou perto dele, face a face, quase que nos tocamos.
Seus olhos de gavião estão deslumbrados e apavorados pelo facho de uma lanterna muito forte que projeto sobre ele. Grossas gotas de suor escorrem em seu rosto congestionado. Sim, ouço minhas perguntas, escuto suas respostas. Vivo intensamente esse momento.
“Seu grandessíssimo porco, você me reconhece? Sou eu, Papillon, que você despachou tão alegremente para os ‘duros’ (*). Você acha que valeu a pena ter estudado tantos anos para chegar a ser um homem muito instruído, ter passado noites em claro debruçado sobre os códigos romanos e outros, ter aprendido o latim e o grego, sacrificado anos de juventude, para ser um grande orador? Para chegar a quê, seu corno? A criar uma nova e boa lei social? A convencer os povos de que a paz é a melhor coisa do mundo? A pregar a filosofia de uma maravilhosa religião? Ou simplesmente a influenciar os outros, graças à superioridade do seu preparo universitário, para que se tornem melhores e deixem de ser malvados? Diga, você empregou o seu saber para salvar os homens ou para afogá-los?
“Nada disso, uma só aspiração faz você agir: subir, subir sempre. Escalar todos os degraus da sua carreira nojenta. A glória para você consiste em ser o melhor fornecedor das penitenciárias, o provedor desenfreado do carrasco e da guilhotina.
“Se Deibler (**) fosse um pouco agradecido mandaria a cada fim de ano para você uma caixa do melhor champanha. Não foi graças a você, espécie de porco, que ele conseguiu cortar cinco ou seis cabeças a mais neste ano? De qualquer maneira, sou eu quem prende você agora, acorrentado solidamente nessa parede. Lembro-me do seu sorriso, lembro-me do seu ar triunfante, quando leram minha condenação depois do requisitório. Parece-me que foi ontem e contudo já se passaram tantos anos. Quantos anos, dez, vinte?”
(*) Condenados a trabalhos forçados, em degredo, na colônia penal.
(**) Carrasco oficial da França em 1932.
Mas o que se passa comigo? Por que dez anos? Por que vinte anos? Apalpe-se bem, Papillon, você é forte, jovem e na barriga tem 5 600 francos. Dois anos, sim, farei dois anos de perpétua, nada mais do que isso – é um juramento que faço a mim mesmo.
Ora, está ficando bobo, Papillon. Esta célula, este silêncio deixam você louco. Estou sem cigarros. Acabo de fumar o último. Vou andar pela cela. Afinal, não preciso ter os olhos fechados, nem cobertos com o lenço para continuar a ver o que se vai passar. Muito bem, levanto-me. A célula tem 4 metros de comprimento, ou seja, cinco passos pequenos, desde a porta até o muro. Começo a caminhar, com as mãos nas costas. E continuo o meu monólogo:
“Bem. Como já lhe disse, revejo muito claramente seu sorriso triunfante. Pois bem, vou transformá-lo numa careta horrorosa. Assim mesmo, você tem uma vantagem que eu não tinha: eu não podia gritar, mas você pode. Que vou fazer com você? A receita de Dumas? Deixar você morrer de fome? Não, isso não basta. Primeiro, eu furo os seus olhos. Assim, você não poderá mais me ver, mas, por outro lado, eu não terei o prazer de ler as suas reações em suas pupilas. Sim, tem razão, não vou furá-los agora. Fica para mais tarde.
“Vou cortar a sua língua, essa língua tão terrível, que corta como uma faca – mais do que como uma faca, como uma navalha! Essa língua que você prostituiu à sua gloriosa carreira. A mesma língua com que você fala gostoso à sua mulher, aos seus filhos e à sua amante. Mas, que amante! Uma amante, você? Nada disso, acho que você deve ter um macho, isso sim! Você só pode ser um invertido sem-vergonha. De fato, preciso começar cortando sua língua, porque ela é, depois do cérebro, o maior instrumento das suas malvadezas. Graças a ela, que você sabe manejar tão bem, conseguiu convencer o júri a responder ‘sim’ às perguntas formuladas.
“Graças a ela, você apresentou os policiais como homens corretos, que se sacrificam pelo dever; graças a ela, a história falsa da testemunha conseguiu manter-se de pé. Graças a ela, eu aparecia aos doze patetas dos jurados como o homem mais perigoso de Paris. Se não fosse essa sua língua tão pérfida, tão hábil, tão convincente, tão bem treinada em deformar a gente, os fatos e as coisas, eu estaria ainda sentado no terraço do Grand Café da Place Blanche, de onde nunca teria de sair. Então está entendido, vou arrancar essa língua. Mas com que instrumento?”
Caminho pela cela sem parar, minha cabeça está girando, mas estou sempre face a face com ele… quando, de repente, a lâmpada se apaga e a luz do dia consegue infiltrar-se, muito fraca, pelas frestas da tábua da janela.
Como? Já é dia? Passei a noite toda me vingando? Que belas horas acabo de passar! Essa noite tão longa, como foi curta!
Fico escutando, sentado na cama. Nada se ouve. Silêncio total. De vez em quando, ouço um ligeiro clique na minha porta. É o guarda que, de chinelos para não fazer barulho, faz correr o pequeno tampo de ferro, a fim de espiar pelo visor minúsculo que lhe permite vigiar-me sem que eu o perceba.
