174977.fb2 Papillon - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 8

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6 AS ILHAS DA SALVAÇÃO

A CHEGADA À S ILHAS

É amanhã que a gente vai embarcar para as Ilhas da Salvação. Apesar da minha luta toda, aqui estou. E, desta vez, a poucas horas de ser internado pelo resto da vida. Primeiro, terei de cumprir dois anos de reclusão na Ilha Saint-Joseph. Espero desmentir a alcunha que os forçados deram a ela, de “devoradora de homens”.

Perdi o round, mas meu espírito não é o de um vencido.

Posso me dar por muito feliz de ter só dois anos a cumprir nessa cadeia de outra cadeia. Conforme prometi a mim mesmo, não vou me deixar levar facilmente pelas divagações a que leva o isolamento completo. Para me livrar disso, tenho um esquema: tenho, acima de tudo, de me imaginar livre, saudável e bem disposto, como um forçado normal das ilhas. Estarei com trinta anos na saída.

Nas ilhas, as evasões são muito raras, bem sei. Mas, mesmo que contados nos dedos de uma mão, alguns homens escaparam. Pois bem, quanto a mim, escaparei, tenho certeza. Daqui a dois anos. escaparei das ilhas vou repetindo eu a Clousiot, que viaja a meu lado.

– Meu velho Papillon, nada consegue abalá-lo, e essa sua fé de um dia ser livre me dá inveja. Há um ano que você não pára de preparar tentativas e nunca desistiu. Mal fracassou uma fuga e você já está preparando outra. Fico até espantado de você não ter tentado nada aqui.

– Aqui, velho, só tem um jeito: fomentar uma revolta. Só que, para mim, não dá tempo de arregimentar todos estes homens. Quase provoquei uma revolta, mas tive medo de ela acabar também comigo. Estes quarenta homens que estão aqui são todos forçados antigos. O caminho da podridão os engoliu, eles reagem diferente da gente. Por exemplo: os antropófagos, os caras das formigas, aquele que botou veneno na sopa e, para matar um homem, não hesitou em envenenar sete outros que nunca lhe tinham feito nada.

– Mas nas ilhas os caras vão ser assim também.

– Certo, mas escaparei das ilhas sem precisar de ninguém. Vou partir sozinho ou, no máximo, com um cara. Está rindo, Clousiot, por quê?

– Estou rindo porque você nunca abandona o jogo. Esse fogo que lhe queima as tripas, de estar em Paris para acertar as contas com seus três amigos, lhe dá uma tal força, que você nem admite que o que mais deseja possa fracassar.

– Tchau, Clousiot. Até amanhã. Pois é, vamos ver essas famosas Ilhas da Salvação. Uma primeira coisa para se perguntar: por que essas ilhas da perdição são chamadas de Ilhas da Salvação?

E, voltando as costas para Clousiot, volto um pouco mais a cara para o vento da noite.

No dia seguinte, bem cedo, embarcamos para as ilhas. Vinte e seis homens num barco de 400 toneladas, o Tanon, embarcação costeira que faz a ligação entre Caiena, as ilhas e São Lourenço. Dois a dois, temos os pés amarrados com uma corrente e estamos algemados. Dois grupos de oito homens na frente, vigiados cada um por quatro guardas de mosquetão na mão. E mais um grupo de dez atrás, com seis guardas e os dois chefes da escolta. Todo o pessoal está na ponte deste barco e é bem possível que a gente desmaie assim que o tempo engrossar.

Decidi não pensar durante esta viagem, estou querendo me distrair. Por isso, só para chatear, grito para o vigia perto de mim, com a sua cara de coveiro:

– Com as correntes que vocês nos botaram, é certo que não escaparemos se este bote podre afundar, o que é bem possível, no estado em que está, se o mar engrossar.

Ainda sonolento, o guarda reage como o previsto.

– Pode se afogar, tanto faz. A ordem é botar as correntes e pronto. A responsabilidade é daqueles que dão as ordens. Nós, que cumprimos, estamos garantidos.

– De qualquer modo, está certo, seu vigia, com correntes ou sem correntes, se este caixão abrir iremos todos para o fundo.

– Sabe, há muito tempo – diz o estúpido – que este barco faz o percurso e nunca aconteceu nada.

– Exato, mas é justamente porque há tempo demais que ele existe que, na certa, agora pode acontecer alguma coisa de um momento para outro.

Tinha conseguido o que queria: abalar o silêncio geral que me irritava. Logo o assunto foi retomado por vigilantes e forçados.

– Pois é, este barco é um perigo e, além do mais, estamos acorrentados. Sem as correntes, a gente tinha uma chance.

– Oh! dá na mesma. A gente, com a farda, as botas e o mosquetão, também não bóia.

– O mosquetão não importa; se o barco afundar, a gente joga fora – diz outro.

A isca pegou, dou o segundo lance:

– Onde estão os botes salva-vidas? Estou vendo só esse pequenininho aqui, para oito homens no máximo. Só o comandante e a tripulação vão encher ele. Para os outros, banana!

Então o troço pega, papo aceso.

– É mesmo, não tem nada e o barco está num estado tal, que é uma irresponsabilidade inaceitável que pais de família tenham que correr um perigo para acompanhar esses malandros.

Como estou no grupo detrás, é perto da gente que viajam os dois chefes do comboio. Um deles me olha e diz:

– Você é o Papillon, aquele que está voltando da Colômbia?

– Son.

– Não me espanta que você tenha ido tão longe, parece que entende de marinha.

Pretensiosamente, respondo:

– Sim, muito.

A resposta gela os caras. Além disso, o comandante desce do passadiço, pois acabamos de sair do estuário do Maroni, e, como é o trecho mais perigoso, ele mesmo pega o timão. Agora, entrega-o para outro. Então, esse comandante, um preto do Sudão, baixote e gordinho, de cara ainda jovem, pergunta onde estão os caras que foram até a Colômbia num pedaço de pau.

– Este, este e aquele lá, ao lado – responde o chefe do comboio.

– Quem era o capitão? – pergunta o anão.

– Eu, senhor.

– Pois olha, meu chapa, como marinheiro, lhe dou os parabéns. Você não é um qualquer. Olhe!

Bota a mão no bolso da japona:

– Pegue este pacote de fumo e o papel. Fume à minha saúde.

– Obrigado, meu comandante. Mas eu também devo dar os parabéns ao senhor pela coragem de navegar com este rabecão, uma ou duas vezes por semana, ao que parece.

Estoura numa gargalhada, para completar a irritação daqueles que eu queria chatear. Diz:

– Ah! está certo! Faz tempo que eles deviam ter jogado esse bote no cemitério, mas a companhia aguarda que ele afunde para receber o seguro.

Aí corto a conversa com uma observação que é como um soco no estômago:

– Ainda bem que tem um bote salva-vidas para o senhor e a tripulação.

– Sim, ainda bem – responde o comandante sem pensar, sumindo logo em seguida pela escada.

Esta conversa, que eu tinha provocado deliberadamente, distraiu a minha viagem durante mais de quatro horas. Cada um queria acrescentar alguma coisa e o papo se estendeu, não sei como, até a frente do barco.

O mar, hoje, lá pelas 10 da manhã, não está agitado, mas o vento não favorece à viagem. Estamos indo em direção nordeste, isto é, contra as ondas e o vento, o que naturalmente faz balançar e jogar o barco mais que de costume. Alguns guardas e forçados estão doentes. Por sorte, aquele que está acorrentado comigo agüenta o balanço, pois não há nada mais desagradável que um sujeito vomitando perto da gente. Este rapaz é um verdadeiro moleque parisiense. Foi para os trabalhos forçados em 1927. Faz, então, sete anos que está nas ilhas. É relativamente jovem, tem 38 anos.

– Me chamam de Titi la Belote, vou te dizer, meu chapa, porque a belote (jogo de cartas) para mim não tem segredos. Aliás, nas ilhas, é disso que vivo. Vou de belote a noite inteira, a 2 francos o ponto. Com as paradas, isso vai longe. Se você ganha com um duzentos de valete, o cara te paga quatrocentos pacotes e umas ninharias para os outros pontos.

– Quer dizer que tem grana às pampas nas ilhas?

– É sim, meu velho Papillon! Nas ilhas está assim de canudos que têm tutu para valer. Alguns sobem com ele, os outros conseguem através de guardas ladinos que recebem 50 por cento. Estou vendo que você é calouro, meu chapa. Parece que você não está por dentro de nada!

– Não, não sei nada de nada sobre as ilhas. Só sei que é muito difícil fugir.

– Fugir? – diz Titi. – Nem vale a pena falar. Faz sete anos que estou aqui, houve duas tentativas, resultado: três mortos e dois presos. Ninguém conseguiu. Por isso, não tem muitos candidatos para tentar a sorte.

– Por que é que você foi ao continente?

– Fui tirar uma chapa para ver se tenho úlcera.

– E não conseguiu fugir do hospital?

– Por sua causa. Foi você, Papillon, que estragou tudo. E, além do mais, tive a falta de sorte de eles me botarem na mesma sala da qual você fugiu. Já viu a vigilância! Cada vez que a gente se aproximava de uma janela para respirar um pouco, os guardas bronqueavam. E, se a gente queria saber por que, eles respondiam: “Você pode estar pensando em imitar o Papillon”.

– Diga, Titi, este sujeito sentado ao lado do chefe do comboio, quem é? Dedo-duro?

– Está louco! Este sujeito é muito estimado pelo pessoal todo. É um gajo bem nascido, mas sabe ter o jeito de um verdadeiro malandro: não dá trela aos guardas, não pede favores, fica no seu papel de forçado, com distinção. Sabe dar um bom conselho, é um ótimo colega e não quer saber de intimidade com os tiras. Nem o padre e o médico conseguiram usar ele. Este gajo grã-fino, que tem o jeito de um verdadeiro malandro, é descendente de Luís XV. No duro, meu chapa, é um conde, um conde de verdade, o nome dele é Conde Jean de Berac. Apesar de ser grande praça, quando chegou, levou tempo para conquistar a confiança dos homens. Mandaram ele para a cadeia por causa de um troço nojento.

– Que foi que ele fez?

– Bom, chutou o próprio filho por cima de uma ponte, num rio; e, como o guri caiu num lugar com pouca água, teve a coragem de descer, pegar e jogar ele num lugar mais fundo.

– Não diga! Então é como se tivesse matado duas vezes o próprio filho?

– Diz um amigo meu, que é contador e viu o processo, que o sujeito ficou aterrorizado por seu ambiente de nobre. A mãe dele tinha botado a mãe do guri no olho da rua, como uma cadela, era uma criadinha do castelo. Conta o meu amigo que o sujeito era dominado por uma mãe orgulhosa, pedante; ela o humilhou tanto, ele, um conde, por ter ido para a cama com uma criadinha, que o cara não sabia mais o que estava fazendo quando jogou o guri no rio, depois de ter dito à mãe que o tinha levado à assistência pública.

– A quanto o condenaram?

– Só a dez anos. Pense bem, Papillon, não é um cara como a gente. A condessa, esteio da família, deve ter explicado aos magistrados que matar o rebento de uma empregada não é um delito tão grave assim, quando é cometido por um conde que procura salvar o bom nome de sua estirpe.

– Conclusão?

– Pois a minha conclusão (eu, que sou um merda de um jogador Parisiense) é a seguinte: livre e sem problemas, este Conde Jean de Berac era um fidalgo educado de tal modo, que nada importava para ele, só o sangue azul, o resto era insignificante e não merecia a menor preocupação. Talvez os outros não fossem realmente escravos, mas eram pelo menos seres sem maior importância. Esse monstro de egoísmo e pretensão que era a sua mãe o massacrou e aterrorizou a tal ponto, que ele virou um monstro também. Foi na prisão que este grande senhor, que antes pensava ter o direito da primeira noite, se tornou um verdadeiro nobre, na plena significação da palavra. Parece engraçado, mas só agora ele realmente é o Conde Jean de Berac.

As Ilhas da Salvação, um “desconhecido” para mim, vão deixar de sê-lo daqui a poucas horas. Sei que é muito difícil fugir. Mas não é impossível. E, aspirando o delicioso vento do alto-mar, penso: “Quando é que este vento de proa será transformado em vento de popa, numa evasão?”

Chegamos. Aqui estão as ilhas! Desenham um triângulo. Royale e Saint-Joseph formam a base. A Ilha do Diabo, o vértice. O sol, já declinando, ilumina-as com todos os seus raios, que só nos trópicos têm tal intensidade. Assim, dá para vê-las à vontade. Primeiro Royale, com uma borda plana e baixa que faz a volta de um espigão de mais de 200 metros de altura, o cimo é achatado. O conjunto dá a impressão de um chapéu mexicano colocado sobre o mar e do qual se teria cortado a ponta. Muitos coqueiros altos, bem verdes também. Casinhas de telhado vermelho dão à ilha uma atração enorme e aqueles que não sabem o que é que há lá desejariam viver aí a vida toda. Um farol no planalto deve iluminar à noite, para que, nas tempestades, os barcos não venham se espatifar nos rochedos. Agora, que estamos mais perto, enxergo cinco edifícios grandes e compridos. Titi me diz que primeiro vêm duas imensas salas onde vivem quatrocentos forçados. Depois é o bloco da repressão, com suas celas e masmorras, cercado por um alto muro branco. O quarto edifício é o hospital dos forçados e o quinto é o dos guardas. E, por toda parte, espalhadas pelas encostas, casinhas com telhas cor-de-rosa, onde moram os guardas. Mais longe, mas muito perto da ponta de Royale, Saint-Joseph. Menos coqueiros, menos folhagem e, bem em cima do planalto, um imenso casarão que se enxerga muito bem do mar. Entendo imediatamente: é a reclusão e Titi la Belote confirma. Ele me mostra, mais abaixo, os prédios onde vivem os forçados que estão cumprindo penas comuns. Estes prédios são perto do mar. As torres de vigilância, com suas ameias, destacam-se com muita nitidez. E mais algumas casinholas, graciosas, com paredes pintadas de branco e telhados vermelhos.

Como o barco pega a entrada da Ilha Royale pelo sul, não dá mais para ver agora a pequena Ilha do Diabo. Pela rápida visão que tive dela, é um enorme rochedo, coberto de coqueiros, sem edificações de importância. Algumas casas à beira-mar, pintadas de amarelo com telhados enegrecidos. Saberei mais tarde que são as casas onde vivem os deportados políticos.

Estamos entrando no porto de Royale, abrigado por um molhe imenso, feito de grandes blocos. Obra cuja construção deve ter custado muitas vidas de forçados.

Após três apitos da sirene, o Tanon lança a âncora a mais ou menos 250 metros do cais. Este cais, solidamente construído com cimento e cascalho grosso, é muito comprido e tem mais de 3 metros de altura. Edifícios pintados de branco, com um certo recuo, são dispostos paralelamente a ele. Leio, em letras pretas sobre fundo branco: “Posto de Guarda” – “Serviço de barcos” – “Padaria” – “Administração do Porto”.

