174977.fb2 Papillon - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 6

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4 PRIMEIRA EVASÃO (Continuação)

TRINIDAD

Lembro-me, como se fosse ontem, da primeira noite de liberdade nessa cidade inglesa. Nós íamos a toda parte, embriagados de luz e de calor em nossos corações, namorando a alma desse povo feliz e risonho, que transborda de felicidade. Chegamos a um bar cheio de marinheiros e dessas mulheres dos trópicos que os aguardam para depená-los. Mas essas mulheres não têm nada de sórdido, nada que se compare às suas colegas das bocas do lixo de Paris, do Havre ou de Marselha. É outra coisa, algo muito diferente. Em vez das caras muito maquiladas, marcadas pelo vício, iluminadas por olhos febris cheios de astúcia, o que se vê em Trinidad são moças de todas as cores de pele, desde a chinesa até a negra africana, passando pela chocolate-claro de cabelos lisos, pela hindu ou a javanesa cujos pais se juntaram nos campos de cacau ou de cana-de-açúcar, ou a coolie mestiça de chinês e de hindu, ostentando uma conchinha de ouro numa venta do nariz, ou a cafusa de perfil romano, de rosto bronzeado iluminado por dois olhos enormes, negros, brilhantes, de longos cílios, e projetando uns seios quase inteiramente nus, como que dizendo: “Olhe meus seios, como são perfeitos”; todas essas mulheres, cada uma com flores de cor diferente nos cabelos, exteriorizam o amor, provocam o gosto pelo sexo, sem nada de sujo ou de comercial; não dão a impressão de serem profissionais. Elas se animam de verdade e a gente tem a impressão de que para elas o dinheiro não é a principal motivação da vida.

Como dois besouros atraídos pelas lâmpadas, vamos nós dois, Maturette e eu, tropeçando de botequim em botequim. Ao desembocar numa pequena praça inundada de luz, vejo a hora, no relógio de uma igreja ou de um templo: 2 horas. São 2 horas da manhã! Depressa, vamos para casa! Já abusamos da situação. A capitoa do Exército da Salvação vai ter de nós uma opinião muito esquisita. Vamos voltar depressa. Pego um táxi para nos levar, two dollars. Pago e entramos muito envergonhados na hospedaria. No hall, uma soldada do Exército da Salvação, loira, jovem, dos seus 25 a trinta anos, nos acolhe gentilmente. Não parece espantada nem chocada por voltarmos tão tarde. Depois de algumas palavras em inglês que adivinhamos serem amáveis e acolhedoras, ela nos dá a chave do quarto e nos deseja boa noite. Deitamos. Na valise encontrei um pijama. Antes de apagar a luz, Maturette me diz:

– Acho que a gente podia agradecer ao bom Deus por tudo que nos deu em tão pouco tempo. Que é que você diz, Papi?

– Agradece por mim ao teu bom Deus, é um grande sujeito. Como você diz muito bem, ele foi bárbaro de generosidade conosco. Boa noite – e apago a luz.

Essa ressurreição, essa volta do túmulo, essa saída do cemitério onde eu estava enterrado, todas essas emoções sucessivas e o banho desta noite, que me reintegrou na vida ao lado de outras criaturas, me excitaram tanto, que não consigo dormir. No calidoscópio dos meus olhos fechados, as imagens, as coisas, toda essa mistura de sensações chegam ao meu espírito sem ordem cronológica e se apresentam com precisão, mas de modo completamente desordenado: o tribunal, a Conciergerie, a seguir os leprosos, depois Saint-Martin-de-Ré, Tribouillard, Jesus, a tempestade… Numa dança fantasmagórica, parece que tudo o que vivi neste último ano está querendo se apresentar ao mesmo tempo na galeria das minhas recordações. Por mais que procure espantar essas imagens, não consigo. E o mais engraçado é que elas estão misturadas aos gritos dos porcos, do hocco, ao ulular do vento, ao marulho das ondas, tudo revestido pela música dos violões de uma corda só que os hindus tocavam há poucos instantes nos diversos bares por onde passamos.

Por fim, adormeço ao despontar do dia. Pelas 10 horas, batem à porta. É o Dr. Bowen, sorridente:

– Bom dia, amigos. Ainda deitados? Vocês voltaram tarde. Divertiram-se bastante?

– Bom dia. Sim, voltamos tarde, desculpe.

– De nada, ora essa! É muito natural, depois de tudo que sofreram. Vocês tinham de aproveitar a primeira noite de homens livres Estou aqui para acompanhá-los à Delegacia de Polícia. Vocês têm que se apresentar à polícia para declarar oficialmente que entraram no país clandestinamente. Depois dessa formalidade, iremos ver o seu amigo. Ele fez radiografia hoje muito cedo. Saberemos o resultado mais tarde.

Depois de nos lavarmos rapidamente, descemos para o vestíbulo, onde encontramos Bowen à nossa espera, ao lado do capitão.

– Bom dia, amigos – diz em mau francês o capitão.

– Bom dia para todos, tudo vai bem? – uma graduada do Exército da Salvação nos diz. – Vocês gostaram de Port-of-Spain?

– Oh, sim, senhora! Ficamos encantados.

Tomamos uma xicrinha de café e seguimos para a delegacia. Vamos a pé, pois dista apenas 200 metros. Todos os policiais nos saúdam e nos olham sem qualquer curiosidade especial. Entramos num escritório austero e imponente, depois de passar por duas sentinelas cor de ébano, de uniforme cáqui. Um oficial dos seus cinqüenta anos, camisa e gravata cáquis, coberto de insígnias e de medalhas, levanta-se. Está de short e nos diz em francês:

– Bom dia. Sentem-se. Antes de registrar oficialmente as suas declarações, quero conversar um pouco com vocês. Quantos anos vocês têm?

– Vinte e seis anos e dezenove anos.

– Por que foram condenados?

– Por homicídio.

– Quais são as suas penas?

– Trabalhos forçados perpétuos.

– Então não foi homicídio simples, foi homicídio qualificado?

– Não, senhor. O meu foi um homicídio simples.

– Comigo foi um homicídio qualificado – diz Maturette. – Eu tinha dezessete anos.

– Aos dezessete anos, a gente já sabe o que faz – diz o oficial. – Na Inglaterra, se o fato fosse provado, você teria sido enforcado. Muito bem, as autoridades inglesas não têm que julgar a justiça francesa. Mas não estamos de acordo é com o desterro dos condenados na Guiana Francesa. Sabemos que é um castigo desumano e indigno de uma nação civilizada como a França. Mas, infelizmente, vocês não podem ficar em Trinidad ou em qualquer outra ilha britânica. É impossível. Por isso, peço-lhes que procedam honestamente e não procurem escapatória, doença ou qualquer outro pretexto, para retardar sua saída. Vocês podem descansar livremente em Port-of-Spain de quinze a dezoito dias. O seu barco é bom, ao que dizem. Vou dar ordem para que o tragam aqui ao porto. Se houver reparações a fazer, os carpinteiros da Marinha Real se encarregarão disso. Antes de partir, vocês receberão uma boa bússola e uma carta marítima. Espero que os países sul-americanos recebam bem vocês, mas não procurem a Venezuela, pois ali vocês serão presos e obrigados a trabalhar nas estradas até serem entregues às autoridades francesas. Depois de um grande erro, um homem não é obrigado a ficar perdido para sempre. Vocês são jovens e têm saúde, têm um jeito simpático e espero que, depois de tudo que sofreram, nunca mais se darão por vencidos. O simples fato de terem vindo para este país demonstra o contrário. Sinto-me feliz em poder ajudá-los a se tornarem homens bons e responsáveis. Boa sorte. Se vocês tiverem algum problema, telefonem para este número, que serão atendidos em francês.

Ele toca uma campainha e um funcionário civil nos vem buscar. Numa saia onde vários policiais e civis estão batendo a máquina, outro funcionário à paisana toma as nossas declarações.

– Por que vieram a Trinidad?

– Para descansar.

– De onde vocês vêm?

– Da Guiana Francesa.

– Para fugir, vocês cometeram algum delito, provocaram lesões ou morte em outras pessoas?

– Não ferimos ninguém gravemente.

– Como é que vocês sabem?

– Soubemos antes de partir.

– Quais são suas idades, suas situações penais em relação à justiça francesa? (etc). Senhores, vocês têm de quinze a dezoito dias para descansar aqui. Estão completamente livres para fazer o que quiserem durante esse tempo. Se mudarem de moradia, avisem-nos. Eu sou o sargento Willy. Aqui está o meu cartão, com dois telefones: um é o meu número oficial na polícia; o outro, meu número particular. Seja o que for que lhes aconteça, se precisarem de minha ajuda, me chamem imediatamente. Temos confiança em vocês. Estou certo que se comportarão corretamente.

Alguns instantes depois, o Dr. Bowen nos acompanha à clínica. Clousiot está contente de nos ver. Nada lhe contamos da noite que passamos nos divertindo na cidade. Apenas lhe dizemos que estamos autorizados a passear à vontade. Ele fica tão surpreendido, que nos diz:

– Sem escolta?

– Sim, sem escolta.

– Ora essa, então os rosbifes (os ingleses) são uns caras muito gozados!

Bowen, que tinha ido à procura do médico, volta com ele. Pergunta a Clousiot:

– Quem foi que reduziu a fratura, antes de entalar a perna?

– Fui eu mesmo e mais um camarada que não está aqui.

– Vocês trabalharam tão bem, que não é preciso quebrar novamente a perna. O perônio fraturado foi bem reajustado. Vamos simplesmente engessar e colocar um estribo, para que você possa andar um pouco. Prefere ficar aqui ou ir com seus companheiros?

– Prefiro ir com eles.

– Muito bem, amanhã cedo você poderá sair.

Agradecemos efusivamente. O Dr. Bowen e o médico se retiram e nós passamos o fim da manhã e parte da tarde com nosso amigo. Estamos jubilosos quando, no dia seguinte, nos encontramos os três reunidos em nosso quarto de hotel, a janela toda aberta e os ventiladores funcionando para refrescar o ar. Congratulamo-nos uns com os outros pela nossa cara saudável e pela boa aparência que nos dão as roupas novas. Quando vejo que a conversa volta para o passado, digo aos meus companheiros:

– Agora, vamos tentar ao máximo esquecer o passado. Vamos tratar do presente e do futuro. Para onde vamos? Colômbia? Panamá? Costa Rica? Precisamos consultar Bowen para saber quais os países onde temos alguma chance de ser admitidos.

Chamo Bowen em seu escritório, ele não está. Ligo para a casa dele, em San Fernando. É a sua filha quem atende. Depois de uma troca de palavras amáveis, ela me diz:

– Sr. Henri, perto do hotel, no Fish Market, há ônibus que vêm para San Fernando. Por que vocês não vêm passar a tarde em nossa casa? Podem vir, eu espero.

E lá vamos os três para San Fernando. Clousiot está magnífico em sua roupa meio militar, cor de tabaco.

A volta a essa casa que nos acolheu com tanta bondade nos deixa comovidos. Parece que essas mulheres compreendem nossa emoção, porque elas dizem ao mesmo tempo: “Vocês estão de volta à sua casa, caros amigos. Sentem-se e estejam à vontade”. E em vez de dizer “o senhor” cada vez que se dirigem a nós, elas nos chamam pelo nosso nome: “Henri, passe o açúcar; André (é o nome de Maturette), quer mais pudim?”

Senhora e senhorita Bowen, espero que Deus as terá recompensado por tanta bondade que tiveram para conosco e que suas belas almas, que nos prodigalizaram tão finas alegrias, tenham desfrutado pelo resto da vida uma felicidade inefável.

Discutimos com elas e estendemos um mapa sobre a mesa. As distâncias são grandes: 1 200 quilômetros para chegar a Santa Marta, porto colombiano mais próximo; 2 100 quilômetros para o Panamá; 2 500 para Costa Rica. Chega o Dr. Bowen:

– Telefonei a todos os consulados e tenho uma boa notícia: vocês podem fazer escala de alguns dias em Curaçau para descansar. A Colômbia não tem nada estabelecido a respeito dos evadidos. Pelo que sabe o cônsul, nunca um evadido chegou pelo mar à Colômbia. Ao Panamá e a outros lugares também não.

– Conheço um lugar seguro para vocês – diz Margaret, à filha do Dr. Bowen. Mas é bem longe, 3 00Q quilômetros pelo menos.

– Onde é? – pergunta o pai.

– Honduras britânica. O governador é meu padrinho.

Olho para os meus amigos e digo:

– Destino: Honduras britânica. É uma possessão inglesa limitada ao sul pela República de Honduras e ao norte pelo México.

Ajudados por Margaret e sua mãe, passamos a tarde toda a traçar o caminho. Primeira etapa: Trinidad – Curaçau, 1000 quilômetros. Segunda etapa: de Curaçau a uma ilha qualquer em nosso caminho. Terceira etapa: Honduras britânica.

Como nunca se sabe o que pode acontecer no mar, decidimos que, além dos víveres que nos dará a polícia, levaremos uma reserva de conservas: carnes, legumes, doces, peixe, etc. Margaret nos diz que o supermercado Salvattori nos dará com muito prazer essas conservas de presente. “Se eles não derem”, acrescenta simplesmente, “mamãe e eu compraremos para vocês.”‘

– Isso não, senhorita.

– Cale-se, Henri.

– Mas não, não é possível, pois nós temos dinheiro e não ficaria bem abusar da sua bondade quando podemos muito bem comprar nós mesmos essas provisões.

O barco está em Port-of-Spain, na água, sob um abrigo da marinha de guerra. Despedimo-nos, prometendo mais urna visita antes da nossa partida. Todas as noites, saímos religiosamente às 11 horas. Clousiot senta-se num banco da praça mais animada e um de nós dois – eu ou Maturette – lhe faz companhia, enquanto o outro perambula pela cidade. Já estamos aqui há dez dias. Clousiot anda sem muita dificuldade graças ao ferro fixado no gesso. Aprendemos a ir ao porto de bonde. Vamos lá muitas vezes à tarde e sempre à noite. Já somos conhecidos e fomos adotados em alguns bares do porto. Os policiais de guarda nos cumprimentam, toda a gente sabe quem nós somos e donde viemos, mas ninguém jamais toca em qualquer assunto que diga respeito ao nosso passado. Reparamos que os bares onde somos conhecidos nos fazem pagar menos que os marinheiros pelo que comemos ou bebemos. A mesma coisa com as mulheres. De costume, quando elas se sentam às mesas dos marinheiros, dos oficiais ou dos turistas, elas bebem sem parar e procuram fazê-los gastar o mais possível. Nos bares onde se dança, elas nunca dançam com alguém antes que lhes ofereçam vários copos. Mas, conosco, todas se comportam de modo diferente. Sentam-se bastante tempo e precisamos insistir para que tomem um drinque. Se elas aceitam, não é para tomar aquele famoso copo minúsculo, mas uma cerveja ou um verdadeiro whisky and soda. Tudo isso nos dá grande prazer, pois é um modo indireto de nos dizer que conhecem nossa situação e que estão conosco de coração.

O barco foi pintado de novo e acrescentaram uma borda de 10 centímetros de altura. A quilha foi reforçada. Nenhuma parte do cavername sofreu com a viagem, o barco está intato. O mastro foi trocado por outro mais alto, porém mais leve; a bujarrona e o traquete, feitos de sacos de farinha, por outras velas de bom pano cor de ocre. Na capitania, um capitão-de-mar-e-guerra me entregou uma bússola com rosa-dos-ventos (que eles chamam de compasso) e me explicou de que maneira, ajudado pelo mapa, posso saber aproximadamente a minha posição. A rota já está traçada, “oeste um quarto norte”, para chegar a Curaçau.

O capitão-de-mar-e-guerra me apresenta a um oficial de marinha, comandante do navio-escola Tarpon, que me pede o favor de sair para o mar lá pelas 8 horas da manhã seguinte e navegar um pouco fora do porto. Não compreendo por que, mas assim mesmo prometo fazer o que ele pede. No dia seguinte, estou na capitania na hora combinada, com Maturette. Um marinheiro sobe conosco e saímos do porto com bom vento. Duas horas depois, enquanto estamos bordejando para dentro e para fora do porto, chega um navio de guerra e se aproxima de nós. No convés, alinhados, estão os oficiais e os marinheiros, todos de branco. Passam perto e dão a volta em torno do nosso barco, gritando “Hurra!”, e abaixam duas vezes a bandeira. É uma saudação oficial, cujo significado não entendo. Voltamos para a capitania, onde o navio de guerra já está atracado. Também amarram nosso barco no cais. Um marinheiro nos faz sinal para segui-lo e subimos a bordo, onde o comandante nos recebe no alto da escada. Um apito modulado saúda nossa chegada e, após nos haver apresentado aos oficiais, ele nos faz passar diante dos alunos e dos suboficiais, alinhados em posição de sentido. O comandante pronuncia algumas palavras em inglês e, a seguir, ordena o “fora de forma”. Um jovem oficial me explica que o comandante acaba de dizer aos alunos quanto merecemos o respeito dos marinheiros por havermos feito, nessa pequena embarcação, uma viagem tão longa, e que íamos fazer outra ainda maior e mais perigosa. Agradecemos ao oficial por tanta honra. Ele nos presenteia com três capotes de oleado, que nos serão muito úteis mais tarde. São impermeáveis pretos, com um grosso fecho francês e o respectivo capuz.

Dois dias antes da partida, o Dr. Bowen nos procura para nos pedir, por parte do superintendente da polícia, que levemos conosco três degredados que chegaram aqui faz uma semana. Foram desembarcados na ilha e seus companheiros voltaram para a Venezuela, segundo dizem. Não estou gostando disso, mas fomos tratados com demasiada nobreza para podermos recusar receber esses três homens a bordo. Peço para falar com eles antes de dar minha resposta. Um carro da polícia vem me buscar. Sou levado para falar com o superintendente, o oficial cheio de galões que nos interrogou quando da nossa chegada. O sargento Willy serve de intérprete.

– Como vai o senhor?

– Bem, obrigado. Estamos precisando que vocês nos prestem um serviço.

– Se for possível, com muito prazer.

– Temos, na cadeia, três franceses degredados. Eles vêm vivendo clandestinamente há algumas semanas na ilha e alegam que seus companheiros os desembarcaram e foram embora. Achamos que afundaram o barco, mas eles dizem que nem sabem dirigir uma embarcação. Talvez seja uma manobra para que lhes forneçamos um barco. Precisamos mandá-los embora: seria lamentável, se eu me visse obrigado a entregá-los ao comissário do primeiro navio francês de passagem.

– Senhor superintendente, vou fazer o impossível para atendê-lo, mas antes quero falar com eles. O senhor deve compreender que é perigoso acolher a bordo três desconhecidos.

– Compreendo. Willy, dê ordem para os três franceses saírem ao pátio.

Quero conversar sozinho com eles e peço ao sargento que se retire.

– Vocês são degredados?

– Não, somos “duros” (forçados).

– Por que disseram que eram degredados?

– A gente pensava que eles preferem um homem que cometeu alguns pequenos delitos do que um cara que cometeu algum crime muito grave. Vê-se que estávamos enganados. E você, quem é?

– Um “duro”.

– Não te conhecemos.

– Eu sou do último comboio; e vocês?

– Do comboio de 1929.

– E eu de 27 – diz o terceiro.

– O negócio é o seguinte: o superintendente me chamou para me pedir que levássemos vocês a bordo, onde já somos três. Ele diz que, se eu não aceitar, como nenhum de vocês sabe manejar um barco, ele será obrigado a entregá-los ao primeiro navio francês que passar. Que é que vocês acham?

– Por motivos que são só da nossa conta, não queremos voltar para o mar. Poderíamos fingir que partimos com vocês, você nos deixa na ponta da ilha e continua a sua fuga.

– Não posso fazer isso.

– Por quê?

– Porque não quero pagar com uma sujeira as atenções que tiveram conosco.

– Mas eu acho, companheiro, que, antes dos rosbifes, você deve ajudar os duros.

– Por quê?

– Porque você também é um duro.

– Sim, mas há tantas espécies de duros, que talvez haja mais diferença entre mim e vocês do que entre mim e os rosbifes, depende do ponto de vista.

– Então você vai deixar que nos entreguem às autoridades francesas?

– Não, mas também não vou desembarcar vocês antes de Curaçau.