A máquina concebida pela República Francesa chegou à segunda etapa. Funciona maravilhosamente, pois na primeira eliminou um homem que lhe podia causar aborrecimentos. Mas isso não basta. Ê preciso que esse homem não morra depressa demais, é preciso que não escape pelo suicídio. Precisam dele. Que aconteceria com a administração da penitenciária se não houvesse prisioneiros? Estariam bem arranjados. Então, é preciso vigiar o preso. Ele tem que seguir para a colônia penitenciária, onde servirá para fazer viver outros funcionários. Volto a ouvir o clique na porta da cela, e isso me faz sorrir.
Não se preocupe, carcereiro vagabundo, não vou escapar. Pelo menos, não da maneira que você receia: o suicídio.
Só peço uma coisa: continuar a viver no melhor estado de saúde possível e partir logo para essa Guiana Francesa, para onde, graças a Deus, vocês fazem a besteira de me enviar.
Eu sei que os seus colegas, meu velho carcereiro que produz o clique a todo momento, não são inocentes coroinhas. Você é um bom velho, comparado com os guardas da colônia penal. Já sei disso há muito tempo, pois Napoleão, quando criou a colônia penal e lhe perguntaram: “Quem irá guardar esses bandidos?”, respondeu: “Outros mais bandidos que eles”. Mais tarde pude verificar que o fundador não havia mentido.
Clique-claque, uma portinhola de 20 centímetros por 20 se abre no meio da porta. Passam o café e uma bola de pão de 750 gramas. Já estando condenado, não tenho mais o direito de freqüentar o restaurante, mas, sempre pagando, posso comprar cigarros e alguma comida numa modesta cantina. Mais alguns dias e não haverá mais nada. A Conciergerie é a antecâmara da reclusão. Fumo com delícia um Lucky Strike, cada pacote custa 6,60 francos. Comprei dois. Gasto meu pecúlio, porque será confiscado para pagamento das custas judiciárias.
Dega me manda dizer para ir à desinfecção, por meio de um bilhetinho que encontrei dentro do pão: “Na caixa de fósforos estão três piolhos”. Tiro os fósforos e encontro os piolhos, gordos e bem vivos. Sei o que isso significa. Vou mostrá-los ao vigilante e amanhã ele vai me mandar, com todas as minhas roupas, colchão inclusive, para a câmara de vapor, para matar todos os parasitas – menos nós, é claro. De fato, no dia seguinte, lá me encontro com Dega. Nenhum guarda na câmara de vapor. Estamos sós.
– Obrigado, Dega. Graças a você, recebi o canudo.
– Não te incomoda?
– Não.
– Cada vez que você for à privada, lave bem antes de tornar a colocá-lo.
– Sim. Creio que ele veda bem, pois as notas dobradas em sanfona estão em perfeito estado. No entanto, já estou com ele faz sete dias.
– Então é que é bom mesmo.
– O que você pensa fazer, Dega?
– Vou me fingir de louco. Não quero seguir para a colônia. Aqui na França cumprirei talvez oito ou dez anos. Tenho conhecidos e poderei conseguir pelo menos cinco anos de indulto.
– Quantos anos você tem?
– Quarenta e dois.
– Você está louco! Se você apanhar dez ou quinze anos, sai daqui velho. Você tem medo de ir para os “duros”?
– Sim, tenho medo da colônia penal, não tenho vergonha de dizer, Papillon. Veja, é terrível na Guiana. Cada ano há uma perda de noventa por cento. Um comboio substitui outro e os comboios são de 1 800 a 2 000 homens. Se você não pega a lepra, apanha a febre amarela, ou a disenteria (que não perdoa), ou a tuberculose, o paludismo, a malária infecciosa. Se você escapa de tudo isso, tem uma grande chance de ser assassinado para lhe roubarem o canudo ou então de morrer durante uma evasão. Acredite, Papillon, não é para lhe tirar a coragem que digo isso, mas conheci vários forçados que voltaram à França depois de terem cumprido pequenas penas, de cinco ou sete anos, e sei o que estou dizendo. São verdadeiros farrapos humanos. Passam nove meses por ano no hospital e, no que se refere às fugas, dizem que não é sopa, como muita gente acredita.
– Acredito em você, Dega, mas tenho confiança em mim e lá não hei de esquentar lugar durante muito tempo, fique certo. Sou marinheiro, conheço o mar e você pode estar certo de que não demoro a dar o fora. E você? Já pensou no que é cumprir dez anos de reclusão? Se descontarem cinco, o que não é certo, pensa que poderá agüentar, sem ficar louco, no isolamento completo? Neste momento, nesta cela, onde estou sozinho, sem livros, sem sair, sem poder falar com ninguém, as 24 horas de cada dia não devem ser multiplicadas por sessenta minutos, mas por seiscentos, e ainda assim estará longe da verdade.
– É possível, mas você é moço e eu tenho 42 anos.
– Escuta, Dega, francamente, de quem você tem mais medo? Não é dos outros sentenciados?
– Sim, francamente, Papi. Todo mundo sabe que sou milionário, e daí a me assassinarem pensando que eu carrego cinqüenta ou cem mil “pacotes” é só um passo.