Vemos forçados que olham para o barco. Não estão de uniforme, mas todos de calças e com uma espécie de blusão branco. Titi la Belote me explica que, nas ilhas, os que têm dinheiro encomendam aos alfaiates roupas leves, “sob medida”, feitas com sacos de farinha cujas letras foram apagadas, e que chegam mesmo a ter uma certa elegância. Quase ninguém, diz, está usando o uniforme de forçado.

Uma canoa se aproxima do Tanon. Um guarda no leme, dois guardas armados de mosquetão à esquerda e à direita; atrás, perto do que está no leme, seis forçados em pé, de peito nu, calças brancas, remam com remos imensos. Percorrem rapidamente a distância. Puxam atrás deles, rebocada, uma grande canoa, do tipo salva-vidas, vazia. Encostam. Descem primeiro os chefes do comboio, que vão se instalar atrás. Em seguida, dois guardas, com os mosquetões, ficam na frente. Com os pés desamarrados, mas sempre algemados, vamos descendo na canoa, de dois em dois; os dez do meu grupo, depois os oito do grupo da frente. Os remadores dão a partida. Terão que fazer mais uma viagem para o resto. Desembarcamos no cais e, enfileirados diante do edifício da administração do porto, ficamos esperando. Nenhum de nós tem embrulhos. Sem tomar conhecimento dos guardas, os transportados falam conosco em voz alta, à distância prudente de 5 ou 6 metros. Vários transportados do meu comboio me fazem sinais amistosos. Cesari e Essari, dois bandidos corsos que conheci em Saint-Martin, me dizem que são remadores, no serviço do porto. Neste momento chega Chapar, do caso da Bolsa de Marselha, que conheci em liberdade na França. Sem se preocupar, na frente dos guardas, me diz:

– Tenha calma, Papillon! Pode contar com os amigos, não te faltará nada na reclusão. Qual foi o teu prêmio?

– Dois anos.

– Certo, passa logo e depois você virá para cá com a gente; vai ver, aqui não é ruim.

– Obrigado, Chapar. E Dega?

– É contador lá em cima. Estranho que não esteja aqui. Vai lastimar não ter encontrado você.

Neste momento chega Galgani. Vem na minha direção, o guarda quer impedir que passe, mas ele passa assim mesmo:

– Não vão me impedir de abraçar o meu irmão, não, mas onde já se viu!

Diz, ao me abraçar:

– Conte comigo.

Antes de se retirar, eu digo:

– O que está fazendo?

– Cuido da correspondência.

– E como se sente?

– Estou tranqüilo.

Os últimos desembarcaram e se juntaram à gente. Tiram as nossas algemas. Titi la Belote, Berac e alguns desconhecidos se afastam do grupo. Um guarda diz para eles:

– Agora vamos subir até o campo.

Cada um deles tem um saco de forçado com as suas coisas. Cada um bota o saco nas costas e todos vão seguindo por um caminho que deve levar até o alto da ilha. O comandante das ilhas chega acompanhado por seis guardas. Fazem a chamada. Ele recebe o comboio completo. Nossa escolta vai embora.

– Onde está o contador? pergunta o comandante.

– Está chegando, chefe.

Vejo Dega chegar, bem vestido, de branco, com um paletó de botões acompanhado por um guarda; cada um vem trazendo um grande livro debaixo do braço. Os dois tiram os homens das fileiras, um por um, com suas novas classificações:

– Você, recluso fulano, matrícula de transportado número X, terá a matrícula de reclusão Z.

– Quanto?

– X anos.

Quando chega a minha vez, Dega me abraça demoradamente. O comandante vem se aproximando.

– Ele é o Papillon?

– Sim, meu comandante responde Dega.

– Comporte-se bem na reclusão. Dois anos passam rápido.

A RECLUSÃO

Uma canoa está pronta. Dos dezenove condenados, dez vão na primeira viagem. Sou chamado para partir. Friamente, Dega diz: “Não, esse aqui vai na última viagem”.

Desde que cheguei, estou espantadíssimo de ver a maneira de falar dos presos. Não se sente disciplina alguma, eles parecem não ligar para os guardas. Falo com Dega, que se colocou a meu lado. Ele já conhece toda a minha história, a história da minha fuga. Homens que estiveram comigo em Saint-Laurent vieram para as ilhas e lhe contaram tudo. Não chora por mim, é muito arguto. Comenta, em uma única frase, dita com todo o coração: “Merecias ter conseguido, calhorda. Mas fica para a próxima”. Não chega sequer a me desejar coragem. Sabe que eu a tenho.

– Estou como encarregado geral dos serviços de intendência e me dou muito bem com o comandante. Comporte-se bem lá na reclusão, mandarei cigarros e comida, não faltará nada.

– Papillon, vamos! – é a minha vez.

– Até a volta, para todos. Obrigado pelo que disseram.

Embarco na canoa. Vinte minutos depois, chegamos a Saint-Joseph. Tive tempo de observar que há somente três guardas armados a bordo, para seis forçados que remam e dez presos condenados à reclusão. Seria mole comandar a tomada desse barco. Em Saint-Joseph nos espera um comitê de recepção. Somos apresentados a dois comandantes: o comandante da penitenciária da ilha e o comandante da reclusão. A pé, algemados, percorremos o caminho que sobe para a reclusão. Não há nenhum forçado em nosso trajeto. Entramos por uma grande porta de ferro, encimada por duas palavras: “Reclusão disciplinar”. Compreendemos logo o que há de sério naquela casa. A porta e os quatro muros altos que nos circundam ocultam, antes de mais nada, um pequeno prédio onde se lê: “Administração-Direção”. E mais três outros prédios: A, B e C. Somos levados ao prédio da direção e entramos numa sala fria. Dispostos em duas filas, ouvimos, os dezenove, o que nos diz o comandante da reclusão:

– Prisioneiros, vocês sabem que essa casa é urna casa de castigo para as faltas cometidas pelos condenados. Aqui, não tentamos corrigi-los, porque sabemos que isso seria inútil. Queremos é domar vocês. Aqui há só uma regra: bico calado. Silêncio absoluto. Qualquer comunicação entre as celas é arriscada: pode dar uma punição bastante dura. Se vocês não estiverem gravemente doentes, não peçam médico, pois uma chamada injustificada resulta em castigo. É tudo o que eu tenho para dizer. Ah, e é rigorosamente proibido fumar! Pronto, guardas, revistem bem cada um deles e coloquem cada um em uma cela. Charrière, Clousiot e Maturette não devem ficar num mesmo prédio. O senhor é pessoalmente responsável por isso. Sr. Santori.

Dez minutos depois, estou trancado na minha cela, a 234 do prédio A. Clousiot está no B e Maturette no C. Despedimo-nos com o olhar. Entrando aqui, compreendemos logo, todos, que para sair vivo é preciso obedecer a esse regulamento desumano. Vejo-os serem levados, meus companheiros desta fuga tão longa, camaradas firmes e corajosos, que me acompanharam com valor e nunca chorarão nem lamentarão o que fizeram na minha companhia. Após catorze meses de luta lado a lado, pela conquista da nossa liberdade, meu coração se contrai, pois estamos ligados por uma amizade sem limites.

Examino a cela onde me fizeram entrar. Nunca eu teria podido supor ou imaginar que num país como o meu – a França, mãe da liberdade no mundo inteiro, terra que deu à luz os direitos do homem e do cidadão – pudesse haver, mesmo na Guiana Francesa, numa ilha perdida do Atlântico, do tamanho de um lenço de bolso, uma instalação tão barbaramente repressiva como a da reclusão da Ilha de Saint-Joseph. Imaginem vocês cinqüenta pequenas celas, lado a lado, cada uma delas com os fundos pegados aos fundos de uma outra cela, todas igualmente cercadas por quatro paredes muito espessas com uma única abertura: a de uma pequena porta de ferro, com seu visor. Embaixo de cada visor, a inscrição pintada na porta: “Proibido abrir esta porta sem ordem superior”. À esquerda, uma placa de madeira embutida na parede com uma almofada de madeira, abrindo e fechando de acordo com o mesmo sistema de Beaulieu. Um pano para coberta, um bloco de cimento num canto, ao fundo, servindo de banquinho. Uma vassourinha, uma caneca de soldado e uma colher de pau. Uma placa vertical de ferro, ocultando uma bacia metálica, presa a ela por uma corrente (pode-se puxá-la para fora a fim de usá-la como latrina ou mergulhá-la dentro a fim de esvaziá-la). A 3 metros de altura, à guisa de janela, uma abertura com enormes barras de ferro, grossas como trilhos, cruzadas de tal maneira que não deixam passar volume algum. Mais alto, a cerca de 7 metros do chão, o verdadeiro teto do prédio. Por cima das celas, na linha que junta os fundos de umas aos fundos das outras, um caminho de ronda, com mais ou menos 1 metro de largura e uma rampa de ferro. Dois vigias caminham incessantemente de cada uma das extremidades até a metade do caminho, onde se encontram e fazem meia volta. A impressão é horrível. A claridade do dia chega bem até a passarela dos guardas, mas, dentro de cada cela, mesmo em pleno dia, a gente mal consegue enxergar. Começo logo a andar pelo meu cubículo, esperando o apito (ou algo que o valha) para abrir a cama. Para não fazer barulho algum, tanto os prisioneiros como os guardas ficam de meias. Penso imediatamente: “Aqui, na cela 234, Charrière, também chamado Papillon, condenado a uma pena de dois anos, ou melhor, de 730 dias, tentará viver sem ficar maluco. Cabe-lhe desmentir o apelido que deram a esta reclusão de ‘devoradora de homens’”.

Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta. Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta. O guarda acaba de passar diante do meu cubículo. Não o ouvi passar, mas o vi. Pam! A luz se acende, mas muito alta, suspensa a mais de 6 metros, lá fora, no teto do prédio. A passarela fica iluminada, as celas permanecem no escuro. Começo a andar, o pêndulo está outra vez em movimento. Durmam tranqüilos, docinhos do júri que me condenou. Durmam tranqüilos. Se vocês soubessem para onde me mandaram, acho que se recusariam com um gesto de repulsa a serem cúmplices da aplicação de um castigo assim. Vai ser muito difícil escapar às vagabundagens da imaginação. Quase impossível. Suponho que talvez seja melhor aceitá-las e orientá-las para temas que não sejam demasiado deprimentes ao invés de tentar suprimi-las completamente.

É um sinal de apito, na verdade, que anuncia que podemos baixar da parede as placas de madeira que nos servirão de cama. Ouço uma voz grossa que diz:

– Os novatos ficam sabendo que, a partir de agora, se quiserem, podem abrir os leitos embutidos e deitar.

Interessam-me somente as palavras “se quiserem”. Continuo, portanto, a andar. O momento é crucial demais para dormir. É preciso que eu me habitue a esta jaula aberta no teto. Um, dois, três, quatro, cinco, já consegui um ritmo para o meu passeio, com a cabeça baixa, as mãos atrás das costas, a distância dos passos rigorosamente calculada, vou e volto interminavelmente, como um pêndulo, como um sonâmbulo. Chegando ao final dos cinco passos, já nem vejo a parede, apenas roço nela ao fazer meia volta, de passagem, nessa maratona que não tem chegada nem tempo de duração.

Na verdade, Papi, esta “devoradora de homens” não é de brincadeiras. Quando a sombra do guarda se projeta na parede, o efeito é estranho. Se a gente levanta a cabeça para vê-lo, a situação ainda fica mais deprimente: fica-se com o ar de um leopardo numa fossa, observado, de cima, pelo caçador que acaba de capturá-lo. A impressão é horrível, precisarei de alguns meses para habituar-me a ela.

Cada ano tem 365 dias. Dois anos são 730 dias, se um deles não for bissexto. Essa idéia me faz sorrir. Saber que 730 dias ou 731 é a mesma coisa. Por que é a mesma coisa? Não é verdade. Um dia a mais são mais 24 horas e 24 horas é um bocado de tempo. Setecentos e trinta dias de 24 horas é muito mais tempo. Quantas horas dá o total? Será que eu consigo calcular de cabeça? Como fazer essa conta? É impossível. Por quê? Posso fazê-la. Vejamos um pouco. Cem dias são 2 400 horas. É muito fácil multiplicá-las por sete, dá 16 800 horas. Ficam por somar ainda trinta dias, que dão 720 horas. Dezesseis mil e oitocentas horas mais 720 dão um total geral de 17 520 horas, se não me enganei nas contas. Prezado Sr. Papillon, o senhor tem 17 520 horas para ir morrendo nesta jaula de paredes lisas, especialmente fabricada para feras selvagens. Quantos minutos precisarei passar aqui? Não interessa. As horas, está certo, mas por que calcular os minutos? Não exageremos. Por que não os segundos? Se isso tem importância ou não, o fato é que eu não estou interessado. Sozinho comigo mesmo, devo encher com alguma coisa esses dias, essas horas, esses minutos. Quem estará à minha direita? E à minha esquerda? E atrás de mim? Se as celas estão ocupadas, será que esses três homens não deverão estar perguntando também a eles próprios quem acaba de entrar na 234?

Ouço o ruído abafado de uma coisa que acaba de cair atrás de mim, na minha cela. Que será? Será que o meu vizinho teve suficiente habilidade para conseguir me jogar alguma coisa através da grade? Procuro descobrir o que é. Mal consigo avistar um troço comprido e estreito. No momento em que vou apanhá-la, a coisa -. que, no escuro, eu mais adivinho do que vejo – começa a se mexer e se desloca rapidamente na direção da parede. Quando ela se mexeu, tive um movimento de recuo. Chegando ao muro, ela começa a subir, mas logo cai por terra. A parede é tão lisa, que a coisa não consegue subir por ela. Deixo-a tentar três vezes a subida; quando ela tenta pela quarta vez e cai, esmago-a com o pé. Sinto algo mole sob a meia grossa. O que poderá ser? Ponho-me de joelhos e olho-a o mais de perto que posso. Por fim, consigo distinguir: é uma enorme centopéia de mais de 20 centímetros de comprimento e dois dedos de largura. Sinto-me tão repugnado, que não a apanho para pôr na bacia; empurro-a com o pé para baixo da cama. Amanhã, durante o dia, verei. Aliás, tive ocasião de ver muitas centopeias: elas caem do teto do prédio, lá de fora. Aprendi a deixá-las caminharem sobre o meu corpo nu, quando estou deitado, sem pegá-las e sem fazer-lhes mal. Tive ocasião de aprender quanto sofrimento pode custar um erro tático quando uma centopéia está em cima da gente. Uma picada desse bicho nojento queima horrivelmente durante seis dias e deixa uma febre de cavalo que dura mais de doze dias na pessoa.