– Não tenho coragem de recomeçar – diz um deles.

– Escutem, vejam primeiro o meu barco. Talvez aquele com que vocês vieram fosse ruim.

– Bem, vamos experimentar – dizem os dois outros.

– Muito bem. Vou pedir ao superintendente licença para vocês verem o barco.

Acompanhados pelo sargento Willy, vamos para o porto. Os três sujeitos parecem ter mais confiança depois que vêem o barco.

NOVA PARTIDA

Partimos dois dias depois, nós três e mais os três desconhecidos. Não sei como souberam da notícia, mas uma dúzia das mulheres dos bares assistem à partida, bem como a família Bowen e o capitão do Exército da Salvação. Como uma das mulheres me abraça, Margaret me diz, rindo:

– Henri, como você ficou noivo tão depressa? Isso não está direito!

– Até logo para todos. Não, adeus! Mas fiquem sabendo que vocês deixaram em nossos corações uma marca tão grande, que nunca se apagará.

E às 4 horas da tarde partimos, puxados por um rebocador. Fomos muito rápidos ao sair da barra, não deixando de enxugar uma lágrima e de olhar até o último momento o grupo que veio nos dizer adeus e que agita grandes lenços brancos. Logo que é desamarrado o cabo que nos liga ao rebocador, todas as velas se inflam e enfrentamos as primeiras dos milhões de ondas que teremos de furar antes de chegar ao destino.

Há duas facas a bordo, uma comigo, outra com Maturette.

O machado está perto de Clousiot, bem como o facão. Temos certeza de que nenhum dos outros está armado, mas combinamos que nunca nós três vamos dormir ao mesmo tempo durante a viagem. Ao pôr do sol, o navio-escola nos acompanha perto de meia hora, saúda-nos e vai embora.

– Como é que você se chama?

– Leblond.

– Que comboio?

– Vinte e sete.

– Qual é a pena?

– Vinte anos.

– E você?

– Kergueret. Comboio 29, quinze anos, sou bretão.

– Você é bretão e não sabe dirigir um barco?

– Não.

– Eu me chamo Dufils e sou de Angers. Peguei a perpétua por causa de uma palavra cretina que eu disse no tribunal, do contrário teria tido dez anos no máximo. Comboio 29.

– Que palavra foi essa?

– Vou explicar. Matei minha mulher com o ferro de passar roupa. Durante os debates, um jurado me perguntou por que tinha usado um ferro de passar roupa para matar. Não sei por que, respondi que a tinha matado com um ferro de passar roupa porque ela estava desrespeitando o vinco das minhas calças. E foi por causa dessa frase idiota que eles me salgaram tanto, disse o meu advogado.

– De onde vocês fugiram?

– De um campo de trabalho florestal chamado Cascade, a 80 quilômetros de Saint-Laurent. Não foi difícil partir porque gozávamos de muita liberdade. Éramos cinco, foi tudo facílimo.

– Como, cinco? E onde estão os outros dois?

Criou-se um silêncio embaraçoso. Clousiot então disse:

– Camarada, aqui somos todos homens; como estamos juntos, nós precisamos saber. Desembuche.

– Eu vou contar tudo – disse o bretão. – De fato, éramos cinco na saída, mas os dois sujeitos de Cannes que estão faltando nos disseram que eram pescadores da costa. Eles não tinham pago nem um tostão para a fuga e diziam que o trabalho deles a bordo valia mais que dinheiro. Ora, logo percebemos que nem um nem outro conheciam coisa alguma de navegação. Corremos vinte vezes o risco de morrer afogados. A gente ia acompanhando a costa bem de perto, primeiro a Guiana Holandesa, depois a Inglesa e por fim Trinidad. Entre Georgetown e Trinidad, eu matei aquele que tinha dito que podia ser o capitão da fuga. Aquele cara merecia a morte, porque para viajar grátis ele enganou todo mundo quanto à sua capacidade de marinheiro. E o outro pensou que iam matá-lo também e num dia de temporal ele se jogou no mar por sua própria vontade, largando o leme do barco. Tivemos que nos arranjar como pudemos. A embarcação ficou várias vezes cheia de água, finalmente nos arrebentamos contra um rochedo e nos salvamos por milagre. Dou minha palavra de honra de que tudo o que disse é a pura verdade.

– É verdade – dizem os outros dois. – A coisa se passou exatamente assim e nós três estávamos de acordo em matar aquele tipo. Que é que você acha, Papillon?

– Não estou em condições de ser juiz.

– Mas – insiste o bretão – o que você teria feito em nosso caso?

– É um caso para pensar. Para ser justo nessa história, é preciso ter vivido o momento, sem isso não se sabe onde está a verdade.

Clousiot acrescenta:

– Eu também o teria matado, porque é uma mentira que pode custar a vida a todo mundo.

– Bem, não falemos mais nisso. Mas tenho a impressão de que vocês tiveram muito medo, que vocês ainda estão com medo e que estão no mar porque foram obrigados, não é verdade?

– Pois é isso mesmo! – respondem em coro.

– Pois bem, aqui, nada de pânico, aconteça o que acontecer. Ninguém pode, em nenhum caso, mostrar o seu medo. Quem estiver com medo, que cale a boca. Este barco deu provas de que é bom. Agora estamos mais carregados que da outra vez, mas ele está mais alto 10 centímetros, o que compensa, largamente, a sobrecarga.

Fumamos e tomamos café. Comemos muito bem antes de partir e por isso decidimos só comer na manhã seguinte.

Estamos a 9 de dezembro de 1933. Faz quarenta dias que a fuga começou, na saía blindada do hospital de Saint-Laurent. É Clousiot, o “contador” da nossa turma, quem informa isso. Tenho agora três coisas preciosas que não possuía na partida: um relógio de aço à prova de água, comprado em Trinidad; uma bússola autêntica com dupla caixa de suspensão, com rosa-dos-ventos exata; e um par de óculos pretos de celulóide. Clousiot e Maturette têm cada um o seu boné.

Três dias se passam sem incidentes, a não ser termos topado duas vezes com bandos de golfinhos. Fizeram-nos suar frio, quando um grupo de oito se pôs a brincar com o barco. Eles passavam de comprido por baixo, vindos da popa, e emergiam justo diante da proa. Às vezes podíamos tocar algum com a mão. Mas o que mais nos impressionou foi o jogo seguinte: três golfinhos em triângulo, um na frente e dois atrás, em linhas paralelas, investem numa velocidade louca, firmes, contra a nossa proa. No momento em que estão quase chocando com o barco, mergulham e voltam à tona, à direita e à esquerda da embarcação. Embora estejamos navegando com vento forte e com as velas desfraldadas, os bichos correm mais depressa do que nós. É um brinquedo que dura horas, é alucinante. O menor erro em seus cálculos e eles nos farão virar! Os três novos companheiros nada dizem, mas suas caras estão descompostas!

No meio da noite do quarto dia desencadeou-se uma tempestade horrorosa. Foi realmente uma coisa espantosa. O pior é que as ondas não seguiam o mesmo sentido. Muitas vezes chocavam umas com as outras. Algumas eram profundas, outras curtas, não se compreendia nada. Ninguém abria a boca a não ser Clousiot, que me gritava de vez em quando: “Agüenta firme, meu chapa! Pula nessa como pulou nas outras!” ou “Cuidado com a que vem atrás!” Coisa rara, os vagalhões chegavam às vezes de três quartos, rugindo e espumejando. Eu calculava a velocidade deles e previa muito bem o ângulo de ataque. E sem qualquer lógica chegava de repente, de um só golpe, um vagalhão que batia no rabo do barco, completamente de pé. Várias vezes essas ondas desabaram sobre as minhas costas e, naturalmente, uma boa parte entrava na embarcação. Os cinco homens, armados de panelas e latas, tiravam a água sem interrupção. Apesar de tudo, nunca encheu mais de um quarto do barco e portanto nunca corremos o risco de afundar. Esse parque de diversões durou metade da noite, quase sete horas. Por causa da chuva, só avistamos o sol às 8 horas.

Acalmada a tempestade, o sol novinho do começo do dia, brilhando com toda a sua plenitude, foi aclamado por todos com alegria. Antes de mais nada, o café. Um café com leite Nestlé quente, bolachas de marinheiro, duras como ferro, mas que, molhadas no café, são deliciosas. A luta noturna contra a tempestade me arrebentou todo, não agüento mais e, embora o vento ainda sopre fortemente e as ondas continuem altas e indisciplinadas, peço a Maturette para me substituir um pouco. Quero dormir. Não faz nem dez minutos que estou deitado, quando Maturette se deixa pegar de banda por uma onda, que alaga três quartos do barco. Tudo está flutuando: latas, fogareiro, cobertores… Chego até o leme com a água pela barriga, justo em tempo para agarrá-lo e evitar um vagalhão quebrado que avança direto sobre nós. Com uma virada do leme, consigo receber a onda pela popa; não entra água, mas somos projetados com força a mais de 10 metros do impacto.

Todo mundo tira água do barco. Um grande caldeirão, manejado por Maturette, retira 15 litros de cada vez. Ninguém se preocupa em salvar coisa alguma, todos só têm uma idéia fixa: botar para fora o mais depressa possível essa água que torna o barco tão pesado e o impede de se defender bem. das ondas. Devo reconhecer que os três novos se comportaram bem; o bretão, vendo a sua caixa levada pelo mar, tomou sozinho sem hesitar a decisão de desprender a barrica de água potável e atirá-la para fora do barco. Duas horas depois, tudo está seco, mas perdemos os cobertores, o fogareiro, o fogão, os sacos de carvão, o garrafão de querosene e a barrica de água, esta voluntariamente.

Ao meio-dia, querendo trocar de calça, percebo que a minha maleta também foi carregada pelo mar, bem como dois dos três oleados. Bem no fundo do barco, encontramos duas garrafas de rum. Todo o tabaco foi perdido ou molhado e o papel para enrolar cigarros desapareceu com a lata à prova de água.

– Companheiros, primeiro uma talagada de rum, uma boa dose; depois abram a caixa de reserva, para ver com que recursos ainda podemos contar. Ainda tem suco de frutas, muito bem, vamos racionar a bebida. Esvaziem uma das latas de biscoitos petit-beurre e façam um fogareiro com ela. Vamos pôr as latas de conserva no fundo do barco e fazer fogo com as tábuas da caixa. Estivemos todos com medo, mas agora o perigo passou. Cada um precisa se recuperar e enfrentar a realidade. A partir deste momento, ninguém deve dizer: estou com sede, estou com fome, ou tenho vontade de fumar. Estão de acordo?

– Sim, Papi, estamos.

Todo mundo se comportou bem e a Providência fez amainar o vento, para que pudéssemos fazer uma sopa na base do corned-beef. Com uma tigela cheia dessa sopa, na qual mergulhamos as bolachas de soldado, enchemos a barriga com um grude gostoso e quente, suficiente para nos manter até o próximo dia. Fizemos um pouquinho de chá verde para cada um. Na caixa intata, encontramos um pacote de cigarros. São 24 macinhos de oito cigarros. Os cinco outros decidem que somente eu devo fumar, para me ajudar a ficar acordado; para evitar invejosos, Clousiot não acende mais os cigarros para mim, dando a primeira tragada, mas só me dá fogo. Graças a essa compreensão, não surge nenhum incidente desagradável entre nós.

Já faz seis dias que partimos e ainda não pude dormir. Como esta noite o mar está feito um lago, aproveito para dormir, durmo quase cinco horas a sono solto. Continua a calmaria. Eles comeram sem mim e eu encontro, ao acordar, uma espécie de polenta, muito bem feita, com farinha de milho de lata, que devoro com algumas lingüiças defumadas. E delicioso. O chá está quase frio, não tem importância. Fumo e espero que o vento nos faça o favor de reaparecer.

A noite está maravilhosamente estrelada. A estrela Polar brilha com toda a sua luz e somente o Cruzeiro do Sul ganha dela em matéria de luminosidade. Vêem-se nitidamente a Ursa Maior e a Ursa Menor. Não há uma nuvem e a lua cheia já está bem alta no céu estrelado. O bretão está tremendo de frio; perdeu sua malha e está em mangas de camisa. Empresto-lhe o meu oleado. E assim enfrentamos o sétimo dia.

– Gente, não podemos estar muito longe de Curaçau. Tenho a impressão de ter subido um pouco demais para o norte. Agora vou virar em cheio para oeste, porque não podemos perder as Antilhas holandesas. Seria um caso sério, pois já estamos sem água doce e sem víveres, só com a reserva.

– Temos confiança em você, Papillon – diz o bretão.

– Sim, temos confiança – repetem os outros, em coro. – Faça como você quiser.

– Obrigado.

Creio que falei bem. O vento se faz esperar toda a noite e é somente às 4 da manhã que começa a empurrar o barco. Esse vento, que aumenta bastante durante a manhã, dura mais de 36 horas, com uma força suficiente para imprimir boa velocidade à embarcação, e com vagas tão pequenas que a quilha não bate.

CURAÇAU

Gaivotas. Primeiro só se ouvem os gritos, porque é noite, a seguir se vêem as próprias aves, voando em volta do barco. Uma delas pousa no mastro, parte e volta novamente. O manejo dura mais de três horas, até que se levante o dia, com sol radioso. Nada no horizonte a indicar a terra. Que diabo! De onde vêm essas gaivotas, grandes e pequenas? Nossos olhos observam o horizonte o dia todo. Nenhum indício de terra próxima. A lua cheia se levanta no momento em que o sol se deita, essa lua tropical é tão brilhante, que a reverberação me incomoda. Já não tenho os óculos, que se foram com o famoso vagalhão, que levou também todos os bonés. Lá pelas 8 da noite, percebe-se no horizonte, muito distante, iluminada pelo luar, uma linha negra.

– Dessa vez deve ser a terra: – diz o primeiro.

– Sim, com certeza.

Logo, todos nós percebemos que há realmente uma linha escura, que deve ser a terra. Durante o resto da noite fico com a minha proa dirigida para essa sombra, que aos poucos vai adquirindo contornos mais precisos. Estamos chegando. Empurrados por um forte vento sem névoa e por uma onda alta mas longa e calma, chegamos à terra com boa velocidade. A massa negra não é muito alta e nada indica se a costa é constituída de falésias, rochedos ou praias. A Lua, que está se deitando do outro lado dessa terra, projeta uma sombra que não me deixa ver nada, a não ser, na superfície da água, uma fileira luminosa, primeiro unida e depois fragmentada. Vou chegando para perto e, a cerca de 1 quilômetro, lanço a âncora. O vento é forte, o barco vira sobre si mesmo e enfrenta as ondas, que o pegam bem de frente a cada vez que passam. O balanço do barco é grande e, portanto, muito incômodo. Naturalmente, as velas estão abaixadas e dobradas. Poderíamos ter esperado até o nascer do dia nessa posição desagradável porém segura; mas por desgraça a âncora se afrouxa de repente. Preparamos a bujarrona s o traquete. É estranho, a âncora não dá sinal de si. Meus camaradas puxam o cabo, ele volta sem a âncora, ela está perdida. Apesar de todos os meus esforços, as ondas nos aproximam tão perigosamente dos rochedos que resolvo armar as velas e dirigir-me para a terra, voluntariamente, a toda força. A manobra é tão bem sucedida, que de repente nos encontramos encravados entre dois rochedos, o barco inteiramente desconjuntado. Ninguém grita “salve-se quem puder”, mas, quando chega a onda seguinte, lançamo-nos todos à água para chegar à terra, rolando, batendo, mas vivos. Somente Clousiot, com a perna engessada, sofreu mais que os outros. Está com o braço, o rosto e as mãos ensangüentados, cheio de arranhões. Os outros apenas sofreram algumas pancadas nos joelhos, nas mãos e nos tornozelos. Estou sangrando de uma orelha, que bateu fortemente contra uma rocha.

De qualquer maneira, estamos todos vivos, a salvo das ondas, na terra seca. Quando o dia nasce, recuperamos um oleado e volto para o barco, que começa a se desmanchar. Consigo arrancar a bússola, pregada no banco traseiro. Não há viva alma em toda a região. Olhamos para o lugar em que se encontravam aquelas luzes: é uma fileira de lâmpadas que, segundo soubemos mais tarde, serve para indicar aos pescadores que o lugar é perigoso. Caminhamos a pé para o interior da terra. Só se vêem cactos, enormes cactos e uma porção de burricos. Chegamos a um poço, muito cansados, pois, nos revezando, dois de cada vez, somos obrigados a fazer “cadeirinha” para carregar Clousiot. Em volta do poço, carcaças ressequidas de burros e de cabras. O poço está seco, as pás do moinho que o faziam funcionar giram à toa, sem puxar água. Não se avista uma pessoa viva, apenas burros e cabras.

Caminhamos até uma pequena casa, cujas portas abertas nos convidam a entrar. Gritamos: “Ó de casa!” Ninguém aparece. Sobre o fogão está uma bolsa de pano, fechada por um barbante. Passo a mão nela e abro o nó. Nisso, o barbante se rompe; a bolsa está cheia de florins, moeda holandesa. Estamos, portanto, em território holandês: Bonaire, Curaçau ou Aruba. Tornamos a colocar a bolsa no lugar sem tirar nada, encontramos uma talha de água e bebemos com uma concha. Ninguém na casa, ninguém nas vizinhanças. Recomeçamos a caminhar, muito lentamente por causa de Clousiot, quando um velho Ford surge em nosso caminho.

– Vocês são franceses?

– Sim, senhor.

– Podem subir no meu carro.

Instalamos Clousiot sobre os joelhos dos três, que se sentam atrás. Fico junto do motorista, Maturette ao meu lado.

– Vocês naufragaram?

– Sim.

– Alguém se afogou?

– Não.

– De onde vocês vêm?

– De Trinidad.

– E antes disso?

– Da Guiana Francesa.

– Sentenciados?

– Sentenciados.

– Eu sou o Dr. Naal, proprietário desta faixa de terra, uma península pegada a Curaçau. Esta península é chamada Ilha dos Burros. Os burros e as cabras vivem aqui comendo cactos espinhosos. Esses espinhos são chamados pelo povo “as senhoritas de Curaçau”. Para mim, isso não é muito gentil para as verdadeiras senhoritas de Curaçau.

O doutor, grande e gordo, ri ruidosamente. O Ford, sem fôlego, chiando como um asmático, pára por si mesmo. Mostrando então alguns burros, digo:

– Se o carro não quer andar, pode facilmente ser rebocado.

– Tenho uma espécie de arreio no porta-mala, mas o problema é pegar dois burros e arreá-los. Não é nada fácil!

O gordo motorista levanta a capota e logo verifica que um solavanco mais forte desligou um fio que vai para as velas. Antes de tornar a subir no carro, olha para todos os lados, com ar inquieto. Partimos novamente e, após haver passado por caminhos desbarrancados, chegamos a uma barreira branca, que interrompe a passagem. Ao lado se ergue uma casinha branca. Nosso condutor conversa em holandês com um mulato bem vestido, que diz, a todo instante: “Ya master, ya master”. Em seguida, ele nos diz:

– Dei ordem a esse homem para que lhes faça companhia e lhes dê água para beber, se estiverem com sede, até que eu volte. Podem descer do carro.

Descemos e nos sentamos ao lado do carro, sobre o capim e na sombra. O Ford asmático vai embora. Está a 50 metros, quando o mulato nos diz, em papiamento - dialeto holandês das Antilhas, mistura de palavras inglesas, holandesas, francesas, espanholas e portuguesas -, que seu patrão, o Dr. Naal, foi buscar a polícia, porque está com muito medo de nós é que lhe disse para tomar cuidado, porque somos ladrões foragidos. E o coitado do mulato não sabe o que fazer para nos agradar. Prepara um café muito ralo, mas que nos faz bem, com esse calor. Esperamos mais de uma hora, até que chega uma camioneta, espécie de carro de presos, com seis policiais vestidos à moda alemã, mais um carro conversível com motorista de uniforme policial e três senhores sentados no banco de trás, sendo um deles o Dr. Naal.

Descem todos e um deles, o menor, com uma cara de padre, muito escanhoada, nos diz:

– Sou o chefe de segurança da ilha de Curaçau. Pela minha própria obrigação, vejo-me constrangido a prendê-los. Vocês cometeram algum delito depois da sua chegada à ilha? Qual delito? E qual de vocês?

