174977.fb2 Papillon - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 5

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3 PRIMEIRA EVASÃO

A EVASÃO DO HOSPITAL

Hoje à noite discuti com Dega e Fernández. Dega diz que não confia no plano, que paga um bom dinheiro, se for preciso, para sair da cadeia. Pede para eu escrever a Sierra a respeito dessa possibilidade. No mesmo dia, Chatal traz o bilhete e a resposta: “Não pague nada a ninguém para sair. São ordens que vêm da França, e ninguém, nem o diretor da penitenciária, pode nos soltar. Se vocês estão desesperados no hospital, tentem sair um dia depois que o navio chamado Mana zarpar para as ilhas”.

Vamos ficar oito dias nas celas, antes de ir para as ilhas, e talvez para fugir seja melhor do que da enfermaria onde nos colocaram, no hospital. No mesmo bilhete, Sierra diz ainda que, se eu concordar, vai mandar um condenado liberto falar comigo, para deixar o barco atrás do hospital. É um sujeito de Toulon, de nome Jesus; foi ele quem preparou a fuga do Dr. Bougrat dois anos atrás. Para encontrá-lo tenho que tirar uma radiografia num pavilhão que tem equipamento especial. O pavilhão fica dentro do recinto do hospital, mas os condenados em liberdade podem ser admitidos com uma autorização falsificada, para tirar uma radiografia. Ele diz para eu tirar o canudo antes de ir para a radiografia, porque o médico pode vê-la, se olhar mais abaixo do pulmão. Mando um recado a Sierra, pedindo para mandar Jesus à radiografia e combinar com Chatal para eu ser mandado lá também. Na mesma noite, Sierra avisa que vai ser depois de amanhã, às 9 horas.

No dia seguinte, Dega pede alta e Fernández também. O Mana zarpou de manhã. Pretendem fugir das celas do presídio, desejo-lhes boa sorte, eu não mudo meus planos.

Encontrei Jesus. É um velho condenado liberto, seco como um bacalhau, rosto moreno, marcado por duas horríveis cicatrizes. Tem um olho que fica lacrimejando o tempo todo, quando olha a gente. Cara feia, olhar perigoso. Não me inspira a menor confiança, o futuro vai provar que eu tenho razão. Entramos logo no assunto:

– Posso arranjar um barco para quatro homens, no máximo cinco. Um tonel de água, comida, café e fumo; três remos, uns sacos vazios, agulha e linha para você mesmo fazer a vela e o cutelo, a vela menor; uma bússola, um machado, uma faca, 5 litros de tafiá (rum da Guiana), tudo por 2 500 francos. A lua some daqui a três dias. Se você aceitar, daqui a quatro dias vou ficar esperando no barco todas as noites, das 11 às 3 da manhã, durante oito dias. No primeiro quarto de lua não vou esperar mais. O barco estará exatamente no canto do muro, atrás do hospital. Vá andando pelo muro, porque enquanto você não estiver em cima do bote não vai conseguir enxergá-lo, nem a 2 metros.

Não confio nele, mas aceito assim mesmo.

– E a gaita? – pergunta Jesus.

– Mando por Sierra.

Despedimo-nos sem apertar as mãos. Nada elegante.

Às 3, Chatal vai até o presídio levar o dinheiro para Sierra, 2 500 francos. Penso comigo: “Jogo esse dinheiro por Galgani, porque é arriscado. Espero que ele não beba essas 2 500 pratas!”

Clousiot está radiante, cheio de confiança em si, em mim e no nosso plano. Só uma coisa o preocupa: quase todas as noites, o carcereiro árabe volta para a enfermaria e, além disso, não muito tarde. Outro problema: quem mais, poderíamos escolher para fazer a proposta? Há um corso do baixo mundo de Nice, chamado Biaggi. Está na colônia desde 1929, encontra-se de prisão preventiva na enfermaria, sob forte vigilância, porque matou um sujeito. Clousiot e eu discutimos se vamos falar com ele e quando. Enquanto conversamos em voz baixa, aproxima-se um rapazinho de uns dezoito anos, bonito como uma mulher. Chama-se Maturette e foi condenado à morte pelo assassinato de um chofer de táxi e mais tarde agraciado por causa da sua idade: dezessete anos. Eram dois rapazes os acusados, de dezesseis e dezessete anos; no tribunal, em vez de se acusarem reciprocamente, esses dois garotos declararam-se ambos autores do crime. O chofer foi morto por um único tiro. Por essa atitude, na época do cesso, os meninos ganharam a simpatia de todos os condenados.

Maturette, completamente efeminado, aproxima-se e pede um fósforo com uma voz de mulher. Acendo seu cigarro e dou-lhe ainda, de presente, quatro cigarros e uma caixa de fósforos. Agradece com um sorriso insinuante, deixamos que se afaste. De repente, Clousiot diz:

– Papi, estamos salvos. O árabe vai voltar quando a gente quiser e à hora que a gente quiser, está no papo.

– Como?

– É muito simples: pedimos a Maturette que se deixe seduzir por ele Você sabe, os árabes adoram os rapazinhos. Daí a entrar de noite para visitar o menino, é um pulo. Maturette vai fazer onda, dizendo que tem medo de ser visto, e o árabe entrará à hora que for melhor para a gente.

– Deixe comigo.

Vou até Maturette, ele me recebe com um sorriso convidativo. Pensa que me conquistou com o seu primeiro sorriso insinuante. Vou logo dizendo:

– Está enganado, vá até as latrinas.

Chegando lá, começo:

– Se falar uma palavra do que vou dizer, você é um homem morto. Está disposto a fazer isso, isso e isso para ganhar uns cobres? Quanto? Prefere fazer o serviço ou quer ir com a gente?

– Quero ir com vocês, está certo?

Prometido. Apertamos as mãos.

Ele vai deitar-se e, depois de trocar algumas palavras com Clousiot, eu também me deito. De noite, lá pelas 8 horas, Maturette senta na janela. Nem precisa chamar o árabe, ele vem sozinho e começam a conversar em voz baixa. Às 10, Maturette se deita. Nós estamos deitados desde as 9 horas, com um olho aberto. O árabe entra na enfermaria, dá duas voltas, encontra um homem morto. Bate na porta e pouco depois entram dois padioleiros com uma maca e levam o morto. Esse morto vai servir para justificar as rondas do árabe a qualquer hora da noite. No dia seguinte, por sugestão nossa, Maturette marca encontro com ele às 11 da noite. O carcereiro chega na hora, passa pela cama do menino, puxa-o pelos pés para acordá-lo, depois dirige-se para as latrinas. Maturette segue-o. Quinze minutos depois aparece o carcereiro, que vai direto para a porta e sai. Imediatamente, Maturette vai deitar-se na sua cama, sem falar com a gente. Na noite seguinte, é a mesma coisa, desta vez à meia-noite. Tudo está dando certo, o árabe vem à hora que o menino indica.

Dia 27 de novembro de 1933. Dois pés da cama vão ser arrancados para servir de arma. Às 4 da tarde, espero um aviso de Sierra. Chata!, o enfermeiro, chega sem bilhete. Ele diz apenas:

– François Sierra falou para avisar que Jesus vai esperar no lugar que foi previamente combinado. Boa sorte.

Às 8 da noite, Maturette diz ao árabe:

– Venha depois da meia-noite; a essa hora, a gente vai poder ficar junto mais tempo.

O árabe diz que virá depois da meia-noite. À meia-noite em ponto estamos prontos. O árabe entra lá pela meia-noite e quinze, vai direto para a cama de Maturette, puxa os pés dele e segue para as latrinas. Maturette entra com ele. Arranco o pé da minha cama, que faz um pouco de barulho ao cair. Do lado de Clousiot nada se ouve. Tenho que ficar atrás da porta dos banheiros e Clousiot vai-se aproximar para chamar sua atenção. Depois de vinte minutos de espera, tudo acontece muito rápido. O árabe sai dos banheiros e, surpreso de ver Clousiot, diz:

– O que é que você está fazendo aí, de pé no meio da sala a esta hora? Vá dormir.

Na mesma hora leva uma pancada em plena nuca e cai sem um ruído. Rápido, visto suas roupas, calço seus sapatos, arrasto-o para debaixo de uma cama e, antes de escondê-lo completamente, dou-lhe outra pancada na cabeça. É a conta.

Nenhum dos oitenta homens da enfermaria se mexeu. Dirijo-me rapidamente para a porta, seguido de Clousiot e Maturette, vestidos apenas com a camisa, e bato. O vigia abre, eu pego o ferro e tac!, na cabeça dele. O outro, da frente, deixa cair o fuzil, com certeza está dormindo. Antes que reaja, dou-lhe uma pancada. Os meus dois não gritaram, o de Clousiot diz “ha!” antes de desmoronar. Os meus dois ficam sentados em suas cadeiras, o terceiro fica esticado no chão em todo o seu comprimento. A gente prende a respiração. Para nós, todos escutaram esse “há!”. Foi muito alto mesmo e, no entanto, ninguém se mexe. Não os levamos para a sala, partimos com os três fuzis. Clousiot primeiro, o rapazinho no meio e eu atrás, descemos pelas escadas mal iluminadas por uma lanterna. Clousiot largou seu pedaço de ferro, eu tenho o meu na mão esquerda e o fuzil na direita. Embaixo, nada. À nossa volta, a noite está escura como breu. Precisamos olhar bem para enxergar o muro, perto do rio; dirigimo-nos rapidamente para lá. Chegando ao muro, faço escadinha. Clousiot sobe, fica escarranchado, puxa Maturette, depois eu. Escorregamos na escuridão do outro lado do muro. Clousiot cai de mau jeito dentro de um buraco e machuca o pé; eu e Maturette chegamos bem. Levantamos, abandonamos os fuzis antes de saltar. Quando Clousiot vai levantar, não consegue, diz que está com a perna quebrada. Deixo Maturette com Clousiot e corro até o canto do muro, segurando com a mão na parede. Está tão escuro, que não percebo quando chego ao fim do muro, minha mão cai e bato com o queixo. Do lado do rio ouço uma voz que diz:

– São vocês?

– Sim. É Jesus?

– É.

Ele acende um fósforo por um instante. Vejo onde ele está. Entro na água, chego até ele. São dois.

– Suba o primeiro. Quem é?

– Papillon.

– Bom.

– Jesus, precisa voltar um pouco mais para cima, meu amigo quebrou a perna caindo do muro.

– Então pegue essa pá e reme.

Os três remos afundam na água e o barco faz depressa os 100 metros que nos separam do lugar onde os outros dois devem estar. Não se enxerga nada. Chamo:

– Clousiot!

– Não fale, diabo! – diz Jesus. – Enflé, rode a pedra do isqueiro. Brilham algumas faíscas, eles perceberam. Clousiot assobia entre os dentes: é um assobio que não faz barulho, mas a gente escuta perfeitamente. Parece o silvo de uma cobra. Assobia sem parar, conduzindo-nos perto dele. Enflé desce, carrega Clousiot nos braços e o coloca na barca. Maturette sobe também, depois Enflé. Somos cinco e a água chega a dois dedos da borda do barco,

– Não façam nenhum movimento sem avisar – diz Jesus. – Papillon, pare de remar, coloque a pá sobre os joelhos. Força, Enflé!

E rapidamente, com a ajuda da correnteza, a barca entra noite adentro.

Quando passamos, depois de 1 quilômetro, diante da penitenciária escassamente iluminada por um velho gerador, estamos no meio do rio, navegando a uma velocidade incrível, levados pela correnteza. Enflé levantou o remo. Somente Jesus, com o cabo do seu colado à coxa, mantém o equilíbrio do barco. Não rema, só dirige.

Jesus diz:

– Agora, a gente pode falar e fumar. Deu tudo certo, acho. Tem certeza de que não matou ninguém?

– Acho que não.

– Diabo! Você me tapeou, Jesus! – diz Enflé. – Você disse que era uma fuga sem problema nenhum, no entanto é uma evasão de condenados, pelo que consegui entender.

– Pois é, são condenados, Enflé. Não quis falar para você, senão você não me ajudava e eu precisava de um homem: Não tem nada. Se eles pegarem a gente, eu fico com toda a responsabilidade.

– Certo, Jesus. Pelas 100 pratas que você me deu, não quero arriscar o meu pescoço se tiver um morto, nem a prisão perpétua se tiver algum ferido.