De qualquer maneira, será uma distração, um derivativo para os meus pensamentos. Quando eu estiver acordado e cair uma centopéia, torturá-la-ei com a vassoura durante o máximo de tempo que me for possível, ou então me divertirei com ela, deixando-a esconder-se e tentando encontrá-la depois.

Um, dois, três, quatro, cinco… Um silêncio total. Ninguém ronca aqui? Ninguém tosse? É verdade que está fazendo um calor de abafar tudo. E estamos de noite! Como não deve ser de dia… Meu destino é o de viver com as centopeias. Quando a água subia no calabouço de Santa Marta, chegava uma grande quantidade delas; eram menores, mas da mesma família destas. Em Santa Marta havia inundação todos os dias, é verdade, mas a gente falava, gritava, escutava os cantos, as vozes e as divagações dos loucos temporários ou definitivos. Não é a mesma coisa. Se eu tivesse que escolher, escolheria Santa Marta. O que estás dizendo é ilógico, Papillon. A opinião unânime é a de que o máximo que um homem poderia resistir lá embaixo seriam seis meses. Ora, aqui, há muitos que têm penas de quatro, cinco anos, ou até mais, por cumprir. Que eles tenham sido condenados a essas penas é uma coisa; mas que as cumpram é outra. Quantos se suicidam? Não vejo como alguém possa se suicidar. No entanto, é possível. Não é fácil, porém a gente pode se enforcar. Fabricando uma corda com as calças, utilizando a vassourinha para passar a ponta da corda por uma das barras de ferro da janela, trepado na cama. Fazendo essa operação bem junto ao chão do caminho da ronda, é provável que o guarda não veja a corda. Quando o guarda tiver acabado de passar, você se balança no vazio; e, quando ele voltar, você já está frito. Aliás, ele não terá muita pressa em descer e abrir a cela para soltar da corda o corpo do enforcado. Abrir a cela? Ele não pode. Está escrito na porta: “É proibido abrir essa porta sem ordem superior”. Então, não precisa se preocupar, quem quiser se suicidar tem muito tempo para isso, antes que venham tirá-lo da corda “por ordem superior”.

Toda essa minha descrição talvez não seja muito movimentada e interessante para as pessoas que gostam da ação e dos incidentes. Se eu as estiver aborrecendo, essas pessoas podem pular as páginas. No entanto, creio que devo descrever com a maior fidelidade possível essas primeiras impressões, esses primeiros pensamentos, que me apareceram no primeiro contato com a nova cela, essa reação das minhas primeiras horas de enterrado vivo.

Estou caminhando há muito tempo. Ouço um murmúrio no meio da noite, é a mudança da guarda. O guarda anterior era grande e magro, este de agora é gordo e baixo. Arrasta um pouco os pés.

O barulho dos pés se arrastando se percebe duas celas antes e permanece até duas ceias depois. Não é cem por cento silencioso, como o outro. Continuo a andar. Deve ser tarde. Que horas devem ser? Amanhã terei certo controle do tempo. Graças às quatro vezes por dia em que se deve abrir a janelinha da porta, saberei aproximadamente as horas. Para a noite, sabendo a hora do começo do primeiro turno da guarda e a duração dele, terei uma boa medida de tempo: primeiro turno, segundo, terceiro, etc.

Um, dois, três, quatro, cinco… Automaticamente, continuo nessa caminhada interminável e, com a ajuda do cansaço, consigo facilmente sair do presente e mergulhar no passado. Por contraste com a escuridão da cela, com certeza, sinto-me em pleno sol, sentado na praia da minha tribo. O barco em que Lali está pescando oscila a 200 metros de mim, nesse mar verde-opala, incomparável. Mexo na areia com os pés. Zoraima me traz um peixe grande assado na brasa, enrolado carinhosamente numa folha de bananeira, para conservar o calor. Como com a mão, naturalmente; e ela, sentada de pernas cruzadas diante de mim, me observa. Fica feliz de ver como grandes pedaços vão sendo facilmente suprimidos do peixe e lê no meu rosto a satisfação de saborear uma comida tão deliciosa.

Não estou mais na cela. Nem mesmo sei se existe a reclusão, se existem Saint-Joseph e as ilhas. Rolo na areia, limpando as mãos nestes grãos tão finos, que até parecem de farinha. Depois vou até o mar, para bochechar com essa água tão límpida e também tão salgada. Pego a água com as mãos e passo-a na cara. Esfregando o pescoço, percebo que meus cabelos estão muito compridos. Quando Lali voltar, vou pedir a ela para cortá-los. Passo a noite toda com minha tribo. Tiro o cache-sexe de Zoraima e lá, na areia, em pleno sol, acariciado pelo vento do mar, possuo-a. Ela geme amorosamente, como costuma fazer quando goza. Talvez o vento leve até Lali essa música amorosa. De qualquer maneira, Lali está nos vendo, está percebendo que nós estamos abraçados, que estamos fazendo o amor, pois a distância não é grande. Na verdade, ela deve ter nos visto, porque o barco volta logo para a praia. Ela desce, sorrindo. Durante o caminho da volta desfaz as tranças e passa os dedos compridos pelos cabelos molhados, que começam a secar, por obra do vento e do sol deste dia maravilhoso. Caminho na direção dela. Com o braço direito, ela me envolve e me puxa na direção da nossa cabana. Enquanto andamos juntos, ela não deixa de me fazer entender: “eu também, eu também”. Quando entramos me derruba numa rede que está dobrada no chão e me faz esquecer dentro dela que o mundo existe. Zoraima é muito inteligente e não quis entrar enquanto, segundo seus cálculos, nossos beijos ainda não tinham terminado. Quando ela chega, cansados e nus, nós ainda estamos deitados na rede. Vem sentar-se perto de nós e, dando uns tapinhas nas bochechas da irmã, repete-lhe uma palavra que sem dúvida deve significar qualquer coisa como “gulosa”. Depois, castamente, veste Lali e me cobre com o meu cache-sexe, com gestos de pudica ternura. Passei a noite inteira na aldeia guajira. Não dormi nada. Nem sequer me deitei para ver através das pálpebras fechadas as cenas vividas. Andando sempre, numa espécie de hipnose, sem qualquer esforço da minha vontade, voltei àquele dia tão delicioso, vivido há cerca de seis meses.

A luz se apaga e percebe-se que está chegando o dia, invadindo a escuridão da cela, expulsando essa espécie de neblina negra que me impede de ver o que está por baixo, a meu redor. Um sinal de apito. Escuto o barulho das camas que se recolhem às paredes e o ruído do meu vizinho que ajeita seu leito embutido. Meu vizinho tosse e ouço um pouco de água caindo. Como é que a gente se lava aqui?

– Senhor guarda, como é que a gente se lava aqui?

– Prisioneiro, você está perdoado porque não sabia, mas não tem o direito de falar com o guarda, senão pega um castigo duro. Para se lavar, você deve se colocar embaixo da bacia, pegar a água com o canecão, derramá-la com uma das mãos e se lavar com a outra. Você não desdobrou a coberta?

– Não.

– Dentro dela há uma toalha, pode verificar.

Essa agora! Não se pode falar com a sentinela? Por motivo nenhum? E se a gente está sofrendo muito por alguma razão? Se a sente está morrendo? Uma crise cardíaca, uma crise de apendicite ou uma crise de asma muito forte? É proibido gritar por socorro aqui, mesmo em caso de risco de vida? É o cúmulo! Mas não é, não. É normal. Seria muito fácil armar um escândalo quando a resistência acaba e os nervos explodem. Seria fácil fazê-lo para ouvir vozes, para ouvir falarem, ainda que fosse para te dizerem: “Morre, mas fica quieto”. Vinte vezes por dia, duas dezenas destes 250 homens que devem estar aqui provocariam uma discussão qualquer para se desfazer, como se fosse num estrondo, da excessiva pressão do gás existente dentro da cabeça deles.

Quem teve a idéia de construir estas jaulas para leões não pode ter sido um psiquiatra: um médico não se desonraria a esse ponto. Também não há de ter sido um médico quem estabeleceu o regulamento. As duas pessoas que fizeram o conjunto, no entanto, o arquiteto e o funcionário que estudou os pormenores da execução da pena, ambos são dois monstros repugnantes, dois psicólogos viciados e cruéis, cheios de ódio sádico pelos condenados.

Dos cárceres da central de Beaulieu, em Caen, por mais fundos que fossem, com dois andares de porões metidos terra adentro, ainda podia se filtrar e um dia chegar ao público o eco das torturas e dos maus-tratos sofridos por alguns dos presos.

A prova é que, quando tiveram de me tirar as algemas e as correntes que prendiam até meus polegares, vi no rosto dos guardas sinais de medo; sem dúvida eles estavam com medo de ter aborrecimentos.

Aqui, nesta reclusão, onde só entram os funcionários da administração, eles ficam todos muito tranqüilos, nada lhes pode acontecer.

Clac, clac, clac, todas as janelinhas das portas são abertas. Chego perto da minha, arrisco uma olhada e depois meto uma parte da cabeça e logo toda a cabeça para fora. Olho à esquerda e à direita, vejo uma porção de cabeças no corredor. Compreendo imediatamente que, assim que as janelinhas se abrem, todas as cabeças se esticam para fora. O vizinho da direita me olha, sem exprimir absolutamente nada no olhar. Sem dúvida está embrutecido pela masturbação. É pálido e flácido, com uma pobre fisionomia opaca de idiota. O vizinho da esquerda me diz, rapidamente:

– A quanto tempo?

– Dois anos.

– Eu a quatro. Já completei um. Seu nome?

– Papillon.

– O meu é Georges, Jojo de Auvergne. Onde te prenderam?

– Em Paris. E você?

Não teve tempo de responder: o café, com a bolota de pão, estava chegando duas celas antes. Recolheu a cabeça e eu fiz o mesmo. Estendo o canecão, enchem-no de café e depois me dão uma bolota de pão. Como não apanho o pão com suficiente rapidez, fecham a janelinha e o pão rola pelo chão. Dali a menos de quinze minutos, o silêncio já voltou. Deve haver duas distribuições, uma em cada corredor, porque a coisa é feita depressa demais. Meio-dia, chega uma sopa com um pedaço de carne cozida. À noite, um prato de lentilhas. Durante dois anos, esse cardápio só varia de noite: lentilhas, feijão-mulatinho, ervilhas, creme de ervilhas, feijão branco ou arroz. A refeição do meio-dia é sempre a mesma.

De quinze em quinze dias, também, a gente mete a cabeça pela janelinha e um preso, com uma máquina de cortar cabelo, nos corta a barba.

Há três dias que estou aqui. Há uma coisa que me preocupa. Em Royale, meus amigos disseram que me mandariam algo para comer e cigarros. Não recebi coisa alguma. Gostaria de saber, aliás, como eles poderiam fazer tamanho milagre. Por isso, não me surpreendo muito de nada ter recebido. Deve ser muito perigoso fumar; e, de qualquer maneira, seria um luxo. Comer, sim, deve ser considerado vital, porque a sopa do meio-dia é água quente com dois ou três fiapos de folhas de verdura e um pedaço de mais ou menos 100 gramas de carne cozida. De noite, são os feijões w alguns legumes secos que aparecem nadando na água. Para ser franco, desconfio que não é a administração que deixa de nos dar uma refeição razoável e sim os presos que distribuem ou preparam a comida, Essa idéia me ocorre numa noite em que é um sujeito pequeno de Marselha quem está distribuindo os legumes: a concha vai até o fundo do caldeirão e, quando é ele, recebo mais legumes do que água. Com os outros dá-se o contrário: mexem um pouco a mistura, mas enchem a concha na superfície, com pouco legume e muita água. Essa subalimentação é extremamente perigosa. Para ter firmeza de vontade moral é necessária certa força física.

Estão varrendo o corredor, acho que estão varrendo tempo demais diante da minha cela. A vassoura passa insistentemente na base da porta e percebo um pedaço de papel branco aparecendo. Entendo logo que me passaram algo pela soleira mas não puderam passá-lo direito e estão esperando que eu puxe a coisa antes de ir varrer outros lugares. Puxo o papel, abro-o, é um bilhete escrito com tinta fosforescente. Espero que o guarda passe e leio às pressas:

“Papi, todos os dias, a partir de amanhã, você receberá na bacia cinco cigarros e um coquinho. Quando comer o coquinho, mastigue bem para aproveitar e engula o caroço. Fume de manhã, na hora da limpeza das bacias. Nunca fume após o café da manhã, mas pode fumar logo depois da sopa do meio-dia e de noite, quando acabar os legumes. Junto deste bilhete vai papel sobrando e um lápis; quando você quiser algo, peça por escrito. Quando o varredor passar diante da porta, arranhe a porta com os dedos; se ele também arranhar, empurre o seu bilhete. Nunca passe o bilhete antes dele ter respondido ao sinal. Guarde o papel na orelha e o pedaço de lápis em algum lugar num canto da cela, para não serem descobertos. Coragem. Nós te abraçamos. Ignace – Louis”.

Eram Galgani e Dega que estavam me mandando a mensagem. Uma onda de calor me subiu ao pescoço: ter amigos tão fiéis e tão dedicados era algo que me aquecia. Foi com mais fé ainda no futuro e mais seguro ainda de sair vivo desta tumba que recomecei minha caminhada, com passo feliz e alerta: um, dois, três, quatro, cinco, meia volta, etc. Caminhando, penso: que nobreza, que desejo de fazer o bem há nesses homens! É claro que eles se arriscam muito, talvez um arrisque perder o lugar na intendência, o outro o lugar de responsável pela correspondência. É, de fato, grandioso o que eles estão fazendo por mim, sem falar no fato de que lhes deve custar um bocado caro. Quantas pessoas eles precisarão subornar para fazer com que alguma coisa venha de Royale até o meu cubículo na “devoradora de homens”!

Leitor, você precisa ter em mente o fato de que um coquinho seco é cheio de óleo. Sua polpa dura e branca tem tanto óleo, que, se a gente ralar seis coquinhos e deixar na água quente, na manhã seguinte encontrará na superfície 1 litro de óleo. Esse óleo, essa gordura, cheia de vitaminas, é o que de mais importante nos falta no regime alimentar. Um coquinho por dia é quase a saúde assegurada. Pelo menos, não me desidratarei, não morrerei de miséria fisiológica. Hoje completo dois meses nas novas condições, recebendo coquinhos e cigarros. Para fumar, tomo precauções de índio sioux: engulo profundamente a fumaça, depois a ponho para fora aos poucos, abanando com a mão direita aberta como um leque, para que a fumaça desapareça.