– Meu senhor, nós somos sentenciados evadidos. Viemos de Trinidad e faz poucas horas que o nosso barco se arrebentou contra os rochedos da ilha. Sou o chefe deste pequeno grupo e posso afirmar que nenhum de nós cometeu o menor delito.

O comissário vira-se para o Dr. Naal e lhe fala em holandês.

Enquanto discutem, chega um sujeito de bicicleta. Fala alto e depressa, dirigindo-se tanto ao Dr. Naal quanto ao comissário.

– Sr. Naal, por que disse a esse senhor que nós éramos ladrões?

– Por que este homem que chegou agora me avisou, antes que eu me encontrasse com vocês, que, escondido atrás de um cacto, ele os vira entrar e sair da sua casa. Este homem é um empregado meu que trata de uma parte dos burros.

– Então, só porque entramos na casa, somos ladrões? O senhor está dizendo uma bobagem, nós só bebemos água. Acha que isso é roubo?

– E a bolsa de florins?

– A bolsa eu abri, é verdade, e até quebrei o cordão. Mas não fiz nada senão espiar que espécie de dinheiro era, para saber em que país tínhamos chegado. Tornei a colocar escrupulosamente o dinheiro e a bolsa onde eles estavam, sobre a beirada do fogão.

O comissário me encara fixamente nos olhos e, voltando-se bruscamente para o homem da bicicleta, fala duro com ele. O Dr. Naal faz um gesto e quer falar. Secamente, à moda alemã, o comissário não o deixa intervir. O comissário faz subir o homem da bicicleta ao lado do motorista do seu carro, sobe atrás, acompanhado de dois policiais, e vai embora.

– Devo explicar a vocês – diz ele – que esse homem me disse que a bolsa havia desaparecido. Antes de mandar revistá-los, o comissário interrogou o homem, suspeitando de que ele mentia. Se vocês são inocentes, lamento muito o incidente, mas não tenho culpa.

Em cerca de um quarto de hora o carro está de volta e o comissário me diz:

– Você disse a verdade, esse homem é um infame mentiroso. Ele será punido por tentar prejudicar vocês gravemente.

Enquanto isso, o sujeito é embarcado na “viúva alegre”, meus cinco companheiros também sobem e eu vou embarcar também, mas o comissário me segura, dizendo:

– Venha no meu carro, ao lado do chofer.

Partimos à frente da camioneta e logo a perdemos de vista. Seguimos por estradas muito bem asfaltadas e penetramos na cidade, cujas casas são de estilo holandês. Tudo é muito limpo e toda a gente anda de bicicleta. Centenas de pessoas sobre duas rodas, assim, vão e vêm pela cidade. Entramos na Central de Polícia. Atravessando uma grande sala, onde vários oficiais da polícia, todos vestidos de branco, tem as suas escrivaninhas, entramos noutra sala, com ar condicionado. Aí, a temperatura é bem fresca. Um homem alto e forte, louro, de seus quarenta anos, está sentado numa poltrona. Levanta-se e fala em holandês. Terminados os cumprimentos, o comissário diz, em francês:

– Apresento-lhe o primeiro-comandante da polícia de Curaçau. Senhor comandante, este homem é um francês, chefe do grupo de seis homens que detivemos.

– Muito bem, comissário.

E, dirigindo-se a mim:

– Seja bem-vindo a Curaçau, em sua qualidade de náufrago. Qual é seu nome?

– Henri.

– Pois bem, Henri, você passou um mau quarto de hora por causa do incidente da bolsa, mas esse incidente também foi favorável para você, porque demonstrou que é mesmo honesto. Vou mandar pôr à sua disposição uma sala bem iluminada, com beliches, para que vocês descansem. O seu caso será submetido ao governador, que tomará as providências necessárias. Tanto o comissário quanto eu faremos todo o possível para ajudar vocês.

Apertou-me a mão e saímos. No pátio, o Dr. Naal pede desculpas pelo acontecido e promete interessar-se pelo nosso caso. Duas horas depois, estamos todos trancados numa sala muito grande, retangular, com umas doze camas, uma mesa comprida com bancos no centro. Com os dólares de Trinidad, pedimos a um guarda, pela janela gradeada, que nos compre fumo, papel e fósforos. Ele não apanha o nosso dinheiro.

– Esse negro de ébano – diz Clousiot – está com cara de cumpridor fanático do regulamento. Parece que não vamos ter esse fumo tão cedo.

Passo então a bater na porta, que se abre no mesmo momento. Um homenzinho, com aparência de coolie, com uma roupa cinzenta típica de preso e ainda por cima um número no peito, para que ninguém se engane, diz para mim:

– Dinheiro, cigarros.

– Não. Tabaco, fósforos e papel.

Ele volta dentro de poucos minutos, com tudo o que pedimos e mais um bule fumegante de chocolate. Nós todos bebemos, em grandes vasilhas trazidas pelo prisioneiro.

À tarde, eles vêm me procurar. Volto à sala do comandante.

– O governador me deu ordem de deixar vocês livres no pátio da cadeia. Diga aos seus companheiros que não procurem fugir, pois as conseqüências seriam graves para todos nós. Você, como chefe do grupo, pode ir à cidade todos os dias de manhã, das 10 ao meio-dia, e todas as tardes, das 3 às 5. Você tem dinheiro?

– Sim. Moeda inglesa e francesa.

– Um policial à paisana acompanhará você aonde queira ir, durante as suas saídas.

– Que vão fazer com a gente?

– Pelo que me parece, vamos procurar embarcá-los, um de cada vez, nos petroleiros de várias nações. Como Curaçau tem uma das maiores refinarias do mundo, que processa o petróleo da Venezuela, entram e saem por dia uns vinte a 25 petroleiros de todos os países. Seria a solução ideal para vocês, porque chegariam em outros países sem problema algum.

– Que outros países, por exemplo? Panamá, Costa Rica, Guatemala, Nicarágua, México, Canadá, Cuba, Estados Unidos e os países de lei inglesa?

– Impossível. A Europa também é impossível. Fiquem tranqüilos, tenham confiança, deixem-nos trabalhar para ajudá-los a pôr o pé no estribo, no caminho de uma vida nova.

– Obrigado, comandante.

Conto tudo fielmente aos meus companheiros. Clousiot, o mais desconfiado do bando, pergunta:

– Qual é a sua opinião, Papillon?

– Não sei ainda. Acredito que estão nos levando na conversa, para ficarmos quietos e não fugirmos,

– Pois olhe – diz ele -, acho que você tem razão.

Já o bretão acredita naquele plano maravilhoso. O sujeito do ferro de engomar demonstra também seu júbilo, dizendo:

– Acabaram-se as canoas e as aventuras, agora estamos garantidos. Chegaremos a um país qualquer num grande petroleiro e ficaremos oficialmente lá; acabou tudo.

Leroux tem a mesma opinião.

– E você, Maturette?

E o menino de dezenove anos, esse pequeno-burguês acidentalmente transformado em presidiário, esse garoto de traços mais finos que uma mulher, diz, com sua voz suave:

– E vocês acreditam que esses policiais de cabeças quadradas vão fabricar para cada um de nós carteiras de identidade duvidosas ou falsas? Eu, não. O mais que podem fazer é fechar os olhos para que a gente, clandestinamente, embarque um por um num petroleiro de partida, e nada mais. Aliás, eles fariam isso para se livrar de nós sem dor de cabeça. Esta é a minha opinião. Não acredito na história.

Saio poucas vezes, de manhã, para fazer algumas compras. Já estamos aqui há uma semana e nada de novo aconteceu. Estamos ficando nervosos. Certa tarde, aparecem três padres, acompanhados de policiais, visitando uma por uma todas as salas e todas as ceias. Ficam muito tempo na cela mais próxima de nós, onde está um negro acusado de estupro. Supondo que eles virão nos ver, entramos todos em nossa sala e nos sentamos nas camas. De fato, chegam os três padres, acompanhados pelo Dr. Naal, pelo comandante da polícia e por um sujeito cheio de galões e vestido de branco, que deve ser oficial de marinha.

– Monsenhor, aqui estão os franceses – diz em francês o chefe de polícia. – Tiveram conduta exemplar.

– Congratulo-me com vocês, meus filhos. Vamos sentar nos bancos em volta da mesa, aí estaremos melhor para conversar.

Todo mundo senta, inclusive os que acompanham o bispo. Trazem um tamborete que se encontrava diante da porta, no pátio, e o colocam na cabeceira da mesa. Desta maneira, o bispo poderá ver bem todos nós.

– Os franceses são quase todos católicos, qual de vocês não é?

Ninguém levanta a mão. Penso que o padre da Conciergerie quase me batizou e que posso me considerar católico, eu também.

– Meus amigos, eu sou descendente de franceses e me chamo Irénée de Bruyne. Meus antepassados eram protestantes huguenotes refugiados na Holanda, na época em que Catarina de Médicis os perseguia para matar. Sou, portanto, de sangue francês, bispo de Curaçau, cidade onde há mais protestantes que católicos, mas onde os católicos são todos crentes e praticantes. Em que situação vocês se acham?

– Estamos esperando para ser embarcados nos petroleiros, um por um.

– Quantos já partiram dessa maneira?

– Até agora, nenhum.

– Hum! Que diz a isso, comandante? Responda em francês, por favor, o senhor fala francês tão bem.

– Monsenhor, o governador, sinceramente, tem a idéia de ajudar esses homens empregando essa fórmula, mas devo dizer, com toda a sinceridade, que até hoje nenhum capitão de navio aceitou levar qualquer um deles, principalmente porque eles não têm passaporte.

– É por aí que devíamos começar. O governador não poderia dar a cada um deles um passaporte excepcional?

– Não sei. Nunca falou nisso.

– Depois de amanhã, vou rezar uma missa por vocês. Querem vir se confessar, amanhã à tarde? Eu os ouvirei pessoalmente, a fim de ajudá-los, para que o bom Deus perdoe os seus pecados. Será possível o senhor enviá-los à catedral às 3 horas?

– Sim.

– Gostaria que eles viessem de táxi ou em carro particular.

– Eu mesmo os acompanharei, monsenhor – diz o Dr. Naal.

– Obrigado, meu filho. Meus filhos, não posso lhes prometer nada. Apenas posso lhes dizer uma palavra verdadeira: a partir deste momento, vou me esforçar para lhes ser o mais útil possível.

Vendo que Naal lhe beija o anel e que o bretão faz o mesmo, nós também beijamos de leve o anel episcopal e o acompanhamos até o seu carro, estacionado no pátio.

No dia seguinte, todos se confessam com o bispo. Eu sou o último.

– Vamos, meu filho. Comece primeiro pelo maior pecado.

– Meu padre, em primeiro lugar não sou batizado, mas um padre da prisão na França me disse que, batizados ou não, somos todos filhos do bom Deus.

– Ele tinha razão. Pois bem, vamos sair do confessionário e você vai me contar tudo.

Conto a minha vida, com todos os episódios. Demorada e pacientemente, com a maior atenção, o príncipe da Igreja me escuta sem me interromper. Pega minhas mãos entre as suas e me fita muitas vezes nos olhos; às vezes, nas passagens difíceis de confessar, ele baixa os olhos para me ajudar. Esse padre de sessenta anos tem o olhar e o rosto tão puros, que refletem qualquer coisa de infantil. Sua alma límpida e certamente repleta de infinita bondade se irradia em todos os seus traços, e seu olhar cinza-claro penetra em mim como um bálsamo sobre uma ferida. Calmamente, muito devagar, sempre com as minhas mãos entre as suas, ele me fala numa voz tão suave que é quase um murmúrio:

– Deus concede às vezes aos seus filhos a graça de suportar a maldade humana, para que aquele que escolheu como vítima saia da prova mais forte e mais nobre do que nunca. Veja, meu filho, se você não tivesse tido esse calvário para subir, jamais poderia ter-se elevado tão alto e se aproximado tão intensamente da verdade de Deus. Digo melhor: as pessoas, os sistemas, as engrenagens dessa máquina horrível que esmagou você, os seres fundamentalmente maus que de várias maneiras torturaram e prejudicaram você prestaram-lhe o maior serviço que poderiam prestar. Provocaram em você o aparecimento de um novo ser, superior ao primeiro e, hoje, se você tem o sentido da honra, da bondade, da caridade e a energia necessária para vencer todos os obstáculos e tornar-se um indivíduo superior, deve tudo isso a eles. Essas idéias de vingança, de punir cada um proporcionalmente à importância do mal que lhe fez, não podem ir adiante numa criatura como você. Você deve ser um salvador de homens e não viver para fazer o mal, mesmo acreditando que isso seria justificado. Deus foi generoso com você, ele disse: “Ajuda-te, eu te ajudarei”. Ele ajudou você em tudo e até lhe permitiu salvar outros homens e levá-los à liberdade. Sobretudo, não creia que são muito graves todos esses pecados que você cometeu. Há muita gente de alta posição social que se tornou culpada de pecados bem mais graves que os seus. Só que eles não tiveram, no castigo imposto pela justiça dos homens, a oportunidade de elevar-se, como você o fez.

– Obrigado, padre. O senhor me fez um bem enorme, para toda a minha vida. Nunca hei de esquecer.

E lhe beijo as mãos.

– Você vai partir novamente, meu filho, e enfrentar outros perigos. Eu queria batizá-lo antes que partisse. Que acha?

– Padre, deixe-me ficar como estou, por enquanto. Meu pai me criou sem religião. Ele tem um coração de ouro. Quando minha mãe morreu, ele soube encontrar, para me amar ainda mais, gestos, palavras e atenções de mãe. Me parece que, se eu me deixasse batizar, estaria cometendo uma espécie de traição para com ele. Me deixe ficar completamente livre, com uma identidade estabelecida, um modo de viver normal e então, quando escrever a ele, perguntarei se posso, sem magoá-lo, abandonar a sua filosofia e me fazer batizar.

– Compreendo, meu filho, e tenho certeza de que Deus está com você. Dou-lhe a minha bênção e peço a Deus que o proteja.

– É assim. Dom Irénée de Bruyne se espelha por inteiro nesse sermão – me diz o Dr. Naal.

– Exatamente. E o que o senhor pensa fazer agora?

– Vou pedir ao governador que dê ordem à alfândega para que me conceda preferência na primeira venda de barcos apreendidos aos contrabandistas. Você virá comigo, para dar sua opinião e escolher aquele que mais lhe convém. Quanto ao resto, alimentos e roupas, será fácil.

Desde o dia do sermão do bispo, temos constantemente visitas, especialmente às 6 horas da tarde. Essa gente quer nos conhecer. Sentam-se nos bancos junto à mesa, cada um traz alguma coisa, que deposita discretamente sobre uma cama, sem mesmo dizer: “Olhem, eu trouxe isso para vocês”. Lá pelas 2 horas da tarde, sempre aparecem algumas Irmãzinhas dos Pobres, acompanhadas da superiora e falando muito bem o francês. A sua cesta está sempre cheia de boas coisas preparadas por elas. A superiora é ainda moça, menos de quarenta anos. Não se vêem seus cabelos, presos na coifa branca, mas ela tem os olhos azuis e as sobrancelhas loiras. Pertence a uma importante família e – segundo nos disse o Dr. Naal – escreveu para a Holanda, a fim de que se encontre outro meio que não seja o de nos obrigar a partir novamente pelo mar. Passamos juntos uns bons momentos e ela nos pede várias vezes para narrar a nossa evasão. Às vezes me pede para contar diretamente a umas freiras que a acompanham e que falam francês. E, se eu esqueço ou omito um detalhe, ela me chama docemente à ordem:

– Henri, não conte tão depressa. Você está pulando a história do hocco… E por que está esquecendo hoje as formigas? São muito importantes as formigas, pois foi por causa delas que você foi surpreendido pelo bretão mascarado.

Estou contando tudo isso porque são momentos tão doces, tão completamente opostos a tudo o que temos vivido, que uma luz celestial parece iluminar de modo irreal esse caminho da podridão, que está em vias de desaparecer.

Fui ver o barco, magnífica embarcação de 8 metros de comprimento, com uma bela quilha, um mastro muito alto e velas imensas. É realmente adequado para o contrabando. Está completamente equipado, mas todo lacrado pela alfândega. No leilão, um senhor começa com um lance de 6 000 florins, mais ou menos 1 000 dólares; mas o barco fica sendo nosso por 6 001 florins, depois que o Dr. Naal murmura algumas palavras ao ouvido daquele cavalheiro.

Em cinco dias estamos prontos. Pintado de novo, repleto de víveres, bem ajeitados no porão, esse barco com meio convés é um presente de rei. Seis maletas, uma para cada um de nós, com roupas novas, sapatos, tudo que é necessário para a gente se vestir, são protegidas por um pano impermeável e colocadas na coberta do barco.

A PRISÃO DO RIO HACHA

Partimos ao raiar do dia. O doutor e as Irmãzinhas dos Pobres vieram nos dizer adeus. Largamos facilmente do cais, o vento logo nos pega e vogamos normalmente. O sol se levanta radioso, temos pela frente um dia sem histórias. Logo percebo que o navio tem velas demais e não há lastro suficiente. Tenho que ser prudente. Deslizamos a toda velocidade. Este navio é um verdadeiro puro-sangue, quanto à velocidade, mas também é ciumento e irritável. Tomo a direção pleno oeste. Ficou decidido que desembarcaríamos clandestinamente na costa colombiana os três homens que se juntaram a nós em Trinidad. Eles não querem saber de uma longa travessia, dizem que têm confiança em mim, mas não no tempo. Com efeito, segundo os boletins meteorológicos dos jornais lidos na prisão, prevê-se mau tempo e até mesmo furacão.

Reconheço os seus direitos e fica combinado que eles desembarcarão numa península desolada e desabitada, chamada La Guajira. Quanto a nós, do grupo inicial, dali zarparemos os três para a Honduras britânica. O tempo está esplêndido e a noite estrelada que sucede ao dia radioso facilita, por meio de uma meia-lua muito brilhante, esse projeto de desembarque. Vamos direto para a costa colombiana, lanço a âncora e começamos a sondar, devagar, para ver se eles podem desembarcar. Infelizmente, a água é muito profunda e temos de nos aproximar perigosamente de um costão rochoso, para chegarmos a ter menos de 1 metro e 50 de água. Apertamos as mãos, cada um deles desce, toma pé e, com a mala na cabeça, avança para a terra firme. Observamos a manobra com interesse e um pouco de tristeza. Esses camaradas se comportaram bem conosco, estiveram à altura, das necessidades em todas as circunstâncias. É uma pena que abandonem o navio. Enquanto eles se aproximam da costa, o vento desaparece completamente. Merda! Tomara que não nos vejam da aldeia marcada no mapa e que se chama Rio Hacha. É o primeiro porto onde se acham autoridades policiais. Esperemos que a desgraça não aconteça. Acho que estamos bem em frente daquele ponto, por causa do pequeno farol que se encontra na ponta que acabamos de passar.

Temos de esperar, esperar… Os três desapareceram, depois de nos dizer adeus com lenços brancos. Vento, por Deus do céu! Vento para nos despregarmos dessa terra colombiana, que constitui para nós um ponto de interrogação. Com efeito, não se sabe se eles devolvem ou não os fugitivos. Nós três preferimos, naturalmente, a certeza da Honduras britânica ao desconhecido da Colômbia. Somente às 3 da tarde é que reaparece o vento e podemos partir. Armamos todas as velas e, talvez um pouco inclinado demais, o barco desliza suavemente durante mais de duas horas; mas eis que surge uma lancha a motor, carregada de homens, e aproa para nós, atirando para cima, a fim de nos fazer parar. Tento desobedecer e fugir, procurando o alto-mar, para sair das águas territoriais. Nada feito. A possante lancha chega perto de nós em menos de hora e meia de perseguição e, sob a mira de dez homens de fuzil na mão, somos obrigados a nos entregar.

Esses soldados ou policiais que nos prenderam têm um aspecto muito esquisito: calças sujas que já foram brancas, malhas de lã esburacadas que certamente nunca foram lavadas. Estão todos descalços, menos o “comandante”, este mais bem vestido e mais. limpo. Se estão mal vestidos, em compensação estão armados até os dentes: um cinturão cheio de balas, fuzis de guerra bem engraxados e, como complemento, um grande punhal embainhado, com o cabo ao alcance da mão. O sujeito que eles chamam de “comandante” tem uma cara de mestiço assassino. Carrega um grande revólver, numa cartucheira também cheia de balas. Como só falam espanhol, mal compreendemos o que dizem, mas, nem o olhar, nem os gestos, nem o tom da voz são simpáticos; tudo é hostil.