– Escuta, vamos fazer um pacto? Você me promete não bancar o louco e eu prometo estar sempre perto de você. Cada um se encosta no outro. Eu, nem precisa que diga, sou forte e rápido, aprendi a lutar muito moço e sei muito bem manejar a faca. Portanto, quanto aos outros forçados, pode ficar sossegado: seremos não só respeitados, mas temidos. Para a fuga, não precisamos de ninguém. Você tem grana, eu tenho grana, sei usar uma bússola e dirigir um barco. Que é que você quer mais?
Ele me olha bem firme nos olhos… nos abraçamos. O pacto está assinado.
A porta se abre dentro de alguns instantes. Ele parte para um lado com seus troços e eu sigo para o meu. Não ficamos muito longe um do outro e vamos poder às vezes conversar no barbeiro, no médico ou na capela aos domingos.
Dega se estrepou no negócio dos bônus falsos da Defesa Nacional. Eram fabricados por um falsário, de modo muito original. Ele clareava os bônus de 500 francos e tornava a imprimir em cima, com toda a perfeição, títulos de 10 000 francos. O papel permanecia o mesmo, eles eram aceitos com toda a confiança pelos comerciantes e pelos bancos. A coisa durava havia muitos anos e a seção de fraudes financeiras do Departamento de Investigações não sabia mais onde dar com a cabeça, até que um dia um tal de Brioulet foi preso em flagrante. Louis Dega estava bem sossegado à frente do seu bar em Marselha, onde se reunia todas as noites a fina flor do submundo do sul da França e que servia de ponto de encontro internacional para os grandes traficantes do vício de todo o mundo.
Era milionário em 1929. Um dia, uma mulher bem vestida, moça e bonita, aparece no bar. Quer falar com Monsieur Louis Dega.
– Sou eu, minha senhora, que deseja? Entre na sala ao lado, por favor.
– Acontece que eu sou a mulher de Brioulet – disse ela. – Ele está preso em Paris, por haver passado bônus falsos. Estive com ele no parlatório da prisão da Santé e ele me mandou pedir ao senhor 20 000 francos para pagar o advogado.
É então que um dos grandes reis do vício da França, Dega, diante do perigo de uma mulher que estava a par do seu papel no negócio, só encontra a única resposta que não deveria dar:
– Minha senhora, não conheço o seu homem e, se você precisa de dinheiro, vá fazer a vida. Ganhará mais dinheiro do que precisa, bonita como é.
A coitada da mulher, muito ofendida, sai correndo, em lágrimas, e vai contar toda a cena ao seu marido. Indignado, Brioulet, no dia seguinte, conta tudo o que sabia ao juiz de instrução, acusando formalmente Dega de ser o homem que fornecia os bônus falsos. Um mês mais tarde, Dega, o falsário, o gravador e onze cúmplices eram presos na mesma hora em diferentes lugares e logo trancafiados. Compareceram ao tribunal do Sena e o processo durou catorze dias. Cada acusado foi defendido por um grande advogado. Brioulet nunca se retratou. Conclusão: por causa de uns desgraçados 20 000 francos e uma palavra idiota, o maior líder do vício na França, arruinado, envelhecido de um decênio, pegou quinze anos de trabalhos forçados. Esse era o homem com quem eu acabava de assinar um pacto de vida e de morte.
O Dr. Raymond Hubert me veio visitar. Não estava muito animado. Não lhe fiz qualquer recriminação.
Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta… Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta. Há várias horas que faço essas idas e vindas da janela à porta da minha cela. Fumo, sinto-me consciente, equilibrado e capaz de agüentar qualquer coisa. Prometo a mim mesmo não pensar mais na vingança, por enquanto.
Deixemos o promotor no ponto em que ficou, amarrado às argolas do muro, à minha frente, sem que eu tenha decidido ainda de que maneira acabar com ele.
De repente, um grito, um grito desesperado, agudo, horrivelmente angustiado, consegue atravessar a porta da minha cela. Que será isso? Parece que estão torturando um homem; contudo, aqui não estamos na polícia judiciária. Não há meio de saber o que se passa. Esses gritos na noite me perturbam. Talvez seja um louco. É tão fácil ficar louco nestas celas onde nada chega até nós. Falo sozinho, em voz alta, pergunto a mim mesmo: “E o que é que você tem com isso? Pense em você, só em você e em Dega, seu novo sócio”. Abaixo, levanto, finalmente dou um soco no peito. Doeu muito, portanto tudo vai bem. Os músculos dos meus braços funcionam perfeitamente. E as pernas? Felicitações, pois há mais de dezesseis horas que estou andando e não sinto nenhum cansaço.
Os chineses inventaram a gota de água que cai sobre a cabeça do prisioneiro. Os franceses, por sua vez, inventaram o silêncio. Suprimem qualquer meio de distração. Nem livros, nem papel, nem lápis, a janela fortemente gradeada está completamente tapada por tábuas, com alguns buraquinhos para deixar passar um pouco de luz muito filtrada.
Muito impressionado pelo grito dilacerante, volto-me como um animal preso numa gaiola. Tenho realmente a sensação de estar abandonado por todos e estar literalmente enterrado vivo. Sim, estou completamente só e tudo o que chegar até mim não será mais que um grito.
Abrem a porta. Aparece um velho padre. Você não está sozinho, há um padre aí, na sua frente.
– Meu filho, boa noite. Desculpe não ter vindo antes, mas estava de férias. Como vai você? – E o bom velho padre entra sem cerimônia na cela e senta-se sem hesitação no meu catre.