Ontem sucedeu uma coisa curiosa. Não sei se agi bem ou mal. Um guarda, na passarela, se deteve junto às grades, olhando para dentro da minha cela. Acendeu um cigarro, deu algumas tragadas e depois deixou-o cair cá para baixo. Depois continuou seu caminho. Esperei que ele tornasse a passar para esmagar ostensivamente o cigarro com meu pé. Ele não se deteve por muito tempo: assim que percebeu meu gesto, prosseguiu sua caminhada. Será que ele teve pena de mim ou vergonha da administração (a qual ele mesmo pertence)? Ou será que era uma armadilha? Não sei e isso me preocupa. Quando a gente sofre, se torna hipersensível. Se, durante alguns segundos, esse guarda quis ser um homem bom, eu não gostaria de tê-lo magoado com meu gesto de desprezo.

Já estou aqui há mais de dois meses. Essa reclusão, a meu ver, é o único lugar onde não se tem nada a aprender. Porque não se pretende ensinar nada. Recorro, portanto, a mim mesmo. Tenho uma tática infalível. Para vagar com intensidade pelas estrelas e ver facilmente aparecerem diferentes etapas, para construir nas nuvens castelos espantosamente sólidos, preciso antes me cansar bastante, preciso caminhar durante várias horas, sem parar, pensando normalmente em alguma coisa, não importa qual. Depois, completamente arrasado, deito-me na cama, ponho a cabeça em cima de metade da coberta e cubro-a com a outra metade. O ar da cela – já por si rarefeito – chega com dificuldade à minha boca e ao meu nariz, filtrado pela coberta. Isso deve provocar uma espécie de asfixia nos meus pulmões e minha cabeça começa a queimar. O calor me sufoca, o ar me falta e – de repente – eu decolo. Ah, essas cavalgadas da alma, que sensações indescritíveis elas me deram! Tive noites de amor realmente mais intensas do que quando estava em liberdade, mais perturbadoras, com sensações ainda mais variadas do que as noites de amor autenticamente vividas no passado. Essa faculdade de viajar no espaço me permite sentar junto de mamãe, morta há dezessete anos. Brinco com o vestido dela e ela me acaricia os cachos dos cabelos, que aos cinco anos eram compridos como se eu fosse uma menina. Acaricio seus dedos longos, tão finos, com pele suave como a seda. Ela ri comigo de meu intrépido impulso de mergulhar no rio, tal como eu vira os outros garotos maiores mergulharem num dia de passeio. Lembro-me dos menores detalhes do seu penteado, da ternura luminosa de seus olhos claros e vivazes. Torno a ouvir suas palavras, doces e inefáveis: “Meu pequeno Riri, você deve ser muito sensato e muito inteligente para que a sua mamãe possa gostar de você durante muito tempo. Mais tarde, você também vai mergulhar no rio de uma altura bem grande. Agora, você ainda é muito pequeno. Espere um pouco, que você não vai demorar a crescer e o dia em que você será grande vai chegar logo, até depressa demais”.

De mãos dadas, caminhando ao longo do rio, voltamos para casa. Vejo-me, de fato, na casa da minha infância. Estou nela de um modo tão concreto, que ponho as minhas duas mãos sobre os olhos de mamãe, para impedi-la de ler a música e de continuar a tocar piano para mim. Não é imaginação, não: estou aqui. Estou trepado numa cadeira, colocada atrás do banquinho onde mamãe está sentada, e escondo resolutamente seus olhos grandes com minhas mãos pequenas. Seus dedos ágeis, contudo, continuam a se mover sobre o teclado e a arrancar-lhe notas para me fazer ouvir a “Viúva Alegre” até o fim.

Nem você, promotor desumano, nem vocês, policiais de duvidosa honestidade, nem Polein, miserável que comprou sua liberdade pelo preço de um falso testemunho, nem os doze palermas do júri, que foram suficientemente cretinos para aceitar a tese da acusação e sua maneira de interpretar as coisas, nem os guardas da reclusão, dignos associados da devoradora de homens, ninguém, absolutamente ninguém, nem os muros grossos, nem a distância em que se acha essa ilha perdida no Atlântico, nada, absolutamente nada, coisa alguma de moral ou material impedirá minhas viagens deliciosamente coloridas pelo tom róseo da felicidade, quando decolo e vôo para as estrelas

Há pouco, quando fazia as contas do tempo em que deverei ficar sozinho comigo mesmo, enganei-me, pois só considerei as horas. Foi um erro. Há momentos que precisam ser medidos por minutos. Por exemplo: é depois da distribuição do pão e do café que chega o momento do esvaziamento das bacias de detritos, mais ou menos uma hora após a comida. Quando me devolvem a bacia vazia, ela vem com o coquinho, os cinco cigarros e, às vezes, um bilhete fosforescente. Não é sempre mas é muito comum que, nessa ocasião, eu conte os minutos. É fácil, pois controlo o tempo de cada passo para um segundo e meu corpo serve de pêndulo. A cada meia volta, digo mentalmente: um. Doze idas e vindas perfazem um minuto. Não pensem que fico ansioso para saber se terei o coquinho que se tornou vital para mim, se receberei os cigarros, que me dão o prazer inefável de poder fumar dez vezes por dia no interior desse túmulo, pois fumo um cigarro em duas vezes. Não. Às vezes, uma espécie de angústia me invade na hora do café e tenho medo, sem qualquer razão particular, pelas pessoas que, arriscando sua tranqüilidade, me ajudam tão generosamente; temo que lhes aconteça alguma coisa. Fico na expectativa e só me sinto aliviado quando vejo o coquinho. Se ele veio, é sinal de que tudo vai bem para eles.

Lentamente, bem lentamente, vão passando as horas, os dias, as semanas, os meses. Há quase um ano que estou aqui. Há exatamente onze meses e vinte dias que não converso com ninguém, a não ser algumas palavras trocadas às pressas, mais murmuradas do que articuladas, em menos de quarenta segundos. Porém tive uma oportunidade de trocar palavras em voz alta. Eu tinha pegado um resfriado e tossia muito. Pensando que isso justificaria uma saída do cubículo para ir ao médico, solicitei a medida.

Chega o médico. Para meu grande espanto, abre-se a janelinha da porta e através dela aparece uma cabeça.

– Que é que você tem? Está doente? É uma bronquite? Vire-se. Tussa.

Essa, não! É uma piada? No entanto, é a pura verdade. Havia um médico da colônia disposto a me examinar através de um visor de porta, fazendo com que eu me virasse a 1 metro de distância, para que ele, com a orelha no visor, me auscultasse. Depois, ele me disse: “Ponha o braço para fora”. Maquinalmente, eu ia pôr, quando, por uma espécie de respeito próprio, digo a esse estranho médico: “Obrigado, doutor. Não precisa se incomodar tanto. Não vale a pena”. Pelo menos tive a força de caráter necessária para fazê-lo compreender que eu não levava seu exame a sério.

– Como quiser – teve o cinismo de me responder. E partiu. Felizmente, pois eu estava prestes a explodir de indignação.

Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta. Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta. Caminho, caminho, incansavelmente, sem parar, hoje caminho com raiva, minhas pernas estão tensas, não estão relaxadas como de hábito. Depois do que acaba de acontecer, dir-se-ia que eu tenho necessidade de chutar alguma coisa. Que posso chutar? Sob os meus pés só tem cimento. Mas» chuto muita coisa, enquanto faço a minha caminhada. Chuto a tibieza desse papalvo que, pelas boas graças da administração, se presta a fazer coisas tão deploráveis. Chuto a indiferença de uma classe de homens em face do sofrimento e da dor de outra classe de homens. Chuto a ignorância do povo francês, sua falta de interesse ou de curiosidade por saber para onde vão e como são tratados os homens que constituem a carga embarcada a cada dois anos em Saint-Martin-de-Ré. Chuto os jornalistas dos assuntos policiais que, ante determinado crime, escrevem artigos escandalosos sobre um homem e meses depois já nem sequer se lembram de que ele existe. Chuto os padres católicos que ouviram confissões, sabem o que se passa nas prisões francesas do exterior e se calam. Chuto o sistema processual que se transforma em competição oratória entre quem acusa e quem defende. Chuto a Liga dos Direitos do Homem e do Cidadão, cuja organização não ergue a voz para dizer: “Parem com essa guilhotina branca, suprimam o sadismo coletivo que existe nos empregados da administração”. Chuto todas as organizações ou associações que nunca interrogam os responsáveis por esse sistema para lhes perguntar como e por que, no caminho da podridão, desaparecem em cada dois anos 80 por cento dos que o povoam. Chuto os atestados de óbito da medicina oficial: suicídios, miséria psicológica, morte por subalimentação contínua, escorbuto, tuberculose, loucura furiosa, senilidade precoce. Que tenho, ainda, para chutar? De qualquer maneira, depois do que acaba de acontecer, não estou em condições de caminhar normalmente: a cada passo meu, parece que estou esmagando alguma coisa.

Um, dois três, quatro, cinco… Transcorrendo lentamente, as horas aplacam pela fadiga minha revolta muda.

Mais dez dias e terei cumprido exatamente a metade da minha pena de reclusão. Na verdade, é um belo aniversário a ser festejado, pois, descontada essa gripe forte, estou com boa saúde. Não estou maluco e nem em vias de enlouquecer. Estou seguro, cem por cento seguro de que sairei vivo e equilibrado do ano que vai começar agora.

Acordo ouvindo vozes abafadas. Escuto:

– Ele está inteiramente duro, Sr. Durand. Como foi que o senhor não percebeu antes?

– Não sei, chefe. Como ele ficou pendurado no canto da barra da janelinha que dá para a passarela, passei por ali várias vezes sem ver a coisa.

– Não tem importância. Mas o senhor deve reconhecer que é ilógico o fato de não ter notado.

Meu vizinho da esquerda se suicidou, é o que eu percebo. Retiram-no. A porta se fecha. Cumpriram o regulamento com todo o rigor, pois a porta se abriu a se fechou na presença de uma “autoridade superior”, o comandante da reclusão, cuja voz pude reconhecer. É o quinto que desaparece à minha volta nestas últimas dez semanas.

Chega o dia do aniversário. Na bacia vem uma lata de leite condensado Nestlé. É uma loucura dos meus amigos. Deve ter custado caríssimo e há de ter acarretado riscos graves para me chegar às mãos. Tive um dia de vitória sobre a adversidade. Prometi então a mim mesmo que não decolaria para outras paragens. Estou aqui, na reclusão. Já passou um ano desde que cheguei e me sinto capaz de empreender a fuga amanhã mesmo, se tiver oportunidade. É uma constatação positiva e me sinto orgulhoso de fazê-la.

Pelo varredor da tarde – coisa inusitada – chega um bilhete dos meus amigos: “Coragem. Só te resta um ano por cumprir. Sabemos que estás bem de saúde. Nós estamos bem, normalmente, e te abraçamos. Louis – Ignace. Se puderes, manda imediatamente algumas palavras pelo portador de agora”.

No pequeno papel branco que veio junto com o bilhete, escrevo: “Obrigado por tudo. Estou forte e espero continuar bem graças a vocês, dentro de um ano. Podem me mandar notícias de Clousiot e Maturette?” De fato, o varredor volta e arranha a minha porta. Passo-lhe o papel, que desaparece logo. Durante todo esse dia e parte da noite, permaneço com os pés em terra firme, na situação em que várias vezes já tinha prometido a mim mesmo que iria permanecer. Dentro de um ano, serei mandado para uma das ilhas. Royale ou Saint-Joseph? Vou me embriagar de fumo e de conversa e logo tratar de combinar a próxima fuga.

Com confiança no meu destino, enfrento a manhã do primeiro desses 365 dias que me restam por fazer. Tinha razão de estar confiante, no que se refere aos oito meses que se seguiram. No nono mês, entretanto, as coisas se estragaram. De manhã, na hora da limpeza das bacias, o entregador foi surpreendido com a mão na massa, no momento em que me passava a bacia na qual pusera o coquinho e os cinco cigarros.

O incidente era tão grave, que durante alguns minutos a regra do silêncio foi esquecida. As pancadas recebidas pelo desgraçado foram claramente ouvidas e, em seguida, ouviu-se o ruído de um homem estertorando, como se estivesse morrendo. O visor da minha porta se abriu e a cabeça congestionada de um guarda me gritou:

– Você não perde nada por esperar!

– Pode vir, canalha! – respondi-lhe, tenso, por ter ouvido o tratamento dispensado ao infeliz que me ajudava.

Isso ocorrera às 7 horas. Foi somente às 11 que uma delegação, chefiada pelo subcomandante, veio me buscar. Abriram a porta que há vinte meses se fechara à minha passagem e desde então nunca fora aberta. Fiquei no fundo da cela, empunhando o canecão, em atitude de defesa, decidido a brigar o quanto pudesse, por duas razões: primeiro, para que alguns guardas não batessem impunemente; depois, para ser morto mais depressa. Não houve nada disso. Falaram:

– Prisioneiro, saia.

– Se é para me baterem, fiquem sabendo que vou me defender e que, portanto, não vou sair daqui para ser atacado por todos os lados. Aqui, estou em melhores condições para arrebentar o primeiro que me tocar.

– Charrière, nós não vamos bater em você.

– Quem me garante?

– Garanto eu, o subcomandante da reclusão.

– E você tem palavra?

– Não insulte, que é inútil. Por minha honra, prometo que você não será espancado. Agora saia.

Olho para o canecão, que continuo a empunhar.

– Pode guardá-lo, que não vai ser utilizado.

– Vá lá.

Entre seis guardas e o subcomandante, saio e percorro todo o corredor. Chegando ao pátio, a cabeça começa a girar e os olhos, feridos pela luz, são obrigados a se fechar. Finalmente percebo o aposento onde somos recebidos. Há uma dúzia de guardas nele. Sem me empurrar, fazem-me entrar na sala da administração. No chão, ensangüentado, está um homem que geme. Num relógio de parede vejo que são 11 horas e penso: “Há quatro horas que torturam esse desgraçado”. O comandante está sentado atrás de sua escrivaninha, o subcomandante sentado a seu lado.

– Charrière, há quanto tempo você recebe comida e cigarros?

– Aquele ali já lhes deve ter dito.

– Estou perguntando a você.

– Sou amnésico, não sei o que acontece na véspera.

– Está brincando comigo?

– Não. É estranho que isso não conste da minha ficha. Sofro de amnésia desde que levei uma pancada na cabeça.

O comandante fica tão surpreendido com essa resposta, que diz:

– Perguntem a Royale se existe alguma referência a isso na ficha dele.

Enquanto telefonam, ele continua:

– Mas você se lembra de que se chama Charrière?

– Lembro.

E, rápido, para desconcertá-lo ainda mais, passo a falar como um autômato:

– Meu nome é Charrière, nasci em 1906 em Ardèche e fui condenado à prisão perpétua em Paris, no distrito do Sena.

Ele abre os olhos de tal maneira, que ficam redondos como bolas de gude, sinto que o abalei.