Vamos a pé do porto até a prisão, atravessando a aldeia, que é mesmo Rio Hacha, escoltados por seis soldados esfarrapados e mais três na retaguarda, com as armas apontadas para nós. É uma recepção nada simpática.

Chegamos ao pátio de uma cadeia cercada por um pequeno muro. Uns vinte presos, barbudos e sujos, ali se encontram de pé ou sentados, Olhando-nos em atitude hostil. “Vamos, vamos”, mas é difícil andar mais depressa porque Clousiot, embora esteja bem melhor, caminha ainda sobre o estribo da sua perca engessada e não pode ir mais depressa. O “comandante”, que ficou para trás, nos alcança, carregando a bússola e o oleado. Está comendo nossos biscoitos e nossos chocolates e compreendemos perfeitamente que vamos ser despojados de todos os nossos pertences. Não nos enganamos. Ficamos fechados numa sala nojenta, com uma janela de grossas grades. No chão, umas tábuas, tendo numa extremidade uma espécie de travesseiro de madeira: são as camas.

– Franceses, franceses – grita perto da janela um prisioneiro, quando os policiais partem, após nos haverem trancafiado.

– Que é que você quer?

– Franceses, mau, mau!

– Mau, o quê?

– A polícia.

– A polícia?

– Sim, polícia mau.

E se afasta. Caiu a noite, uma lâmpada elétrica de fraca voltagem ilumina mal a sala. Mosquitos em quantidade assobiam em nossos ouvidos e nos entram pelo nariz.

– Muito bem, estamos fritos! Vai nos custar caro ter concordado em desembarcar aqueles três cretinos.

– Que é que você quer, a gente não sabia. O pior é que não tivemos vento.

– Você se aproximou demais – diz Clousiot.

– Ora, cale essa boca, Não é a hora de se acusar ou de acusar os outros, é hora de cerrar fileiras. Precisamos estar mais unidos do que nunca.

– Você tem razão, Papi, perdão. Não é culpa de ninguém.

Que merda! Seria muito injusto que, depois de tanta luta, a fuga terminasse aqui, desse jeito, tão lamentavelmente. Não fomos revistados. Estou com meu canudo e trato logo de enfiá-lo naquele lugar. Clousiot introduz também o seu. Tivemos razão em não nos desfazermos deles. São “carteiras” impermeáveis e pouco volumosas, fáceis de guardar em nosso corpo. No meu relógio são 8 horas da noite. Trazem-nos um pedaço de rapadura para cada um, do tamanho de um punho fechado, e três bolas de massa de arroz, cozidos com água e sal. “Buenas noches!” – “Deve ser: boa noite” – diz Maturette. No dia seguinte, às 7 horas da manhã, servem no pátio um café muito gostoso, em copos de madeira. Lá pelas 8 horas, aparece o “comandante”. Peço licença para ir ao barco pegar as nossas coisas. Ou ele não compreende, ou faz de conta que não entende. Quanto mais olho para ele, mais acho que tem cara de assassino. Traz na cinta, à esquerda, uma garrafinha dentro de um estojo de couro: tira para fora, destampa, bebe um trago, cospe e me estende o frasco. Diante desse primeiro gesto amável, pego a garrafa e bebo. Felizmente só tomo um traguinho, é puro fogo, com gosto de álcool para queimar, Engulo rapidamente e o desgraçado índio mestiço de preto se põe a rir desbragadamente!

Às 10 horas chegam vários civis, vestidos de branco e engravatados. São seis ou sete e entram num edifício que parece ser a diretoria da prisão. Somos chamados. Estão todos sentados em cadeiras dispostas em semicírculo, debaixo de um grande quadro representando um oficial branco coberto de condecorações: “Presidente Alfonso López de Colombia”. Um desses senhores dá uma cadeira para Clousiot, falando com ele em francês, os outros presos ficam de pé. O sujeito que está no centro, magro, nariz adunco, óculos de vidros cortados, começa a me interrogar. O intérprete não traduz coisa nenhuma e conversa comigo:

– O senhor que acaba de falar e que vai interrogá-lo é o juiz da cidade de Rio Hacha, os outros são pessoas importantes, amigos dele. Eu, que estou aqui como tradutor, sou haitiano e encarregado das obras elétricas deste departamento. Creio que alguns deles, embora não queiram dizer, compreendem um pouco o francês, talvez o próprio juiz.

O juiz se impacienta com esse preâmbulo e começa o interrogatório em espanhol. O haitiano vai traduzindo as perguntas e as respostas.

– Vocês são franceses?

– Sim, senhor.

– De onde vêm?

– De Curaçau.

– E antes?

– Trinidad.

– E antes?

– Martinica.

– É mentira. O nosso cônsul em Curaçau avisou, há mais de uma semana, para vigiarmos a costa, porque seis evadidos da penitenciária francesa estavam para desembarcar em nosso país.

– Muito bem, somos fugitivos da penitenciária.

– Caieneiros, portanto?

– Sim, senhor.

– Se um país tão nobre como a França puniu-os tão severamente e deportou vocês para tão longe, quer dizer que vocês são bandidos muito perigosos?

– Talvez.

– Ladrões ou assassinos?

– Homicidas.

– Matadores. Então vocês são matadores. Onde estão os três outros?

– Ficaram em Curaçau.

– Você está mentindo mais uma vez. Desembarcaram a 60 quilômetros daqui, num lugar chamado Castillette. Já foram presos, felizmente, e estarão aqui dentro de poucas horas. Vocês roubaram aquele barco?

– Não, foi dado de presente pelo bispo de Curaçau.

– Bem. Vocês vão ficar presos aqui até que o governo decida o que fazer com vocês. Pelo delito de ter feito desembarcar três dos seus cúmplices em território colombiano, procurando em seguida voltar ao mar, condeno você, o capitão do navio, a três meses de prisão, e a um mês os dois outros. Comportem-se bem, se não quiserem ser castigados fisicamente pelos guardas, que são homens muito duros. Têm algo a dizer?

– Não. Apenas quero recolher as roupas e os víveres que ficaram a bordo da embarcação.

– Tudo isso foi confiscado pela alfândega, menos uma calça, uma camisa, um paletó e um par de sapatos para cada um de vocês. O resto é confiscado e não adianta insistir: não há nada a fazer, é a lei.

Voltamos para o pátio. O juiz é cercado pelos desgraçados prisioneiros do país: “Doutor, doutor!” Ele passa no meio deles, cheio de importância, sem responder e sem parar. Sai da prisão com a comitiva e desaparece.

À 1 hora chegam os três outros nossos companheiros, num caminhão com sete ou oito homens armados. Descem cabisbaixos, com as suas maletas. Entramos com eles na sala.

– Que bruta besteira fizemos, prejudicando também vocês. Não merecemos perdão, Papi – diz o bretão. – Se você quiser nos matar, pode agir, eu nem me defendo. Nós não somos homens, somos uns putos. Fizemos isso porque tínhamos medo do mar; pois bem, pelo que vi da Colômbia e dos colombianos, o perigo do mar é café pequeno, comparado com o perigo de estar nas mãos desses caras. Foi por causa da falta de vento que vocês se estreparam?

– Sim, bretão. Não tenho que matar ninguém, todos nós erramos. Eu não devia ter deixado vocês descerem, e nada teria acontecido.

– Você é muito bom, Papi.

– Não, sou apenas justo – digo, e conto para eles o interrogatório. – Enfim, talvez o governador nos ponha em liberdade.

– Pois sim… Como diz o provérbio: esperemos, a esperança faz viver.

A meu ver, as autoridades deste fim de mundo semibárbaro não podem tomar nenhuma decisão a nosso respeito. Somente as altas autoridades poderão resolver se podemos ficar na Colômbia, se vamos voltar à França, ou vamos ser recolocados em nosso barco, para prosseguir a viagem. Seria o diabo se essa gente, à qual não causamos nenhum prejuízo, adotasse a decisão pior, pois, afinal de contas, não cometemos nenhum delito na terra deles.

Faz uma semana que estamos aqui. Não houve qualquer mudança, a não ser que estão falando agora de nos transferir com uma boa escolta para uma cidade mais importante, Santa Marta, a 200 quilômetros daqui. Esses policiais com cara de bucaneiros ou de corsários não melhoraram de atitude. Ontem, quase levei um tiro de fuzil de um deles, porque lhe reclamei a restituição do meu sabão no tanque. Continuamos nesta sala podre, cheia de mosquitos, agora um pouco mais limpa graças a Maturette e ao bretão, que a lavam todos os dias. Começo a ficar desesperado, perco a confiança. Essa raça de colombianos, mistura de índios e de pretos, esses mestiços de índios e de espanhóis que foram no passado os donos do país não me inspiram confiança. Um preso colombiano nos emprestou um velho jornal de Santa Marta. Na primeira página estão os nossos seis retratos e, embaixo, a cara do comandante da polícia, com seu enorme chapéu de feltro, de charuto na boca, acompanhado de uns dez policiais, empunhando seus paus-furados. Percebo que a captura foi romanceada e valorizado o papel desempenhado por eles. Parece que toda a Colômbia foi salva de um terrível perigo, graças à nossa detenção. Contudo, o retrato dos bandidos é muito mais simpático que o dos policiais. Os bandidos têm até cara de gente honesta, enquanto os policiais, Deus que me perdoe!, começando pelo comandante, é só dar uma olhada e estamos conversados! Que fazer? Já sei algumas palavras de espanhol: dar o fora, fugarse; prisioneiro, preso; matar, matar; corrente, cadena; algemas, esposas; homem, hombre; mulher, mujer.

FUGA DE RIO HACHA

Há um cara no pátio que está constantemente algemado e com o qual fiz amizade. Fumamos o mesmo charuto comprido e fino, muito forte, mas enfim fumamos. Compreendi que é contrabandista e operava entre a Venezuela e a ilha de Aruba. Está sendo acusado de ter morto uns guardas de fronteira e aguarda o processo. Certos dias, mostra-se extraordinariamente calmo; nos outros, nervoso e excitado. Percebo que ele fica calmo depois que recebe visitas e mastiga folhas que lhe trazem. Um dia, ele me dá a metade de uma e logo compreendo. Minha língua, o céu da boca e os lábios, tudo ficou insensível. São folhas de coca. Esse homem de 35 anos, de braços peludos e com o peito recoberto de pêlos encaracolados muito negros, deve ser dotado de força descomunal. Seus pés descalços têm, na sola, um casco tão espesso, que muitas vezes ele tira um pedaço de vidro ou um prego que ali penetraram, mas sem atingir a carne.

“Fuga, você e eu”, digo uma noite ao contrabandista. Numa visita do haitiano eu lhe havia pedido um dicionário francês-espanhol. O cara compreende e me deixa entender que gostaria de fugir, mas, e as algemas? São algemas americanas. Têm uma fenda para a chave, que com certeza deve ser chata. Com um fio de arame achatado na ponta, o bretão me fabrica um gancho. Depois de várias tentativas, consigo abrir as algemas do meu novo amigo, à vontade. À noite, ele fica sozinho num calabouço, cujas grades são bastante grossas. Em nosso quarto, as grades são finas e podem certamente ser torcidas, portanto, só teremos que serrar uma grade, a de Antonio (é o nome do colombiano). “Como é que se pode conseguir uma serra?” – “Plata (dinheiro).” “Quanto?” – “Cem pesos”. – “Dólares?” – “Dez”. Finalmente, com 10 dólares que eu lhe dou, ele consegue duas serras para metais. Explico para ele, desenhando sobre a terra do pátio, que, a cada vez que ele serrar um pouco, deve misturar a serragem de ferro com um pouco de massa dos bolinhos de arroz que nos dão, e tapar bem as fendas. No último momento, antes de entrarmos nos alojamentos para passar a noite, abro a sua algema, deixando-a pendurada num dos punhos. No caso de uma inspeção, é só colocar no outro pulso e apertar, para que ela se feche automaticamente. Leva três noites para serrar a barra. Ele me explica que em menos de um minuto terminará de cortar e que está certo de poder dar uma torcida final com as mãos. Então, virá me procurar.

Chove muito por aqui; então, ele me diz que na “primem noche de lluvia” ele virá me chamar. Esta noite, começa a chover torrencialmente. Meus companheiros estão a par dos meus projetos, ninguém quer me acompanhar, acreditam que o lugar para onde quero fugir fica muito longe. Quero ir para a ponta da península colombiana, na fronteira da Venezuela. O mapa que possuímos diz que esse território se chama Guajira e que é uma região contestada, nem colombiana nem venezuelana. O colombiano diz que “eso es la tierra de los índios” e que não há qualquer polícia, nem colombiana, nem venezuelana. Alguns contrabandistas costumam passar por ali. É perigoso, porque os índios guajiros não permitem que um civilizado penetre em seu território. Mas Antonio se comprometeu a me levar até muito perto de Guajira: dali por diante, terei que continuar sozinho. Tudo isso, é inútil que o diga, foi muito difícil de combinar entre nós, porque ele emprega palavras que não estão no dicionário. Esta noite chove a cântaros. Estou perto da janela. Uma tábua foi despregada há muito tempo do batente. Com ela faremos uma alavanca para afastar as barras. Há duas noites, fizemos um ensaio e vimos que elas cedem fácil.

– Listo (pronto).

Aparece a cara de Antonio, colada às grades, do lado de fora. Com a ajuda de Maturette e do bretão, consigo, num único movimento, não somente afastar uma barra, mas desprendê-la por baixo. Sou empurrado para a frente e o pessoal me dá umas palmadas na bunda, antes de eu pular. As palmadas são como o aperto de mão dos meus amigos. Antonio me pega pela mão e me arrasta para o muro. Pular o muro não é difícil, ele só tem 2 metros, mas assim mesmo corto a mão num dos cacos de vidro que o recobrem; não faz mal, vamos em frente. O danado do Antonio consegue descobrir o caminho no meio dessa chuva que não deixa enxergar 3 metros à frente. Aproveita para atravessar bem pelo centro da aldeia, depois tomamos um caminho entre o mato e a costa. Já bem adiantada a noite, percebemos uma luz. Temos que fazer um longo desvio pelo mato, felizmente pouco espesso, até retornarmos ao caminho. Prosseguimos sob a chuva até o despontar do dia. Na saída, Antonio me deu uma folha de coca, que eu mastigo da mesma maneira que o vi fazer na prisão. Quando o sol desponta, não me sinto cansado. Será efeito da coca? Com certeza. Apesar do dia já estar claro, continuamos a andar. De vez em quando, Antonio se deita no chão e coloca o ouvido contra o solo empapado de água. E vamos adiante.

Antonio tem um modo curioso de caminhar. Ele não corre nem anda, dá uma espécie de sucessivos pulinhos, todos do mesmo comprimento, enquanto seus braços balançam como se estivessem remando no ar. Parece que ouviu algum ruído, porque me arrasta para o mato. Continua chovendo. De fato, vemos passar um rolo compressor, puxado por um trator, certamente para comprimir a terra da estrada.

Dez e meia da manhã. A chuva parou, o sol se levantou. Entramos no mato, depois de havermos caminhado mais de 1 quilômetro sobre o capim e não na estrada. Deitados sob uma árvore muito copada, escondidos por uma vegetação espessa e cheia de espinhos, acredito que nada temos a temer, contudo Antonio não me deixa fumar nem mesmo falar baixo. Ele não pára de engolir o suco das folhas, faço como ele, mas com mais moderação. Tem um saquinho com mais de vinte folhas dentro, que me mostra. Seus dentes magníficos brilham na escuridão quando ri sem fazer barulho. Como estamos numa verdadeira nuvem de mosquitos, ele mastiga um charuto e, com a saliva cheia de nicotina, lambuzamos a cara e as mãos. Assim ficamos sossegados. Sete horas da noite. A noite desceu, mas a lua ilumina demais o caminho. Coloca o dedo sobre as 9 horas e diz: “lluvia (chuva)”. Compreendo que às 9 horas vai chover. Com efeito, às 9 e 20 recomeça a chover e nos pomos novamente a caminho. Para me manter à altura do meu companheiro, aprendi a andar pulando e a remar com os meus braços. Não é difícil, avança-se mais rápido do que andando depressa e, no entanto, não se corre. Durante a noite, tivemos que entrar três vezes no mato, para deixar passar um automóvel, um caminhão e uma carroça puxada por dois burros. Graças às folhas, não sinto canseira quando o dia se levanta. A chuva pára às 8 horas e então, como fizemos na véspera, caminhamos pelo capim mais de 1 quilômetro e entramos no mato, para nos esconder. O inconveniente dessas folhas é que tiram completamente o sono. Não fechamos o olho desde que partimos. As pupilas de Antonio estão tão dilatadas, que não se vê mais a íris. As minhas devem estar iguais.

Nove horas da noite. Chove. Parece que a chuva espera exatamente essa hora para recomeçar a cair. Mais tarde, eu iria saber que nos trópicos, quando a chuva começa a cair a tal hora, durante todo o quarto de lua ela cairá à mesma hora todo dia, parando também mais ou menos à mesma hora. Esta noite, no início da marcha, ouvem-se vozes e luzes. “Castillette”, diz Antonio. O diabo do homem me pega pela mão sem hesitar, entramos no mato e, depois de um desvio de mais de duas horas, nos encontramos novamente na estrada. Caminhamos, ou melhor, andamos aos saltos durante toda a noite e grande parte da manhã. O sol secou as nossas roupas no corpo. Fazia três dias que estávamos molhados, três dias em que só comemos um pedaço de rapadura na partida. Antonio parece estar quase certo de que agora estamos livres de encontros perigosos. Caminha despreocupadamente e já há várias horas que não encosta o ouvido no chão. O caminho segue pela praia e Antonio corta uma vara. Caminhamos agora sobre a areia úmida. Afastamo-nos do caminho. Antonio pára a fim de examinar uma longa faixa de areia pisada, de 50 centímetros de largura, que sai do mar e chega até a parte seca. Acompanhamos as pegadas e, chegando a um lugar em que a risca se alarga em forma de círculo, Antonio enfia a vara na terra fofa. Quando a retira, a ponta está suja de um líquido amarelo como gema de ovo. De fato, cavamos um buraco na areia com as mãos e logo aparecem uns ovos, trezentos ou quatrocentos, mais ou menos, nem sei dizer. São ovos de tartaruga do mar. Esses ovos não têm casca, somente uma pele. Enchemos de ovos a camisa que Antonio tirou do corpo, cabem talvez uns cem. Saímos da praia e atravessamos a estrada, para penetrar no mato. Abrigados dos olhares estranhos, começamos a comer, mas somente a gema, me explica Antonio. Com um golpe de seus dentes de lobo, ele corta a pele que envolve o ovo, deixa escorrer a clara e chupa a gema, um ovo para ele, outro para mim. Abre uma quantidade enorme sempre dividindo comigo. Logo estamos cheios a ponto de quase estourar. Deitamo-nos no chão, fazendo do nosso paletó travesseiro. Diz Antonio:

– Mañana tu sigues solo dos dias más. De mañana en adelante no hay policias.

Esta noite, às 10 horas, chegamos às vizinhanças do último posto de fronteira. Nós o reconhecemos pelos latidos dos cães e pela farta iluminação da casinha. Tudo isso é contornado de modo magistral por Antonio. Daí por diante, andamos a noite inteira sem tomar precauções. O caminho não é largo, apenas um vereda, que a gente Percebe ser bastante freqüentada, pois está sem capim. Tem mais ou menos 50 centímetros de largura e contorna o mato, dominando a praia de uma altura de cerca de 2 metros. Percebem-se também, em certos lugares, umas pegadas de ferraduras de cavalos e de burricos. Antonio senta-se numa grossa raiz de árvore e me faz sinal para fazer o mesmo. O sol bate firme. No meu relógio são 11 horas, pelo sol deve ser meio-dia: um pauzinho fincado na terra não projeta nenhuma sombra, portanto é meio-dia e eu acerto meu relógio. Antonio esvazia o saquinho de folhas de coca: ainda tem sete. Ele me da quatro e guarda três. Afasto-me um pouco, entro no mato, volto com 150 dólares de Trinidad e 60 florins e os estendo a Antonio. Ele me olha espantado, apalpa as notas, não compreende por que estão novas em folha e como não estão molhadas, pois ele nunca me viu secá-las. Ele me agradece, com as notas na mão, reflete demoradamente, depois pega seis de 5 florins (portanto 30 florins) e me devolve o resto. Apesar da minha insistência, não quer receber mais nada. Nesse momento, parece que algo muda em sua atitude. Havíamos decidido nos separar ali mesmo, mas agora ele parece querer me acompanhar por mais um dia. Ele me faz compreender que depois dará meia volta. Pois bem, partimos após engolir algumas gemas de ovo. Fumamos um charuto, depois de muito pelejar para fazer fogo, esfregando mais de meia hora duas pedras uma contra a outra, até saltar uma faísca sobre um pouco de musgo seco.