Então eu digo:

Enflé, vou dar de presente 1 000 francos para vocês dois.

– Tá certo, então, chefe. Regular. Obrigado, a gente morre de fome na aldeia, é pior estar livre do que preso. Pelo menos, preso, a gente tem comida todos os dias e roupa.

– Chefe – diz Jesus a Clousiot -, está sofrendo muito?

– Vai indo – diz Clousiot. – Mas como é que vamos fazer com minha perna quebrada, Papillon?

– Vamos ver. Para onde a gente vai, Jesus?

– Vou esconder vocês numa enseada a 30 quilômetros da saída do mar. Vocês vão ficar lá oito dias, para deixar esfriar o negócio da perseguição dos guardas e dos caçadores de homens. Precisa dar a impressão de que vocês saíram nesta mesma noite do Maroni e entraram no mar. Os caçadores de homens têm umas canoas sem motor, essas canoas são o maior perigo. Fogo, falar, tossir podem ser fatais se eles estiverem por perto, escutando. Os guardas têm uns barcos a motor muito grandes para entrar na enseada, podem tocar o fundo.

A noite fica clara. São quase 4 horas da manhã quando, depois de ter procurado bastante tempo, damos finalmente com o local que só Jesus conhece e entramos na mata. O barco achata os pequenos arbustos, que, após passarmos, tornam a se endireitar atrás de nós, formando uma cortina protetora bem fechada. Precisaria ser um adivinho para saber que ali há água suficiente para dar passagem a um barco. Entramos, penetramos na floresta durante mais de uma hora, afastando os galhos que barram a nossa passagem. De repente encontramo-nos numa espécie de canal e paramos. A margem está verde de grama limpa, as árvores são imensas e a claridade (são 6 horas) não chega a penetrar no meio da folhagem. Debaixo dessa abóbada imponente, os gritos de milhares de animais desconhecidos. Jesus diz:

– É aqui que vocês vão ter que esperar oito dias. Volto no sétimo dia, para trazer mantimentos.

Ele tira de baixo de uma vegetação cerrada uma pequena canoa de uns 2 metros. Dentro dela há dois remos. Ê com esse barco que ele vai voltar, com a maré montante, para Saint-Laurent.

Só então vamos ocupar-nos de Clousiot, que está deitado na margem. Veste ainda a camisa, mas tem as pernas nuas. Com o machado, arranjamos uns galhos secos do formato de ripas. Enflé puxa então o pé de Clousiot, que, suando gotas enormes, num certo momento diz: “Pare! Nessa posição dói menos, o osso deve estar no lugar”. Colocamos as ripas e as amarramos com a corda de cânhamo nova que está dentro da canoa. Ele fica aliviado. Jesus tinha comprado quatro calças, quatro camisas e quatro malhas de lã dos deportados. Maturette e Clousiot se vestem, eu fico com as roupas do árabe. Tomamos um pouco de rum. É a segunda garrafa que esvaziamos desde a partida: esquenta, felizmente. Os mosquitos atacam a gente parar: precisamos sacrificar um pacote de fumo. Colocamos o de molho numa cabaça e passamos o caldo da nicotina no rosto, mãos e nos pés. As malhas são de lã e esquentam, apesar dessa umidade que penetra na gente.

Enflé diz:

– Vamos embora. E as pratas que você prometeu?

Afasto-me um pouco e volto com uma nota de 1 000 novinha em folha.

– Até logo, não saiam daí durante oito dias – diz Jesus. A gente volta daqui a sete dias. No oitavo dia, vocês embarcam. Nesse Tempo todo façam as velas e arrumem o barco, cada coisa no seu lugar, coloquem os gonzos do leme, que não está montado. Se passarem dez dias e a gente não voltar, é porque fomos agarrados na aldeia. Como o negócio engrossou com o ataque ao guarda, vai ter uma encrenca danada.

Por outro lado, Clousiot informa que ele não deixou o fuzil perto do muro. Jogou-o por cima do muro e o rio fica tão perto (ele não sabia disso), que certamente o fuzil caiu na água. Jesus diz que é bom isso, porque, se ele não foi encontrado, os caçadores de homens vão pensar que estamos armados. Eles são os mais perigosos, mas não devemos ter medo: só estão armados com um revólver e um facão e, pensando que temos fuzis, não vão aventurar-se. Até logo, até logo. Se nos descobrirem e precisarmos abandonar a canoa, vamos ter que subir o riacho até a floresta; com a bússola, iremos para o norte. Há muitas chances de a gente encontrar, depois de dois ou três dias de marcha, o presídio da morte chamado Charvein. Lá vamos ter que pagar a alguém para avisar Jesus de que estamos naquele lugar. Vão embora os dois velhos condenados. Alguns minutos depois, sua canoa já desapareceu, não se ouve nada e não se vê nada.

A claridade do dia penetra na floresta de uma maneira toda particular. Parece que estamos embaixo de uma abóbada que recebe o sol pelo alto e não deixa passar nenhum raio. Começa a esquentar. Então, Maturette, Clousiot e eu nos sentimos sós. Primeiro reflexo: damos risada. Tudo correu com a maior facilidade. O único inconveniente é a perna de Clousiot. Ele diz que agora, que ela está presa nas ripas, vai bem. A gente pode esquentar um café. É rápido; acendemos o fogo e tomamos uma bela caneca de café preto cada um, adoçado com açúcar mascavo. Está delicioso. Gastamos tanta energia desde ontem à noite, que não temos coragem de olhar as coisas nem de inspecionar o barco. A gente vê depois. Estamos livres, livres, livres. Faz exatamente 37 dias que chegamos à colônia. Se a fuga der certo, minha prisão perpétua não foi muito longa. Eu falo: Senhor presidente, quanto tempo duram os trabalhos forçados na Prisão perpétua, na França?” E damos uma gargalhada. Maturette também tem prisão perpétua. Clousiot diz: “Não vamos cantar vitória, ainda. A Colômbia está longe, e esse barco feito com uma árvore queimada me parece bem pouca coisa para entrar no mar”.

Não respondo nada porque eu, francamente, até o último momento, pensei que a canoa fosse levar-nos ao lugar onde estaria o barco apropriado para entrar no mar. Descobrindo que estava enganado, não tive a coragem de dizer nada, para não influenciar mal os meus amigos logo no começo. Por outro lado, como Jesus parecia achar tudo aquilo muito natural, não queria dar a impressão de não conhecer os barcos habitualmente utilizados para fugas.

Passamos este primeiro dia falando e tomando contato com essa mata tão desconhecida. Os macacos e pequenas espécies de esquilos fazem terríveis cabriolas em cima das nossas cabeças. Um bando de pequenos porcos selvagens veio beber água e tomar banho. Havia pelo menos 2 000. Entram na enseada e nadam, arrancando as raízes que estão penduradas. Um jacaré sai de não sei onde e agarra a pata de um porco, que começa a se esgoelar como um louco; então, os porcos atacam o jacaré, sobem em cima dele, tentando mordê-lo na junção de sua enorme boca. A cada golpe de rabo, o jacaré faz dançar um porco à direita ou à esquerda. Um deles morre e bóia com o ventre para o ar. Imediatamente, seus companheiros o comem. A enseada está cheia de sangue. O espetáculo dura vinte minutos, o jacaré foge debaixo da água. Não o vimos mais.

Dormimos bem e de manhã fazemos café. Tiro minha malha, para me lavar com um sabonete grande de Marselha que foi encontrado no barco. Com minha navalha, Maturette corta como pode minha barba, depois barbeia Clousiot. Ele, Maturette, não tem barba. Quando pego a malha para vestir, dela cai uma aranha enorme, aveludada e de uma cor negro-violeta. Os pêlos são muito compridos e acabam, na ponta, com uma bolinha platinada. Deve pesar pelo menos uns 500 gramas, é enorme e eu a esmago com nojo. Tiramos todas as coisas do barco, inclusive o pequeno tonel de água. A água está violeta, acho que Jesus colocou permanganato demais dentro dela, para impedir que apodreça. Numas garrafas bem fechadas estão fósforos e lixas. A bússola é daquelas de crianças: marca somente norte, sul, leste e oeste, e não tem graduação. O mastro tem só 2 metros e 50 de altura. Cortamos os sacos de farinha em trapézio e colocamos uma corda na volta toda, para reforçar a vela. Faço uma pequena vela triangular, o cutelo, cortada em forma de triângulo isósceles: ajudará a levantar o nariz do barco na onda.

Quando colocamos o mastro, percebo que o fundo do barco não é sólido: o buraco onde se fixa o mastro está comido e perigosamente gasto. Ao colocarmos as dobradiças que segurarão o leme, os parafusos entram como se a madeira fosse manteiga. Este barco está podre. Aquele porco do Jesus está querendo matar a gente. Contrariado, mostro isso tudo aos dois, não tenho o direito de esconder deles a situação. O que é que vamos fazer? Quando Jesus vier, vamos obrigá-lo a encontrar um barco mais seguro para a gente. Para isso vamos desarmá-lo e eu, armado com faca e machado, vou partir com ele para procurar outro barco na aldeia. É um grande risco, mas é um risco menor do que entrar no mar com um caixão de defunto. Os mantimentos estão em ordem: há um garrafão de óleo e umas caixas cheias de farinha de mandioca. Com isso, a gente vai longe.

Hoje de manhã assistimos a um curioso espetáculo: um bando de macacos de focinho cinzento brigou com uns macacos de focinho preto e aveludado. Maturette, no meio da baderna, levou um pedaço de galho na cabeça e está com um galo grande como uma noz.

Há cinco dias e quatro noites que estamos aqui. Nesta noite choveu torrencialmente. Abrigamo-nos com folhas de bananeiras selvagens. A água escorria em cima de seu verniz, mas não nos molhamos muito, só os pés. Hoje de manhã, tomando café, penso como Jesus é um criminoso. Ter-se aproveitado de nossa inexperiência para empurrar para a gente este barco podre! Para economizar 500 ou 1 000 francos, ele manda três homens à morte certa. Pergunto a mim mesmo se, depois de obrigá-lo a me fornecer um outro barco, não vou matá-lo.

Gritos de gaios alvoroçam todo o nosso pequeno mundo, gritos tão agudos e irritantes, que digo a Maturette para pegar o facão e ir ver o que é. Ele volta depois de cinco minutos e me faz sinal para segui-lo. Chegamos a um local a uns 150 metros do barco e vejo, pendurado no ar, um maravilhoso faisão (ou uma ave parecida com um faisão), duas vezes maior que um galo grande. Está preso num laço e pendurado pela perna num galho. Com um golpe de facão, corto seu pescoço, para acabar com aqueles gritos horripilantes. Suspendo-o, para calcular seu peso, tem pelo menos 5 quilos. Seus esporões são como os dos galos. Decidimos comê-lo, mas, refletindo, achamos que o laço foi colocado lá por alguém e que deve haver outros. Vamos ver. Voltamos para o lugar e encontramos uma coisa curiosa: é uma verdadeira barreira de 30 centímetros de altura, feita de folhas e cipós entrelaçados, a uns 10 metros da enseada. Essa barreira corre paralelamente à água. De vez em quando, uma porta, e na porta, disfarçado por uns galhos pequenos, um laço de arame preso por uma extremidade a um galho de árvore dobrado. Logo imagino que o animal deve chocar com a barreira e percorrê-la até encontrar uma passagem. Quando encontra a porta, passa, mas seu pé fica preso no arame, soltando o galho. Fica então pendurado no ar, até que o proprietário das armadilhas venha buscá-lo.

Essa descoberta nos preocupa. A barreira parece bem conservada e não é velha; corremos o perigo de ser descobertos. Não podemos acender fogo de dia, mas de noite o caçador não vai aparecer. Decidimos fazer um turno de guarda para vigiar, olhando sempre na direção das armadilhas. O barco está escondido embaixo dos galhos e todo o material está na floresta.