– Você recebeu café e pão hoje de manhã?

– Recebi.

– Qual foi o legume que lhe deram ontem à noite?

– Não sei.

– Então, você quer dizer que não tem memória nenhuma?

– Do que aconteceu, não tenho nenhuma. Porém me lembro das fisionomias. Por exemplo, sei que foi o senhor quem me recebeu, um dia. Quando, não sei.

– Então, você não sabe quanto tempo ainda lhe resta por cumprir?

– Da prisão perpétua? Acho que até eu morrer.

– Não. Estou falando da sua pena de reclusão disciplinar”.

– E eu tenho uma pena de reclusão disciplinar? Por quê?

– Ah, isso é o cúmulo! Por Deus! Você vai acabar me deixando fora de mim. Não venha me dizer que você não sabe que está aqui para cumprir uma pena de dois anos de reclusão por ter fugido, ora essa!

Agora é que acabo de liquidá-lo:

– Por ter fugido? Eu? Comandante, sou um homem sério, capaz de assumir a responsabilidade pelo que faz. Venha comigo visitar minha cela e o senhor verá se fugi.

Nesse momento, um guarda lhe diz: “Estão falando de Royale, comandante”. Ele pega o telefone: “Não há nada? É estranho. Ele diz que sofre de amnésia, causada por uma pancada na cabeça. Claro, é um simulador. Quem pode saber? Bem, desculpe, comandante, vou verificar. Até já. Informarei logo ao senhor, não há dúvida”.

– Venha cá, seu comediante, deixe eu ver a sua cabeça. Ah, de fato, aqui há uma cicatriz bem grande. Como é que você se lembra de que não tem memória alguma depois dessa pancada, hem? Explique isso.

– Não explico, apenas constato que me lembro de ter levado essa pancada, que me chamo Charrière e algumas outras coisas.

– E o que é que você pensa que vai acontecer com você agora?

– É o que estamos discutindo aqui. O senhor me perguntou há quanto tempo me dão comida e cigarros. Minha resposta definitiva é essa: não sei. Pode ser a primeira vez, pode ser a milésima. Sofro de amnésia, não posso responder. Ê tudo que eu posso lhe dizer. O senhor faça como quiser.

– O que vou querer fazer é simples. Você comeu demais durante muito tempo, agora vai emagrecer um pouco: sua refeição da noite fica suprimida até o final da pena.

Neste mesmo dia recebo um bilhete pelo segundo varredor. Infelizmente não consigo lê-lo, porque não está escrito com tinta fosforescente. De noite acendo um cigarro que me sobrara e que escapara à busca porque estava bem escondido na cama embutida. Avivando-lhe a brasa, consigo decifrar: “O sujeito da bacia não contou. Disse que era a segunda vez que lhe dava comida e que estava agindo por conta própria, porque conheceu você na França. Ninguém teve problemas em Royale. Coragem”.

Bem, cá estou eu, sem coquinho, sem cigarros e, de agora em diante, sem notícias dos amigos de Royale. Além disso, sem jantar. Já estava habituado a não passar fome e os dez cigarros me ajudavam a encher o dia e uma parte da noite. Não penso em mim, somente; penso no pobre-diabo que eles quase mataram de pancada por minha causa. Esperemos que não lhe tenham dado um castigo cruel demais.

Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta… Um dois, três, quatro, cinco, meia volta. Não vai ser fácil suportar esse novo regime monstruoso. Não será preciso mudares de tática, já que vais comer tão pouco? Por exemplo: ficar deitado o máximo possível de tempo, para não gastar energias. Quanto menos eu me mover, menos calorias queimarei. Ficar sentado muitas horas durante o dia. Devo aprender toda uma outra forma de vida. Quatro meses são 120 dias que me faltam para passar aqui. No regime em que acabam de me pôr, em quanto tempo ficarei bastante anêmico? Não antes de dois meses, acredito. Portanto, tenho diante de mim dois meses cruciais. Quando eu estiver bem fraco, os médicos terão um terreno maravilhoso para atacar. Resolvo ficar deitado de 6 horas da tarde às 6 da manhã. Da hora do café à da limpeza das bacias, poderei andar mais ou menos duas horas. Meio-dia, depois da sopa, mais duas horas, aproximadamente. Ao todo, quatro horas de caminhada. O resto do tempo, sentado ou deitado.

Será difícil decolar para outras paragens sem estar cansado, mas vou tentar.

Hoje, depois de ter passado um bom pedaço pensando nos meus amigos e no infeliz que foi tão maltratado, começo a treinar adaptando-me à nova disciplina. Tenho bons resultados, embora as horas me pareçam mais longas e minhas pernas, que passam tantas horas quase sem funcionar, pareçam completamente cheias de formigas.

Já dura dez dias esse regime. Agora estou permanentemente com fome. Sinto um cansaço constante, que se apoderou endemicamente de mim. O coquinho me faz muita falta e os cigarros um pouco também. Deito-me cedo e logo fujo virtualmente da minha cela. Ontem estive em Paris, no Rat Mort, bebendo champanha com alguns amigos, entre os quais Antonio de Londres, nascido nas Ilhas Baleares, mas que fala francês como um parisiense e inglês como um autêntico londrino. De manhã, no Marronnier, Rua de Clichy, ele matara um de seus amigos. São coisas que acontecem no nosso meio, amizades que rapidamente se transformam em ódio mortal. De fato, ontem eu estava em Paris, dançando ao som do acordeão que toca no baile do Petit Jardin, na Avenida Saint-Quen, para um público inteiramente composto de corsos e marselheses. Todos os amigos desfilam nessa viagem imaginária e com tamanha nitidez, que não duvido nem da presença deles nem da minha nos lugares onde passei noites tão boas.

Sem andar muito, portanto, com esse regime alimentar drástico, chego ao mesmo resultado a que chegava procurando cansar-me. As imagens do passado me tiram da cela com tamanho vigor, que acabo realmente vivendo mais horas de liberdade do que horas de reclusão.

Falta somente um mês. Há três meses que absorvo apenas uma bolota de pão e uma sopa quente ao meio-dia, sem legumes e com seu pedaço de carne cozida. O estado de fome permanente em que me acho faz com que, na própria hora em que me servem, eu examine o pedaço de carne, para ver se não é pura pelanca, como ocorre com certa freqüência.

Emagreci bastante e percebo claramente como aquele coquinho que eu tive ocasião de receber durante vinte meses foi essencial para a conservação da saúde e do equilíbrio, nessa terrível exclusão da vida.

Depois de ter bebido o meu café, hoje de manhã, estou me sentindo muito nervoso. Comi, de uma só vez, metade do meu pão, o que nunca faço. Habitualmente, corto-o em quatro pedaços mais ou menos iguais, como um às 6 horas da manhã, outro ao meio-dia, outro às 6 da tarde e o último à noite. “Por que fizeste isso?”, recrimino-me, sozinho. “Quando já estamos chegando ao final é que começas a fraquejar tão seriamente?” “É que estou com fome e me sinto sem forças.” “Não sejas tão pretensioso. Como poderias te sentir forte? Comendo o que tu comes? O essencial – e nesse ponto tu és um vitorioso – é que estás fraco mas não estás doente. Com um pouco de sorte, é lógico que a devoradora de homens acabe perdendo a parada para ti.” Depois das minhas duas horas de caminhada, sento-me no bloco de cimento que me serve de banquinho. Mais trinta dias vão passar – isto é, 720 horas – e depois a porta se abrirá e me dirão: “Prisioneiro Charrière, saia. Seus dois anos de reclusão terminaram”. Que lhe direi, então? Direi: “Terminei, finalmente, esse calvário de dois anos”. Não! Se é o comandante para quem você se fez de amnésico, deve continuar friamente a representar. Deve dizer-lhe: “Quer dizer que estou livre? Vou partir para a França? Acabou a minha pena de prisão perpétua?” Só para ver a cara dele e convencê-lo de que o jejum a que me condenou foi uma injustiça. “Que é que se passa com você, caramba?” Injustiça ou não, o comandante não dará importância ao fato de se ter enganado. Que significa um engano desses para uma mentalidade assim? Terás a pretensão de deixá-lo com remorso por te ter castigado injustamente? Hoje, tanto como amanhã, estás proibido de supor que um carcereiro é um ser normal. Nenhum homem digno desse nome pode pertencer à corporação dos torturadores. As pessoas se habituam a tudo na vida, até a serem crápulas. Talvez somente depois da sepultura, se ele tem alguma religião, o temor de Deus o fará arrepender-se e angustiar-se, não por um verdadeiro remorso das canalhices cometidas e sim pelo medo de que Deus o transforme em condenado.

A qualquer ilha que chegues, portanto, leva desde já a convicção de que não podes ter compromisso algum com essa raça. Há uma barricada bem definida e cada um está de um lado dela. De um lado, está a prepotência, a autoridade pedante e desalmada, o sadismo de reações intuitivas e automáticas; do outro, estou eu com os homens da minha espécie, que certamente cometeram delitos graves, mas nos quais o sofrimento conseguiu criar qualidades incomparáveis: a piedade, a bondade, o espírito de sacrifício, a nobreza, a coragem.

Com toda a sinceridade, prefiro ser um condenado a ser um desses carcereiros.

Faltam só vinte dias. Sinto-me realmente muito fraco. Observei que a minha bolota de pão é sempre das menores. Quem pode ser tão baixo a ponto de querer me prejudicar até na seleção das bolotas de pão? Há vários dias, minha sopa é pura água quente e o pedaço de carne é sempre um osso com pouquíssima carne ou um resto de pele. Tenho medo de ficar doente. Isso está ficando uma obsessão para mim. Estou tão fraco, que, acordado, não me esforço para sonhar coisa alguma. Essa profunda lassidão e uma depressão grave me inquietam. Procuro reagir, mas é com dificuldade que consigo passar as 24 horas de cada dia. Arranham minha porta. Rapidamente recolho um bilhete fosforescente de Dega e Galgani. Leio: “Manda uma palavra. Muito preocupados com teu estado de saúde. Mais dezenove dias. Coragem. Louis – Ignace”.

Há um pedacinho de papel branco e outro de lápis preto. Escrevo: “Agüento a parada. Estou muito fraco. Obrigado. Papi”.

Quando a vassoura passa novamente e me arranha a porta, mando o bilhete. A palavra recebida foi mais importante para mim do que quaisquer cigarros ou coquinhos. Essa maravilhosa manifestação de amizade firme é o estímulo de que eu precisava. Lá fora sabem como eu estou e, se adoecer, o médico será certamente pressionado por meus amigos para me tratar direito. Eles têm razão: mais dezenove dias e chegarei ao fim dessa corrida exaustiva contra a morte e contra a loucura. Não ficarei doente. Cabe-me fazer o mínimo possível de movimentos para só gastar as calorias indispensáveis. Vou suprimir as duas horas da caminhada matinal e as outras duas da caminhada do meio-dia. É o único modo de agüentar. À noite, passo doze horas deitado; de dia, passo deitado as outras doze, ou então sentado sem me mexer, no banco de pedra. De vez em quando, me levanto e faço algumas flexões e movimentos de braço; em seguida, torno a sentar-me. Assim passo mais dez dias.

Estou passeando pelas ruas de Trinidad, embalado pelo som dos violões de uma corda só que acompanham as canções tristes dos javaneses, quando um grito horrível, inumano, me chama de volta à realidade. É um grito que vem de uma cela atrás da minha, ou então muito próxima. Escuto:

– Desce aqui no meu cubículo, canalha! Não está cansado de ficar me olhando aí de cima? Assim você está perdendo a metade do espetáculo, porque a falta de luz deste buraco não te deixa ver direito…

– Cale a boca ou você vai ser severamente punido – diz o guarda.

– Ah, não me faça rir, seu imbecil! Que castigo pode ser pior do que esse silêncio? Castigue o quanto quiser! Pode me bater, se é do seu agrado, carrasco idiota, mas nada pode ser pior do que esse silêncio em que vocês querem me obrigar a viver! Não, não quero mais ficar calado, quero falar. Há três anos que já devia ter lhe dito: você é um merda, uma pústula! Minha fraqueza foi a de ter esperado 36 meses para lhe dizer o nojo que eu tenho de você, com medo de ser punido. Mas você e todos esses seus companheiros não passam de bonecos podres de merda!

Pouco depois, a porta da cela dele se abre e ouço:

– Não, assim não! Veste ao contrário, que é muito mais eficiente!

E o coitado do prisioneiro urra:

– Podem vestir a camisa de força como quiserem, seus merdas! Podem vestir ao contrário, podem me apertar os laços, podem me machucar com os joelhos. Isso não vai me impedir de dizer que a sua mãe era uma puta barata e que por isso mesmo você só podia ser um saco de merda!

Devem ter colocado uma mordaça nele, pois agora não ouço mais nada. A porta se fecha de novo. Essa cena deve ter emocionado o jovem guarda, porque, após alguns minutos, ele pára diante da minha cela e diz:

– Ele deve ter enlouquecido.

– Você acha? Mas o que ele falou é muito sensato.

O guarda fica boquiaberto e, ao prosseguir sua caminhada, resmunga:

– Bem, vai acabar imitando o outro.

Esse incidente me tirou da ilha, dos violões, do meio dos hindus de Port-of-Spain, para me trazer de volta à triste realidade da reclusão.

Tenho ainda dez dias, isto é, 240 horas para sofrer.

A tática de não me mexer dá bons resultados, talvez porque os dias sejam tranqüilos, talvez por causa do bilhete dos meus amigos. Creio, contudo, que me sinto mais forte em virtude de uma comparação. Faltam 240 horas para eu me libertar dessa reclusão; estou fraco, mas meu cérebro está intato, minha energia requer apenas um pouco mais de força física para voltar a funcionar com perfeição. No entanto, aqui atrás, a 2 metros, do outro lado da parede, há um prisioneiro que entra na primeira fase da loucura, talvez pela pior porta, que é a da violência. Não vai sobreviver por muito tempo. Sua revolta permitirá que lhe apliquem tratamentos estudados com o maior rigor para matá-lo o mais cientificamente possível. Consigo sentir-me mais forte porque o outro foi derrotado. A sensação faz com que eu me pergunte se não serei um daqueles egoístas que, no inverno, bem agasalhados e bem calçados, vêem passar a massa dos trabalhadores enregelados, mal vestidos, com as mãos azuladas pelo frio da manhã, e, olhando a multidão que corre para pegar o ônibus ou o metrô, ainda usufruem com maior gosto a comodidade e se sentem melhor do que antes. Tudo na vida é, com freqüência, feito de comparações. De fato, estou condenado a dez anos mas Papillon está condenado à prisão perpétua. De fato, estou condenado à prisão perpétua, mas tenho apenas 28 anos, ao passo que ele tem cinqüenta.