Faz três horas que estamos andando e eis que surge um homem a cavalo, aproximando-se diretamente de nós. O homem traz um imenso chapéu de palha, botas e em vez de calças veste uma espécie de calção de couro; usa camisa verde e um blusão desbotado, também verde, tipo militar. Como armas, uma belíssima carabina e um revólver na cinta.

– Caramba! Antonio, hijo mio (meu filho)!

De muito longe, Antonio havia reconhecido o cavaleiro; nada disse, mas é certo que sabia quem estava chegando. É um belo tipo, de seus quarenta anos, pele bronzeada. Desce do cavalo e os dois se dão mutuamente grandes pancadas nas costas. Esse modo de se abraçar, eu observei mais tarde em toda a parte.

– E quem é esse aí?

– Compañero de fuga, un francés.

– Aonde vai?

– O mais perto possível dos pescadores índios. Ele quer passar pelo território dos índios, entrar na Venezuela e ali buscar um meio para voltar a Aruba ou a Curaçau.

– Índio guajiro é mau – diz o homem. – Você não está armado, tome lá – e me entrega um punhal de cabo de chifre, dentro de sua bainha de couro.

Sentamo-nos à beira da vereda. Tiro os sapatos, meus pés estão ensangüentados. Antonio e o cavaleiro falam rapidamente; vê-se claramente que não lhes agrada a minha idéia de atravessar Guajira. Antonio, com um gesto, me manda subir na garupa; com meus sapatos amarrados no ombro, vou ficar descalço para secar minhas feridas. Compreendo tudo isso por gestos. O cavaleiro monta no cavalo. Antonio me ajuda e, sem entender muito bem, sou levado a galope, escanchado atrás daquele amigo. Trotamos o dia inteiro e a noite toda. Paramos de vez em quando e ele me passa uma garrafa de anis; bebo um pouco de cada vez. Ao despontar do dia, ele pára. O sol se levanta; ele me dá um pedaço de queijo duro como pedra, duas bolachas, seis folhas de coca e um saco especial para carregá-las impermeável, para pendurar no cinto. Aperta-me nos braços, batendo nas minhas costas, como fez com Antonio, torna a montar a cavalo e parte a toda brida.

OS ÍNDIOS

Caminho até 1 hora da tarde. Não há mais nenhuma árvore, nenhum mato, no horizonte. O mar está brilhando, prateado, e acima dele o sol queima. Caminho descalço, meus sapatos estão sempre dependurados, um de cada lado do ombro esquerdo. No momento em que resolvo me deitar, parece-me que estou vendo ao longe, bem afastadas da praia, cinco ou seis arvores ou pedras grandes. Procuro calcular a distância: 10 quilômetros, talvez. Apanho metade de uma folha grande de coca e, mastigando-a, recomeço minha caminhada em um passo bastante rápido. Uma hora depois, identifico as cinco ou seis coisas: são cabanas com teto de bambu, ou de palha, ou de folhas marrom-claro. De uma delas está saindo fumaça. Em seguida, vejo pessoas e elas já me viram. Percebo que um grupo grita e faz gestos na direção da praia. Vejo, então, quatro barcos que se aproximam rapidamente da praia e desembarcam umas dez pessoas. Todos estão reunidos diante das casas e olham para mim… Vejo nitidamente que tanto os homens como as mulheres estão nus, têm somente alguma coisa presa na frente para esconder o sexo. Caminho devagar na direção deles. Três estão segurando arcos, com flechas na mão. Não fazem gestos, nem de hostilidade, nem de amizade. Um cachorro começa a latir e, irritado, se lança sobre mim. Acaba me mordendo na parte de baixo da barriga da perna e arranca um pedaço da calça… Quando torna a investir, é atingido no traseiro por uma pequena flecha, saída não sei de onde (depois fiquei sabendo: de uma zarabatana), foge ganindo e parece entrar numa casa. Aproximo-me mancando, pois a mordida foi realmente séria. Paro a apenas 10 metros do grupo. Nenhum deles se mexe nem diz nada, as crianças ficam atrás das mães. Os corpos, cor de cobre, nus, musculosos, são esplêndidos. As mulheres têm seios empinados, duros e firmes, com bicos enormes. Só uma delas tem seios grandes e caídos.

A aparência de um deles é tão nobre, seus traços são tão finos, sua raça é de uma nobreza que se manifesta tão claramente, que caminho diretamente em sua direção. Ele não tem arco nem flecha. É tão alto como eu, seus cabelos estão bem cortados, com uma franja comprida que se detém na altura das sobrancelhas. Suas orelhas estão escondidas pelos cabelos, que, na parte de trás, chegam à altura do lóbulo das orelhas e são negros como azeviche, quase violeta. Seus olhos são cinzentos como ferro. Não tem um só pêlo, quer no peito, quer nos braços, quer nas pernas. As coxas, cor de cobre, são musculosas, as pernas são bem torneadas e esbeltas. Está descalço. A 3 metros dele, paro. Ele, então, dá dois passos e me olha fixamente nos olhos. Esse exame dura dois minutos. O rosto, onde nada se move, parece o de uma estátua de cobre de olhar severo. Depois, ele sorri e me toca o ombro. Em seguida, todos me tocam e uma jovem índia me segura pela mão e me leva à sombra de uma das cabanas. Lá, ela ajeita a perna da minha calça. Todo mundo está em volta, sentado em círculo. Um homem me estende um cigarro aceso, aceito-o e começo a fumar. Todos riem da minha maneira de fumar, pois eles – tanto os homens como as mulheres – fumam com a brasa dentro da boca. A ferida não está mais sangrando, mas falta um pedaço mais ou menos do tamanho da metade de uma moeda de 5 francos. A mulher arranca os pêlos e, quando tudo já está bem depilado, lava a ferida com a água do mar que uma indiazinha fora buscar. Com a água, ela pressiona, para fazer o sangue correr outra vez. Ainda não satisfeita, espeta cada lesão com um ferro pontudo. Como todo mundo está me olhando, esforço-me para não me agitar. Outra índia jovem quer ajudá-la, mas ela a repele com dureza. Todos riem desse gesto. Compreendo que ela quisera mostrar à outra que eu lhe pertencia com exclusividade e que foi por isso que todos riram. Depois, ela corta as duas pernas da minha calça logo acima dos joelhos. Sobre uma pedra, prepara algas do mar que lhe trouxeram, coloca-as sobre a ferida e prende-as com o pano tirado da calça. Contente com seu trabalho, faz-me sinal para que eu me levante.

Levanto-me, começo a tirar a roupa. Neste momento, ela vê logo abaixo do colarinho uma borboleta que me fiz tatuar perto da base do pescoço. Olhando-a e descobrindo outras tatuagens, dispõe-se a me tirar a camisa ela mesma, para ver melhor. Todos, homens e mulheres, estão muito interessados nas tatuagens de meu peito: à direita, algemas de Calvi; à esquerda, uma cabeça de mulher; sobre o estômago, o focinho de um tigre; sobre a coluna vertebral, um grande marinheiro crucificado e sobre toda a largura dos rins uma cena de caça com caçadores, palmeiras, elefantes e tigres. Ao perceberem essas tatuagens, os homens afastam as mulheres e se põem a examinar longamente, minuciosamente, cada tatuagem, tocando-a. Cada um dá a sua opinião e, antes de todos, o chefe. A partir desse momento, estou aceito pelos homens. As mulheres me haviam aceitado desde o início, quando o chefe sorrira e me tocara o ombro.

Entramos na maior das cabanas e lá eu me sinto completamente desconcertado. O chão é de terra batida, vermelha, cor de tijolo. A cabana tem oito portas, é redonda, as vigas suportam redes de cores vivas, feitas de pura lã. No centro, uma pedra redonda e achatada, castanha e polida, cercada de outras pedras chatas para servirem de assento. Nas paredes, vários fuzis de cano duplo e um sabre militar. Espalhados por toda parte, arcos de variadas dimensões. Noto também uma carapaça de tartaruga na qual um homem, poderia se deitar, um fogão de pedras secas bem dispostas umas sobre as outras, sem qualquer indício de cimento. Sobre a mesa, metade de uma cabaça contendo no fundo uns dois ou três punhados de pérolas. Num chifre de boi, dão-me para beber um suco de fruta fermentado, agridoce, muito bom; em seguida, sobre uma folha de bananeira, trazem-me um peixe grande de pelo menos 2 quilos, assado sobre a brasa. Convidam-me a comer e eu como lentamente. Quando acabo o peixe, que estava delicioso, a mulher me toma pela mão e me leva à praia, onde lavo as mãos e a boca com a água do mar. Depois, voltamos. Com os outros sentados em círculos e a jovem índia a meu lado, a mão na minha coxa, tentamos trocar algumas informações a nosso respeito por meio de gestos e palavras.

Num movimento único, o chefe se levanta, vai até o fundo da cabana, volta com um pedaço de pedra branca e faz desenhos sobre a mesa. Começa por desenhar índios nus, a aldeia deles e depois o mar. À direita do povoado indígena, casas com janelas, homens e mulheres vestidos. Os homens aparecem com um fuzil na mão ou com um pedaço de pau. À esquerda, outro povoado, homens com fuzil e chapéu, caras antipáticas, mulheres vestidas. Depois de eu ter observado bastante os desenhos, ele percebe que esquecera qualquer coisa e desenha um caminho que vai da aldeia indígena ao povoado da direita e outro que segue pela esquerda, na direção do outro povoado. Para me indicar como eles estão colocados em relação à aldeia, ele desenha na costa venezuelana, à direita, um sol, representado por um círculo do qual saem raios em todas as direções e, na costa colombiana, do lado da outra aldeia, um sol cortado no horizonte por urna linha sinuosa. Não havia como se enganar: de um lado, o sol nascia; do outro, se punha. O jovem chefe olha com orgulho para sua obra. Todos a olham, cada um por sua vez. Quando percebe que compreendi mesmo o que ele queria dizer, empunha novamente o giz e cobre de traços os povoados de ambos os lados, deixando intata somente a sua aldeia. Compreendo que ele quer me dizer que as pessoas daqueles lugares são más, que ele não quer nada com elas e só a sua aldeia é boa. A quem o diz!

Limpam a mesa com um pedaço de lã molhada. Depois que ela secou, ele me dá o giz e cabe a mim contar a minha história em desenhos. É mais complicada do que a dele. Desenho um homem com as mãos amarradas, com dois homens armados que o vigiam; depois, faço o mesmo homem correr, perseguido pelos dois com os fuzis. Faço três vezes a mesma cena e a cada vez me distancio mais dos meus perseguidores; na última, os policiais param e eu continuo a correr, na direção da aldeia, que desenho com os índios, com o cão e, adiante deles, o chefe de braços abertos para mim.

Meu desenho não deve ter saído tão ruim. pois, em seguida a umas conversas bastante longas entre os homens, o chefe abre os braços, tal como no meu desenho. Eles tinham compreendido.

Nessa mesma noite, a índia me leva para a cabana dela, onde vivem seis índias e quatro índios. Instala uma magnífica rede de lã, muito larga, onde duas pessoas podem facilmente dormir atravessadas. Eu me deito na rede, mas ao comprido; ela então se deita numa outra rede, no sentido da largura. Faço a mesma coisa e ela vem se deitar a meu lado. Toca o meu corpo, as orelhas, os olhos, a boca, com seus dedos longos e finos mas muito nodosos, cheios de cicatrizes pequenas e estriadas. São as feridas feitas nas conchas, quando ela mergulha para apanhar ostras com pérolas. Quando acaricio seu rosto, ela me pega a mão, espantada de vê-la fina e sem marcas. Depois desse momento na rede, a gente se levanta e vai para a cabana grande do chefe. Dão-me os fuzis para examinar: são de calibre 12 e 16, de Saint-Étienne. Há seis caixas cheias de cartuchos de chumbo tipo zero-zero.

A índia é de estatura mediana, tem os olhos cinzentos cor de ferro como os do chefe, seu perfil é muito puro, os cabelos trançados lhe chegam até os quadris e são repartidos ao meio. Seus seios são admiravelmente bem feitos, altos e em forma de pêra. Os bicos são mais escuros do que a pele cor de cobre e são grandes. Quando beija, ela morde, não sabe beijar. Rapidamente eu lhe ensino a beijar à maneira civilizada. Quando caminhamos, não quer andar do meu lado e não é possível fazer nada, pois ela vem andando atrás de mim. Uma das cabanas não tem moradores e está em mau estado. Auxiliada pelas outras mulheres, ela ajeita o teto com folhas e endireita o muro com aplicações de uma terra vermelha cheia de argila. Os índios possuem todos os tipos de ferramentas cortantes; facas, facões, sabres, machados, enxadas e um ancinho com dentes de ferro. Há utensílios de cobre e de alumínio, regadores, panelas, uma mó de esmeril, um forno, tonéis de ferro e de madeira. Redes desmesuradamente grandes, de pura lã, enfeitadas com franjas trançadas e desenhos de cores muito violentas, vermelho-sangue, azul-da-prússia, negro tom de azeviche, amarelo-canário. Logo a casa está pronta e ela começa a trazer coisas recebidas das outras índias (até um arreio de burro), um tripé de ferro para colocar sobre o fogo, uma rede onde quatro adultos poderiam dormir atravessados, vidros, latas, panelas, etc.

Há quinze dias que cheguei, nós nos acariciamos mutuamente, mas ela se recusa violentamente a ir até o fim. Não compreendo, pois foi ela quem me provocou e, quando chega a hora, não quer Não se cobre nunca com pano algum, a única roupa que usa é o cache-sexe, preso à sua cintura estreita por uma cordinha bastante fina; as nádegas permanecem inteiramente nuas. Instalamo-nos sem cerimônia alguma na cabana, que tem três portas, a da entrada principal e duas outras em posições opostas. Na circunferência da cabana, que é redonda, essas três portas formam um triângulo isósceles. Cada uma das portas tem sua própria razão de ser. Eu, por exemplo, devo entrar e sair pela porta do norte. Ela deve sempre entrar e sair pela porta do sul. Não devo entrar ou sair pela sua porta e nem ela deve utilizar a minha. Os amigos entram pela porta principal e tanto eu como ela só a devemos usar quando acompanhados de visitas.

Foi só depois que nos instalamos na casa que ela se entregou a mim. Não quero entrar em pormenores, mas era uma amorosa ardente e hábil por intuição, que se enrolava em mim como um cipó. Escondidos de todos, sem exceção, eu a penteio e lhe faço as tranças nos cabelos. Ela fica feliz quando a penteio, uma felicidade indescritível pode ser vista em seu rosto juntamente com o medo de que nos surpreendam, pois percebo que um homem não deve pentear sua mulher, nem polir-lhe as mãos com uma pedra semelhante à pedra-pomes, nem beijar-lhe de determinada maneira a boca e os seios.

Lali (é o nome dela) e eu nos instalamos, portanto, na casa. Há uma coisa que me surpreende: ela nunca usa as frigideiras ou as panelas de ferro ou de alumínio, nunca bebe num copo de vidro, faz tudo nos recipientes de barro fabricados por eles próprios.

O regador serve para nos lavarmos, com a pedra. As necessidades são feitas no mar.

Vou observar o trabalho de abertura de ostras e busca de pérolas. São as mulheres mais velhas que o fazem. Cada mulher jovem que pesca pérolas tem a sua sacola. As pérolas encontradas nas ostras são repartidas da seguinte maneira: uma parte para o chefe, que representa a comunidade; uma parte para o pescador; meia parte para a mulher que abre as ostras; e uma parte e meia para a mergulhadora. Quando vive com a família, ela dá as pérolas a seu tio, irmão de seu pai. Nunca compreendi por que é o tio também quem entra em primeiro lugar na casa dos noivos que estão em vias de se casar, coloca o braço da mulher em volta da cintura do marido e põe o braço direito do homem em torno da cintura da mulher, de maneira que o dedo indicador entre no umbigo. Depois de fazer isso, vai embora.

Vejo, pois, a abertura das ostras, mas não vejo a pesca, já que não me convidaram a entrar na canoa. Eles pescam bem longe da costa, a cerca de 500 metros. Há dias em que Lali volta toda arranhada nas coxas ou nos flancos pelo coral. Às vezes sai sangue das feridas. Então, ela prepara uma pasta de algas marinhas e a aplica sobre os ferimentos. Não faço coisa alguma sem que me tenham feito sinais convidando-me a fazê-la. Nunca entro na cabana do chefe sem que alguém ou ele próprio me pegue pela mão e me leve lá. Lali está desconfiada de que três moças índias da idade dela se deitam no capim o mais perto possível da porta da nossa casa. para tentarem ver ou ouvir o que fazemos quando ficamos sozinhos.

Ontem vi o índio que faz a ligação entre a aldeia dos índios e o primeiro povoado colombiano, situado a 2 quilômetros do posto da fronteira. Esse povoado se chama La Vela. O índio tem dois jumentos e uma carabina Winchester de repetição; não usa roupa alguma, limitando-se, como todos, ao cache-sexe. Não fala uma única palavra em espanhol. Como, então, faz o seu comércio? Com a ajuda do dicionário, escrevo num papel: agujas (agulhas), tinta nanquim azul e vermelha e linha de costura, pois o chefe me pede constantemente para tatuá-lo. O índio da ligação é pequeno e magro. Tem uma horrível ferida que começa no flanco esquerdo, atravessa todo o tórax e acaba na espádua direita. Essa ferida cicatrizou, fazendo uma marca empolada da grossura de um dedo. Numa caixa de charutos são guardadas as pérolas. A caixa está dividida em compartimentos e as pérolas são postas nos diversos compartimentos, de acordo com o tamanho delas. Quando o índio parte, o chefe me autoriza a acompanhá-lo um pouco. Para me obrigar a voltar, ele tem o Simplismo de me emprestar um fuzil de cano duplo e seis cartuchos: está seguro de que assim serei obrigado a regressar, pois não poderia levar comigo uma coisa que não é minha. Como os jumentos não estão com muita carga, o índio monta em um deles e eu no outro. Durante o dia todo percorremos a mesma rota que eu segui para chegar até a aldeia, mas, a uns 3 ou 4 quilômetros do posto da fronteira, o índio dá as costas ao mar e entra na direção do interior do país.

Lá pelas 5 horas, chegamos às margens de um riacho onde estão cinco casas de índios. Todos vêm me ver. O índio fala, fala, fala, até o momento em que chega um tipo que tem os olhos, os cabelos, o nariz, todos os traços de um índio, exceto a cor. É branco, pálido e tem os olhos vermelhos como os de um albino. Está vestindo calças cáquis. Compreendo, então, que o índio da minha aldeia nunca ultrapassa esse lugar aqui. O índio branco me diz:

– Buenos dias. Tu eres el matador que se fué con Antonio? Antonio es compadre mio de sangre. (Para se ligarem por um pacto de sangue, dois homens agem da seguinte maneira: colocam seus braços um ao lado do outro, depois cada um deles fere com a faca o braço do amigo; em seguida, juntam os ferimentos para misturar o sangue e, reciprocamente, dão uma lambida nas mãos tingidas pelo sangue de ambos.)

– Que quieres?

– Agujas, tinta china roja y azul. Nada más.

– Tu lo tendrás de aqui a un cuarto de luna.

Ele fala o espanhol melhor do que eu e se percebe que sabe entrar em contato com os civilizados, organizando o comércio de maneira a defender encarniçadamente os interesses de sua raça. Na hora da partida, me dá um colar feito com peças de prata colombiana, muito brancas. Diz que é para Lali.