Estou de guarda no dia seguinte, às 10 horas. De noite comemos o faisão ou galo, não sabemos bem. O caldo nos fez um bem enorme e a carne, mesmo cozida, era deliciosa. Cada um comeu duas tigelas. Agora estou de guarda. Mas, intrigado com umas formigas-de-mandioca enormes, pretas, cada uma carregando grandes pedaços de folhas, que levam para um enorme formigueiro, esqueço minha guarda. Essas formigas têm mais ou menos 1 centímetro e meio de comprimento e ficam erguidas sobre as patas. Cada uma delas carrega pedaços enormes de folhas. Sigo-as até a árvore que estão descascando e vejo toda uma organização. Antes de tudo, há as cortadeiras, que só preparam os pedaços. Rapidamente cortam com suas tesouras uma enorme folha de uma espécie de bananeira, recortam uns pedaços, todos do mesmo tamanho, com uma habilidade incrível, e os pedaços caem no chão. Embaixo há uma fileira de formigas da mesma espécie, mas um pouco diferentes. Tem do lado da mandíbula uma risca cinzenta e estão em semicírculo, fiscalizando as carregadeiras. Estas chegam pela direita, em fila, e vão para o formigueiro pela esquerda. Rápidas, elas apanham sua carga antes de entrar na fila, mas, de vez em quando, na pressa de se carregarem e entrarem na fila, criam um atravancamento. Então intervêm as formigas policiais e empurram cada uma das operárias para o lugar que elas devem ocupar. Não consigo compreender que falta grave cometeu uma operária, mas ela é retirada da fileira por duas formigas policiais: uma arranca-lhe a cabeça; a outra corta-lhe o corpo em dois, na altura da cintura. Duas operárias são obrigadas a parar pelos guardas; colocam no chão seu pedaço de folha, fazem um buraco com suas patas, e as três partes da formiga, cabeça, peito e o resto do corpo, são enterradas e depois cobertas de terra.

A ILHA DOS POMBOS

Estava tão absorvido, olhando esse pequeno mundo e seguindo os soldados, para ver se sua vigilância ia até a entrada do formigueiro, que fiquei totalmente surpreso quando uma voz disse:

– Não se mova, ou você é um homem morto. Vire.

É um homem de peito nu, short cáqui, calçado com um par de botas de couro vermelho. Segura na mão um fuzil de dois canos. É de estatura média, atarracado, queimado pelo sol. É careca e seus olhos e seu nariz estão cobertos por uma máscara azul forte, tatuada. Bem no meio da testa, está tatuada também uma barata.

– Você está armado?

– Não.

– Está sozinho?

– Não.

– Quantos vocês são?

– Três.

– Leve-me até os seus amigos.

– Não posso, porque um deles está com um fuzil e não quero que você seja morto antes de saber suas intenções.

– Ah! Então não se mova e fale delicadamente. São vocês os três caras que fugiram do hospital?

– Somos.

– Quem é Papillon?

– Sou eu.

– Muito bem, você pode dizer que fez uma revolução na aldeia com sua fuga! A metade dos libertos está presa no quartel de polícia.

Ele se aproxima de mim e, abaixando o cano do fuzil para o chão, estende a mão para mim e diz:

– Sou o bretão mascarado, já ouviu falar de mim?

– Não, mas estou vendo que você não é um caçador de homens.

– Você tem razão, coloco armadilhas aqui para apanhar aves. O tigre deve ter comido uma, a não ser que tenham sido vocês.

– Fomos nós.

– Você quer café?

Num saco que ele carrega nas costas há uma garrafa térmica; ele me dá um pouco de café e toma também. Digo-lhe:

– Venha ver meus amigos.

Ele vem e se senta com a gente. Ri calmamente da história do fuzil e diz:

– Eu acreditei mesmo porque nenhum dos caçadores de homens quis vir procurar vocês; todo mundo acha que estão com um fuzil.

Explica que vive na Guiana há vinte anos e está livre há cinco. Tem 45 anos. Por causa dessa besteira que ele fez, de tatuar aquela máscara no rosto, a vida na França não lhe interessa. Adora a floresta e vive exclusivamente dela: pele de cobra, pele de tigre, coleção de borboletas e sobretudo a caça ao hocco vivo, o pássaro que nós comemos. Ele os vende a 200 ou 250 francos. Eu me ofereço para pagar, ele recusa, indignado. Conta-nos o seguinte:

– Esse pássaro selvagem é um galo do mato. Claro que ele nunca viu nem galinha, nem galo, nem homens. Bom, eu apanho um, levo até a aldeia e o vendo logo para alguém que tenha um galinheiro, porque ele é muito procurado. Bom. Sem cortar as asas, sem fazer nada, você o coloca à tardinha, no princípio da noite, dentro do galinheiro e de manhã, quando a gente abre a porta, ele fica plantado na frente e parece que conta as galinhas e os galos que vão saindo. Ele os segue e, comendo com eles, olha com os olhos bem abertos para todos os lados, para baixo, para cima, nos arbustos em volta. É um cão de guarda sem igual. De noite, fica na porta e não se entende como sabe quando falta uma galinha ou duas, mas sabe, e vai procurá-las. E, galo ou galinha, ele os bota para dentro a grandes golpes de bico, para ensiná-los a chegar na hora. Mata ratos, cobras, aranhas, musaranhos, centopeias e, assim que uma ave de rapina aparece no céu, manda todo mundo se esconder no meio do capim, enquanto ele a enfrenta. Nunca mais sai do galinheiro. Esse pássaro extraordinário, nós o comemos como um galo vulgar. O bretão mascarado diz que Jesus, Enflé e mais uns trinta libertos estão na cadeia, no posto de polícia de Saint-Laurent, onde iam olhar os libertos para ver se reconheciam alguém que rondava em volta do prédio de onde nós saímos. O árabe está na masmorra do posto, incomunicável, acusado de cumplicidade. As duas pancadas que levou não provocaram ferimento algum, enquanto os guardas têm um ligeiro inchaço na cabeça. “Eu não fui incomodado porque todo mundo sabe que nunca me preocupei em preparar uma fuga.” Diz que Jesus é um grandessíssimo porco. Quando falo do barco, ele quer vê-lo. Depois de examiná-lo, exclama:

– Mas ele ia matar vocês, esse cara! Nunca essa canoa agüentaria mais de uma hora no mar. Com a primeira onda um pouco forte, quando bater o fundo na água, vai se partir em dois. Jamais embarquem nisso aí, é um suicídio.

– E então, o que é que vamos fazer?

– Você tem um pouco de grana?

– Tenho.

– Vou-lhe dizer o que é que você deve fazer, e mais do que isso, vou ajudar você, você merece. Vou ajudar você e seus amigos a saírem dessa e não quero nada.

“Não devem chegar perto da aldeia de jeito nenhum. Para arranjar uma boa embarcação, precisam ir até a Ilha dos Pombos. Nessa ilha se encontram uns duzentos leprosos. Não existem guardas e nenhuma pessoa sadia vai até lá, nem o médico. Todos” os dias, uma barca leva os mantimentos para 24 horas, crus. O enfermeiro do hospital manda uma caixa de medicamentos aos dois enfermeiros, também leprosos, que tomam conta dos doentes. Ninguém, nem guarda, nem caçadores de homens, nem padre, desce na ilha. Os leprosos vivem numas palhoças pequenininhas construídas por eles mesmos. Têm um salão onde se reúnem. Criam galinhas e patos que servem para melhorar o trivial. Oficialmente, não podem vender nada fora da ilha, mas traficam clandestinamente com Saint-Laurent, Saint-Jean e os chineses de Albina, na Guiana Holandesa. São todos assassinos perigosos. Raramente se matam entre si, mas praticam inúmeras malvadezas quando saem clandestinamente da ilha, aonde voltam para não serem presos pelos crimes cometidos. Para essas excursões têm alguns barcos, roubados na aldeia vizinha. O crime maior é ter um barco. Os guardas atiram em todo barco que entra ou sai da Ilha dos Pombos. Os leprosos afundam seus barcos, enchendo-os de pedras: quando precisam de uma embarcação, mergulham para tirar as pedras e a barca vem à tona. Tem de tudo na ilha, de todas as raças e de todas as regiões da França. Conclusão: sua canoa só serve dentro do Maroni e, ainda assim, pouco carregada. Para entrar no mar, precisa encontrar outro barco, e o melhor é ir até a Ilha dos Pombos.

– Como é que a gente faz?

– Olhe. Eu vou acompanhar você pelo rio até avistar a ilha. Você não a encontraria ou poderia errar. Ela fica a mais ou menos 150 quilômetros da embocadura; é preciso, então, voltar para trás. Essa ilha fica longe de Saint-Laurent, a mais de 50 quilômetros. Vou deixá-lo o mais próximo possível; depois, passo para a minha canoa, que vamos rebocar, e você se vira na ilha.

– Por que é que você não vem até a ilha com a gente?

– Barbaridade – diz o bretão -, só botei o pé um dia no pontão onde oficialmente atraca o barco da administração. Era dia claro e, portanto, o que vi foi bastante para mim. Desculpe, Papi, mas nunca mais na minha vida vou botar os pés naquela ilha. Inclusive, seria incapaz de vencer minha repulsão perto deles, falando e tratando com eles. Eu seria mais prejudicial do que útil.

– Quando vamos partir?

– À noitinha.

– Que horas são, bretão?

– Três horas.

– Bom, vou dormir um pouco.

– Não, você precisa carregar tudo e arrumar na canoa.

– Não, eu vou com a canoa vazia e volto para procurar Clousiot, que vai ficar aqui para vigiar as coisas.

– Impossível, você nunca poderá encontrar o lugar, mesmo em pleno dia. E, de dia, de maneira nenhuma você deve ficar no rio. A caça contra vocês não acabou. O rio ainda é muito perigoso.

Chega a noite. Ele vai buscar sua canoa, que amarramos atrás da nossa. Clousiot fica perto do bretão, manejando a pá do leme, Maturette no meio, eu na frente. Saímos com dificuldade da enseada e, quando desembocamos no rio, a noite vai caindo. Um sol imenso, de um vermelho pardacenta, incendeia o horizonte no mar. Mil fagulhas, como as de um enorme fogo de artifício, lutam entre si para serem as mais intensas, as mais vermelhas entre as vermelhas, as mais amarelas entre as amarelas, as mais matizadas nas partes onde as cores se misturam. Vemos claramente, a 20 quilômetros na nossa frente, o estuário desse rio majestoso que se precipita todo cintilante de lantejoulas rosadas dentro do mar. O bretão diz:

– É o fim da vazante. Dentro de uma hora teremos a maré montante; vamos aproveitá-la para subir o Maroni e assim, sem esforço, empurrados por ela, iremos bem rápido até a ilha.

A noite cai de repente.

– Para frente – diz o bretão. – Vamos remar com força, para pegar o meio do rio. Não fumem mais.

As pás dos remos entram na água e nós voamos, cortando a correnteza rapidamente, chuá, chuá, chuá. Bem cadenciados, eu e o bretão puxamos sincronizadamente os remos. Maturette faz o que pode. Quanto mais avançamos para o meio do rio, mais sentimos que a maré nos empurra. Deslizamos rapidamente, percebe-se a mudança a cada meia hora. A maré aumenta de força e nos arrasta sempre mais depressa. Depois de seis horas, estamos bastante perto da ilha. Vamos direto para cima: uma grande mancha, quase no meio do rio, levemente para a direita. “É lá”, diz em voz baixa o bretão. A noite não está muito negra, mas deve ser difícil nos enxergarem de longe, por causa da neblina na superfície do rio. Vamos chegando. Quando distinguimos melhor a silhueta das rochas, o bretão passa para a sua canoa, desamarra-a rapidamente da nossa e diz simplesmente, em voz baixa:

– Boa sorte, amigos!

– Obrigado.

– Não tem de quê.

O barco, não mais dirigido pelo bretão, é empurrado na direção da ilha, mas vai atravessado. Tento endireitá-lo, fazer meia volta, mas sou mal sucedido e, levados pela corrente, entramos até três quartos da vegetação que invade a água. Chegamos com tanta velocidade que, mesmo freando com meu remo, se tivéssemos encontrado uma rocha, em vez de galhos e folhas de árvores, teríamos quebrado a canoa; então estaria tudo perdido, mantimentos, material, etc. Maturette pula dentro da água e puxa a canoa. Estamos debaixo de um enorme tufo de plantas. Ele puxa mais um pouco e amarramos nele a canoa. Tomamos um gole de rum e eu desço sozinho para a margem, deixando meus dois amigos no barco.