– De onde você é?
– Do departamento de Ardèche.
– Seus pais?
– Mamãe morreu quando eu tinha onze anos. Meu pai gostava muito de mim.
– Que fazia ele?
– Era professor primário.
– Ainda é vivo?
– Sim.
– Por que você fala no passado, se ele está vivo?
– Porque ele está vivo, mas eu estou morto.
– Oh, não diga isso! Que foi que você fez?
Como num relâmpago, passa pela minha cabeça a idéia de que seria ridículo dizer que sou inocente. Respondo logo:
– A polícia diz que matei um homem e, se ela diz isso, deve ser verdade.
– Era um comerciante?
– Não, era um rufião.
– E é por causa de uma história de submundo que condenaram você aos trabalhos forçados perpétuos? Não compreendo, Foi um assassinato?
– Não, um homicídio.
– É inacreditável, meu pobre filho. Que posso fazer por você? Quer rezar comigo?
– Seu padre, me perdoe, não recebi nenhuma educação religiosa, não sei rezar.
– Não tem importância, meu filho, vou rezar por você. O bom Deus ama todos os seus filhos, batizados ou não. Repita cada palavra que eu digo, você quer?
Seus olhos são tão suaves, sua cara redonda mostra tanta luminosa bondade, que tenho vergonha de recusar e, tendo-se ajoelhado, faço como ele: “Pai nosso, que estais no céu…” As lágrimas me vêm aos olhos e o bom padre, vendo isso, recolhe na minha cara, com seu dedo gordo, uma grossa lágrima, que leva aos lábios e bebe.
– Suas lágrimas, meu filho, são para mim a maior recompensa que Deus podia me enviar hoje através de você. Obrigado.
E, levantando-se, ele me beija na testa.
Estamos novamente sentados no catre, lado a lado.
– Há quanto tempo que você não chorava?
– Catorze anos.
– Catorze anos, por quê?
– No dia da morte da minha mãe.
Pega a minha mão e diz:
– Perdoa aos que tanto te fizeram sofrer.
Arranco a minha mão da sua e, de um pulo, estou novamente de pé no meio da cela.
– Ah, não! Isso não! Nunca hei de perdoar. E o senhor quer que lhe diga uma coisa, padre? Pois bem, cada dia, cada noite, cada hora, cada minuto, passo meu tempo a imaginar quando, como, de que maneira poderei matar todos aqueles que me enviaram para cá.
– Você diz e acredita nisso, meu filho. Você é moço, muito moço. Quando tiver mais idade, renunciará às idéias de castigo e de vingança.
Agora, 34 anos mais tarde, penso como ele.
– Que posso fazer por você? – repete o padre.
– Um delito, padre.
– Qual?
– Ir à cela 37 para dizer a Dega que mande fazer pelo seu advogado um pedido para ser transferido à Central de Caen; diga a ele que já fiz meu pedido hoje. Precisamos sair logo da Conciergerie para uma das centrais onde se formam os comboios para a Guiana, porque, se a gente perde o primeiro navio, tem que esperar mais dois anos na reclusão até que tenha outro. Depois de ver meu amigo, senhor padre, precisa voltar aqui.
– Que motivo vou dar?
– Diga, por exemplo, que esqueceu o breviário. Eu espero a resposta.
– E por que está com tanta pressa de ir para aquela coisa horrível que é a colônia penal?
Olho para esse padre, verdadeiro caixeiro-viajante do bom Deus, e digo, certo de que não me vai trair:
– Para escapar mais depressa, padre.
– Deus há de ajudá-lo, meu filho, tenho certeza e sinto que você poderá reconstruir a sua vida. Vejo nos seus olhos que você é um bom rapaz e que a sua alma é nobre. Vou ao número 37. Espere a resposta.
Voltou bem depressa. Dega está de acordo. O padre me deixou o seu breviário até o dia seguinte.
Foi como se eu recebesse hoje um raio de sol, minha cela ficou toda iluminada. Graças àquele santo homem.
Por que, se Deus existe, ele permite que haja sobre a Terra seres humanos tão diferentes? O promotor, os policiais, os Polein e depois o padre, o padre da Conciergerie?
A visita desse santo homem me fez muito bem e também me prestou um bom serviço.
O resultado dos pedidos não demorou. Uma semana depois, lá estávamos, sete homens, às 4 da manhã, alinhados no corredor da Conciergerie. Os guardas estão todos presentes.
– Todos em pêlo!
Tiramos a roupa lentamente. Faz frio, estou arrepiado.
– Deixem suas roupas em frente de vocês. Meia volta, um passo para trás!
E cada um encontra um pacote.
– Vistam-se!
A camisa de linho que eu estava usando há poucos instantes é substituída por uma grossa camisa de pano cru, rijo, e meu belo terno por um blusão e uma calça de baeta. Meus sapatos desaparecem e enfio os pés num par de tamancos. Até hoje, tínhamos aspecto de homens normais. Olho para os meus seis companheiros: que horror! Acabou-se a personalidade de cada um: em dois minutos, nos transformamos em forçados.
“À direita, em fila! Avante, marche!” Escoltados por uns vinte guardas, chegamos ao pátio onde, um por um, somos introduzidos ‘numa espécie de armário estreito dentro de um carro celular. Estamos a caminho de Beaulieu, nome da Central de Caen.