– Vuelva a verme - fala o índio branco. E, para assegurar-se de que voltarei, me dá um arco.

Torno a partir, sozinho, e ainda não havia percorrido a metade do caminho quando vejo Lali, na companhia de uma de suas irmãs, muito jovem, que teria talvez doze ou treze anos. Lali tem, com certeza, uma idade entre dezesseis e dezoito anos. Lançando-se sobre mim como uma louca, ela me arranha o peito – pois protejo o rosto – e depois me morde cruelmente no pescoço. Custo a controlá-la, empregando todas as minhas forças. De repente, ela se acalma. Ponho a menina índia montada no jumento e vou caminhando atrás, abraçado com Lali. Voltamos devagar à aldeia. Durante o retorno, mato uma coruja. Atirei nela sem saber o que era, apenas porque vira os olhos brilhando no meio da noite. Lali quer levá-la de qualquer maneira conosco e resolve amarrá-la na sela do burrico. Chegamos de madrugada. Estou tão cansado, que quero tomar um banho. Lali me lava e, em seguida, na minha frente, tira o cache-sexe da irmã, lava-a e depois toma um banho ela própria.

Quando as duas voltam, estou sentado, esperando que a água posta por mim no fogo esquente, para bebê-la com limão e açúcar. Então acontece uma coisa que eu só pude entender direito depois: Lali coloca sua irmã entre as minhas pernas e põe os meus braços em torno da cintura dela. Percebo que a garota está sem o cache-sexe e com o colar que eu dera de presente a Lali. Não sei como sair de uma situação tão estranha. Com jeito, retiro a menina do lugar, pego-a no colo e levo-a para a rede, onde a deito. Tiro-lhe o colar e o coloco no pescoço de Lali. Lali se deita ao lado da irmã e eu ao lado de Lali. Mais tarde percebi que Lali tinha pensado que eu estava colhendo informações para ir embora, que eu não estava satisfeito com ela e que talvez sua irmã me agradasse e me fizesse ficar. Acordei com a mão de Lali tapando meus olhos: era tarde, 11 horas da manhã. A garota não estava mais lá. Lali me olha com amor com seus grandes olhos cinzentos e me morde suavemente os lábios. Está feliz Por compreender que é a ela que eu amo e que não parti porque estaria desinteressado dela.

Diante da casa está sentado o índio que costuma guiar a canoa onde vai Lali. Percebo que está esperando por ela. Ele sorri para mim e fecha os olhos, com uma expressão simpática que significa que sabe que Lali está dormindo. Sento-me a seu lado e ele me fala de coisas que não entendo. É excepcionalmente musculoso, jovem, robusto como um atleta. Observa minhas tatuagens, examina-as longamente e depois me faz sinais de que gostaria que eu o tatuasse. Respondo-lhe que sim com um gesto de cabeça, mas parece que ele pensa que não o compreendi. Chega Lali. Ela untou o corpo todo com óleo. Como sabe que eu não gosto disso, me faz compreender que, com o tempo nublado, a água deve estar muito fria. A mímica, feita meio a sério e meio na brincadeira, é tão graciosa que, fingindo que não a compreendi, faço com que ela a repita várias vezes. Quando lhe faço sinal para recomeçar uma vez mais, ela franze a boca de uma maneira que claramente significa; “Será que você é,. burro ou será que eu sou incapaz para explicar por que passei óleo?”

O chefe passa diante de nós com duas índias. Elas carregam um enorme lagarto verde de pelo menos 4 ou 6 quilos e ele leva um arco e algumas flechas. Acabou de caçá-lo e me convida a ir comê-lo mais tarde. Lali lhe fala e ele me toca o ombro e aponta para o mar. Compreendo que posso ir com Lali, se eu quiser. Vamos os três: Lali, seu habitual companheiro de pesca e eu. A pequena canoa, feita de madeira muito leve, é facilmente posta na água. Eles a levam no ombro e entram na água. O início da navegação é curioso: o índio é o primeiro que sobe e se instala na popa, com um grande remo na mão. Lali, com a água pela altura do busto, equilibra a canoa e a impede de recuar na direção da praia. Subo e coloco-me no meio. Em seguida, num único movimento rápido, Lali sobe e, ao mesmo tempo, com uma remada, o índio nos faz avançar mar adentro. As ondas vão aumentando de tamanho na medida em que a gente progride. A 500 ou 600 metros da praia, encontramos uma espécie de canal, onde já estão dois barcos pescando. Lali prende as tranças no alto da cabeça por meio de cinco tiras de couro vermelho, três atravessadas, duas ao comprido, presas ao pescoço. Empunhando um facão, segue a haste de ferro de cerca de 15 quilos que serve de âncora e que o índio baixou até o fundo. O barco está ancorado, mas não fica quieto, pois a cada onda sobe e desce.

Durante mais de três horas, Lali desce ao fundo do mar e torna a subir. Não se vê o fundo, mas, pelo tempo que ela leva, deve estar a uns 15 a 18 metros. Cada vez que ela sobe, traz o saco com ostras e o índio o esvazia na canoa. Durante essas três horas, nem uma vez Lali subiu para cima do bote. Para descansar, ela fica cinco ou dez minutos agarrada a ele sem sair da água. Mudamos duas vezes de lugar sem que Lali tenha entrado na canoa. No segundo lugar da nossa pesca, o saco vem com ostras mais numerosas e maiores. Dirigimo-nos para a terra. Lali sobe à canoa e as ondas nos levam rapidamente à praia. Uma índia velha nos espera. Lali e eu a deixamos transportar as ostras para a areia seca, juntamente com o índio. Quando todas as ostras estão secas, Lali impede a velha de abri-las, pois faz questão de começar ela própria. Depressa, com a faca, ela abre umas trinta até encontrar uma pérola. Não preciso dizer que comi pelo menos umas duas dúzias de ostras. A água do fundo do mar deve ser fria, pois elas também estavam bastante frias. Delicadamente, Lali extrai a pérola de dentro da ostra: é do tamanho de uma ervilha pequena. Uma pérola grande, maior, provavelmente, que as pérolas médias. E como brilha! A natureza lhe deu tons que mudam, embora discretos. Lali segura a pérola com os dedos, coloca-a na boca e fica com ela aí durante um momento; depois retira-a e coloca-a na minha. Por meio de uma série de gestos e movimentos do queixo, explica-me que quer que eu a esmague com os dentes e a engula. Diante da minha recusa inicial, sua súplica é tão bela, que eu faço aquilo que ela quer: trituro a pérola com os dentes e engulo os fragmentos. Ela abre quatro ou cinco ostras e me faz comê-las, para ajudar a engolir a pérola. Parece uma criança: abre minha boca, me faz deitar na areia e verifica se não ficou nem um pedacinho preso entre os dentes. Deixamos os outros continuarem a trabalhar e nos vamos.

Há um mês que estou ali. Não há engano possível, pois vou marcando os dias num papel. Faz tempo que as agulhas chegaram, com tinta nanquim vermelha, azul, violeta. Na cabana do chefe descobri três navalhas de barbear Solingen. Ele nunca as usa para se barbear, já que os índios são imberbes. Uma das navalhas serve para o corte gradual dos cabelos. Fiz uma tatuagem no braço de Zato, o chefe: um índio com plumas de todas as cores na cabeça. Ele ficou encantado e me fez compreender que não queria que eu fizesse tatuagem alguma nos outros antes de lhe fazer uma grande tatuagem no peito. Quer a mesma carantonha de tigre que eu tenho, com dentes igualmente grandes. Acho graça, não sei desenhar a ponto de fazer uma cabeça tão bonita. Lali me depilou o corpo todo. Logo que vê um pêlo em mim, arranca-o e esfrega no lugar uma pasta feita de alga do mar e cinza. Parece-me que há maior dificuldade, depois, para eles tornarem a crescer.

Essa comunidade índia se chama Guajira. Eles vivem tanto na costa como na planície interior que se estende até o pé das montanhas. Nas montanhas vivem outras comunidades, chamadas Motilones. Nos anos seguintes, eu haveria de lidar com eles. Por intermédio do comércio, conforme já expliquei, os guajiros têm contato com a civilização. Os índios da costa mandam ao índio branco pérolas e também tartarugas. As tartarugas são fornecidas vivas e chegam a pesar até por volta de 150 quilos. Nunca, entretanto, elas chegam ao peso e ao tamanho das do Orinoco ou do Maroni, que atingem 400 quilos e cuja carapaça às vezes vai além de 2 metros de comprimento e 1 metro no ponto de maior largura. Depois de viradas de barriga para cima, as tartarugas não conseguem mais se desvirar. Vi algumas serem levadas depois de terem ficado três semanas de costas no chão, sem comer e sem beber, e elas ainda estavam vivas. Os grandes lagartos verdes, por sua vez, são ótimos para comer. A carne deles é deliciosa, branca e mole; os ovos cozinhados na areia ao sol também são muito saborosos. Só o aspecto deles não anima muito a comê-los.

Cada vez que Lali volta da pesca, traz para casa as pérolas que lhe cabem e as dá para mim. Coloco-as num recipiente de madeira sem separar as grandes, as médias e as pequenas; ficam todas misturadas. Numa caixa de fósforos guardo separadas somente duas pérolas cor-de-rosa, três negras e sete cinzentas de aspecto metálico, fantasticamente belas. Guardo também uma pérola barroca (*) grande que tem o formato e o tamanho de um grão de feijão branco. Essa pérola barroca tem três cores superpostas e, conforme o tempo, uma delas sobressai em relação às outras: a parte negra, a parte cor de aço ou a parte prateada com reflexos cor-de-rosa. Graças às pérolas e a algumas tartarugas, nada falta à tribo. Só que eles têm coisas que não servem para nada e deixam de ter coisas que lhes poderiam ser úteis. Por exemplo: em toda a tribo não há um único espelho. Para poder me barbear e me olhar, precisei encontrar – sem dúvida, proveniente de um naufrágio – uma placa de 40 centímetros, niquelada de um dos lados.

(*) Pérola de superfície irregular.

Minha política em relação aos meus amigos é simples: não faço coisa alguma que possa diminuir a autoridade e o saber do chefe e menos ainda a reputação de um índio muito velho que vive a apenas 4 quilômetros, no interior daquelas terras, cercado de cobras, duas cabras e uma dúzia de carneiros e ovelhas. É o feiticeiro das diferentes aldeias de guajiros. Minha atitude faz com que ninguém me inveje e me olhe com má vontade. Ao fim de dois meses, estou completamente adotado por todos. O feiticeiro tem também umas vinte galinhas. Nas duas aldeias que conheço não há cabras, nem galinhas, nem ovelhas, nem carneiros; concluo, portanto, que a posse de animais domésticos deve ser um privilégio do feiticeiro. Todo dia de manhã, uma índia (elas fazem rodízio) lhe leva peixe e ostras frescas num cesto posto sobre a cabeça. Leva-lhe também broinhas de milho, feitas no mesmo dia e assadas sobre pedras cercadas de fogo. Às vezes – mas não sempre -, elas voltam com ovos e leite coalhado. Quando o feiticeiro quer que eu vá vê-lo, me manda pessoalmente três ovos e uma faca de madeira bem polida. Lali me acompanha até a metade do caminho e me espera à sombra de enormes cactos. Da primeira vez, ela pôs a faca de madeira na minha mão e me fez sinal de ir adiante, na direção de seu braço.

O índio velho vive no meio de uma sujeira enorme, numa tenda feita de couros de boi estendidos, com o lado peludo voltado para dentro. No interior da tenda há três pedras com um fogo que está sempre aceso, a gente percebe. Ele não dorme numa rede e sim numa espécie de cama feita com galhos de árvores e a mais de 1 metro do chão. A tenda é bastante grande, deve ter uns 20 metros quadrados. Não tem paredes: do lado por onde vem o vento há alguns arbustos. Vi duas cobras, uma de cerca de 3 metros, da grossura de um braço; a outra, com mais ou menos 1 metro, tinha um V amarelo na cabeça. Pensei: “Devem comer as galinhas e os ovos”. Não compreendo como podem conviver dentro dessa tenda com as cabras, as galinhas, as ovelhas e também um jumento. O índio velho me examina de cima a baixo, me faz tirar as calças transformadas num short por Lali e, quando estou nu como um verme, faz com que me sente sobre uma pedra perto do fogo. Põe no fogo umas folhas verdes que fazem muita fumaça e cheiram a hortelã. A fumaça me envolve a ponto de sufocar, mas quase não tusso e durante uns dez minutos espero que isso passe. Depois, ele queima as minhas calças e me dá dois cache-sexe de índio, um de couro de carneiro e outro de cobra, mole como uma luva. Coloca no meu braço um bracelete feito com tiras de couro trançado de cabra, de carneiro e de cobra. É um bracelete com 10 centímetros de largura e se prende por intermédio de uma tira de couro de cobra que a gente aperta ou afrouxa à vontade.

No tornozelo esquerdo, o feiticeiro tem uma ferida do tamanho de uma moeda de 2 francos, coberta de moscas. De vez em quando, ele as enxota e, nas horas em que elas insistem demais, espalha cinza em cima da chaga. Aceito pelo feiticeiro, disponho-me a partir, quando ele me dá uma faca de madeira menor do que aquela que me envia quando quer me ver. Em poucos minutos, Lali me explicaria que, quando quisesse ver o feiticeiro, de agora em diante, eu deveria lhe mandar essa faca pequena e, se ele concordasse em me receber, me mandaria a grande. Antes de deixá-lo, observei como seu rosto magro e seu pescoço são cheios de rugas. Sua boca tem apenas cinco dentes: três embaixo e dois em cima, na frente. Os olhos, amendoados como os de todos os índios, possuem nas pálpebras tanta pelanca, que, quando elas se fecham, formam duas bolotas. Não tem cílios nem sobrancelhas. Os cabelos são lisos e negros, caídos, aparados na altura dos ombros, com uma franja igual à de todos os demais índios, à altura das sobrancelhas.

Vou-me embora e me desagrada ficar com a bunda de fora. Sinto-me gaiato. Mas, afinal, vai por conta da fuga! É preciso levar os índios a sério e a liberdade compensa alguns inconvenientes. Lali vê o cache-sexe e, rindo, mostra todos os dentes, que aliás são tão bonitos como as pérolas que ela pesca. Examina o bracelete e a outra tanguinha de cobra. Para ver se fui submetido à fumaça, ela me cheira. Os índios, diga-se de passagem, têm o olfato muito desenvolvido.

Acostumei-me a essa vida e percebi que era preciso não continuar nela por muito tempo mais, pois podia acontecer que eu perdesse a vontade de ir embora. Lali me observa sempre, ela gostaria de me ver participando mais ativamente da vida em comum. Por exemplo, ela me viu sair na pesca de peixes, sabe que eu remo bem e sou capaz de dirigir a canoa pequena e leve. Daí a querer que eu dirija o barco em que ela sai não há muita distância. No entanto, isso não me convém. Lali é a melhor mergulhadora da aldeia, o barco dela é sempre aquele que traz as ostras maiores e em maior quantidade, pescadas mais no fundo. Sei também que o jovem pescador que a leva no barco é o irmão do chefe. Indo com Lali, eu o prejudicaria; portanto, é uma coisa que não devo fazer. Quando Lali me vê pensativo, ela chama outra vez a irmã, que vem correndo, alegre, e entra na casa pela minha porta. Isso deve ter uma significação importante. Por exemplo, elas chegam juntas diante da porta maior, que dá para o mar; ali, elas se separam, Lali faz uma volta e entra pela porta dela, enquanto Zoraima, a garota, vai passar pela minha porta. Os seios de Zoraima não são maiores do que tangerinas e seus cabelos não são compridos: são cortados na altura do queixo e a franja que cobre a testa desce além das sobrancelhas, chega quase ao começo das pálpebras. Cada vez que ela vem, chamada pela irmã, as duas tomam banho e, ao entrarem, tiram o cache-sexe, que fica pendurado na rede. A garota vai embora sempre triste, pelo fato de eu não a ter possuído. Outro dia, nós estávamos os três deitados na rede, Lali no meio; ela se levantou e me deixou colado ao corpo nu de Zoraima.

O índio que pesca com Lali se feriu no joelho, um ferimento grande e profundo. Os outros o levaram ao feiticeiro e ele voltou com um emplastro de argila branco. Nessa manhã, portanto, tive de ir pescar com Lali. Entramos na água com o barco da maneira usual e nos saímos bem. Levei-a um pouco mais longe do que costumava. Ela está radiante de me ver ali, com ela, na canoa. Antes de mergulhar, passa óleo no corpo. Imagino que no fundo negro do mar, que estou observando, a água deve ser um bocado fria. Três barbatanas de tubarão passam bastante perto de nós, eu as aponto, mas ela não lhes dá nenhuma importância. São 10 horas da manhã, o sol brilha. Com a sacola presa ao braço esquerdo, com o facão embainhado preso à cintura, ela mergulha; e, ao mergulhar, não empurra a canoa com os pés, como faria normalmente outra pessoa qualquer. Com incrível rapidez, desaparece no fundo escuro da água. Seu primeiro mergulho deve ter sido de exploração, pois a sacola volta com poucas ostras. Vem-me uma idéia. A bordo há um rolo de corda de couro. Amarro a ponta na sacola, entrego-a a Lali e desenrolo a corda na medida em que Lali vai descendo, levando a sacola e a corda. Ela deve ter compreendido a manobra, pois retorna sem a sacola, após um demorado mergulho. Segura ao barco para descansar, ela me faz sinal para puxar a sacola. Puxo-a, mas, num dado momento, ela parece ter ficado presa em algum coral. Ela mergulha e a desprende, de modo que a sacola acaba chegando, cheia pela metade. Esvazio-a no barco. Em oito mergulhos de 15 metros, nessa manhã, a canoa fica quase cheia. Quando Lali sobe, ficam faltando só dois dedos para que a água entre no bote. Ele está tão cheio de ostras, que, quando vou puxar a âncora, verifico que corremos o risco de afundar. Então deixamos a âncora presa pela corda a um remo, que fica flutuando e assinalando o lugar para voltarmos. Chegamos à terra sem incidentes.

A velha nos espera e o índio que acompanha Lali está na areia seca, no lugar onde, após a pesca, eles costumam abrir as ostras. Está contente com o fato de nós termos trazido tantas ostras. Lali parece explicar-lhe o que eu fiz, amarrando a sacola na corda, aliviando-lhe o esforço da subida e permitindo que ela ponha mais ostras dentro dela. Ele examina o nó que eu dei na corda para prendê-la ao saco. Experimenta desfazê-lo e, logo na primeira tentativa, consegue refazê-lo com muita perícia. Então me olha, muito orgulhoso.

Abrindo as ostras, a velha encontra treze pérolas. Lali, que habitualmente não fica nunca para essa operação e espera em casa que lhe levem a parte dela, permaneceu até que abrissem a última ostra- Comi pelo menos três dúzias. Lali comeu cinco ou seis. A velha separa as pérolas, que são mais ou menos do mesmo tamanho, do tamanho de urna ervilha. Três pérolas para o chefe, três para mim, duas para a velha, cinco para Lali. Lali recebe as três pérolas que me cabem e as entrega a mim. Eu as recebo e as entrego ao índio machucado. Ele não quer recebê-las, mas eu lhe abro a mão, ponho as pérolas dentro dela e torno a fechá-la. Então aceita. Sua mulher e sua filha observam a cena um tanto afastadas do nosso grupo e estavam em silêncio, mas agora começam a rir e se aproximam. Ajudo o pescador a se deslocar até a cabana dele.

Esta cena se repete durante cerca de duas semanas. Todos os dias, entrego as pérolas ao pescador. Ontem, das seis que nos couberam, guardei uma. Chegando em casa, obriguei Lali a comê-la. Ela ficou touquinha de alegria e cantou a tarde toda. De vez em quando, vou ver o índio branco. Ele me disse que se chama Zorrillo, que em espanhol quer dizer raposinha. Falou que o chefe lhe pedira para me Perguntar por que eu não fazia a tatuagem do focinho de tigre que fora pedida. Expliquei-lhe que não sei desenhar bem. Com a ajuda do dicionário, peço-lhe para me trazer um espelho retangular com a superfície do meu peito, papel transparente, um pincel fino, um tinteiro e papel-carbono (ou, se ele não o encontrar, um crayon grande e grosso). Digo-lhe também para trazer roupas do meu tamanho e guardá-las na casa dele com três camisas cáquis. Fico sabendo que a polícia lhe fez perguntas sobre Antonio e sobre mim. Ele lhes respondeu que eu tinha passado para a Venezuela pelas montanhas e que Antonio tinha sido mordido por uma cobra e estava morto. Disse-me também que os franceses estão na prisão em Santa Marta.