Bom, estou chegando ao fim da reclusão e, em menos de seis meses, espero que a saúde, o moral e a energia, em todos os aspectos, me deixem em boa situação para uma fuga espetacular. Falou-se muito da primeira. A segunda há de ficar gravada nas pedras da cadeia. Não tenho dúvida. Antes de seis meses, estou seguro de partir.

Essa é a última noite que passo na reclusão. Há dezessete mil quinhentas e oito horas entrei na cela 234. Uma vez me abriram a porta para me conduzir diante do comandante, a fim de que ele me punisse. Alguns segundos por dia, troquei alguns monossílabos com meu vizinho. Afora isso, me falaram quatro vezes. Uma para me dizer que, ao ouvir o apito, eu devia baixar a cama embutida; foi no primeiro dia. Outra vez, foi o médico: “Vire-se, tussa”. Depois, uma conversa mais longa e mais movimentada com o comandante. Por fim, outro dia, quatro palavras trocadas com o guarda que se emocionara diante do preso enlouquecido. Não é uma diversão excessiva! Durmo tranqüilamente, pensando numa única coisa: amanhã, essa porta vai se abrir definitivamente. Amanhã verei o sol e, se me mandarem para Royale, respirarei o ar marinho. Amanha estarei livre. Começo a dar gargalhadas. Como, livre? Amanhã recomeçarás a tua pena de trabalhos forçados, a tua prisão perpétua. É isso que consideras ser livre? Sei muito bem, mas e uma vida que não se compara àquela que acabei de suportar aqui. Como encontrarei Clousiot e Maturette?

Às 6 horas me dão o café e o pão. Tenho vontade de dizer: “Vocês estão enganados, hoje estou de saída”. Logo me recordo que sou “amnésico” e que, se me desmascarar ante o comandante, ele pode me dar um castigo adicional de trinta dias. De qualquer modo, pela lei, devo sair hoje, 26 de junho de 1936, da reclusão disciplinar de Saint-Joseph. Dentro de quatro meses estarei completando trinta anos.

Oito horas. Comi toda a minha bolota de pão. No caminho certamente me darão de comer. Abre-se a porta. Chegam o subcomandante e dois guardas.

– Charrière, hoje é 26 de junho de 1936, você acabou de cumprir a sua pena. Siga-nos.

Saio. No pátio, o sol é suficientemente brilhante para me tontear. Sinto uma espécie de fraqueza. Minhas pernas amolecem e manchas negras dançam diante dos meus olhos. No entanto, caminhei apenas 50 metros, trinta dos quais ao sol.

Chegando ao prédio da administração, vejo Maturette e Clousiot. Maturette está transformado num verdadeiro esqueleto, com o rosto cavado e os olhos fundos. Clousiot está deitado numa padiola, lívido e já com cheiro de morte. Penso: “Não estão bonitos, os meus amigos. Será que eu também estou nesse estado?” Estou doido para me ver num espelho. Digo-lhes:

– Como é? Estamos firmes?

Não respondem. Repito:

– Estamos firmes?

– Estamos – responde debilmente Maturette.

Sinto o impulso de dizer-lhe que a reclusão terminou, que nós temos o direito de conversar. Beijo o rosto de Clousiot. Ele me olha com dois olhos brilhantes e sorri. Diz:

– Adeus, Papillon.

– Não fale assim!

– Falo, sim. Estou nas últimas.

Alguns dias depois, morreu no hospital de Royale. Tinha 32 anos, fora preso com vinte pelo furto de uma bicicleta que não havia cometido. Chega o comandante:

– Tragam os presos aqui para dentro. Maturette e Clousiot se portaram bem. Vou anotar na ficha de vocês: “Boa conduta”. Você, não, Charrière. Você cometeu uma falta grave. Vou anotar na sua ficha: “Má conduta”.

– Desculpe, comandante, mas qual foi a falta que eu cometi?

– Você não se lembra da descoberta dos cigarros e do coquinho?

– Sinceramente, não.

– Bem, que regime você vem tendo há quatro meses?

– De que ponto de vista? No que se refere à comida? O mesmo de sempre, desde que cheguei aqui.

– Ah, isso é o cúmulo! Que foi que você comeu ontem à noite?

– Não sei. Deram o que costumam dar. Não me lembro. Acho que foi feijão, ou arroz. Ou talvez um legume.

– Mas lhe deram comida ontem à noite? Você comeu?

– Claro que comi! O senhor acha que eu vou desperdiçar comida?

– Não, não é isso. Desisto. Não vou anotar “má conduta”. Guarda, faça uma nova ficha de saída para Charrière. Vou anotar “boa conduta” na sua ficha, está bom?

– Está bom e é justo. Não fiz nada que desmerecesse o meu conceito.

Foi com essa frase que nós saímos do escritório.

A grande porta do conjunto de reclusão se abre para passarmos. Escoltados por um único guarda, descemos lentamente o caminho que leva ao porto. Vemos o mar, com seus reflexos brilhantes e prateados da espuma. Em frente se acha Royale, com o verde da vegetação e o vermelho dos tetos. A Ilha do Diabo, austera e selvagem. Peço licença ao guarda para me sentar por alguns minutos. Ele autoriza. Nós nos sentamos, um à esquerda e outro à direita de Clousiot, e automaticamente, sem nos darmos conta, damo-nos as mãos. Esse contato nos dá uma emoção estranha e, sem nos dizermos nada, beijamo-nos no rosto. O guarda faia:

– Vamos, rapazes. É preciso descer.

E lentamente, bem lentamente, descemos até o porto, nós dois adiante, de mãos dadas, o guarda e os dois enfermeiros que vêm carregando o nosso amigo agonizante.

A VIDA EM ROYALE

Assim que entramos no pátio do campo, todos os forçados começam a nos tratar com uma atenção amigável. Reencontro Pierrot le Fou, Jean Sartrou, Colondini, Chissilia. Temos que ir os três para a enfermaria, informa o guarda. Assim, escoltados por uns vinte homens, atravessamos o pátio até a enfermaria. Em alguns minutos, Maturette e eu temos na nossa frente uma dúzia de maços de cigarros e de fumo, café com leite bem quente, chocolate feito com cacau puro. Cada um quer dar alguma coisa para a gente. Clousiot ganha do enfermeiro uma injeção de óleo canforado e uma de adrenalina para o coração. Um preto muito magro diz:

– Enfermeiro, dê as minhas vitaminas para ele, precisa mais do que eu.

É realmente comovedora esta demonstração de bondade solidária para com a gente.

Pierre, o bordelês, diz para mim:

– Você quer gaita? Antes da saída de vocês para Royale, dá tempo para fazer uma vaquinha.

– Não, muito obrigado, tenho dinheiro. Mas como você sabe que eu vou para Royale?

– Foi o contador que disse. Vão os três. Acho até que vão os três para o hospital.

O enfermeiro é um bandido das montanhas da Córsega. Se chama Essari. Depois eu o conheci muito bem, mais tarde contarei toda a história dele, é muito interessante. As duas horas na enfermaria passam muito depressa. Comemos e bebemos bastante. Repletos e satisfeitos, partimos para Royale. Clousiot ficou o tempo todo de olhos fechados, a não ser quando eu me aproximava e botava a mão na testa dele. Então, abria os olhos já mortiços e dizia:

– Amigo Papi, somos verdadeiros amigos.

– Mais do que isso, somos irmãos – respondia eu.

Ainda com um guarda só, descemos. No meio, a maca com Clousiot, Maturette e eu de cada lado. Na porta do campo, todos os forçados se despedem da gente e nos desejam boa sorte. Agradecemos os presentes e não queremos aceitá-los, embora eles não nos ouçam. Pierrot le Fou botou no meu pescoço uma sacola cheia de fumo, cigarros, chocolate e latas de leite Nestlé. Maturette também ganhou uma. Não sabe quem lhe deu. Somente o enfermeiro Fernandez e um guarda nos levam até o cais. Ele entrega a cada um uma ficha para o hospital de Royale. Adivinho que são os forçados enfermeiros Essari e Fernández que, sem pedir nada ao médico, nos hospitalizam. A canoa está aí. Seis remadores, dois guardas atrás armados com mosquetões e mais um no leme. Um dos remadores é Chapar, do caso da Bolsa de Marselha. Bom, vamos. Os remos penetram no mar e, remando, Chapar fala para mim:

– Tudo bem, Papi? Você sempre recebeu o coco?

– Não nos últimos quatro meses.

– Eu sei, houve um acidente. O sujeito foi direito. Ele só conhecia a mim, mas não me entregou.

– O que aconteceu com ele?

– Morreu.

– Não é possível! Morreu de quê?

– Parece, pelo que diz um enfermeiro, que fizeram estourar o fígado dele com um pontapé.

Desembarcamos no cais de Royale, a mais importante das três ilhas. No relógio da padaria são 3 horas. Este sol da tarde é muito forte, me ofusca e me esquenta demais. Um guarda pede dois homens para a maca. Dois forçados, corpulentos, impecavelmente vestidos de branco, cada um com o pulso fortalecido por uma pulseira de couro, levantam Clousiot como se fosse uma pena e nós andamos atrás dele, Maturette e eu, Um guarda, com alguns papéis na mão, anda atrás da gente.

O caminho, de mais de 4 metros de largura, é de cascalho. É difícil de subir. Felizmente, os dois homens param de vez em quando e esperam por nós. Sento no braço da maca, do lado da cabeça de Clousiot e passo levemente a mão na testa dele. Toda vez que faço isso ele sorri, abre os olhos e diz:

– Meu velho Papi!

Maturette pega a mão dele.

– É você, pequenino? – murmura Clousiot.

Ele parece ter uma felicidade inefável ao sentir a gente perto dele. Damos uma parada, quase na chegada, e encontramos uma turma que vai para o trabalho. São quase todos forçados do meu comboio. Todos, na passagem, têm uma palavra amável para a gente. Chegando ao planalto, na frente de um prédio quadrado e branco, vemos, sentados na sombra, as mais altas autoridades das ilhas. Nos aproximamos do comandante Barrot, alcunhado “Coco Seco”, e dos outros chefes da penitenciária. Sem levantar e sem cerimônia, o comandante diz:

– Então, não foi dura demais a reclusão? E aquele na maca, quem é?

– É Clousiot.

Olha para ele e diz:

– Leve todos para o hospital. Quando saírem, bote um aviso para que eles me sejam apresentados antes de entrar no campo.

No hospital, numa grande sala muito bem iluminada, nos botam em camas bem limpas, com lençóis e travesseiros. O primeiro enfermeiro que vejo é Chatal, o enfermeiro da sala de alta vigilância de Saint-Laurent-du-Maroni. Ele toma logo conta de Clousiot e da ordens a um guarda para chamar o médico. Este chega lá pelas 5 horas. Depois de um longo e minucioso exame, vejo que ele balança a cabeça, com ar insatisfeito. Escreve a receita e comenta:

– Não somos bons amigos, Papillon e eu – diz para Chatal.

– Estranho, pois é um bom cara, doutor.

– Talvez, mas ele tem birra comigo.

– Por causa do quê?

– Por causa de uma consulta que tivemos na reclusão.

– Doutor – digo -, o senhor chama isso de consulta, auscultar pelo postigo?

– É ordem da administração: nunca abrir a porta de um condenado.

– Muito bem, doutor, espero que o senhor esteja apenas emprestado a esta administração e que não pertença a ela.

– Falaremos disso mais tarde. Vou tentar fortalecê-los, a você e seu amigo. Quanto ao outro, receio que seja tarde demais.

Chatal me conta que, suspeito de estar preparando uma fuga, ele foi internado nas ilhas. Conta também que Jesus, aquele que me traiu na minha fuga, foi assassinado por um leproso. Ele não sabe o nome do leproso e pergunto para ele se não será um daqueles que nos ajudaram com tamanha generosidade.

A vida dos forçados nas Ilhas da Salvação é completamente diferente do que se pode imaginar. Em sua maioria, os homens são extremamente perigosos, por vários motivos. Primeiro, todo mundo come bem, pois se negocia tudo: álcool, cigarros, café, chocolate, açúcar, carne, verduras frescas, peixe, lagosta, coco, etc. Portanto, todo mundo goza de perfeita saúde, num clima muito sadio. Apenas os condenados temporários têm a esperança de serem libertados, mas os condenados à prisão perpétua – perdido por perdido! – são todos perigosos. Todos estão envolvidos nessas negociatas diárias, forçados e guardas. É uma mistura difícil de entender. Esposas de guardas procuram jovens forçados para trabalhos domésticos – e muitas vezes elas os tomam como amantes. São chamados “moços de serviços”. Alguns são jardineiros, outros cozinheiros. É essa a categoria que serve de ligação entre o campo e as casas de guardas. Os “moços de serviços” não são antipatizados pelos outros forçados, pois é graças a eles que se pode negociar de tudo. Mas eles não são considerados puros. Nenhum homem da autêntica malandragem aceitaria se rebaixar a esses servicinhos. Não concordaria em ser chaveiro, nem em trabalhar no refeitório dos guardas… Por outro lado, os presos pagam caríssimo pelas ocupações nas quais não tenham relação com os guardas: limpadores de latrinas, varredores de folhas secas, condutores de búfalos, enfermeiros, jardineiros da penitenciária, açougueiros, padeiros, remadores, carteiros, guardas do farol. Todos esses empregos são ocupados pelos verdadeiros duros. Um verdadeiro duro nunca trabalha na manutenção dos muros de contorno das estradas, das escadas, nem planta coqueiros; quer dizer, nunca trabalha nas tarefas ao sol ou sob a vigilância dos guardas. A gente trabalha das 7 horas ao meio-dia e das 2 às 6. Isso dá uma idéia do ambiente criado pela mistura de pessoas tão diferentes que vivem juntas, forçados e guardas, verdadeira aldeia em que se comenta tudo, se julga tudo, em que todo mundo observa a vida dos outros.

Dega e Galgani vieram passar o domingo comigo no hospital. Comemos maionese com peixe, sopa de peixe, batatas, queijo, café, vinho branco. Esta refeição, nós a fizemos no quarto de Chatal, ele, Dega, Galgani, Maturette, Grandet e eu. Pediram-me que conte toda a minha fuga, nos menores detalhes. Dega não vai tentar mais nada para fugir. Aguarda da França uma redução de cinco anos em sua pena. Com os três que ele já fez na França e mais três aqui, só faltará cumprir quatro. Se resignou a cumpri-los. Quanto a Galgani, acha que um senador corso está cuidando do caso dele.