Mal chegamos, somos introduzidos no escritório do diretor. Ele está sentado como num trono, atrás de uma mesa estilo império, sobre um estrado de 1 metro de altura.
– Sentido! O diretor vai-lhes falar.
– Condenados, vocês estão aqui em custódia, aguardando transporte para a colônia penal. Isto é uma casa de força. Silêncio obrigatório a todo momento, nenhuma visita a esperar ou cartas de qualquer pessoa. Aqui, ou vocês dobram, ou quebram. Há duas portas à sua disposição: uma para a colônia penal, se vocês se comportam bem, outra para o cemitério. Em caso de má conduta, eis o que os espera: a menor falta será punida com sessenta dias de solitária, a pão e água. Ninguém resistiu a duas penas consecutivas de solitária. A bom entendedor, meia palavra basta.
Dirige-se então a Pierrot le Fou, extraditado da Espanha:
– Qual era sua profissão na vida?
– Toureiro, senhor diretor.
Enfurecido pela resposta, o diretor grita:
– Carreguem este homem, militarmente!
Em menos de dois segundos, o toureiro é espancado a porretadas por quatro ou cinco guardas, arrastado às pressas para longe de nós. “Cambada de frescos, vocês são cinco contra um e ainda por cima com cacetes, seus bastardos!” Ouve-se um “ah!”, como de um animal ferido de morte, e mais nada. Apenas o roçar de alguma coisa arrastada sobre o chão de cimento.
Depois dessa cena, quem não entendeu nunca mais entenderá. Dega está a meu lado. Ele mexe um dedo, um só, para tocar a minha calça. Compreendi o que ele quer me dizer: “Agüente firme se quer chegar vivo à colônia penal”. Dez minutos depois, cada um de nós se acha numa cela do setor disciplinar da Central, exceto Pierrot le Fou, que foi descido para o porão e metido num infame calabouço.
A sorte quis que Dega ficasse na cela pegada à minha. Antes fomos apresentados a uma espécie de monstro ruivo de 1 metro e 90 ou mais, caolho, com um nervo de boi novinho na mão direita. É um vigilante, um prisioneiro com função de torturador, às ordens dos guardas. É o terror dos condenados. Os guardas têm, com ele, a vantagem de poder espancar os homens sem se cansar; além disso, em caso de morte, não haverá responsabilidade para a administração do presídio.
Mais tarde, por ocasião de uma curta passagem pela enfermaria, vim a conhecer a história dessa besta humana. Merece felicitações o diretor da Central por ter sabido escolher tão bem esse carrasco. O gajo em questão era canteiro de profissão. Um belo dia, na pequena cidade do norte onde morava, resolveu suicidar-se, liquidando ao mesmo tempo sua mulher. Para isso utilizou uma banana de dinamite bastante grossa. Deitou-se ao lado da mulher, que repousava no segundo andar de um prédio de seis. A mulher estava dormindo. Ele acendeu um cigarro e usou-o para pôr fogo no pavio do cartucho de dinamite que segurava com a mão esquerda, entre a sua cabeça e a da mulher. Deu-se uma explosão espantosa. Resultado: foi preciso recolher o corpo da mulher às colheradas, pois estava totalmente reduzido a migalhas. O prédio desmoronou em parte, três crianças morreram esmagadas nos escombros, bem como uma velha de setenta anos. Os outros moradores receberam ferimentos de maior ou menor gravidade.
Ele, Tribouillard, perdeu uma parte da mão esquerda, da qual sobraram apenas o dedinho e a metade do polegar, perdeu a orelha e o olho esquerdos. Tem na cabeça uma ferida grave, que exigiu uma trepanação. Depois de condenado, tornou-se vigilante das células disciplinares da Central. Esse semilouco pode dispor como quer dos desgraçados que caem sob seu domínio.
Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta… um, dois, três, quatro, cinco, meia volta… começa o vaivém interminável do muro à porta da cela.
Não temos o direito de nos deitar durante o dia. Às 5 horas da manhã, um apito estridente acorda todo mundo. É preciso levantar, arrumar a cama, lavar a cara e andar, ou sentar num tamborete preso à parede. Já disseram, não podemos usar a cama durante o dia. Cúmulo do refinamento do sistema penitenciário, a cama tem que ser dobrada contra o muro e ficar enganchada o dia todo. Assim, o prisioneiro não pode esticar-se e é mais fácil vigiá-lo.
Um, dois, três, quatro, cinco… catorze horas de marcha. Para bem adquirir o automatismo desse movimento contínuo, é preciso aprender a baixar a cabeça, as mãos atrás das costas, não andar nem muito depressa nem muito devagar, dar passos do mesmo tamanho e virar automaticamente numa ponta da cela, sobre o pé esquerdo, e na outra ponta, sobre o direito.
Um, dois, três, quatro, cinco… As celas são mais bem iluminadas que na Conciergerie e se podem ouvir os ruídos exteriores, os do setor disciplinar e também alguns que chegam do campo. À noite ouvem-se os assobios ou as canções dos camponeses que voltam para casa, satisfeitos por terem bebido um bom copo de cidra.