Com a bússola na mão, vou andando, depois de partir vários galhos e prender em diferentes lugares tiras de sacos de farinha que preparei antes de partir. Vejo um clarão e escuto de repente vozes, vindas de três palhoças. Aproximo-me e, como não sei de que forma me apresentar, decido deixar que me descubram. Acendo um cigarro. No instante em que a luz brilha, um cachorrinho precipita-se em minha direção latindo e dá pulos para morder minhas pernas. “Será que o cachorro é leproso?”, penso. “Idiota, os cachorros não têm lepra.”

– Quem está aí? Quem é? É você, Marcel?

– É um foragido.

– O que é que você vem fazer aqui? Roubar a gente? Acha que temos alguma coisa pra ser roubada?

– Não, preciso de ajuda.

– Grátis ou paga?

– Cale a boca, Chouette!

Quatro sombras saem das palhoças.

– Venha devagar, amigo, aposto que é você o sujeito do fuzil. Se está com ele, ponha-o no chão; aqui, você não tem nada a temer.

– Sou eu, mas o fuzil não está comigo.

Vou para a frente, estou perto deles, é noite e não posso distinguir os traços. Bestamente estendo a mão, ninguém toca nela. Compreendo tarde demais que é um gesto que aqui não se faz: eles não me querem contaminar.

– Vamos para a cabana – diz Chouette.

A palhoça é iluminada por um lampião a óleo colocado em cima da mesa.

– Sente-se.

Sento-me numa cadeira de palha, sem encosto, Chouette acende três outros lampiões a óleo e coloca um sobre a mesa, bem à minha frente. A fumaça que solta o pavio deste lampião de óleo de coco tem um cheiro enjoativo. Estou sentado, eles cinco de pé, não enxergo seus rostos. A luz ilumina o meu porque estou bem na altura do lampião, como eles queriam. A voz que mandou Chouette calar a boca diz:

– Anguille, vá perguntar à casa comum se querem que a gente o leve para lá. Traga logo a resposta e pergunte se Toussaint está de acordo. Aqui não lhe podemos oferecer nada para beber, meu amigo, a não ser que você queira chupar uns ovos.

Coloca na minha frente um cesto trançado cheio de ovos.

– Não, obrigado.

À minha direita, bem perto de mim, um deles se senta e é então que vejo o primeiro rosto de um leproso. É horrível e faço um esforço enorme para não virar a cara nem exteriorizar minha impressão. O nariz está completamente corroído, osso e carne, um buraco bem rente no meio do rosto. Tenho certeza: não são dois buracos, mas um só, grande como uma moeda de 2 francos. O lábio inferior, à direita, está comido e deixa aparecerem, descarnados, três dentes muito compridos e amarelos que se encravam no osso do maxilar superior a nu. Só tem uma orelha. Coloca a mão em cima da mesa, enrolada num curativo. É a direita. Com os dois dedos que restam na mão esquerda, segura um charuto grosso e comprido, feito na certa Por ele mesmo, com folha de fumo meio maduro, porque o charuto está esverdeado. Só tem pálpebras no olho esquerdo; no direito, não. Uma ferida profunda sai do olho para o alto da testa, perdendo-se nos cabelos grisalhos abundantes.

Com uma voz muito rouca, ele me diz:

– Vamos ajudar você, amigo; você levaria muito tempo para ficar como eu, e não quero isso.

– Obrigado.

– Meu nome é Jean Sans Peur, sou dos subúrbios de Paris. Eu era mais bonito, mais sadio e mais forte do que você, quando cheguei à colônia. Em dez anos, olhe aqui o que eu fiquei.

– Não cuidam de você?

– Cuidam. Melhoro depois que tomo umas injeções de óleo de choumogra. Olhe.

Vira a cabeça e me apresenta o lado esquerdo:

– Secou desse lado.

Uma imensa piedade me invade e faço um gesto para tocar sua face esquerda, como demonstração de amizade. Ele se joga para trás e me diz:

– Obrigado por querer me tocar, mas nunca toque um doente, nem coma, nem beba na sua tigela.

Só pude ver o rosto de um dos leprosos: aquele que teve a coragem de suportar que eu o olhasse.

– Onde está o cara?

Na porta, uma sombra de um homenzinho do tamanho de um anão:

– Toussaint e os outros querem vê-lo. Leve-o para o centro. Jean Sans Peur levanta e me diz: “Siga-me”. Saímos todos na noite, quatro ou cinco na frente, eu ao lado de Jean Sans Peur, outros atrás. Quando chegamos, depois de três minutos, em cima de uma esplanada, um pouco de lua ilumina o lugar. É o topo plano da ilha. No meio, uma casa. Sai luz de duas janelas. Na frente da porta, uns vinte homens esperam a gente, vamos na direção deles. Quando chegamos diante da porta, eles se afastam para dar passagem. É uma sala retangular de 10 metros de comprimento por aproximadamente 4 de largura, com uma espécie de fogão onde queima lenha, cercado por quatro enormes pedras, todas da mesma altura. A sala está iluminada por dois grandes lampiões a petróleo. Sentado num banquinho, um homem sem idade, branco de rosto. Atrás dele, num banco, cinco ou seis homens. Ele tem olhos negros e me diz:

– Sou Toussaint, o corso, e você deve ser Papillon.

– Sou.

– As notícias correm rapidamente na colônia, tão rapidamente quanto você. Onde você botou o fuzil?

– Jogamos no rio.

– Em que lugar?

– Em frente ao muro do hospital, exatamente onde pulamos.

– Então, será que pode ser recuperado?

– Acho que sim, porque a água não é funda naquele lugar.

– Como é que você sabe?

– Tivemos que entrar na água para carregar meu amigo ferido e colocá-lo dentro da canoa.

– O que ele tem?

– Uma perna quebrada.

– O que você fez com ele?

– Coloquei em volta da perna uns galhos quebrados pela metade e fiz uma espécie de tala.

– Ele está sentindo dor?

– Está.

– Onde ficou?

– Na canoa.

– Você disse que veio procurar ajuda. Que tipo de ajuda?

– Um barco.

– Você quer que a gente dê um barco para você?

– Quero, tenho dinheiro para pagar.

– Bom. Vou-lhe vender o meu, é formidável e novo em folha, roubei na semana passada, em Albina. Não é um barco, é um transatlântico. Só falta uma coisa, uma quilha. Não está quilhado, mas, em duas horas, a gente vai colocar uma boa quilha. Tem tudo que precisa: um leme com a cana completa, um mastro de 4 metros de madeira de lei e uma vela novinha de tela de linho. Quanto é que você oferece?

– Diga seu preço, eu não sei quanto valem essas coisas.

– Três mil francos, se você puder pagar; se não puder, vá buscar o fuzil amanhã à noite e, em troca, eu dou o barco.

– Não, eu prefiro pagar.

– Está certo, negócio feito. La Puce, dá café.

La Puce, o quase anão que me foi buscar, vai até uma prateleira presa na parede em cima do fogo, pega uma tigela brilhante de nova e de limpeza, despeja nela o café de uma garrafa e a coloca no fogo. Um minuto depois retira a tigela e despeja um pouco de café numas canecas, que estão perto das pedras. Toussaint se debruça e passa as canecas para os homens atrás dele. La Puce estende a tigela para mim e diz:

– Beba sem medo, porque esta tigela é só para as visitas. Nenhum doente bebe nela.

Pego a tigela e bebo; depois coloco-a em cima do joelho. Nesse momento, percebo que colado na tigela tem um dedo. Enquanto o observo, La Puce diz:

– Olhe, perdi outro dedo! Onde será que caiu?

– Está aí – digo, mostrando para ele a tigela. Ele desgruda O dedo e joga-o no fogo; devolve a tigela e diz:

– Pode beber, eu tenho a lepra seca. Vou acabando aos pedaços, mas não apodreço, não sou contagioso.

Um cheiro de carne grelhada chega até mim. Raciocino comigo mesmo: “Isso deve ser aquele dedo”. Toussaint diz:

– Vai ter que passar o dia todo aqui, até a noite, quando vier a vazante. Você precisa avisar seus amigos. Traga o ferido para dentro de uma palhoça, tirem tudo o que tiver dentro da canoa e deixe que vá. Nenhum de nós pode ajudá-los, você compreende por quê.

Rapidamente vou até os outros dois, pegamos Clousiot e depois o levamos até uma palhoça. Uma hora depois, já tiramos tudo e o material da canoa está cuidadosamente arrumado. La Puce pede que lhe dê de presente a canoa com um remo. Dou e ele vai levá-la até um lugar que conhece. A noite passou depressa. Estamos os três dentro da palhoça, deitados em cima de cobertas novas que Toussaint mandou. Chegaram embrulhadas num papel forte de embalagem. Esticado em cima dessas cobertas, conto a Clousiot e a Maturette os detalhes daquilo que se passou depois da minha chegada na ilha e do negócio concluído com Toussaint. Clousiot fala uma coisa besta, sem refletir:

– A fuga custa então 6 500 francos. Vou dar a metade, Papillon, isto é, os 3 000 francos que tenho.

– Não estamos aqui para fazer contas de mascate. Enquanto tiver dinheiro, eu pago. Depois, a gente vê.

Nenhum leproso entra na palhoça. Amanhece, Toussaint chega:

– Bom dia. Podem sair sossegados. Aqui, ninguém vem incomodar. Em cima de um coqueiro, no alto da ilha, tem um sujeito para ver se há embarcações de guardas no rio. Não se vê nada. Enquanto o trapo branco ficar agitando é porque não tem nada à vista. Se ele vê alguma coisa, desce para dizer. Podem pegar uns mamões e comer, se quiserem.

– Toussaint, e a quilha? – digo eu.

– Vamos fazer a quilha com uma tábua da porta da enfermaria. É madeira pesada. Com duas tábuas, podemos fazer a quilha. Já carregamos o barco até o alto, aproveitando a noite. Venha ver.

Vamos. É um barco magnífico de 5 metros de comprimento, novo em folha, dois assentos, um deles furado para deixar passar o mastro. É pesado e eu e Maturette custamos para virá-lo. A vela e as cordas são novas. Do lado, estão pregados umas argolas, para amarrar a carga e o tonel da água. Começamos a trabalhar. Ao meio-dia, uma quilha, que se vai alinhando da parte traseira até a frente, é solidamente fixada com porcas largas e os quatro parafusos que eu tinha.

Em círculo, à volta da gente, os leprosos nos olham trabalhar sem dizer uma palavra. Toussaint diz como se deve fazer e nós obedecemos. Nenhuma chaga existe no rosto de Toussaint, que parece normal; mas, quando ele fala, percebe-se que só um lado do rosto se mexe, o esquerdo. Ele me falou que também sofre de lepra seca. Seu peito e seu braço direito estão igualmente paralisados e ele sabe que daqui a pouco a perna direita vai ficar paralisada. O olho direito é fixo como um olho de vidro, enxerga mas não se mexe. Não dou aqui o nome de nenhum dos leprosos. Talvez nunca aqueles que os amaram ou conheceram cheguem a saber de que maneira horrível eles ficaram se decompondo ainda vivos.

Sempre trabalhando, converso com Toussaint. Ninguém mais fala. Só uma vez, quando ia buscar algumas dobradiças que eles tinham arrancado de um móvel da enfermaria para reforçar o assentamento da quilha, um deles disse:

– Não pegue nelas ainda, deixe onde estão. Eu me cortei arrancando uma e tem sangue; o sangue ficou, por mais que eu tenha enxugado.

Um leproso derramou um pouco de rum em cima e botou fogo duas vezes.

– Agora – disse o homem -, você pode usá-las.

Enquanto trabalhamos, Toussaint diz a um leproso:

– Você, que fugiu muitas vezes, explique bem a Papillon como é que precisa fazer, porque nenhum dos três tem experiência.