Na casa de Zorrillo há exatamente as mesmas coisas heterogêneas que na casa do chefe: muitos vasos decorados com desenhos de que os índios gostam, cerâmicas de muita arte, tanto pelo formato como pelos desenhos e pelas cores; redes de pura lã, magníficas, umas brancas, outras coloridas, com franjas; couros curtidos de cobras, lagartos e enormes sapos; cestos trançados, brancos e em cores. Segundo ele me falou, todos esses objetos são feitos por índios da mesma raça dos da minha tribo, mas que vivem em uma região de vegetação espessa, a 25 dias de viagem a pé, na direção do interior. Desse lugar é que vêm as folhas de coca e ele me dá mais de vinte delas. Quando estiver deprimido, mastigarei uma. Despeço-me de Zorrillo, pedindo-lhe que, além de todos os meus pedidos anotados, me trouxesse alguns jornais ou revistas em espanhol, pois com meu dicionário consegui aprender bastante em dois meses. Não há notícias de Antonio; ele sabe apenas que houve um novo choque entre guardas-costeiros e contrabandistas. Cinco guardas e um contrabandista morreram, o barco não foi capturado. Jamais vi na aldeia uma gota sequer de álcool, a não ser a bebida fermentada que é preparada com frutas. Enxergando uma garrafa de anis, peço-a, mas ele recusa. Se quiser, posso bebê-la aqui, mas não posso levá-la. Esse albino é um sábio.

Deixo Zorrillo e me vou em um burrico que ele me emprestou e que amanhã voltará sozinho à sua casa. Levo apenas um pacote de bombons de várias cores, enrolados um por um em papel fino, e sessenta maços de cigarro. Lali está me esperando a mais de 3 quilômetros da aldeia, com a irmã; ela não faz nenhuma cena e concorda em vir andando ao meu lado, abraçada. De vez em quando, ela pára e me beija à maneira civilizada, na boca. Quando chegamos, vou ver o chefe e lhe ofereço os bombons e os cigarros. Sentamos à porta, diante do mar. Tomamos a bebida fermentada, que, para ficar fresca, é guardada em moringas. Lali se senta à minha direita, com os braços em volta da minha coxa; sua irmã se senta à minha esquerda, na mesma posição. Elas comem os bombons. O pacote fica aberto diante de nós e as mulheres e as crianças se servem com discrição. O chefe empurra a cabeça de Zoraima para perto da minha e me faz compreender que ela quer ser minha mulher, como Lali. Lali faz gestos, segura seus próprios seios com as mãos e depois mostra que Zoraima tem seios pequenos e que é por isso que não a quero. Levanto os ombros e todo mundo ri. Percebo que Zoraima parece muito infeliz. Seguro-a nos meus braços e então envolvo seu pescoço e lhe acaricio os seios; ela fica radiante de felicidade. Fumo alguns cigarros; os índios experimentam e logo os rejeitam, preferem o cigarro deles, com a brasa dentro da boca. Cumprimento todos e pego Lali pelo braço para ir embora. Lali vem atrás de mim e Zoraima a segue. Peixes grandes estão sendo assados na brasa, é sempre uma delícia. Coloquei no fogo uma lagosta de pelo menos 2 quilos. Comemos com prazer essa carne delicada.

Recebi o espelho, o papel fino, o papel para decalcar, um tubo de cola que eu não tinha pedido, mas pode vir a ser útil, vários crayons grandes meio duros, o tinteiro e o pincel. Penduro o espelho em um fio, deixando-o à altura do meu peito, ficando eu sentado. No espelho aparece claramente, com todos os pormenores e do mesmo tamanho, a cabeça do tigre. Lali e Zoraima, curiosas e interessadas, me observam. Faço os traços com o pincel; como a tinta escorre, uso a cola, misturando-a com a tinta e, a partir de então, vai tudo bem. Depois de três sessões de uma hora de trabalho cada, consigo ter no espelho a réplica perfeita da cabeça do tigre.

Lali foi buscar o chefe, Zoraima pega minhas mãos e as coloca em seus seios, ela exprime tanta tristeza e desejo no rosto, seus olhos exprimem tanta volúpia e amor, que, sem saber bem o que faço, acabo por possuí-la ali, no chão, no meio da cabana. Ela geme um pouco, mas seu corpo, tenso de prazer, me envolve e não quer me largar. Com suavidade, me desprendo e vou tomar banho no mar, pois estou cheio de terra; ela vem atrás de mim e nós nos lavamos juntos. Esfrego-lhe as costas, ela me esfrega as pernas e os braços, voltamos para casa. Lali está sentada no lugar onde nós nos deitamos e, quando entramos, ela percebe tudo. Levanta-se, põe os braços em volta do meu pescoço e me beija com ternura. Depois pega a irmã pelo braço, faz com que ela saia pela minha porta, enquanto a própria Lali sai pela dela. Ouço barulho fora, saio e vejo Lali, Zoraima e outras duas mulheres esforçando-se por furar a parede com um ferro. Percebo que elas vão fazer uma quarta porta. Para que a parede se abra sem rachar, elas a molham com o regador. Em pouco tempo, a porta está feita. Zoraima remove os escombros da parte derrubada. De agora em diante, ela entrará e sairá sempre por esta porta e nunca mais utilizará a minha.

Chega o chefe com três índios e com o irmão, cuja perna já está quase cicatrizada. O chefe olha o desenho no espelho e se mira. Está encantado de ver o tigre tão bem desenhado e de ver seu rosto. Não compreende o que estou querendo fazer. O desenho está seco: ponho o espelho deitado em cima da mesa, o papel transparente por cima, e começo a copiar. É coisa muito fácil e anda bastante depressa. O crayon meio duro acompanha os traços com fidelidade. Em menos de meia hora, diante dos olhos interessados de todos, aparece um desenho tão perfeito como o original. Cada um dos índios segura a folha e a examina, comparando o tigre do meu peito com o do desenho. Faço Lali se deitar em cima da mesa, passo um pano ligeiramente úmido em seu ventre, ponho a folha para decalcar e, por cima, a folha do desenho que acabei de fazer. Faço alguns traços e o deslumbramento de todos chega ao auge quando surge na barriga de Lali uma pequena parte do desenho. É só neste momento que o chefe compreende que todo o trabalho que estou tendo é por ele.

Os seres que não têm a hipocrisia de uma educação de civilizados reagem com naturalidade na medida em que vão percebendo as coisas. É de imediato que ficam contentes ou descontentes, alegres ou tristes, interessados ou indiferentes. É espantosa a superioridade de índios puros como estes guajiros. Eles são muito superiores a nós, pois, quando acolhem uma pessoa, dão-lhe tudo o que possuem; e, por sua vez, quando recebem dela qualquer atenção, por menor que seja, estas criaturas supersensíveis ficam profundamente emocionadas. Resolvi fazer as linhas gerais maiores do desenho com a navalha, de maneira que logo na primeira aplicação o contorno da tatuagem estará definitivamente fixado. Depois completarei com três. agulhas presas numa vareta. Na manhã seguinte, começo a trabalhar.

Zato está deitado sobre a mesa. Transportei o desenho do papel fino para um outro papel branco mais resistente e, com um crayon duro, passo-o decalcando, para sua pele, já preparada com um leite de argila branca que deixei secar. O traço fixa melhor na superfície coberta pelo pó. O chefe fica estendido na mesa, duro, imóvel, sem mexer sequer a cabeça, com medo de prejudicar o desenho, que lhe faço ver através do espelho. Faço os traços com a navalha. Sai um pouquinho de sangue e, a cada vez que isso acontece, enxugo-o. Quando todas as linhas foram coitadas e um traço vermelho fino substituiu o traço do desenho, passo tinta nanquim azul por todo o peito. A tinta é rejeitada pelo sangue e só se fixa bem nos lugares onde o corte foi um pouco mais fundo, mas o desenho está maravilhosamente nítido. Oito dias mais tarde, Zato pode exibir sua cabeça de tigre, a goela à mostra, a língua vermelha, os dentes brancos, as narinas, o bigode negro, os olhos. Estou satisfeito com a minha obra: a cabeça desse tigre está mais bela do que a do meu, seus tons estão mais vivos. Quando cai a casca da ferida, retoco alguns lugares com as agulhas. Zato está tão contente, que pediu seis espelhos a Zorrillo, um para cada cabana e dois para a dele.

Passam os dias, passam as semanas e os meses. Estamos em abril e há quatro meses que me encontro aqui. Minha saúde é excelente. Estou forte e os pés, acostumados a andar descalços, me permitem longas caminhadas sem cansaço algum, caçando lagartos grandes. Esqueci-me de dizer que, depois da minha primeira visita ao feiticeiro, tinha pedido a Zorrillo que me trouxesse tintura de iodo, água oxigenada, algodão, gaze, tabletes de quinino e Stovarsol. Tinha visto um preso no hospital com uma ferida grande como a do feiticeiro e Chatal, o enfermeiro, amassava uma pílula de Stovarsol e a aplicava no ferimento. Recebi tudo o que pedira e mais uma pomada que Zorrillo trouxera por sua conta. Mandei a faca pequena de madeira ao feiticeiro e ele me respondeu mandando a dele. Levei muito tempo e tive muita dificuldade em convencê-lo a deixar-me tratar dele, mas, depois de algumas visitas, a chaga estava reduzida à metade; em seguida, ele continuou o tratamento sozinho e, um belo dia, me enviou a faca grande de madeira para que eu fosse vê-lo completamente curado. Ninguém soube jamais que tinha sido eu quem o curara.

Minhas mulheres não me deixam. Quando Lali está pescando, Zoraima fica comigo. Quando Zoraima vai mergulhar, Lali me faz companhia.

Nasceu um filho de Zato. No momento em que sentiu as dores do parto, sua mulher foi para a praia, escondeu-se atrás de uma rocha que a protegia do olhar de todos e uma outra mulher de Zato lhe levou um cesto grande com broas, água doce e açúcar escuro não refinado. O nascimento deve ter ocorrido por volta das 4 horas da tarde, pois, no pôr do sol, ela apareceu caminhando em direção à aldeia, gritando e levantando os braços com o nenen. Antes de ela chegar, Zato já sabe que é um homem. Percebo que, se fosse uma menina, ela teria chegado sem gritar alegremente e não levantaria a criança nos braços, como estava fazendo. É Lali quem me explica isso, por mímica. A índia vem vindo, de repente pára e levanta o garoto. Zato estende os braços e grita, sem se mexer. Ela torna a andar alguns metros, levanta outra vez o garoto e volta a parar. Zato grita e estende novamente os braços. Nos últimos 30 ou 40 metros da caminhada da mulher, a cena se repete cinco ou seis vezes. Zato não sai dos umbrais da sua cabana: permanece diante da porta maior de sua casa e todos estão colocados à sua direita ou à sua esquerda. Quando chega a apenas cinco ou seis passos, a mãe ergue o filho, pára e grita. Então Zato avança, pega a criança, levanta-a em seus braços, volta-se para o oriente e grita três vezes, levantando três vezes o bebê. Senta-se, coloca a criança deitada atravessada sobre seu peito, sob o braço direito, com a cabeça sob a axila esquerda. Depois entra, sem se voltar, pela porta grande da casa. Todos o seguem e a mãe é quem entra por último. Bebemos todo o vinho fermentado que havia.

De manhã e de tarde, durante toda a semana, a terra diante da cabana de Zato é regada e os homens e as mulheres a pisam depois de ela ter sido regada. Fazem, assim, um círculo grande de argila vermelha bem batida. Armam uma grande tenda de couro de boi e eu adivinho que ali vai ser realizada uma festa. Grandes recipientes de barro, pelo menos umas vinte jarras enormes, são guardados nessa tenda com a bebida preferida dos índios. Dispõem-se diversas pedras e, em torno delas, vão sendo acumulados galhos secos e verdes, cuja quantidade aumenta a cada dia. Alguns desses galhos foram trazidos há muito tempo pelo mar, estão secos, brancos e polidos. Também há imensos troncos de árvores, chegados de longe, ninguém sabe como nem quando. Por cima das pedras foram instaladas duas forquilhas de madeira do mesmo tamanho: são as bases para uma enorme churrasqueira. Quatro tartarugas de barriga para cima, mais de trinta lagartos, uns maiores do que os outros, vivos, com as pernas amarradas umas às outras, para não poderem fugir, dois carneiros: toda essa carne espera o momento de ser sacrificada e devorada. Há pelo menos 2 000 ovos de tartaruga.

Um dia de manhã, chegam uns quinze homens a cavalo, todos índios, com colares à volta do pescoço, imensos chapéus de palha, cache-sexe, as coxas, as pernas e os pés nus, a bunda de fora, as costas cobertas por belas peles de carneiro. Todos com facões na cintura, dois com fuzis de cano duplo para caça, o chefe com uma carabina de repetição e uma magnífica blusa de couro negro, além de um cinturão cheio de balas. Os cavalos são excelentes, pequenos, mas muito fortes, todos cinzentos. Na garupa, cada um deles traz plantas secas. Desde quando ainda estavam longe, anunciaram a chegada com tiros de fuzil; porém vinham galopando tão depressa, que logo chegaram até nós. O chefe dos recém-chegados é estranhamente parecido com Zato e seu irmão, embora mais velho. Descendo de seu puro-sangue, ele se dirige a Zato e os dois se tocam nos ombros. Entra sozinho na casa e volta com a índia atrás dele e o bebê em seus braços. Ergue-o e apresenta-o a todos. Depois faz o mesmo gesto que Zato fizera: volta-o para o oriente, onde o sol nasce, coloca-o atravessado no peito, com a cabeça debaixo do braço esquerdo, e torna a entrar na casa. Então, todos os cavaleiros desmontam, prendem os cavalos um pouco afastados, com as plantas em fardos pendurados no pescoço de cada um. Por volta de meio-dia chegam as índias, numa charrete enorme puxada por quatro cavalos, guiada por Zorrillo. Na charrete estão pelo menos vinte índias, todas jovens, e sete ou oito crianças, todas do sexo feminino.

Antes da chegada de Zorrillo, eu tinha sido apresentado a todos os cavaleiros, a começar pelo chefe. Zato me chama a atenção para o fato de que o dedo menor de seu pé esquerdo é torto e fica por cima do outro. Com seu irmão e com o chefe que acabara de chegar é a mesma coisa. Depois, mostra-me que no braço de cada um dos três está uma idêntica mancha negra, uma espécie de sinal de distinção. Compreendo que o recém-chegado é seu pai. As tatuagens de Zato são muito admiradas por todos, sobretudo a da cabeça de tigre. Todas as índias que acabam de chegar têm desenhos coloridos no corpo e no rosto. Lali coloca, no pescoço de algumas, colares d pedaços de coral e, no pescoço de outras, colares de conchas. Noto uma índia admirável, mais alta do que as outras, que são de estatura média. Tem um perfil de italiana, parece uma figura de camafeu. Os cabelos dela são negro-violeta, os olhos são completamente verde-jade, imensos, com cílios longos e sobrancelhas bem arqueadas. Os cabelos estão cortados à maneira índia, repartidos ao meio, com franja, caídos à esquerda e à direita, cobrindo as orelhas. As pontas estão cortadas à altura da metade do pescoço. Os seios de mármore são próximos no tronco e se abrem harmoniosamente.

Lali me apresenta a ela e leva-a à nossa casa com Zoraima e uma outra índia muito jovem, que traz umas canecas e uma espécie de pincéis. De fato, as visitantes vão pintar as índias da aldeia. Vejo a índia bonita pintar obras-primas em Lali e Zoraima. Os pincéis são feitos com pedacinhos de lã atados em varetas. Ela os molha em tintas de cores diferentes, para desenhar. Então pego o meu pincel e, começando pelo umbigo de Lali, desenho uma planta com dois galhos, cada um dos quais vai até a base de um dos seios; depois pinto pétalas cor-de-rosa e o bico do seio em amarelo. Dir-se-ia uma flor semi-aberta, com seu pistilo. As três outras querem que eu lhes faça a mesma coisa. Preciso perguntar a Zorrillo. Ele me diz que posso pintá-las como quiser, desde que elas estejam de acordo. Vocês podem imaginar o que fiz. Durante mais de duas horas, pintei os seios das jovens índias, tanto das visitantes como das outras. Zoraima exigiu uma pintura exatamente igual à de Lali. Enquanto isso, os índios assavam os carneiros e duas tartarugas. A carne delas é vermelha e bonita, parece carne de vaca.

Sento-me perto de Zato e do pai dele, na tenda. Os homens comem de um lado, as mulheres do outro, exceto as que nos servem. A festa termina com uma espécie de dança, noite alta. Para a música, há um índio que toca uma flauta de madeira de som rude e bate em dois tambores de pele de carneiro. Muitos índios, homens e mulheres, estão bêbados, porém não há nenhum incidente desagradável. O feiticeiro veio, montado num burrico. Todos olham a cicatriz cor-de-rosa que ficou no lugar da ferida, aquela ferida que todos conheciam: ficam espantados de vê-la fechada. Só Zorrillo e eu sabemos como foi a coisa. Zorrillo me explica que o chefe que veio à nossa aldeia é o Pai de Zato e se chama Justo: é ele quem ajuda as controvérsias surgidas entre as pessoas de sua tribo e entre as diversas tribos de guajiros. Zorrillo me diz também que, quando há incidentes com outra raça de índios, os lapus, eles se reúnem para discutir e ver se fazem a guerra ou resolvem amigavelmente as coisas. Quando um índio é assassinado por outro índio de outra tribo, faz-se um acordo segundo o qual, para evitar a guerra, o assassino pague pelo morto à tribo deste. O preço às vezes chega a duzentas cabeças de gado, pois, nas montanhas e ao pé delas, todas as tribos tem muitas vacas e muitos bois. Infelizmente, os índios nunca vacinam o gado contra a febre aftosa e as epidemias matam grande quantidade de animais. Em certo sentido – diz Zorrillo -, isso é bom, pois sem essas epidemias haveria gado demais. Esse gado não pode ser oficialmente vendido nem na Colômbia nem na Venezuela: deve ficar sempre em território indígena, pois as autoridades têm medo de que ele leve a febre aftosa para outras regiões de ambos os países. Zorrillo me informa, entretanto, que há muito contrabando de gado pelas montanhas.

O chefe visitante – Justo – me diz através de Zorrillo que eu vá vê-lo em sua aldeia, onde, segundo parece, há mais de cem cabanas. Diz que venha com Lali e Zoraima, que ele nos instalará numa cabana, e que eu não leve coisa nenhuma, pois lá terei tudo de que precisarmos. Diz que eu leve apenas o meu material de tatuagem para fazer nele, também, um tigre. Tira sua pulseira de couro preto e me dá. Segundo Zorrillo, esse é um gesto importante que significa que ele é meu amigo e não será capaz de recusar a satisfação de qualquer desejo meu. Pergunta-me se eu quero um cavalo, respondo-lhe que quero mas não posso aceitar, pois aqui quase não existe capim para alimentá-lo. Diz que Lali ou Zoraima, quando for necessário, podem ir com o cavalo a uma distância de meio dia deste lugar, onde existe capim alto e bom. Aceito o cavalo e ele diz que logo o mandará para mim.