Tive meu presente de Natal: por uma fenda nas tábuas que vedam a janela, posso perceber o campo todo branco de neve e algumas árvores negras iluminadas pela lua cheia. Parece um daqueles cartões-postais típicos do Natal. Sacudidas pelo vento, as árvores despiram seu manto de neve e, por isso, podem ser vistas bem distintamente. Destacam-se como grandes manchas escuras sobre o fundo branco. É Natal para toda gente, até mesmo para uma parte do presídio. Para os sentenciados em custódia, a administração fez um esforço: tivemos o direito de comprar duas barras de chocolate. Digo bem, duas barras e não dois tabletes. Esses dois pedaços de chocolate de Aiguebelle foram meu réveillon de 1931.
Um, dois, três, quatro, cinco… A repressão judicial me transformou num pêndulo, a ida e a vinda numa cela compõem todo o meu universo. É matematicamente calculado. Nada, absolutamente nada, deve ser deixado na cela. É preciso impedir a qualquer custo que o condenado possa ter uma distração. Se eu for surpreendido olhando pela fenda da tábua da janela, sofrerei severo castigo. Aliás, acho que eles têm razão, pois não é verdade que sou para eles apenas um morto-vivo? Que direito me poderia arrogar para gozar de uma visão da natureza?
Voa uma borboleta azul-claro com uma pequena risca negra; zumbe uma abelha um pouco adiante, perto da janela. Que será que esses bichos vêm buscar neste lugar? Parecem estar enlouquecidos por este sol de inverno, ou estão com frio e querem abrigar-se na prisão. Uma borboleta, no inverno, é uma ressuscitada. Como não morreu? E essa abelha, por que saiu da sua colméia? Para se aproximar de uma prisão é preciso ser muito caradura. Felizmente, o vigilante não tem asas, do contrário os bichinhos não viveriam muito tempo.
Esse Tribouillard é um sádico horroroso e percebo que alguma coisa vai me acontecer com ele. Infelizmente não me enganei. Um dia depois da visita daqueles encantadores insetos, dou parte de doente. Não agüento mais, me abafo na minha solidão, preciso ver uma cara, ouvir uma voz, mesmo desagradável, mas sempre uma voz, preciso ouvir alguma coisa.
Nu em pêlo no frio glacial do corredor, frente ao muro, meu nariz a quatro dedos de distância, eu era o penúltimo de uma fila de oito, aguardando minha vez de ser atendido pelo médico. Eu queria ver gente… pois bem, consegui! Fomos surpreendidos pelo vigilante no momento em que murmurava algumas palavras ao ouvido de Julot, alcunhado “o homem do martelo”. A reação do ruivo selvagem foi terrível. Com um murro atrás do pescoço, quase me matou e, como eu não havia visto de onde vinha o golpe, bati o nariz contra o muro. O sangue jorra e, depois de me levantar, pois eu havia caído, me sacudo todo e procuro compreender o que me aconteceu. Esboço um gesto de protesto, mas o brutamontes, que só esperava isso, joga-me novamente ao chão com um pontapé na barriga e começa a me chicotear com seu nervo de boi. Julot não pode suportar isso. Pula em cima do vigilante, inicia-se uma luta terrível e, como Julot está por baixo, os guardas assistem impassíveis à batalha. Acabo de me levantar e ninguém presta atenção em mim. Olho em volta, para ver se encontro algo utilizável como arma. De repente, avisto o médico inclinado sobre a sua poltrona, procurando observar, da sala de consulta, o que se passa no corredor, e ao mesmo tempo vejo a tampa de uma marmita que se levanta sob a pressão do vapor. Essa grossa marmita esmaltada está colocada sobre o fogareiro a carvão que aquece a sala do médico. O vapor deve servir certamente para purificar o ar.
Então, num reflexo rápido, agarro a marmita pelas alças, queimo as mãos mas não largo e, de uma só vez, atiro a água fervente na cara do vigilante, que não me havia visto, tão ocupado estava em espancar Julot. Um grito espantoso sai da garganta do puto. Foi atingido em cheio. Ele se rola no chão. Como está vestido com três pulôveres de lã, é obrigado a tirá-los com dificuldade, um depois do outro. Quando arranca o terceiro, a pele vem junto. A gola da malha é estreita e, no esforço de fazê-la passar, a pele do peito, parte da do pescoço e toda a das faces se despregam e vêm coladas à malha. Também ficou queimado o seu único olho; está cego. Por fim, levanta-se, hediondo, sanguinolento, em carne viva, e Julot aproveita para lhe dar um tremendo pontapé nos testículos. O gigante desmorona, põe-se a vomitar e a babar. Ganhou o que merecia. Quanto a nós, não perdemos nada por esperar.
Os dois outros vigilantes que assistiram à cena não têm peito bastante para nos atacar. Tocam o alarma para chamar reforços. Chegam guardas por todos os lados e as porretadas caem sobre nós como chuva de pedras. Tenho a sorte de perder logo a consciência, o que não me deixa sentir os golpes.
Quando acordo, estou no segundo subsolo, completamente pelado, numa cafua inundada de água. Recobro lentamente os sentidos. Minha mão percorre meu corpo dolorido. Tenho pelo menos doze ou quinze galos na cabeça. Que horas são? Não sei. Aqui não há nem dia nem noite, não há luz nenhuma. Ouço batidas contra o muro, vindas de longe.