Imediatamente ele explica:

– Daqui a pouquinho vai anoitecer e virá o refluxo. A maré vazante começa às 3 horas. Assim que escurecer, lá pelas 6 horas, você tem pela frente uma correnteza muito forte que vai levar você em menos de três horas a uns 100 quilômetros da embocadura. Quando você tiver que parar, serão 9 horas. Vai ter que esperar, bem amarrado a uma árvore da floresta, as seis horas da montante, até as 3 da manhã. Não saia a essa hora, porque a correnteza não cessa logo. Siga pelo meio do rio, às 4 e meia da manhã. Você tem uma hora e meia antes do amanhecer para fazer 50 quilômetros. Essa hora e meia é toda a chance que você tem. Às 6 horas, ao amanhecer, você precisa entrar no mar. Mesmo que os guardas vejam você, não podem persegui-lo, porque chegariam na barra da embocadura justo quando começa a montante. Eles não vão poder passar e você já terá passado a barra. Desse quilômetro de vantagem que você precisará ter quando eles o enxergarem é que vai depender sua vida. Aqui só há uma vela, o que é que você tinha na canoa?

– Uma vela e um cutelo.

– Este barco é pesado, pode agüentar dois cutelos: um a traquete, da ponta do barco à parte de baixo do mastro; o outro enfunado, saindo para fora da ponta da embarcação, para poder levantar bem a proa. Solte todas as velas, direto em cima das ondas do mar, que está sempre agitado no estuário. Mande seus amigos se deitarem no fundo do barco, para dar maior estabilidade, e segure firme o leme na mão. Não amarre a corda que segura a vela na sua perna, enfie-a na argola que existe para isso dentro do barco e prenda-a no seu pulso com uma volta só. Quando notar que a torça do vento está formando um vagalhão e você poderá cair na água, com risco de virar, solte tudo e imediatamente verá que seu barco vai readquirir equilíbrio. Se acontecer isso, não pare, deixe a vela esvoaçar e vá sempre para a frente a todo pano, com o traquete e o cutelo. Só em alto-mar você vai ter tempo de descer a vela pelo pequeno, trazê-la a bordo e partir de novo, depois de tornar a colocá-la. Você conhece a rota?

– Não. Sei somente que a Venezuela e a Colômbia ficam a noroeste.

– É isso, mas cuidado para não se deixar atirar na costa. A Guiana Holandesa, em frente, devolve os fugitivos; a Guiana Inglesa também. Trinidad não devolve, mas obriga-os a ir embora depois de quinze dias. A Venezuela devolve, depois de obrigar a gente a trabalhar nas estradas por um ano ou dois.

Escuto com os ouvidos bem atentos. Ele diz que foge de tempos em tempos, mas, como é leproso, é mandado de volta imediatamente. Confessa que nunca foi mais longe do que a Guiana Inglesa, Georgetown. Só tem lepra visível nos pés, onde todos os dedos desapareceram. Está descalço. Toussaint pede para eu repetir todos os conselhos que acabaram de me dar e eu repito sem me enganar. Nessa hora, Jean Sans Peur diz:

– Quanto tempo ele vai levar em alto-mar?

Respondo logo, antes de qualquer outra pessoa:

– Vou fazer três dias nor-nordeste. Com a deriva, norte-norte e no quarto dia vou tocar para noroeste, que vai dar oeste pleno.

– Ótimo – diz o leproso. – Eu, a última vez, só fiz dois dias para nordeste; assim, fui cair na Guiana Inglesa. Com três dias para norte, você vai passar ao norte de Trinidad ou de Barbados, e de uma vez só você passará a Venezuela sem perceber; vai dar em cima de Curaçau ou na Colômbia.

Jean Sans Peur diz:

– Toussaint, por quanto você vendeu o barco?

– Três mil – diz Toussaint. – É caro?

– Não, não estou falando por causa disso. Para saber, só. Você pode pagar, Papillon?

– Posso.

– Vai sobrar algum dinheiro para vocês?

– Não, é tudo o que temos, exatamente 3 000, que são do meu amigo Clousiot.

– Toussaint, dou meu revólver para você – diz Jean Sans Peur.

– Vou ajudar esses caras. Por quanto você fica com o revólver?

– Mil francos – diz Toussaint. – Eu também quero ajudá-los.

– Obrigado por tudo – diz Maturette a- Jean Sans Peur.

– Obrigado – diz Clousiot.

Eu nessa hora fico com muita vergonha por ter mentido a eles e digo:

– Não, não posso aceitar isso de você, não há razão nenhuma.

Ele olha para mim e diz:

– Há, há uma razão. Três mil francos é muito dinheiro e, no entanto, por esse preço, Toussaint perde pelo menos 2 000 porque é um barco excelente que ele dá para vocês. Não há razão para que eu não faça alguma coisa também para vocês.

Acontece então uma coisa emocionante: Chouette coloca no chão um chapéu e os leprosos vão jogando dentro dele notas ou moedas. Aparecem leprosos de todas as partes e todos põem alguma coisa. Fico cheio de vergonha. E, no entanto, não posso dizer que ainda tenho dinheiro. Que fazer, meu Deus, é uma infâmia que estou cometendo contra tanta nobreza: “Por favor, não façam esse sacrifício!” Um negro do Sudão, completamente mutilado – tem dois cotos no lugar das mãos, e nem um dedo -, diz:

– O dinheiro não serve para a gente viver. Pode aceitar sem se envergonhar. O dinheiro só serve para a gente jogar ou trepar com as leprosas que vêm de vez em quando de Albina.

Estas palavras me consolam e me impedem de confessar que tenho mais dinheiro.

Os leprosos cozinharam duzentos ovos. Eles os trazem dentro de uma caixa marcada com uma cruz vermelha. É o caixote que receberam pela manhã, com os remédios do dia. Trazem também duas tartarugas vivas de pelo menos 30 quilos cada uma, fumo em folhas, duas garrafas cheias de fósforos e de lixas, um saco de pelo menos 50 quilos de arroz, dois sacos de carvão de lenha, um fogareiro, o da enfermaria, e um botijão de querosene. Toda essa miserável comunidade comove-se com nosso caso e querem todos contribuir para o nosso bom êxito. Parece que são eles que vão fugir. Puxamos a barca para perto do lugar onde chegamos. Contaram o dinheiro do chapéu: 810 francos. Tenho que dar só 1 200 francos a Toussaint. Clousiot me dá o seu canudo, eu o abro na frente de todo mundo. Contém uma nota de 1 000 e quatro notas de 500 francos. Dou a Toussaint 1 500 francos, ele me devolve 300 e depois diz:

– Tome, pegue o revólver, dou de presente. Você jogou tudo por tudo, não quero que na última hora falte uma arma, esta serve. Espero que você não vá precisar dela.

Não sei como agradecer, antes de tudo a ele e depois a todos os outros. O enfermeiro preparou uma caixinha com algodão, álcool, aspirina, ataduras, iodo, uma tesoura e esparadrapo. Um leproso traz umas ripas bem aplainadas e finas e duas ataduras Velpeau dentro de uma embalagem nova em folha. Ele as oferece, para que eu troque as ripas de Clousiot.

Lá pelas 5 horas começa a chover. Jean Sans Peur diz:

– Vocês têm todas as chances. Não há perigo de vocês serem vistos, podem partir imediatamente e ganhar uma boa meia hora. Assim, vocês vão estar mais perto da embocadura para sair às 4 e meia da manhã.

– Como é que vou saber a hora? – digo-lhe.

– A maré vai-lhe dizer quando sobe e quando desce.

Colocamos o barco na água. Não é como a canoa. Fica para cima da água mais de 40 centímetros, carregado com todo o material e nós três. O mastro, com a vela enrolada, está deitado porque só vamos colocá-lo na saída. Colocamos o leme com seu varão de segurança e a cana, mais uma almofada de cipós para eu sentar. Com as cobertas, arranjamos um canto no fundo do barco para Clousiot, que não quis trocar o curativo. Ele está junto aos meus pés, entre mim e o tonel de água. Maturette fica no fundo, mais para a frente. Tenho imediatamente uma impressão de segurança que nunca tive com a canoa.

Chove sempre, eu tenho que descer o rio pelo centro, mas um pouco à esquerda do lado da costa holandesa. Jean Sans Peur diz:

– Adeus, desapareçam logo!

– Boa sorte! – diz Toussaint e dá um empurrão no barco com o pé.

– Obrigado, Toussaint, obrigado, Jean, mil vezes obrigado a todos!

E nós desaparecemos logo, levados pelo refluxo que já começou há duas horas e meia, navegando com uma rapidez incrível.

Continua chovendo, não enxergamos 2 metros à nossa frente. Como há duas pequenas ilhas mais para baixo, Maturette se debruça para a frente, os olhos fixos adiante, para não irmos em cima das pedras. Anoiteceu. Uma árvore enorme que desce o rio conosco, felizmente mais lentamente, nos atrapalha um instante com seus galhos. Livramo-nos rapidamente e continuamos, a 30 por hora pelo menos. Fumamos, tomamos rum. Os leprosos nos deram seis garrafas de chianti com guarnição de palha, cheias de rum. Coisa gozada, nenhum de nós fala das feridas horrorosas que vimos nos leprosos. O único assunto da conversa: a bondade, a generosidade, a honestidade deles, nossa sorte de ter encontrado o bretão mascarado que nos conduziu até a Ilha dos Pombos. Chove cada vez mais forte, estou ensopado até a alma, mas as malhas de lã são tão boas, que, mesmo ensopadas, esquentam. Não estamos com frio. Só a mão que maneja o leme se endurece debaixo da chuva.

– Agora – diz Maturette – estamos descendo a mais de 40 por hora. Há quanto tempo você acha que a gente saiu?

– Vou-lhe dizer – diz Clousiot. – Espere um pouco: três horas e quinze minutos.

– Está louco? Como é que você sabe?

– Depois da saída contei trezentos segundos e a cada vez cortei um pedaço de papelão. Tenho 39 pedaços. A cinco minutos cada um são a três horas e um quarto que estamos descendo. Se não estiver enganado, daqui quinze a vinte minutos não vamos mais descer, vamos voltar para onde viemos.

Puxo o leme à direita, para pegar o rio em diagonal, e me aproximar da margem, do lado da Guiana Holandesa. Antes de a gente chocar com a vegetação, a correnteza pára. Não descemos mais, nem subimos. Chove sempre. Não fumamos mais, não falamos mais, murmuramos: “Pegue o remo e puxe para cima”. Eu mesmo remo, prendendo o leme embaixo da minha coxa direita. Suavemente encostamos na vegetação, puxamos os galhos e nos abrigamos debaixo deles. Estamos sob a sombra formada pela vegetação. O rio está cinzento, cheio de neblina. Seria impossível dizer, sem se basear no fluxo e refluxo, onde está o mar e onde está o rio.

A GRANDE PARTIDA

A maré montante vai durar seis horas. Além delas, durante mais uma hora e meia temos que esperar o refluxo. Posso dormir sete horas, portanto, apesar de estar excitadíssimo. Preciso dormir, porque, depois de entrarmos no mar, quando vou poder? Estico-me entre o tonel e o mastro, Maturette coloca uma coberta como abrigo entre o banco e o tonel; bem protegido, durmo, durmo. Absolutamente nada vem perturbar meu sono de chumbo, nem sonhos, nem chuva, nem má posição. Durmo, durmo, até o momento em que Maturette me acorda:

– Papi, achamos que está na hora, ou quase. O refluxo começou faz tempo.

O barco está seguindo para o mar e a correnteza embaixo dos meus pés corre depressa, depressa. Não chove mais, um quarto de lua permite enxergar claramente o rio 100 metros adiante, que arrasta capim, árvores, formas negras. Procuro ver a divisão entre o rio e o mar. Onde nós estamos não tem vento. Será que tem no meio do rio? É forte? Saímos de baixo dos arbustos, o barco sempre preso a uma raiz grande com um nó corredio. É olhando para o céu que descubro a costa, o fim do rio, o começo do mar. Descemos muito mais do que pensávamos e tenho a impressão de que não estamos a 10 quilômetros da embocadura. Tomamos um bom gole de rum. Pergunto: “Colocamos o mastro agora?” Colocamos. Endireitamos o mastro e ele fica bem encaixado no seu soquete, no buraco do banco. Iço a vela sem soltá-la, ela fica enrolada em volta do mastro. O traquete e o cutelo vão ser imediatamente içados por Maturette quando eu achar necessário. Para fazer funcionar a vela, basta soltar a corda que a mantém colada ao mastro; e eu, do meu lugar farei a manobra. Na frente, Maturette com um remo, eu atrás com outro. A gente precisa se afastar com um impulso muito forte e muito rápido da margem para onde a correnteza nos empurra.

– Atenção. Para a frente, com a graça de Deus!