Aproveito esta longa visita de Zorrillo para dizer-lhe que confio nele, que espero que ele não me traia, falando sobre a minha idéia de ir para a Venezuela ou para a Colômbia. Ele me descreve os perigos dos primeiros 30 quilômetros de um lado e do outro das fronteiras. Pelas informações dos contrabandistas, o lado venezuelano é mais perigoso que o colombiano. Entretanto, ele próprio poderia ir comigo, no lado colombiano, até perto de Santa Marta, acrescentando que já fizera essa caminhada e que a Colômbia era realmente a melhor solução. Está de acordo com a minha idéia de comprar outro dicionário, ou melhor, livros que ensinam espanhol e nos quais eu aprenderia frases usuais. Segundo ele, se eu aprendesse a gaguejar bastante, seria uma grande vantagem para mim, pois as pessoas que me escutassem se impacientariam e acabariam as minhas frases, sem prestar muita atenção na pronúncia e no sotaque. Fica resolvido que ele me trará os livros, um mapa (o mais preciso que for possível) e se encarregará de vender as minhas pérolas quando chegar a ocasião e arranjar dinheiro colombiano. Zorrillo me explica que os índios, a começar pelo chefe, só podem me apoiar na minha decisão de partir,, já que a partida é o que eu desejo. Lamentarão que eu vá embora, mas compreenderão que é normal eu querer voltar para junto dos meus. O difícil vai ser com Zoraima e, sobretudo, com Lali. Qualquer uma das duas, mas especialmente Lali, é muito capaz de me derrubar com um tiro de fuzil. Outra coisa: Zorrillo me faz notar algo que eu não sabia, isto é, que Zoraima está grávida. Não tinha percebido. Estou espantado.

A festa acabou, todos foram embora, a tenda de couro foi desmontada, tudo volta a ser como antes, pelo menos na aparência. Recebo o cavalo, um magnífico tordilho, com um rabo comprido que vai quase até o chão e uma crina maravilhosa, cinzenta com reflexos prateados. Lali e Zoraima não estão nada contentes e o feiticeiro manda me chamar para dizer que elas lhe haviam perguntado se podiam dar vidro moído ao cavalo para que este morresse, sem que elas sofressem coisa alguma. Ele lhes respondeu que não fizessem isso, porque eu estava protegido por não sei qual divindade indígena e o vidro podia aparecer dentro da barriga delas. Acrescenta que talvez o perigo tenha sido afastado, mas não é certo. Devo prestar atenção. E contra mim, há perigo? Não, diz ele. Se elas virem que estou me preparando seriamente para ir embora, então, sim, o que elas podem fazer, sobretudo Lali, é me matar com um tiro de fuzil. Posso tentar convencê-las a me deixarem partir, assegurando-lhes que voltarei? De modo nenhum! Nunca devo mostrar que tenho vontade de ir embora.

O feiticeiro pôde me dizer tudo isso graças a Zorrillo, que ele chamou no mesmo dia para servir de intérprete. A situação é muito séria, cumpre tomar todas as precauções, conclui Zorrillo. Volto para casa. Zorrillo chegou à cabana do feiticeiro e saiu dela por um caminho completamente diverso do meu. Ninguém na aldeia sabe que o feiticeiro nos chamou ao mesmo tempo.

Agora, seis meses já se passaram e eu estou com pressa de partir. Um dia, entro e vejo Lali e Zoraima debruçadas sobre o mapa. Elas tentam compreender o que representam aqueles desenhos. O que as inquieta é o desenho com as setas indicando os quatro pontos cardeais. Estão confusas, mas adivinham que esse papel tem algo de muito importante a ver com a nossa vida.

O ventre de Zoraima começou a crescer bastante. Lali está com um pouco de ciúme e me força a fazer o amor em qualquer lugar, propício ou não, e a qualquer hora do dia ou da noite. Zoraima também me solicita a fazer o amor, mas, felizmente, só de noite. Fui ver Justo, o pai de Zato. Lali e Zoraima vieram comigo. Por sorte, eu guardara o desenho e utilizei-o para decalcar a cabeça de tigre no peito dele. Em seis dias, a tatuagem ficou pronta, pois a primeira casca caiu depressa, graças a um banho que ele tomou e no qual se lavou com um pedaço de cal viva. Justo está tão contente, que vai se olhar no espelho diversas vezes ao dia. Durante a minha visita, chega Zorrillo. Com minha autorização, ele falou a Justo de meu projeto, pois pretendo trocar o cavalo. Os tordilhos dos guajiros não existem na Colômbia, porém Justo tem três cavalos de pêlo ruço que são colombianos. Assim que toma conhecimento do meu plano, Justo manda buscar os cavalos. Escolho aquele que me parece ser o mais calmo, ele manda colocarem nele sela, estribos e freios de ferro, pois o freio deles é de osso e os cavalos não estavam com sela. Equipado à maneira colombiana, Justo põe as rédeas de couro na minha mão e, diante de mim, entrega a Zorrillo trinta e nove moedas de ouro de 100 pesos cada uma, que ele deve guardar e me entregar no dia da minha partida. Quer me dar sua carabina Winchester de repetição, que não aceito; Zorrillo diz, aliás, que eu não poderia entrar armado na Colômbia. Então Justo me dá duas pequenas setas do comprimento de um dedo, envolvidas em lã e colocadas num pequeno estojo de couro. Zorrillo me explica que são setas envenenadas com um veneno muito violento e muito raro.

Zorrillo nunca havia visto nem tido setas envenenadas. Cabe-lhe a responsabilidade de guardá-las até a minha partida. Não sei como expressar o meu reconhecimento ante a generosidade de Justo. Ele me diz que soube por Zorrillo um pouco da minha vida e que imagina ter sido magnífica a parte que não conhece, pois me considera um homem completo. Diz que pela primeira vez na sua vida conheceu um homem branco e que anteriormente os considerava todos inimigos, mas agora lhes teria amizade e procuraria conhecer outro homem como eu.

– Antes de partir – disse-me -, pense apenas no fato de que vai para uma terra onde você tem muitos inimigos, ao passo que entre nós só tem amigos.

Acrescenta que Zato e ele olharão por Lali e por Zoraima, que o filho de Zoraima (se for um homem, é claro) terá sempre um lugar de honra na tribo.

– Não gostaria de vê-lo partir. Fique. Se ficar, eu lhe darei aquela índia bonita que conheceu na festa. É minha filha; ela o ama. Você poderá ficar aqui comigo. Terá uma cabana grande e todo o gado que desejar.

Despeço-me desse homem magnífico e volto para a minha aldeia. Durante todo o trajeto da volta, Lali não diz uma única palavra. Ela está montada atrás de mim, no cavalo de pêlo ruço. A sela lhe machuca as coxas, porém ela fica o tempo todo em silêncio. Zoraima vem a cavalo com o índio. Zorrillo foi para a, casa dele por outro caminho. Durante a noite, faz um pouco de frio. Cubro Lali com uma manta de pele de carneiro que Justo me deu e ela se deixa cobrir calada, sem dizer ou exprimir coisa alguma: aceita a roupa sem um gesto. Por mais que o cavalo trote com maior energia, ela não se agarra a mim em busca de segurança. Chegamos à aldeia: vou cumprimentar Zato, ela se afasta com o cavalo, prende-o à casa e põe diante dele algumas ervas, mas não lhe retira nem a sela nem os arreios. Depois de ter passado cerca de uma hora com Zato, volto.

Quando estão tristes, os índios – sobretudo as índias – mantêm o rosto impassível, não movem nem um músculo da face, ficam com os olhos tristíssimos, mas nunca choram. Podem até gemer, mas não choram. Ao me mexer, durante a noite, bati na barriga de Zoraima e a dor fez com que ela gritasse. Com medo de que isso tornasse a acontecer, levanto-me e vou me deitar em outra rede. É uma rede muito baixa. Quando já estou deitado nela, sinto que alguém a está tocando. Finjo que continuo a dormir. Percebo que Lali está sentada num tronco de árvore, imóvel, me olhando. Logo em seguida, sinto que Zoraima também está próxima: ela costuma se perfumar, passando flores de laranjeira na pele. As flores são compradas de uma índia que de vez em quando aparece na aldeia. Quando acordo, elas permanecem imóveis, no mesmo lugar. O sol já nasceu, são quase 8 horas. Vou com elas à praia e me deito na areia seca. Lali e Zoraima ficam sentadas. Acaricio os seios e o ventre de Zoraima, porém ela permanece insensível como mármore. Puxo Lali, faço-a deitar-se, beijo-a, mas ela fecha firmemente a boca. O pescador veio buscar Lali: bastou-lhe olhar para ela, ver sua expressão, e ele compreendeu tudo. Foi-se embora. Estou realmente deprimido, não sei o que fazer: limito-me a acariciá-las e a beijá-las para demonstrar que as amo. Nenhuma das duas fala coisa alguma. A idéia do que será a vida delas depois da minha partida me faz sofrer a ponto de me perturbar. Lali quer, por força, fazer o amor. Com uma espécie de desespero, se entrega a mim. Por quê? Só pode ser por uma razão: ela está querendo engravidar, quer ficar esperando um filho meu.

Pela primeira vez, hoje de manhã, vi um gesto de ciúme dela em relação a Zoraima. Eu estava acariciando o ventre e os seios de Zoraima e ela estava me mordendo o lóbulo das orelhas. Estávamos deitados na areia fina, num canto escondido da praia. Lali chegou, segurou a irmã pelo braço, passou a mão na barriga arredondada dela e depois em seu próprio ventre, liso e chato. Zoraima se levantou e deixou-lhe o lugar a meu lado, como quem dissesse: tens razão.

Todos os dias, as mulheres me dão comida, mas elas próprias não comem. Há três dias que não comem nada. Montei a cavalo e cometi um erro grave, o primeiro em mais de cinco meses: parti para visitar o feiticeiro sem antes ter pedido autorização. No caminho, percebi o que estava fazendo e, em vez de ir diretamente à tenda dele, fiquei dando voltas a cerca de 200 metros dela. Ele me viu e fez sinal para que eu fosse lá vê-lo. Da maneira que me foi possível, consegui fazê-lo entender que Lali e Zoraima não estão se alimentando mais. Ele me dá uma espécie de noz, que devo colocar na água doce da casa. Volto para a cabana e ponho a noz no jarrão. Elas bebem água vá-rias vezes e nem por isso recomeçam a comer. Lali não sai mais para pescar. Depois de quatro dias de absoluto jejum, ela fez hoje uma verdadeira loucura: entrou na água sem barco, nadou uns 200 metros, mergulhou e voltou com trinta ostras para eu comer. O desespero mudo delas me perturba a tal ponto, que também começo a não comer mais. Há seis dias que estamos nisso. Lali está deitada, com febre. Nestes seis dias, ela se limitou a chupar alguns limões, e foi só. Zoraima come uma vez por dia apenas, na hora do almoço, Não sei mais o que fazer. Estou sentado ao lado de Lali. Ela está deitada numa rede que estendi no chão, dobrada, para servir de cama, e olha fixamente para o teto, sem se mexer. Olho para ela, olho para Zoraima, cujo ventre está cada vez mais arredondado, e – sem saber exatamente por que – começo a chorar. Estarei chorando por mim? Por elas, talvez? Quem sabe. Choro, lágrimas grossas me correm pelo rosto. Zoraima as vê e começa a gemer; então, Lali volta a cabeça e também me vê chorando. Rapidamente ela se levanta, vem sentar-se entre as minhas pernas, gemendo com doçura. Beija-me e me acaricia. Zoraima me abraça e Lali começa a falar, sem parar de gemer, e Zoraima lhe responde. Zoraima parece que censura alguma coisa em Lali. Lali me mostra um pedaço grande de açúcar mascavado, dissolve-o na água e o bebe em dois goles. Depois, ela e Zoraima saem, ouço o barulho delas aparelhando o cavalo e, quando saio, encontro-o já selado e com os arreios. Pego a manta de pele de carneiro para Zoraima e Lali coloca uma rede dobrada sobre a sela. Zoraima monta em primeiro lugar, bem na frente, eu no meio, Lali atrás. Estou tão confuso, que parto sem me despedir dos outros e sem prevenir o chefe.

Pensando que nós íamos à cabana do feiticeiro, voltei o cavalo na direção dela, porém Lali diz que não, puxa as rédeas e diz: “Zorrillo”. Vamos ver Zorrillo. No caminho, segurando firme a minha cintura, por diversas vezes Lali me beija o pescoço. Por minha vez, seguro as rédeas com a mão esquerda e com a direita acaricio minha Zoraima. Chegamos ao povoado de Zorrillo no momento em que ele próprio estava vindo da Colômbia, com três burros e um cavalo carregado. Entramos em sua casa. Lali é a primeira a falar; depois fala Zoraima.

Zorrillo me explica que, até o momento em que eu começara a chorar, Lali estava pensando que eu fosse um branco que não dava importância nenhuma a ela. Sabia que eu ia partir, mas me achava falso como uma cobra, pois nunca o havia dito ou comunicado a ela. Estava profundamente decepcionada, pois se achava uma índia capaz de fazer a felicidade de um homem e um homem feliz não vai embora, de modo que a minha ida era um fracasso tão grave, que não valia mais a pena continuar a viver. Zoraima disse mais ou menos a mesma coisa, acrescentando que tinha medo de que seu filho saísse ao pai e fosse um homem sem palavra, falso, capaz de pedir a suas mulheres coisas difíceis de serem feitas e, embora elas dessem a própria vida por ele, deixá-las sem condições de entendê-lo. Por que eu estava para fugir delas como se elas fossem o cachorro que tinha me mordido no dia da minha chegada? Respondi:

– Se o seu pai estivesse doente, Lali, o que você faria?

– Andaria até sobre espinhos para ir curá-lo.

– Se perseguissem você como se persegue um animal, se tentassem matá-la, se lhe fizessem mal sem dar oportunidade de defesa, o que faria?

– Perseguida o meu inimigo por toda parte, para enterrá-lo tão fundo, que ele não pudesse nem se mexer em sua cova.

– E, depois de fazer essas coisas, se você tivesse duas mulheres maravilhosas esperando?

– Voltaria, montada num cavalo.

– Pois não tenha dúvida de que é o que eu farei.

– E se, quando você voltar, eu estiver velha e feia?

– Voltarei muito antes de você ficar feia e velha.

– Sim. Você deixou a água correr dos seus olhos, jamais poderia ter feito isso sem sinceridade. Assim, pode partir quando quiser, porém deve partir em pleno dia, diante de todos, e não como um ladrão. Deve partir como veio, na mesma hora, à tarde, inteiramente vestido. Deve dizer quem vai olhar por nós, dia e noite. Zato é o chefe, mas também deve haver outro homem olhando por nós. Deve dizer que a casa é sempre a sua casa e que nenhum homem, à exceção do seu filho (se é homem, a criança que está no ventre de Zoraima), deve entrar nela. Zorrillo precisa vir à nossa aldeia no dia da sua partida, para dizer o que você deve falar.

Dormimos na casa de Zorrillo. Foi uma noite deliciosa de ternura. Os murmúrios e os ruídos da boca dessas duas filhas da natureza tinham sons de amor tão perturbadores, que me abalavam profundamente. Voltamos os três a cavalo, devagar, por causa da gravidez de Zoraima. Devo partir oito dias depois da primeira lua, porque Lali desconfia de que ela também está grávida, pois na última lua não viu sangue algum e, se nesta nova lua o sangue não aparecer outra vez, terá certeza de que está esperando bebê. Zorrillo trará todas as roupas de que eu preciso: devo me vestir na aldeia, depois de ter falado como guajiro, quer dizer, nu. Na véspera, nós três precisamos ir à cabana do feiticeiro e ele nos dirá se devemos deixar a porta da casa aberta ou fechada. Essa volta à aldeia, lenta, não teve nada de triste. Elas preferem saber das coisas a serem abandonadas em uma situação ridícula ante as outras mulheres e os homens do povoado. Quando Zoraima tiver o filho, ela sairá com um pescador para apanhar muitas pérolas, que guardará para mim. Para se manter ocupada, Lali também passará mais tempo diariamente pescando. Lamento não ter aprendido mais do que uma dúzia de palavras em guajiro: gostaria de lhes dizer tantas coisas que não podem ser ditas através de um intérprete! Chegamos. A primeira coisa que devo fazer é ver Zato, para explicar-lhe que me desculpo por ter saído sem falar com ele. Zato é tão nobre como seu pai. Antes de eu falar, ele põe a mão no meu ombro e me diz: “Uilu”‘ (cala-te). A lua nova será dentro de doze dias. Com mais oito que devo esperar depois dela, dentro de vinte dias estarei partindo.

Torno a examinar o mapa, mudando alguns pormenores na passagem pelas cidades. Ao fazê-lo, penso outra vez no que me disse Justo. Onde é que eu seria mais feliz do que aqui, onde todos me querem bem? Decidindo voltar para a civilização, não estou me condenando à infelicidade? O futuro o dirá.

Essas três semanas passam como por encanto. Lali comprovou que está grávida; portanto, serão duas ou três as crianças que me esperarão quando eu voltar. Por que três? Ela me diz que sua mãe teve gêmeos duas vezes. Fomos ao feiticeiro. Não devemos fechar a porta. Devemos somente colocar um galho de árvore atravessado nela. A rede em que dormimos os três deve ficar presa no teto da cabana e elas duas devem sempre dormir juntas, pois são uma pessoa só. Em seguida, ele nos faz sentar perto do fogo, queima folhas verdes e nos rodeia de fumaça durante mais de dez minutos. Voltamos para casa e ficamos à espera de Zorrillo, que chega, de fato, naquela mesma noite. Em torno de uma fogueira, diante da minha cabana, passamos toda a noite a falar. Por intermédio de Zorrillo, eu dizia a cada um dos índios uma palavra gentil e cada índio, por sua vez, me respondia alguma coisa. Quando o sol já começava a nascer, retirei-me com Lali e Zoraima. Passamos o dia inteiro fazendo o amor. Ã tarde, chega o momento da partida. Zorrillo traduz o que eu vou falando:

– Zato, grande chefe desta tribo que me acolheu, que me deu tudo, devo dizer-lhe que é preciso que me autorize a deixar a aldeia por muitas luas.

– Por que quer deixar os seus amigos?

– Porque devo perseguir aqueles que me trataram como um animal. Graças a você, na sua aldeia, estive protegido e pude viver feliz, comer bem, encontrei amigos nobres, mulheres que colocaram o sol dentro do meu peito. Mas isso não pode transformar um homem como eu num animal, capaz de, após encontrar um abrigo quente e bom, permanecer nele a vida toda, por medo do sofrimento que a luta costuma trazer. Vou enfrentar meus inimigos. Parto em busca de meu pai, que precisa de mim. Deixo aqui minha alma, em minhas mulheres, Lali e Zoraima, deixo as crianças que são o fruto dessa união. Minha cabana é delas e das crianças que vão nascer. Se alguém esquecer isso, espero que você, Zato, saiba recordá-lo. Além da sua vigilância pessoal, peço que um homem chamado Usli também proteja dia e noite a minha família. Quero muito bem a todos e sempre hei de querer. Farei o possível para voltar depressa. Se morrer no cumprimento do meu dever, terei morrido pensando em vocês, pensando em Lali, em Zoraima, nos meus filhos e em todos os índios guajiros, que são a minha família.

Torno a entrar na minha cabana, seguido por Lali e Zoraima. Visto a camisa, as calças cáquis, meias e botas.

Durante muito tempo, olho parte por parte esta aldeia idílica onde acabo de passar seis meses: Essa tribo guajira, tão temida, que inspira medo tanto às outras tribos como aos brancos, foi para mim um porto onde pude respirar, um refúgio insuperável contra a maldade dos homens. Aqui encontrei amor, paz, tranqüilidade e nobreza. Adeus, guajiros, índios selvagens da península colombo-venezuelana. Felizmente, a terra de vocês é grande e está livre da ingerência das duas civilizações existentes ao lado dela. A maneira selvagem de viver de vocês, a maneira como vocês se defendem, me ensinou uma coisa muito importante para o futuro: que é melhor ser um índio selvagem do que um literato transformado em juiz.

Adeus, Lali e Zoraima, mulheres incomparáveis, de reações tão próximas da natureza, sem cálculos, espontâneas, mulheres que, no momento da minha partida, com um gesto simples, colocaram num saquinho de pano todas as pérolas existentes na cabana. Voltarei um dia, não há dúvida. É uma coisa certa. Quando? Como? Não sei. Mas faço a mim mesmo a promessa de voltar.

Lá pelo final da tarde, Zorrillo monta a cavalo e nós partimos na direção da Colômbia. Vou com um chapéu de palha. Controlo com firmeza as rédeas do cavalo. Todos os índios da tribo, sem exceção, cobrem o rosto com o braço esquerdo e estendem o braço direito na minha direção. Com o gesto, eles querem dizer que não me desejam ver partir, que gostariam de me reter com eles. Lali e Zoraima me acompanham durante uns 100 metros. Penso que elas vão me beijar, mas, de repente, com um grito, elas saem correndo na direção da nossa casa, sem olhar para trás.