Pã, pã, pã… Esses golpes são a campainha do “telefone”. Tenho de bater duas pancadas na parede, se quiser receber a comunicação. Mas bater com quê? Na escuridão, não vejo nada que me possa servir. Com os punhos é impossível, os golpes não repercutiriam bastante. Aproximo-me do lado onde presumo que se encontre a porta, porque lá está um pouco menos escuro. Dou de cara numas grades que eu não havia visto. Às apalpadelas, percebo que a cafua está fechada por uma porta distante de mim mais de 1 metro, porta essa que a grade em que estou encostado me impede de atingir. Assim, quando alguém entra na cela de um preso perigoso, está livre de ser tocado por ele, que se encontra como numa gaiola. Pode-se então falar com o prisioneiro, molhá-lo, atirar-lhe comida ou insultá-lo sem risco. Mas a vantagem é que não se pode bater nele sem correr perigo, pois para isso seria preciso abrir a grade.
As batidas na parede se repetem de vez em quando. Quem será que me quer falar? Esse camarada merece uma resposta, pois ele corre risco se for descoberto. Andando pela cela, quase que quebro a cabeça tropeçando numa coisa dura e redonda. É uma colher de pau. Lanço mão dela e me preparo para responder. Espero, com a orelha encostada à parede. Pã, pã, pã, pã, pã-stop, pã, pã. Eu respondo: pã, pã. Estes dois golpes querem dizer àquele que está chamando: pode ir, peguei a comunicação. Os golpes começam: pã, pã, pã… as letras do alfabeto desfilam rapidamente… a b c d e f g h i j k l m n o p, stop. Ele pára na letra p. Dou um golpe com força: pã. Assim, ele sabe que anotei a letra p. Depois vêm um a, um p, um i, etc. Ele me diz: “Papi, como vai? Você está muito machucado? Eu estou com um braço quebrado”. É Julot.
Telefonamos durante mais de duas horas, sem nos preocuparmos que nos descubram. Ficamos alucinados pela vontade de trocar frases. Digo a ele que nada tenho quebrado, que minha cabeça está cheia de galos, mas que não tenho ferimentos.
Ele me viu sendo arrastado, puxado por um pé, e me diz que em cada degrau minha cabeça batia, caindo do precedente. Ele não chegou a perder os sentidos. Acredita que Tribouillard ficou gravemente queimado, que, em virtude da lã, os ferimentos são profundos e ele vai sofrer algum tempo.
Três golpes muito rápidos e repetidos me avisam que há perigo. Paro de bater. De fato, dentro de alguns instantes, a porta se abre e alguém grita:
– No fundo da cela, seu bastardo. Em posição de sentido! – é o novo vigilante quem fala. – Eu me chamo Batton (Porrete); é o meu próprio nome. Você vê que é o nome certo.
Com uma grande lanterna da marinha, ele ilumina o calabouço e o meu corpo nu.
– Tome lá roupa para vestir. Não se mexa daí. Aqui tem pão e água. Não coma tudo de uma vez, porque você não vai receber mais nada antes de 24 horas. (*)
(*) Quatrocentos e cinqüenta gramas de pão e 1 litro de água.
Ele berra como um selvagem, depois levanta a lanterna à altura da minha cara. Vejo que sorri sem maldade. Coloca um dedo sobre a boca e indica as roupas que deixou. No corredor deve estar outro guarda e ele me quis fazer compreender que não é um inimigo.
De fato, na bola de pão encontro um pedaço de carne cozida e no bolso da calça – que sorte! – um maço de cigarros e um isqueiro rústico. Aqui, tais presentes valem um milhão. Duas camisas em vez de uma e uma ceroula de lã que me desce até os tornozelos. Sempre hei de me lembrar desse Batton. Tudo isso significa que me está recompensando por haver eliminado Tribouillard. Antes do incidente, ele era apenas ajudante de vigilante. Agora, graças a mim, ele passou a chefe titular. Em suma, ele deve a mim a sua promoção e está demonstrando a sua gratidão.
Como é necessária uma paciência de pele-vermelha para localizar a proveniência dos golpes telefônicos e só o vigilante-chefe pode fazer isso, pois os outros guardas são muito preguiçosos, eu e Julot temos o campo livre, nada temendo do lado de Batton. O dia todo trocamos telefonemas. Por intermédio dele fico sabendo que está próxima a partida para a colônia penal: será dentro de três ou quatro meses.
Dois dias depois, somos tirados da solitária e, cada um enquadrado por dois guardas, levados ao escritório do diretor. Na frente da entrada acham-se três pessoas sentadas atrás da mesa. É uma espécie de tribunal. O diretor faz o papel de presidente; o subdiretor e o inspetor-chefe, de assessores.
– Ah, ah, seus malandros! Estão aí? Que têm a dizer?
Julot está muito pálido, os olhos inchados, certamente com febre. Há três dias com o braço quebrado, deve sofrer horrivelmente.
Com muita calma, Julot responde:
– Estou com um braço quebrado.
– Mas foi você quem quis que lhe quebrassem o braço. Isso lhe ensinará a não atacar as pessoas. Você será examinado pelo médico quando ele vier. Espero que demore uma semana. Essa espera será salutar, pois a dor servirá para lhe ensinar alguma coisa. Você não pensa que vou mandar vir um médico especialmente para um indivíduo da sua espécie? Aguarde que o médico da Central tenha tempo de vir e ele tratará de você. Isso não impede que eu condene vocês dois a ficarem na cafua até nova ordem.