– Com a graça de Deus – repete Clousiot.

– Em tuas mãos eu me entrego – diz Maturette.

E arrancamos. Ao mesmo tempo, puxamos a água com os remos; eu afundo bastante e puxo, Maturette também. Afastamo-nos facilmente. Não estamos nem 20 metros da margem e já descemos 100 com a correnteza. De repente, o vento se faz sentir e nos carrega para o meio do rio.

– Ice o traquete e o cutelo, bem amarrados os dois!

O vento os enche, o barco empina como um cavalo e voa como uma flecha. Deve ser mais tarde que a hora combinada porque, de uma hora para outra, o rio se ilumina como em pleno dia. Distinguem-se facilmente, a uns 2 quilômetros, a costa francesa à nossa direita, e a 1 quilômetro, à esquerda, a costa holandesa. Na nossa frente, bem visíveis, os carneiros brancos da crista das ondas.

– Diabo! Erramos a hora – diz Clousiot. – Você acha que vai dar tempo de a gente sair?

– Não sei.

– Olhe como as ondas do mar são altas e as cristas brancas! Será que o refluxo já começou?

– Impossível, vejo coisas descendo.

Maturette diz:

– Não vamos conseguir sair, não vamos chegar a tempo.

– Cale a boca e fique sentado do lado das cordas do cutelo e do traquete. Você também, Clousiot, cala a boca!

Pan-inh… Pan-inh… Tiros de carabina são disparados contra a gente. O segundo, localizei claramente. Não são dos guardas, vêm da Guiana Holandesa. Iço a vela, que incha com tanta força, que por pouco não me arrasta, puxando-me pelo pulso. O barco está inclinado a mais de 45 graus. Pego vento o mais possível, não é difícil, tem vento demais. Pan-inh, pan-inh, pan-inh, depois mais nada. Somos carregados mais para o lado francês que para o holandês, certamente por isso que os tiros pararam.

Navegamos a uma velocidade vertiginosa, com um vento desenfreado. Vamos tão depressa, que me vejo lançado no meio do estuário, de tal forma que em poucos minutos vou tocar a margem francesa. Enxergam-se claramente uns homens correndo em direção à margem. Viro suavemente de bordo, o mais suavemente possível, puxando com todas as minhas forças a corda da vela. Ela está reta à minha frente, o cutelo mudou sozinho de bordo e o traquete também. O barco vira de três quartos, solto a vela e saímos do estuário com todo o vento por trás. Ufa! aí está! Dez minutos depois, a primeira onda do mar tenta barrar-nos a passagem; passamos facilmente por cima dela e o chua-chuá que o barco fazia no rio transforma-se em tac-i-tac-i-tac. Atravessamos mesmo ondas altas com a facilidade de um garoto que pula barreira. Tac-i-tac, o barco sobe e desce as ondas sem vibrar nem sacudir. Só o tac do casco, que bate no mar, caindo da onda.

– Hurra! Hurra! Saímos – grita Clousiot a plenos pulmões.

E, para iluminar a vitória da nossa energia sobre os elementos, o bom Deus nos manda um nascer do sol deslumbrante. As ondas se sucedem, todas com o mesmo ritmo. Diminuem de altura à medida que penetramos no mar. A água é suja, lamacenta. Na frente, ao norte, ela está negra, mais tarde vai ficar azul. Não preciso olhar minha bússola: com o sol no meu ombro direito, sigo reto, com todo o vento, mas o barco menos inclinado, porque deixei a corda da vela correr e ela se enfunou pela metade, sem ficar completamente estendida. Começamos a grande aventura.

Clousiot se levanta. Quer pôr a cabeça e o corpo para fora, a fim de ver melhor. Maturette vai ajudá-lo a se ajeitar, coloca-o sentado na minha frente, as costas apoiadas no tonel; faz um cigarro para mim, acende-o, passa-o e fumamos os três.

– Passe para cá a garrafa, para comemorarmos a partida – diz Clousiot.

Maturette põe um bom gole em três canecas de lata e bebemos. Maturette está sentado ao meu lado, à minha esquerda. Nós nos olhamos: seus rostos estão iluminados de felicidade, o meu deve estar também. Então, Clousiot diz:

– Capitão, aonde o senhor vai, por favor?

– Para a Colômbia, se Deus quiser.

– Deus vai querer, que diabo! – diz Clousiot.

O sol vai subindo rapidamente e não demora a nos secar. A camisa do hospital se transforma num capuz à maneira árabe. Molhada, ela refresca a cabeça e evita que soframos uma insolação. O mar está de um azul cor de opala, as ondas são de 3 metros e muito longas, o que ajuda a viajar confortavelmente. O vento se mantém forte e nos afasta depressa da costa, que, de vez em quando, vejo, esboçada no horizonte. Essa massa verde, quanto mais nos afastamos, mais nos revela os segredos de seu rendilhado. Viro-me para olhar atrás de mim, mas uma onda mal cortada chama-me à obrigação e também à responsabilidade de resguardar a vida dos meus companheiros e a minha.

– Vou cozinhar um pouco de arroz – diz Maturette.

– Eu seguro o fogareiro – diz Clousiot – e você a panela.

O botijão de querosene está colocado bem na frente, para evitar a fumaça. O arroz feito na gordura tem um gosto muito bom. Comemos o arroz bem quente, misturado com duas latas de sardinhas. Em cima disso, um bom café. “Um gole de rum?” Eu recuso, faz muito calor. Além disso, não sou um bebedor. Clousiot, a cada instante, faz cigarros para mim e os acende. A primeira refeição a bordo foi bem. Pela posição do sol, imaginamos que são 10 da manhã. Temos apenas cinco horas de alto-mar, mas percebemos que aqui a água já é muito profunda. As ondas diminuíram de altura e vamos cortando-as sem o barco bater. O dia é maravilhoso. Percebo que durante o dia não preciso da bússola constantemente. De vez em quando, comparo a posição do sol em relação à da agulha e me guio por ele; é facílimo. A reverberação do sol cansa os olhos. Sinto não ter pensado em arranjar uns óculos escuros. De repente, Clousiot diz:

– Que sorte eu tive de encontrar você no hospital.

– Não é só você, eu também tive sorte em que você viesse. Pensa em Dega, em Fernández… se eles tivessem concordado, estariam aqui conosco.

– Quem sabe? – diz Clousiot. – Você poderia ter complicações para conseguir que o árabe viesse na hora exata à enfermaria.

– É, Maturette foi muito útil e eu me felicito por tê-lo trazido, porque ele é muito dedicado, corajoso e esperto.

– Obrigado – diz Maturette – e obrigado a vocês dois por terem confiança em mim, apesar da minha pouca idade e daquilo que eu sou. Vou fazer de tudo para estar sempre à altura.

Depois eu digo:

– E François Sierra, gostaria tanto que ele estivesse aqui, e também Galgani…

– Do jeito que as coisas mudaram, Papillon, não era possível. Se Jesus fosse um homem correto e tivesse arranjado um bom barco, a gente poderia esperar por eles num lugar certo. Jesus os ajudaria a fugir e nós os levaríamos. Enfim, eles conhecem você e sabem que, se você não mandou buscá-los, é porque era impossível.

– A propósito, Maturette, como é que você estava naquela enfermaria especial, no hospital?

– Eu não sabia que estava internado. Fui ao exame médico porque estava com dor de garganta e também para passear; e o médico, quando me viu, disse: “Vejo, pela sua ficha, que você está internado nas ilhas. Por quê?” – “Eu não sei, doutor. O que é ‘internado’?” – “Bom, nada. Vá para o hospital.” E eu me encontrei hospitalizado, só isso.

– Queria agradar você – diz Clousiot.

– Não sei por que motivo o doutor fez isso. Deve estar dizendo: “Meu protegido, com sua garganta de menino de coro, não era tão besta assim, pois conseguiu fugir”.

Falamos de bobagens. Digo: “Quem sabe, a gente vai-se encontrar de novo com Julot, o ‘homem do martelo’? Deve estar longe, a não ser que continue escondido na floresta”. Clousiot diz: “Eu, antes de sair, deixei um bilhete debaixo do meu travesseiro: Mudou-se sem deixar endereço”. Explodimos numa gargalhada.

Navegamos cinco dias sem problemas. De dia, o sol, com sua trajetória leste-oeste, me serve de bússola. De noite, uso a bússola. No sexto dia, de manhã, um sol brilhante nos saúda, o mar acalmou-se de repente, peixes-voadores passam não muito longe de nós. Estou arrebentado de cansaço. Durante a noite, para me impedir de dormir, Maturette passava no meu rosto um pano molhado de água do mar mas, mesmo assim, eu pegava no sono. Então Clousiot me queimava com seu cigarro. Como está tudo calmo, resolvo dormir. Baixamos a vela e o cutelo, conservamos somente o traquete e eu durmo como uma pedra no fundo do barco, bem protegido contra o sol pela vela que fica estendida por cima de mim. Acordo sacudido por Maturette, que diz:

– É meio-dia ou 1 hora, mas estou acordando você porque o vento está esfriando e no horizonte, do lado de onde vem o vento, ficou tudo preto.

Levanto-me e tomo meu lugar. O cutelo, o único que colocamos, nos faz deslizar sobre o mar sem rugas. Atrás de mim, a leste, está tudo preto, o vento vai esfriando cada vez mais. O traquete e o cutelo são suficientes para puxar o barco rapidamente. Fiz bem em deixar a vela enrolada no mastro.

– Segurem-se firmes, porque o que vem chegando aí é uma tempestade.

Gotas grandes começam a cair na gente. A escuridão se aproxima com uma rapidez vertiginosa, em menos de um quarto de hora veio do horizonte até bem perto de nós, Agora, um vento de violência nunca vista nos ataca. As ondas, como por encanto, se formam com rapidez incrível, todas cobertas de espuma; o sol está completamente aniquilado, chove torrencialmente, não se enxerga nada e as ondas, batendo contra o barco, lançam fortes jatos de água em nosso rosto. É tempestade, minha primeira tempestade, com toda a fanfarra da natureza desencadeada, o trovão, os relâmpagos, a chuva, as ondas, os uivos do vento que ruge em cima de nós, em volta de nós.

O barco, carregado como uma palha, sobe e desce a alturas incríveis e a abismos tão profundos, que a gente tem a impressão de não poder mais sair deles. No entanto, apesar desses mergulhos fantásticos, o barco torna a subir, vence mais uma crista de onda e passa e torna a passar. Seguro a barra do leme com as duas mãos, pensando como enfrentar um vagalhão um pouco mais alto que vem vindo mas, na hora em que aponto o barco para cortá-lo, faço-o rápido demais e deixo entrar grande quantidade de água. O barco todo fica inundado. Deve haver mais de 75 centímetros de água. Nervosamente, sem querer, fico enviesado diante de uma onda, o que é extremamente perigoso, e o barco fica tão inclinado, prestes a virar, que devolve uma enorme quantidade da água que tinha entrado.

– Grande! – grita Clousiot. – Você entende um bocado, Papillon! Você foi rápido para esvaziar o barco.

– Pois é, você viu? – digo-lhe.

Se ele soubesse que, pela minha falta de experiência, quase a gente afundava, virando em alto-mar… Desisto de lutar contra o curso das ondas, não me preocupo mais com a direção a seguir, simplesmente mantenho o barco em equilíbrio, na medida do possível. Pego as ondas a três quartos, desço voluntariamente ao fundo com elas e subo novamente, junto com o próprio mar. Logo me dou conta de que minha descoberta é importante e que assim eu eliminei noventa por cento do perigo. A chuva pára, o vento sopra sempre com fúria, mas agora posso enxergar bem a frente e atrás de mim. Atrás está claro; na frente, preto, e nós estamos no meio desses dois extremos.

Lá pelas 5 horas, tudo já passou. O sol brilha de novo em cima de nós, o vento é normal, as ondas menos altas; iço a vela e partimos novamente, satisfeitos. Com umas panelas, meus companheiros tiraram a água que restava dentro do barco. Tiramos as cobertas: amarradas ao mastro, com o vento vão secar-se logo. Arroz, farinha, óleo e café duplo, um bom gole de rum. O sol desce, iluminando com todos os seus fogos este mar azul, num quadro inesquecível: o céu está todo vermelho-pardacento; o sol, em parte afundado no mar, projeta longas línguas amarelas, tanto em direção ao céu e a algumas nuvens brancas, quanto em direção ao mar; as ondas, subindo, são azuis no fundo, depois verdes, e a crista vermelha, rosa ou amarelai de acordo com a cor tio raio que a toca.