Quando chega a minha vez, pergunto quais os lugares mais propícios, aqui, para uma fuga. É um espanto geral. Para Dega, é uma idéia que nem lhe passou pela cabeça; Galgani também não pensa nisso. Por sua vez, Chatal acha que um jardim deve ter suas vantagens para preparar uma jangada. Quanto a Grandet, ele me informa que é ferreiro numa oficina onde, pelo que está dizendo, há de tudo: pintores, carpinteiros, ferreiros, pedreiros, encanadores – 120 homens. Ele trabalha na manutenção dos prédios da administração. Dega, que é contador geral, me ajudará a obter o lugar que eu quiser. Será só escolher. Grandet me oferece a metade do seu cargo de controlador de jogo, de modo que, com o que eu ganhar sobre os jogadores, poderei viver bem sem gastar o dinheiro do meu canudo. Mais tarde, vou ver que o negócio é muito interessante, mas extremamente perigoso.

O domingo passou com uma rapidez espantosa.

– Já são 5 horas – diz Dega, que está com um lindo relógio -, temos que voltar para o campo.

Na saída, Dega me dá 500 francos para jogar pôquer, pois às vezes há boas partidas na nossa sala. Grandet me dá uma magnífica faca de mola da qual ele mesmo temperou o aço. É uma arma terrível.

– Fique sempre armado, dia e noite.

– E se eles me revistarem?

– Quase todos os guardas que revistam são árabes. Quando um homem é considerado perigoso, eles nunca encontram a arma, nem que a toquem.

– A gente vai se encontrar no campo – diz Grandet.

Antes de sair, Galgani me diz que já guardou um lugar para min no seu canto e que ficaremos juntos numa patota, repartindo as coisas. Quanto a Dega, não dorme no campo, mas num quarto do prédio da administração.

Já faz três dias que estamos aqui, mas, como passo as noites perto de Clousiot, ainda não me dei muito bem conta da vida desta sala de hospital, onde somos uns sessenta. Depois, Clousiot piorou muito, foi isolado num quarto onde já estava um enfermo grave. Chatal o entupiu de morfina. Receia que não agüente a noite.

Na sala ficam trinta camas de cada lado de uma passagem de 3 metros, quase todas ocupadas. Pois lampiões de petróleo iluminam o conjunto. Maturette diz:

– Lá no fundo estão jogando pôquer.

Eu vou até os jogadores. São quatro.

– Posso ser o quinto?

– Pode, sente. O cacife é de 100 francos. Para começar a jogar, precisa compra três cacifes, quer dizer, 300 francos. Aqui tem 300 francos de fichas.

Dou 200 para Maturette guardar. Um parisiense chamado Dupont diz para mim:

– Jogamos com o regulamento inglês, sem curinga. Conhece?

– Conheço.

– Então dê as cartas, é você que começa.

É incrível a rapidez com que estes homens jogam. A parada tem que ser muito rápida, senão a aposta é considerada “fora de tempo” e o jeito é agüentar firme. Aí é que descubro uma nova classe de forçados: os jogadores. Vivem do jogo, para o jogo, no jogo. Nada interessa a eles, a não ser jogar. Esquecem tudo: o que eles foram, sua pena, o que eles poderiam fazer para modificar sua vida. Que o parceiro seja um bom sujeito ou não, uma única coisa interessa: jogar

Jogamos a noite inteira. Paramos no café. Ganhei 1 300 francos. Vou para a minha cama, quando Paulo se aproxima de mim e me pede emprestados 200 cobres para continuar a jogar belote de dois. Ele precisa de 300 cobres e só tem 100.

– Toma 300. Depois a gente divide.

– Obrigado, Papillon, você é mesmo o sujeito de quem ouvi falar. Vamos ser amigos.

Estendo a mão, aperto-a, e ele vai embora todo contente. Clousiot morreu hoje de manhã. Num momento de lucidez, na véspera, tinha pedido a Chatal para não lhe dar morfina:

– Quero morrer consciente, sentado na minha cama, com meus amigos a meu lado.

É estritamente proibido penetrar nos quartos de isolamento, mas Chatal se responsabilizou e o nosso amigo pôde morrer nos nossos braços. Fechei os olhos dele. Maturette estava transtornado pela dor.

– Lá foi ele, o companheiro da nossa bela aventura. Vai ser jogado aos tubarões.

Quando ouvi estas palavras, “vai ser jogado aos tubarões”, fiquei gelado. De fato, não existe cemitério para os forçados nas ilhas. Quando um forçado morre, eles o jogam no mar, às 6 horas, quando o sol se põe, entre Saint-Joseph e Royale, num lugar infestado de tubarões.

A morte do meu amigo me torna o hospital insuportável. Mando dizer a Dega que vou sair depois de amanhã. Ele me manda um bilhete: “Peça a Chatal que consiga para você quinze dias de descanso no campo, assim terá tempo para escolher o emprego que convier”. Maturette vai ficar mais algum tempo. Talvez Chatal consiga tomá-lo como enfermeiro-assistente.

Assim que saio do hospital, me levam para o prédio da administração, me apresentam ao comandante Barrot, o “Coco Seco”.

– Papillon, antes de botá-lo no campo, eu quis conversar um pouco com você. Você tem aqui um amigo precioso, meu contador geral, Louis Dega. Ele sustenta que você não merece as informações que nos chegam da França. Como ele considera você um condenado inocente, acha natural que você esteja num estado permanente de revolta. Devo dizer que não concordo muito com ele a esse respeito. O que eu gostaria de saber é qual é, atualmente, o seu estado de espírito.

– Primeiro, meu comandante, para poder responder, pode me dizer quais são as informações do meu processo?

– Veja você mesmo.

E ele me passa uma cartolina amarela onde leio mais ou menos o seguinte:

“Henri Charrière, dito Papillon, nascido a 16 de novembro de 1906, em…, Ardèche, condenado por homicídio voluntário aos trabalhos forçados perpétuos, pelo tribunal do Sena. Perigoso de todos os pontos de vista, deve ser vigiado com muita cautela, não poderá se beneficiar dos empregos de favor.

“Central de Caen: Condenado incorrigível. Capaz de fomentar uma revolta. Deve ser vigiado constantemente.

“Saint-Martin-de-Ré: Indivíduo disciplinado mas certamente possuidor de muita influência sobre os colegas. Tentará fugir de qualquer lugar.

“Saint-Laurent-du-Maroni: Cometeu uma agressão selvagem contra três guardas e um auxiliar da administração para fugir do hospital. Volta da Colômbia. Bom comportamento na preventiva. Condenado a uma pena leve de dois anos de reclusão.

“Reclusão de Saint-Joseph: Bom comportamento até a libertação”.

– Com isso, meu velho Papillon – diz o diretor quando lhe devolvo a ficha -, a gente não se sente muito seguro quando tem você como pensionista. Você quer fazer um acordo comigo?

– Por que não? Depende do acordo.

– Você é um homem que, sem dúvida, vai fazer tudo para fugir das ilhas, apesar das grandes dificuldades que existem para a fuga. É possível até que você seja bem sucedido. Quanto a mim, me faltam apenas cinco meses na direção das ilhas. Sabe o que custa uma evasão para o comandante das ilhas? Um ano de soldo normal. Quer dizer, a perda completa do tratamento colonial; férias adiadas de seis meses e reduzidas de três. E, conforme as conclusões do inquérito, se houve desleixo por parte do comandante, a possível perda de um galão. Está vendo que o negócio é sério. Se eu fizer o meu trabalho honestamente, não é porque você é capaz de fugir que tenho o direito de botá-lo numa cela ou numa masmorra. A não ser que eu invente delitos imaginários. E isso não quero fazer. Então, eu gostaria que você me desse a sua palavra de que não tentará fugir até a minha saída das ilhas. Cinco meses.

– Comandante, eu lhe dou a minha palavra de honra de que não vou partir enquanto o senhor estiver aqui, se isso não ultrapassar seis meses.

– Parto dentro de um pouco menos de cinco meses, é absolutamente certo.

– Muito bem, pergunte a Dega, ele dirá ao senhor que sou homem de palavra.

– Acredito.

– Mas, em compensação, peço outra coisa.

– O quê?

– Que, durante os cinco meses que tenho que passar aqui, eu possa ter já os empregos dos quais eu poderia me beneficiar mais tarde, e talvez até mudar de ilha.

– Então está certo. Mas que isso fique estritamente entre nós.

– Sim, meu comandante.

Ele manda vir Dega, que o convence de que o meu lugar não é junto com os presos “bem comportados”, mas com os homens da zona da malandragem, no prédio dos perigosos, onde se encontram todos os meus amigos. Recebo um saco completo com os trastes de forçado e o comandante manda acrescentar algumas calças e algumas japonas brancas pedidas aos alfaiates.

É assim, com duas calças de um branco impecável, novinhas, e três japonas, um chapéu de palha de arroz, que me encaminho, acompanhado por um guarda, para o campo central. Para ir do pequeno prédio da administração até o campo, é necessário atravessar o planalto inteiro. Passamos em frente do hospital dos guardas, ao seguir um muro de 4 metros que faz a volta completa da penitenciária. Depois de ter feito a volta quase completa desse imenso retângulo, se chega à porta principal. “Penitenciária das Ilhas – Seção de Royale”. A imensa porta de madeira é toda aberta. Tem cerca de 6 metros de altura, com dois postos de guarda e quatro guardas em cada um. Sentado numa cadeira, um graduado. Nada de mosquetão: todos estão com revólver. Vejo também cinco ou seis serventes árabes.

Quando chego debaixo do pórtico, todos os guardas saem. O chefe, um corso, diz:

– Chegou um novo, de gabarito.

Os serventes se preparam para me revistar, mas ele os interrompe:

– Não chateiem, não precisam tirar a tralha toda. Vamos, entre, Papillon. No bloco especial, parece que você tem muitos amigos. Eles estão esperando por você. Meu nome é Sofrano. Boa sorte nas ilhas.

– Obrigado, chefe.

E entro num pátio imenso, onde se erguem três grandes blocos. Sigo o guarda que me leva até um deles. Em cima da porta, uma inscrição: “Bloco A – Grupo Especial”. Em frente da porta toda aberta, o guarda grita:

– Vigia do compartimento!

Surge então um velho forçado.

– Chegou um novo – diz o chefe e vai embora.

Entro numa sala retangular, muito grande, onde vivem 120 homens. Como no primeiro prédio de Saint-Laurent, uma barra de ferro percorre cada um dos lados maiores, interrompida apenas no espaço das portas; é uma grade que só se fecha de noite. Entre a parede e a barra estão esticadas, muito bem estendidas, lonas que servem de cama e às quais se dá o nome de rede, embora não sejam realmente redes. Essas redes são bem confortáveis e higiênicas. Em cima de cada uma estão afixadas duas tábuas para nós guardarmos nossas coisas: uma para a roupa, a outra para a comida, a tigela, etc. Entre as fileiras de redes, uma passagem de 3 metros de largura, a “avenida”. Aqui, também, os homens vivem em pequenas organizações, as patotas. Há patotas de dois homens, mas também de dez.

Assim que chegamos, de todos os lados chegam forçados vestidos de branco: “Papi, venha para cá”. “Não, venha com a gente.” Grandet pega a minha sacola e diz:

– Ele vai ficar de patota comigo.

Vou seguindo Grandet. Instalam a lona, bem esticada, que me servirá de cama.

– Tome um travesseiro de penas, meu chapa – diz Grandet.

Reencontro uma porção de amigos. Muitos corsos e marselheses, alguns parisienses, todos amigos da França ou sujeitos encontrados na Santé, na Conciergerie ou no comboio. Mas, espantado por encontrá-los aqui, pergunto:

– Vocês não estão trabalhando numa hora dessas?

Aí é uma gargalhada geral.

– Ah! essa é boa! Neste prédio, quem trabalha não trabalha mais de uma hora por dia. Depois, a gente volta logo para cá.

Esta recepção é realmente calorosa. É de se desejar que continue assim. Mas logo entendo alguma coisa que não tinha previsto: apesar dos dias passados no hospital, preciso aprender de novo a viver numa comunidade.

Vejo algo que eu nunca teria imaginado. Um sujeito entra, vestido de branco, com uma bandeja encoberta por um pano branco limpíssimo e grita:

– Bife, bife, quem quer bife?

Pouco a pouco vem se aproximando da gente, pára, levanta o pano branco e aparece, como num açougue da França, uma bandeja cheia de bifes cuidadosamente empilhados. Percebo que Grandet é freguês constante, pois o rapaz nem pergunta se ele quer bifes, pergunta apenas quantos quer que deixe.

– Cinco.

– Contrafilé ou alcatra?

– Contrafilé. Quanto é? Me dê as contas, porque agora temos um a mais, então vai mudar.

O comerciante de bifes puxa uma caderneta e começa a calcular:

– Dá 135 francos, tudo incluído.

– Cobre e agora recomeçamos de zero.

Depois de o homem ter ido embora, Grandet me diz:

– Aqui, sem tutu você se arrebenta. Mas tem um sistema para ter sempre tutu: a viração.

Para os duros, a viração é o modo de cada um se virar para conseguir dinheiro. O cozinheiro do campo vende bifes feitos com a própria carne destinada aos prisioneiros. Quando ele recebe a carne na cozinha tira mais ou menos a metade. Conforme os pedaços, prepara bifes, carne para ensopado ou para cozinhar. Uma parte é vendida aos guardas, através das esposas, a outra aos forçados que têm meios para comprar. Claro que o cozinheiro dá uma parte do que ganha ao guarda encarregado da cozinha. O primeiro prédio onde se apresenta com a mercadoria é sempre o do grupo especial, bloco A: o nosso.

Então, a viração é o cozinheiro que vende a carne e a gordura; o padeiro que vende pão fino ou pão de metro bem branco, destinado aos guardas; o açougueiro que, por sua vez, vende carne; o enfermeiro que vende injeções; o contador que recebe dinheiro para fazer com que a gente seja designado para tal ou tal cargo, ou então simplesmente para nos dispensar de uma tarefa; o jardineiro que vende hortaliças frescas e frutas; o forçado empregado no laboratório que vende resultados de análises e chega até a inventar tuberculosos, leprosos, enterites, etc; os especialistas do roubo no pátio das casas dos guardas, que vendem ovos, frangos; os moços de serviços que negociam com a dona da casa onde trabalham, e que trazem o que a gente pedir: manteiga, leite condensado, leite em pó, latas de atum ou de sardinha, queijos e, naturalmente, vinhos e bebidas alcoólicas (tanto assim, que na minha patota tem sempre uma garrafa de Ricard e cigarros ingleses ou americanos); aqueles também que têm o direito de pescar e vendem o peixe ou as lagostas.

Mas a melhor viração, a mais perigosa também, é ser controlador de jogo. A regra é que não pode nunca haver mais de três ou quatro controladores de jogo por prédio de 120 homens. Aquele que quiser cuidar dos jogos se apresenta de noite e diz: “Quero um lugar como controlador do jogo”. Alguém responde: “Não”.

– Todos dizem não?

– Todos.

– Então escolho fulano para tomar o lugar.