Julot olha para mim, bem nos olhos. “Esse senhor bem vestido dispõe bem facilmente da vida de seres humanos”, é o que parece querer dizer.
Viro a cabeça de novo para o diretor e olho para ele. Ele pensa que lhe quero falar, e me diz:
– E você, a decisão não lhe agrada? Que tem a reclamar?
Eu respondo:
– Nada, senhor diretor. Apenas sinto a necessidade de lhe cuspir na cara, mas não o faço de medo de sujar minha saliva.
Fica tão espantado, que enrubesce e não compreende imediatamente. Mas o inspetor-chefe logo reage. Grita aos vigilantes:
– Agarrem-no e tratem bem dele! Quero vê-lo dentro de uma hora pedindo perdão de rastos. Vamos ensiná-lo! Vou fazê-lo limpar meus sapatos com a língua, por cima e por baixo. Não o tratem com bons modos, isso fica a cargo de vocês.
Dois guardas me torcem o braço direito, dois outros o esquerdo. Estou achatado no chão, as mãos levantadas à altura das omoplatas. Eles me põem as algemas, com umas argolas especiais que me ligam o indicador esquerdo com o polegar direito. O inspetor-chefe me levanta do chão como a um animal, puxando-me pelos cabelos.
Nem é preciso contar tudo o que me fizeram. Basta dizer que fiquei com as mãos algemadas atrás das costas durante onze dias. Devo a vida ao guarda Batton. Cada dia, ele jogava no meu calabouço a bola de pão regulamentar, mas, privado das minhas mãos, eu não podia comer. Mesmo empurrando o pão com a cabeça contra a grade, eu não conseguia tirar uma migalha com os dentes. Mas Batton jogava também, em quantidade suficiente para me manter vivo, pedaços de pão da grossura de um bocado. Com o pé, eu fazia montinhos, depois deitava-me de bruços e comia como se fosse um cachorro. Mastigava bem cada pedaço, para não perder nada.
No 12.° dia, quando me tiraram as algemas, o aço havia penetrado na pele e o ferro estava, em alguns lugares, recoberto de carne tumefata. O guarda-chefe ficou com medo, ainda mais porque desmaiei de dor. Depois que me fizeram recuperar os sentidos, levaram-me à enfermaria, onde me limparam com água oxigenada. O enfermeiro exigiu que me dessem urna injeção antitetânica. Meus braços estavam anquilosados e não podiam voltar à posição normal. Depois de mais de meia hora de fricção com óleo canforado, consegui baixá-los ao longo do meu corpo.
Voltei ao calabouço e o vigilante-chefe, vendo as onze bolas de pão, ainda disse:
– Você vai tirar a barriga da miséria! É gozado, você não está tão magro, depois de onze dias de jejum…
– Bebi muita água, chefe.
– Ah! é por isso, compreendo. Agora coma bastante para se refazer.
E foi embora.
Pobre imbecil! Ele me diz isso porque acredita que nada comi durante onze dias e que, se eu me encher demais de uma só vez, vou morrer de indigestão. Desse susto você não morre. À noite, Batton me passa tabaco e papel. Fumo, fumo, soprando a fumaça pelo cano de aquecimento, que naturalmente nunca funciona. Desta vez, pelo menos, serviu para alguma coisa.
Mais tarde chamo Julot. Ele pensa que nada comi durante onze dias e me aconselha a ir devagar. Tenho medo de lhe contar a verdade, temendo que algum desgraçado possa decifrar o telegrama na transmissão. Mot está com o braço engessado, o seu moral é bom e ele se congratula pela minha resistência.
Segundo ele, a partida do comboio está próxima. O enfermeiro lhe disse que já chegaram as ampolas de vacina destinadas aos prisioneiros antes do embarque. Geralmente, elas chegam um mês antes da partida. Julot é bastante imprudente, porque me pergunta também se eu salvei meu canudo.
Sim, eu salvei, mas o que fiz para guardar essa fortuna nem posso descrever. Estou com feridas cruéis no ânus.
Três semanas mais tarde, tiram-nos do calabouço. Que está acontecendo? Fazem-nos passar por uma ducha sensacional, com sabão e água quente. Sinto-me reviver. Julot ri como uma criança e Pierrot le Fou irradia a alegria de viver.
Como estamos saindo da solitária, nada sabemos do que se passa. O barbeiro não quis responder à minha rápida pergunta, murmurada em voz baixa:
– Que se passa?
Um desconhecido de mau aspecto me diz:
– Creio que estamos anistiados do calabouço. Eles talvez estejam com medo de um inspetor que virá fazer uma visita. O essencial é que estamos vivos.
Cada um de nós é levado para uma cela normal. Ao meio-dia, na primeira sopa quente depois de 43 dias, encontro um pedaço de madeira, onde está escrito: “Partida, oito dias. Amanhã, vacina”.
Quem é que me enviou isso?
Nunca soube. Certamente um recluso que teve a gentileza de nos avisar, sabendo que, se um de nós recebe a notícia, todos os outros serão avisados. A mensagem não deve ter chegado às minhas mãos por puro acaso.
Logo advirto Julot pelo telefone: “Passe adiante”.
Ouvi telefonemas a noite toda. Mas eu, depois de transmitida a mensagem, não quis fazer mais nada.
Estou muito bem na minha cama. Não quero aborrecimentos. E não me agrada voltar ao calabouço. Hoje, menos do que nunca.