Uma paz me invade com uma doçura pouco comum e, com a paz, a sensação de que posso ter. confiança em mim. Havia perdido bastante dessa confiança e a pequena tempestade foi muito útil para mim. Sozinho, aprendi como manobrar nesses maus momentos. Vou enfrentar a noite com uma serenidade completa.

– Então, Clousiot, você viu aquela manobra para esvaziar o barco?

– Amigo, se você não fizesse isso e se uma outra onda nos apanhasse naquela situação, a gente afundava. Você é um campeão.

– Você aprendeu tudo isso na marinha? – pergunta Maturette.

– Aprendi, você vê como servem para alguma coisa as lições da marinha de guerra?

Fomos bastante à deriva. Com um vento e umas ondas como aquelas, quanto a gente não deve ter ido à deriva em quatro horas? Vou dirigir para noroeste e corrigir isso. A noite cai de repente, depois que o sol desaparece no mar, enviando as últimas faíscas, agora de cor violeta, como fogo de artifício.

Durante seis dias. ainda, navegamos sem incidentes, a não ser algumas chuvas fortes que nunca ultrapassam três horas de duração, nem têm a eternidade da primeira tempestade. São 10 horas da manhã. Nenhum sinal de vento, uma calmaria total. Durmo umas quatro horas. Quando acordo, meus lábios ardem. Não têm mais pele, e nem meu nariz. Minha mão direita também está sem pele, em carne viva. Com Maturette se passa a mesma coisa, e também Clousiot. Passamos óleo duas vezes por dia no rosto e nas mãos, mas não basta: o sol dos trópicos o seca logo.

Devem ser 2 horas da tarde, de acordo com o sol. Comemos e depois, como está tudo calmo, tratamos de fazer um pouco de sombra com a vela. Alguns peixes acompanham o barco à direita, onde Maturette lavou a louça. Pego o facão e digo a Maturette para jogar uns grãos de arroz que, depois de molhados, já começam a fermentar. Os peixes se juntam onde cai o arroz, à tona da água, e, como um deles tem quase toda a cabeça fora, dou-lhe uma bela facada; na mesma hora, ele fica de barriga para cima. É um peixe de uns 10 quilos. Limpamos o bruto e cozinhamos em água e sal. Comemo-lo de noite, com a farinha de mandioca.

Há onze dias que estamos no mar. Vimos só um navio, nesse tempo todo, muito longe no horizonte. Começo a me perguntar: onde estamos, que diabo? Em alto-mar, certo, mas em que posição em relação a Trinidad ou a qualquer uma das ilhas inglesas? Quando se fala no diabo… De fato, à frente e em nossa direção surge um ponto preto que vai aumentando pouco a pouco. Será um navio ou uma chalupa de alto-mar? Mas há um engano: não vem em nossa direção. Agora, de lado, distingue-se bem: é um navio. Aproxima-se, é verdade, mas em diagonal, sua rota não vai levá-lo até nós. Como há vento, nossas velas pendem lamentavelmente, o navio certamente não nos viu. De repente, o apito de uma sereia, depois três tiros, em seguida ele muda de rota e vem direto sobre a gente.

– Espero que não se aproxime demais – diz Clousiot.

– Não há perigo, o mar está uma pintura.

É um petroleiro. Quanto mais ele se aproxima, melhor distinguimos as pessoas na ponte. É claro que eles se devem perguntar o que essas pessoas fazem nessa casquinha de noz aqui, em alto-mar. Suavemente, ele se aproxima de nós, distinguem-se bem agora os oficiais de bordo e outros homens da tripulação, inclusive o cozinheiro; depois vemos chegarem na ponte mulheres com vestidos de cores vivas e homens com camisas coloridas. Percebe-se que são passageiros. Passageiros num petroleiro parece coisa pouco comum. Mansamente, o petroleiro se aproxima e o capitão fala em inglês com a gente:

– Where are you coming from?

– French Guyane.

– Falam francês? – diz uma mulher.

– Sim, senhora.

– O que fazem em alto-mar?

– Vamos aonde Deus nos levar.

A dama fala com o capitão e diz:

– O capitão pede para subirem a bordo, vai içar a barca.

– Diga-lhe que agradecemos mas estamos muito bem na nossa barca.

– Por que não querem ajuda?

– Porque somos foragidos e não vamos na sua direção.

– Aonde é que vocês vão?

– Para a Martinica. Para além da Martinica, aliás. Onde estamos?

– Em alto-mar.

– Qual é a rota para chegar às Antilhas?

– Sabe ler um mapa marítimo com legendas em inglês?

– Sei.

Pouco depois, descem por uma corda um mapa inglês, pacotes de cigarros, pão, um pernil assado.

– Olhe o mapa!

Olho e digo:

– Preciso fazer oeste, um quarto sul, para encontrar as Antilhas inglesas, é isso?

– Sim.

– Quantas milhas aproximadamente?

– Em dois dias, vocês estarão lá – diz o capitão.

– Até logo, obrigado a todos!

– O comandante do navio cumprimenta-os por sua coragem de marinheiros!

– Obrigado, adeus!

E o petroleiro vai embora suavemente, quase raspando na gente. Eu me afasto depressa, com medo dos redemoinhos das hélices; nesse momento, um marinheiro joga para mim um boné de marinheiro. Cai no meio do barco e com esse boné (com um galão dourado e uma âncora) na cabeça, dois dias depois, sem incidentes, chegamos a Trinidad.

TRINIDAD

Os pássaros, muito antes que os víssemos, nos anunciaram a terra. São 7 horas e meia da manhã quando eles vêm dar voltas em torno da gente. “Chegamos, chefe! Chegamos! Conseguimos a primeira parte da fuga, a mais difícil. Viva a liberdade!” Cada um de nós exterioriza sua alegria com exclamações infantis. Nosso rosto está coberto de manteiga de cacau que o navio encontrado nos deu de presente, para aliviar as queimaduras. Lá pelas 9 horas vemos terra. Um vento fresco e suave leva a gente a uma boa velocidade, sobre um mar pouco agitado. Somente por volta das 4 horas da tarde é que percebemos os detalhes de uma ilha comprida, cercada por pequenos grupos de casas brancas e com o cume coberto de coqueiros. Ainda não se consegue distinguir se é mesmo uma ilha ou a ponta de uma península, nem saber se as casas são habitadas. Foi necessária mais uma hora ainda, para distinguirmos as pessoas que correm para a praia aonde estamos chegando. Em menos de vinte minutos, uma multidão colorida está reunida. Essa pequena aldeia veio receber-nos à beira do mar. Mais tarde ficamos sabendo que a ilha se chama San Fernando.

A 300 metros da costa jogo a âncora, que se fixa imediatamente. Faço isso porque quero ver a reação dessas pessoas e também para não arrebentar o meu barco quando encostar, se o fundo for de coral. Recolhemos as velas e esperamos. Uma pequena canoa vem em nossa direção. A bordo, dois negros que remam e um branco com um capacete colonial.

– Bem-vindos a Trinidad – diz em francês castiço o branco. Os negros riem com todos os dentes.

– Obrigado, senhor, pelas suas boas palavras. O fundo da praia é de coral ou de areia?

– É de areia, pode chegar sem perigo até a praia.

Levantamos a âncora e as ondas nos empurram mansamente até a praia. Assim que tocamos, dez homens entram dentro da água e, com um puxão só, arrastam o barco para o terreno seco. Olham para a gente, tocam a gente com gestos acariciantes, as mulheres, pretas ou índias, ou chinesas, nos convidam com gestos. Todos querem levar-nos a casa deles, é o que explica em francês o branco. Maturette pega um punhado de areia e a leva até a boca, para beijá-la. É um delírio. O branco, com quem já falei do estado de Clousiot, faz que o transportem para sua casa, bem perto da praia. Diz que podemos deixar tudo até amanhã no barco, que ninguém vai mexer em nada. Todos me chamam de “captain”, dou risada com esse apelido. Todos me dizem: “Good captain, long ride on small boat!” (Bom capitão, viagem longa em barco pequeno!)

Desce a noite e, depois de pedir para empurrarem o barco pouco mais longe do mar e amarrá-lo a outro muito maior que está sobre a areia, sigo o inglês até a casa dele. É um bangalô como os que se costuma ver por toda parte, em terra inglesa; alguns degraus de madeira, uma porta com tela metálica. Entro atrás do inglês, Maturette me segue. Ao entrar, vejo Clousiot, sentado numa poltrona, com a perna ferida em cima de uma cadeira, se pavoneando entre uma senhora e uma jovem.

– Minha esposa e minha filha – diz o senhor. – Tenho um filho que está estudando na Inglaterra.

– Sejam bem-vindos a esta casa – diz a senhora em francês.

– Sentem-se, senhores – diz a jovem, que puxa duas poltronas de vime para a frente.

– Obrigado, senhoras, não se incomodem conosco.

– Por quê? Sabemos de onde vocês vêm, fiquem tranqüilos. Bem-vindos a esta casa!

O homem é advogado, chama-se Dr. Bowen, tem seu escritório na capital, a 40 quilômetros, em Port-of-Spain, capital de Trinidad. Trazem chá com leite, torradas, manteiga, geléia. Foi nossa primeira noite de homens livres, nunca mais vou esquecer. Nem uma palavra sobre o passado, nenhuma pergunta indiscreta, somente há quantos dias estávamos no mar e como foi a viagem; se Clousiot sofria muito e se nós queríamos avisar a polícia amanhã ou esperar mais um dia antes de avisá-la; se tínhamos parentes vivos, mulheres, filhos. Se queríamos escrever para eles, as cartas seriam colocadas no correio. O que quer dizer: uma recepção excepcional, tanto do povo na praia quanto dessa família cheia de atenções incríveis para com três foragidos

O Dr. Bowen consulta pelo telefone um médico, que diz para levarmos o ferido à sua clínica amanhã de tarde, para ele tirar uma radiografia e ver o que precisa fazer. O Dr. Bowen telefona para Port-of-Spain, ao comandante do Exército da Salvação. Ele diz que vai providenciar para nós um quarto na hospedaria do Exército da Salvação, que poderemos ir quando quisermos, e que devemos deixar o barco bem guardado, se for bom, porque vamos precisar dele para ir embora. Pergunta se somos forçados ou exilados: respondemos que somos forçados. O advogado parece gostar do fato de sermos forçados.

– Querem tomar banho e fazer a barba? – pergunta a jovem. – Por favor, não recusem, isso não nos incomoda nem um pouco. No banheiro vão encontrar umas roupas, espero que sirvam.

Vou ao banheiro, tomo um banho, faço a barba e saio bem penteado e com uma calça cinzenta, uma camisa branca, sapatos de tênis e meias brancas.

Um índio bate à porta com um pacote debaixo do braço e o dá para Maturette, dizendo que o médico falou que eu era mais ou menos do mesmo tamanho do doutor e que não precisava de nada para me vestir, mas que ele, o pequeno Maturette, não conseguiria encontrar roupas para seu uso porque ninguém na casa do advogado tinha seu tamanho. Faz uma mesura na frente da gente, como os muçulmanos, e se retira. Diante de tanta bondade, o que dizer? A emoção que enche meu coração é indescritível. Clousiot vai deitar-se primeiro e nós cinco ficamos trocando idéias sobre coisas diferentes. O que mais intrigava as encantadoras senhoras era o que pensávamos fazer para reconstruir nossa existência. Nada do passado, tudo a respeito do presente e do futuro. O Dr. Bowen lastimava que Trinidad não permitisse que os foragidos se instalassem na ilha. Ele explica que, por várias vezes, havia solicitado essa medida para alguns, mas nunca fora aceita.

A jovem fala um francês castiço, como o pai, sem sotaque nem erros de pronúncia. É loira, cheia de pintinhas e deve ter entre dezessete e vinte anos. prefiro não perguntar sua idade. Ela diz:

– Vocês são muito jovens e a vida espera por vocês; não sei o que fizeram para ser condenados e não quero saber, mas o fato de terem a coragem de se lançar no mar num barco tão pequeno, para fazer uma viagem tão longa e tão perigosa, demonstra que vocês estão dispostos a pagar qualquer preço para serem livres, e isso tem muito mérito.

Dormimos até as 8 da manhã. Ao levantar, encontramos a mesa posta. As duas senhoras falam muito naturalmente que o Dr. Bowen partiu para Port-of-Spain e só vai voltar à tarde com as informações necessárias para agir em nosso favor.

Esse homem que abandona a casa com três forçados foragidos dá uma lição sem igual para nós, querendo dizer: “Vocês são pessoas normais; julguem se tenho ou não confiança em vocês; doze horas depois de conhecer vocês, deixo-os sozinhos na minha casa, com minha esposa e minha filha”. É uma maneira muda de nos dizer também: “Depois de conversar com vocês três, vi seres perfeitamente dignos de confiança ao ponto de me sentir seguro de que nem por gestos nem por palavras vão se portar mal dentro de minha casa; por isso vou deixá-los no meu lar, como se fossem velhos amigos”. Essa manifestação nos emocionou muito.

Não sou um intelectual para pintar, caro leitor – se um dia esse livro tiver leitores -, com a intensidade necessária, com inspiração bastante forte, a emoção, a formidável impressão de respeito por nos mesmos; sentimos que éramos capazes de uma reabilitação, senão de uma nova vida. Esse batismo imaginário, esse banho de pureza, essa elevação do meu ser acima do lodo onde eu estava atolado, essa maneira de me colocar diante de uma responsabilidade real da noite para o dia acabam de fazer de mim um outro homem de uma maneira tão simples, que o complexo do forçado que mesmo livre traz consigo seus grilhões e acredita que alguém sempre o vigia, que tudo que vi, passei e suportei, tudo que agüentei, tudo que me levava a ser um homem tarado, podre, perigoso, passivamente obediente por fora e terrivelmente insidioso em sua revolta, tudo isso desapareceu como por encanto. Obrigado, Dr. Bowen, advogado de Sua Majestade, obrigado por ter feito de mim um outro homem em tão pouco tempo!

A loiríssima jovem dos olhos azuis corno o mar está sentada comigo, embaixo dos coqueiros da casa de seu pai. Buganvílias vermelhas, amarelas e malva, todas floridas, dão ao jardim o toque de poesia que é necessário neste instante.

– Senhor Henri (ela diz “Senhor”; há quanto tempo não me chamam de “Senhor”!), como papai disse ontem, uma incompreensão injusta das autoridades inglesas faz com que infelizmente vocês não possam ficar aqui. Eles dão apenas quinze dias para que vocês descansem e tornem a partir por mar. De manhã cedo fui ver seu barco, é muito leve e pequeno para a viagem tão longa que os aguarda. Espero que vocês cheguem a uma nação mais hospitaleira que a nossa e mais compreensiva. Todas as ilhas inglesas têm a mesma atitude nesses casos. Peço ao senhor que, se na futura viagem sofrer muito, não guarde rancor do povo que vive nessas ilhas; ele não é responsável por essa maneira de ver as coisas, são ordens da Inglaterra, emanadas de pessoas que não conhecem vocês. O endereço de papai é 101 Queen Street, Port-of-Spain, Trinidad. Peço-lhe, se Deus quiser que isso seja possível, que nos escreva algumas palavras para sabermos do seu destino.

Fico tão emocionado, que não sei o que responder. A Sra. Bowen aproxima-se de nós. É uma mulher muito bonita; tem uns quarenta anos, cabelos de um loiro-escuro, olhos verdes. Usa um vestido branco muito simples, preso por um cordão branco, e umas sandálias verde-claro.

– Senhor, meu marido só vai voltar às 5 horas. Está tentando conseguir que vocês possam ir no seu carro, sem escolta policial, até a capital. Quer evitar também que vocês passem a primeira noite na Estação de Polícia de Port-of-Spain. O seu amigo ferido irá diretamente para a clínica de um medico amigo, e vocês dois irão para a hospedaria do Exercito da Salvação.

Maturette vem encontrar-se com a gente no jardim, foi ver o barco que está cercado, ele diz, de curiosos. Não mexeram em nada. Examinando o barco, os curiosos encontraram uma bala encravada na parte de baixo do leme, alguém pediu licença para tirá-la como lembrança. Ele respondeu: “Captain, captain”. O índio compreendeu que precisava perguntar ao capitão. Lá pelas tantas, o índio quer saber por que não soltamos as tartarugas.

– Vocês têm tartarugas? – pergunta a jovem. – Vamos ver.

Vamos até o barco. No caminho, um indiozinho encantador pega sem cerimônias a minha mão. “Good afternoon”, boa tarde, dizia toda essa gente colorida. Tiro as duas tartarugas;

– O que é que a gente vai fazer? Vamos jogá-las no mar? Ou a senhora quer ficar com elas para pôr no seu jardim?

– O tanque do quintal é de água do mar. Vamos colocá-las nesse tanque, assim terei uma lembrança sua.

– Isso mesmo – respondo.

Distribuo entre as pessoas que lá estão tudo que há dentro do barco, menos a bússola, o fumo, o tonel, a faca, o facão, o machado, as cobertas e o revólver, que escondo entre as cobertas (e que ninguém viu). Às 5 horas chega o Dr. Bowen:

– Senhores, está tudo arranjado. Eu mesmo vou levá-los até a capital. Antes disso vamos deixar o ferido na clínica e depois vamos imediatamente para a hospedaria.

Instalamos Clousiot no assento traseiro do carro. Vou agradecer à filha, quando sua mãe chega com uma mala na mão, dizendo:

– Queiram aceitar algumas coisas de meu marido, nós as oferecemos de todo o coração.

Que dizer diante de tanta bondade humana? “Obrigado, infinitamente-obrigado.” E partimos no carro, que tem a direção à direita. Às 15 para as 6 chegamos à clínica. Chama-se Saint-George. Uns enfermeiros colocam Clousiot em cima de uma maca, numa enfermaria onde há um índio sentado na cama. O médico chega, aperta a mão de Bowen e depois a nossa, não fala francês mas pede a Bowen para nos dizer que Clousiot será bem atendido e que nós poderemos vir vê-lo sempre que quisermos. Com o carro de Bowen atravessamos a cidade. Ficamos maravilhados de ver que é iluminada, com seus carros, suas bicicletas. Brancos, negros, amarelos, índios, chineses andam juntos pelas calçadas desta cidade toda de madeira que é Port-of-Spain. Chegamos ao Exército da Salvação, uma hospedaria na qual somente o andar térreo é de pedra e o restante é de madeira, casa bem situada numa praça iluminada onde consegui ler “Fish Market” (Mercado de Peixe); o capitão do Exército da Salvação nos recebe em companhia de todo o seu estado-maior, mulheres e homens. Fala um pouco de francês, todos nos dirigem palavras em inglês, que não entendemos, mas os rostos são tão sorridentes, os olhares tão acolhedores, que sabemos que eles dizem coisas delicadas.

Levam-nos para um quarto no segundo andar, com três camas – a terceira reservada para Clousiot -, um banheiro pegado ao quarto, com sabonete e toalha à nossa disposição. Depois de nos ter indicado o quarto, o capitão diz:

– Se quiserem comer, o jantar é em comum, às 7 horas, portanto daqui a meia hora.

– Não, não temos fome.

– Se quiserem passear pela cidade, aqui estão dois dólares antilhanos para tomarem um café, um chá, ou um sorvete. Por favor, não se percam. Quando quiserem voltar, perguntem o caminho com estas palavras: “Salvation Army, please?”

Dois minutos depois, estamos na rua, andamos na calçada, acotovelamo-nos com as pessoas, ninguém olha para nós, ninguém presta atenção em nós; respiramos profundamente, gozando com emoção esses primeiros passos livres numa cidade. Essa confiança contínua em nós, presente no fato de nos deixarem livres numa cidade bastante grande, nos anima e dá não apenas confiança em nós mesmos, mas também a perfeita consciência de que é impossível trair essa fé depositada em nós. Maturette e eu andamos lentamente no meio da multidão. Sentimos necessidade de nos aproximar das pessoas, de ser empurrados, de nos assimilar a elas para fazer parte do povo. Entramos num bar e pedimos cerveja. Parece que não é nada dizer: “Two beers, please”. É tão natural! Bom e além do mais parece-nos fantástico que uma índia com sua conchinha de ouro no nariz diga, depois de servir a gente: “Half a dollar, sir”. Seu sorriso de dentes de pérola, seus grandes olhos de um negro violeta, um pouquinho fechados nos cantos, os cabelos de azeviche que caem sobre seus ombros, o vestido meio aberto no princípio dos seios, deixando perceber a grande beleza deles, essas coisas fúteis, tão naturais para todo mundo, parecem para nós fantasticamente feéricas. Escute, Papi, não é verdade, não pode ser verdade que tão rapidamente, de morto-vivo, de forçado perpétuo, você esteja se transformando num homem livre!

Maturette paga, fica só com meio dólar. A cerveja é deliciosamente fresca e ele diz: “Tomamos outra?” A segunda rodada que ele gostaria de beber me parece uma coisa que não devemos fazer.

– Escute, não faz nem uma hora que você está em verdadeira liberdade e já pensa em se encher de bebida.

– Oh! por favor, Papi, não exagere! Entre tomar duas cervejas e se encher de bebidas há muita diferença.

– Pode ser que você tenha razão, mas eu acho que decentemente não devemos cair em cima dos prazeres que o momento oferece para a gente. Acho que precisamos saboreá-los pouco a pouco e não como um glutão. Para começar, esse dinheiro não é nosso.

– É, é verdade, você tem razão. Vamos aprender a ser livres com conta-gotas, está mais de acordo.

Saímos e descemos a grande Walters Street, avenida principal, que atravessa a cidade de um lado ao outro, e, sem perceber, espantados, maravilhados com os bondes que passam, com os burros com suas charretinhas, com os carros, os anúncios resplandecentes dos cinemas e das boates, com os olhos das jovens negras e índias que olham para a gente rindo, encontramo-nos no porto. Chegamos ali sem querer. Na nossa frente, os navios todos iluminados, navios de turistas com nomes fascinantes: Panamá, Los Angeles, Boston, Quebec; navios cargueiros: Hamburgo, Amsterdam, Londres, etc. E, estendendo-se ao longo do cais, colados uns aos outros, bares, cabarés, restaurantes, todos cheios de homens e de mulheres que bebem, cantam, discutem em voz alta. De repente, uma necessidade irresistível me impele a me misturar com essa multidão, vulgar talvez, mas tão cheia de vida. No terraço de um bar, enfileirados no gelo, ostras, ouriços-do-mar, caranguejos, mexilhões, facas-do-mar, toda uma exposição de frutas do mar que provoca os transeuntes. As mesas com toalhas xadrezes vermelhas e brancas, a maior parte ocupadas, convidam a sentar. Moças de pele morena clara, o perfil fino, mulatas sem nenhum traço negróide, modeladas dentro de blusas coloridas, amplamente decotadas, nos aconselham implicitamente a aproveitar tudo aquilo. Aproximo-me de uma delas e digo: “French money good?”, apresentando uma nota de 1 000 francos. “Yes, change for you.” “OK.” Ela pega a nota e desaparece na sala repleta de gente. Volta. “Come here”, e me leva até a caixa onde está um chinês.

– Você francês?

– Sim.

– Trocar 1 000 francos?

– Sim.

– Passaporte?

– Não tenho.

– Carteira de marinheiro?

– Não tenho.

– Documento de imigração?

– Não tenho.

– Bom.

Diz duas palavras para a moça, ela olha para a sala, vai até um sujeito, um tipo de marinheiro, que tem um boné como o meu, um galão dourado e uma âncora, e leva até a caixa. O chinês diz:

– Sua carteira de identidade?

– Aqui está.

O sujeito apresenta a carteira e o chinês faz uma ficha de câmbio de 1 000 francos em nome do desconhecido, manda que ele assine, a mulher o pega pelo braço e o leva. O outro não sabe certamente o que se está passando, eu recebo 250 dólares antilhanos, sendo 50 em notas de 1 e 2 dólares. Dou 1 dólar para a moça, saímos e, sentados numa mesa, fazemos uma orgia de frutos do mar, acompanhados de um vinho branco seco delicioso.