Aquele que foi designado entendeu. Levanta-se, vai até o centro da sala e os dois fazem um duelo de faca. Aquele que ganha fica com o lugar. Os controladores cobram 5 por cento em cada lance vitorioso.

Os jogos servem também para outras pequenas virações. Há aquele que prepara os cobertores bem esticados no chão, aquele que aluga bancos pequeninos para os jogadores que não podem sentar com as pernas cruzadas debaixo do traseiro, o vendedor de cigarros. Este coloca em cima do cobertor várias caixas de charutos vazias, nas quais ele põe cigarros franceses, ingleses, americanos e até feitos a mão. Cada um tem um preço, o jogador se serve ele mesmo e coloca cautelosamente na caixa o dinheiro correspondente ao preço marcado. Há também aquele que prepara os lampiões de querosene e toma cuidado para que eles não façam fumaça demais. São lampiões feitos com latas de leite cuja tampa foi furada para deixar passar um pavio que mergulha no querosene e que deve ser aparado com freqüência. Para os que não fumam, há bombons e bolos feitos com viração especial. Cada prédio tem um ou dois cafeteiros. O café feito à moda árabe é mantido quente a noite inteira, com dois sacos de estopa que o cobrem. De vez em quando, o cafeteiro passa pela sala e oferece café ou chocolate quente numa espécie de bule norueguês de fabricação caseira.

Finalmente, há as bugigangas. É uma espécie de viração artesanal. Alguns trabalham com a casca das tartarugas capturadas pelos pescadores. Uma tartaruga de escama possui treze chapas, cada uma com até 2 quilos. Com isso, o artista faz pulseiras, brincos, colares, piteiras, pentes e ornamentos para escovas. Cheguei a ver uma caixinha de escama clara, verdadeira maravilha. Outros trabalham com cocos, chifres de boi, de búfalo, ébano ou outras madeiras das ilhas. Alguns fazem trabalhos de marcenaria de alta precisão, sem um prego, tudo com uma chanfradura. Os mais hábeis trabalham com bronze. Sem esquecer os pintores.

Pode acontecer que vários destes talentos se juntem para realizar um só objeto. Por exemplo, um pescador pega um tubarão. Ele ajeita as mandíbulas de modo a que fiquem abertas, com os dentes bem polidos e bem retos. Um marceneiro faz o modelo reduzido de uma âncora, de madeira bem lisa e de grão fechado, suficientemente larga para que se possa fazer alguma pintura no centro. As mandíbulas são fixadas nesta âncora, em que um pintor pinta as Ilhas da Salvação cercadas pelo mar. O tema mais freqüentemente usado é o seguinte: se vê a ponta da Ilha Royale, o canal e a Ilha Saint-Joseph. No mar azul, o sol declinando lança raios fulgurantes. Na água, um barco com seis forçados em pé, peito nu, os remos verticais, e três guardas atrás, de metralhadoras na mão. Na frente, dois homens erguem um caixão donde escorrega, embrulhado num saco de farinha, o corpo de um forçado morto. Tubarões aparecem na superfície da água, esperando o corpo com a goela aberta. Embaixo, à direita do quadro, está escrito: “Enterro em Royale” com a data.

Estes trabalhos de artesanato são vendidos nas casas dos guardas. As peças mais belas são freqüentemente compradas com antecipação ou feitas a pedido. O resto é vendido a bordo dos navios que passam pelas ilhas. É o domínio dos remadores. Há também os brincalhões que pegam uma velha caneca esburacada e gravam nela: “Esta caneca pertenceu a Dreyfus – Ilha do Diabo – data”. A mesma coisa com as Colheres e as tigelas. Para os marinheiros bretões, há um truque que funciona na certa: qualquer coisa com o nome de “Sezenec”.

Esse negócio permanente traz muito dinheiro para as ilhas e os guardas têm interesse em tolerá-lo. Entregues aos seus afazeres, os homens são mais fáceis de manejar e se acostumam à nova vida.

A pederastia toma um caráter oficial. Todo mundo (inclusive o comandante) sabe que fulano é a mulher de sicrano e, quando um deles é mandado para outra ilha, providencia-se para que o outro siga logo, se é que já não foram transferidos juntos.

Entre todos estes homens, não chegam a trezentos os que pensam em fugir. Até entre os que têm condenação à prisão perpétua. O único esforço é no sentido de tentar, por todos os meios, ser desinternado e mandado para o continente, para Saint-Laurent, Kourou ou Caiena. O que só interessa aos internados temporários. Para os condenados à prisão perpétua, não há saída fora do assassinato. De fato, quando se mata alguém, eles mandam a gente a Saint-Laurent para ser julgado pelo tribunal. Mas com esse recurso para ir para lá – é necessário esclarecer -, a gente se arrisca a pegar cinco anos de reclusão disciplinar por assassinato, sem saber se se poderá aproveitar a breve permanência no quartel de Saint-Laurent (três meses no máximo) para fugir.

Pode-se tentar também o desinternamento por motivos de saúde. Quem é declarado tuberculoso é mandado ao campo para tuberculosos, chamado Novo Campo, a 80 quilômetros de Saint-Laurent.

Existem também a lepra e a enterite crônica. É relativamente fácil chegar a este resultado, mas o risco é muito grande: a coabitação num pavilhão especial, isolado, durante quase dois anos, com os doentes do tipo escolhido. De querer ser falso leproso a pegar a lepra, de ter pulmões fortes pra burro e sair tuberculoso, vai só um pequeno passo, que se dá com freqüência. Quanto à disenteria, é ainda mais difícil escapar ao contágio.

Aqui estou eu, instalado no bloco A, com os meus 120 colegas. É necessário aprender a viver nesta comunidade na qual a gente é rapidamente classificado. É necessário primeiro que todo mundo saiba que é perigoso atacar você. Uma vez temido, tem que se fazer respeitar pela maneira como se comporta em relação aos guardas, não aceitar determinados cargos, recusar certas tarefas, nunca reconhecer a autoridade dos serventes, nunca obedecer com humildade, mesmo correndo o risco de ter um incidente com o guarda. Depois de ter jogado a noite inteira, não se deve atender à chamada. O guarda da choça (este bloco é chamado “a choça”) grita:

– Doente, deitado.

Nas duas outras choças, os guardas vão às vezes procurar o doente e o obrigam a assistir à chamada. Nunca no bloco dos violentos. Conclusão: o que eles procuram antes de mais nada, do maior ao menor, é a tranqüilidade da prisão.

Meu amigo Grandet, com quem estou associado e reparto as coisas, é um marselhês de 35 anos. Muito alto, magro como um prego, mas muito forte. Somos amigos desde a França. A gente se dava em Toulon, bem como em Marselha e Paris.

É um célebre perfurador de cofres-fortes. É bom, mas pode ser muito perigoso. Hoje estou quase sozinho nesta imensa sala. O chefe da choça varre e passa um pano no chão de cimento. Estou vendo um homem consertando um relógio, com um troço de madeira no olho esquerdo. Em cima da sua rede, uma tábua onde estão dependurados uns trinta relógios. Este rapaz tem os traços de um homem de trinta anos e cabelos inteiramente brancos. Aproximo-me dele e o observo trabalhar, depois tento bater um papo. Nem levanta a cabeça e permanece mudo. Afasto-me um pouco, ofendido, saio para o pátio e me sento perto do tanque. Encontro Titi la Belote, que está treinando com um baralho completamente novo. Seus dedos ágeis baralham constantemente as 52 cartas com uma rapidez incrível. Sem interromper o jogo de suas mãos de prestidigitador. diz:

– Então, velho, tudo bem? Está se dando bem em Royale?

– Sim, mas hoje estou na fossa. Preciso trabalhar um pouco; resolvi sair um pouco da choça. Quis bater um papo com o sujeito que está dando uma de relojoeiro, ele nem abriu a boca.

“Não se incomode, Papi, este sujeito não liga para ninguém. Para ele, só existem os relógios. Para o resto, bolas! É verdade que, depois do que aconteceu para ele, tem o direito de ser gira. Até por menos. Imagine que este rapaz – pode-se dizer que ele é um rapaz, não tem ainda trinta anos – era condenado à morte, no ano passado, porque ele teria estuprado a mulher de um guarda. Lorota! Fazia tempo que ele trepava com a dona, a esposa de um guarda-chefe bretão. Como ele trabalhava na casa deles como moço de serviços, cada vez que o bretão tinha plantão de dia, o relojoeiro comia a garota. Só que eles cometeram um erro: a dona nem o deixava mais lavar e passar a roupa. Era ela mesma que fazia tudo, e o cornudo do marido achou estranho, começou a desconfiar, porque sabia que ela era preguiçosa. Mas não tinha prova de seu infortúnio. Então bolou alguma coisa para pegar os dois em flagrante e matá-los. Ele não contava com a reação da dona. Um dia, ele deixa o plantão duas horas depois de ter começado e pede a um guarda para acompanhá-lo até em casa, alegando que queria lhe dar um presunto que tinha recebido de sua terra. Sem barulho, passa pelo portão; mas, assim que abre a porta da casinha, um papagaio se põe a berrar: ‘Chegou o patrão!’, como costumava fazer toda vez que o cara voltava para casa. Logo a mulher se põe a gritar: ‘Socorro! É uma curra!’ Os dois guardas entram no quarto na hora em que a mulher escapa dos braços do forçado que, surpreendido, pula pela janela, enquanto o cornudo atira nele. Levou um tiro no ombro; a dona, por sua vez, arranhou ela mesma os peitos e a face e rasgou o chambre. O relojoeiro caiu, ferido, e, na hora em que o bretão ia acabar com ele, o outro guarda lhe tirou a arma. É verdade que o outro era um corso e entendeu logo que o chefe lhe tinha contado uma lorota, estupro ali era chifre em cabeça de cavalo. Mas o corso não podia falar com o bretão e fingiu que acreditava no estupro. O relojoeiro foi condenado à morte. Até aí, meu velho, nada de extraordinário. É depois que o caso se torna interessante.

“Em Royale, no quartel dos punidos, tem uma guilhotina, cada peça bem guardada num lugar especial. No pátio, tem cinco lajes para erguê-la, bem cimentadas e niveladas. Toda semana, o carrasco e seus assistentes, dois forçados, montam a guilhotina com a faca e o troço todo e cortam um ou dois troncos de bananeira. Assim, ficam certos de que está sempre em bom estado.

“O relojoeiro saboiano estava numa cela de condenado à morte com quatro outros, três árabes e um siciliano. Eles esperavam resposta ao pedido de indulto, feito por guardas que os defenderam.

“Numa manhã, eles montam a guilhotina e abrem bruscamente a porta do relojoeiro. Os carrascos se jogam sobre ele, lhe amarram os pés com uma corda, ligam os pulsos com a mesma corda dos pés. Com tesouras, aparam o colarinho e ele, em passos estreitos, na semi-obscuridade da alvorada, percorre uns 20 metros. Você sabe, Papillon, que, quando se chega diante da guilhotina, a gente se encontra frente a frente com uma tábua em pé na qual eles amarram o sujeito com correias presas na tábua. Amarram o cara, começam a deitar a tábua, a cabeça de fora, quando chega o atual comandante, o ‘Coco Seco’, que tem que assistir obrigatoriamente à execução. Leva na mão um enorme lampião de querosene e, na hora em que ele ilumina a cena, percebe que os putos dos guardas se enganaram: eles iam cortar a cabeça do relojoeiro, que, naquele dia, não tinha nada a ver com a cerimônia.

“- Parem, parem! – grita Barrot.

“Fica tão perturbado, que parece até que não consegue mais falar. Deixa cair o lampião, empurra todo mundo, os guardas, os carrascos, e ele mesmo desamarra o relojoeiro saboiano. Finalmente consegue dar uma ordem:

“- Leve-o de volta para a cela, enfermeiro. Trate dele, fique com ele, dê-lhe rum. E vocês, cretinos, vão buscar rápido Rencasseu, é ele que executamos hoje!

“No dia seguinte, o saboiano estava com os cabelos inteiramente brancos, tal como você o viu hoje. Seu advogado, um guarda de Calvi, fez um novo pedido de indulto ao ministro da Justiça, contando-lhe o incidente. Á pena do relojoeiro foi comutada e transformada em prisão perpétua. Desde então, ele passa o tempo todo consertando os relógios dos guardas. É a sua paixão. Ele controla os relógios durante muito tempo; é por isso que tem tantos dependurados no seu painel de observação. Agora dá para entender que o sujeito tem o direito de estar um pouco doido, sim ou não?”

– Não tem nem dúvida; depois de um choque desses, ele tem o direito de não ser muito amável. Sinceramente, tenho dó dele.

A cada dia, aprendo um pouco mais sobre esta nova vida. A choça A é realmente uma concentração de homens terríveis, tanto por causa do passado deles como pela maneira de eles reagirem na vida cotidiana. Não trabalho ainda: espero um lugar de limpador de latrinas. É um posto que, depois de 45 minutos de trabalho, me deixará livre sobre a ilha, com direito de ir pescar.

Hoje de manhã, na chamada para a tarefa de plantação de coqueiros, designam Jean Castelli. Ele sai da fileira e pergunta:

– O que é isso? Estão me mandando para o trabalho, eu?

– Sim, você – responde o guarda encarregado da tarefa. – Vai, pega essa picareta!

Friamente, Castelli olha para ele:

– Olhe um pouco pra mim, meu chapa. Você é um caipira de Auvergne. Não está vendo que é preciso ter nascido numa aldeola como a tua para saber usar um instrumento desses? Eu sou corso e marselhês. Na Córsega, a gente joga para muito longe os instrumentos de trabalho, e em Marselha a gente nem sabe que eles existem. Fique você com a picareta e me deixe em paz.

O jovem guarda, que ainda não estava a par da situação, pelo que vim a saber mais tarde, levanta a picareta contra Castelli, cabo para cima. Numa voz só, os 120 homens urram:

– Carniceiro, não toque nele ou você está morto.

– Dispersem! – grita Grandet e, sem levar em conta as posições de ataque tomadas por todos os guardas, voltamos todos para a choça.

A choça B desfila, indo para o trabalho. A choça C também. Doze guardas vêm chegando e, coisa rara, fecham a porta gradeada. Uma hora mais tarde; quarenta guardas estão de cada lado da porta, de metralhadora na mão. Comandante adjunto, vigia-chefe, guarda-chefe, guardas, todos estão aqui, com exceção do comandante, que saiu às 6 da manhã, antes do incidente, para inspecionar a Ilha do Diabo:

O comandante adjunto diz:

– Dacelli, chame os homens, um por um.

– Grandet?

– Presente.

– Saia.

Ele sai, no meio dos quarenta guardas. Dacelli diz para ele:

– Vai trabalhar.

– Não posso.

– Recusa?

– Não, não recuso, estou doente.

– Desde quando? Você não se declarou doente na primeira chamada.

– Hoje de manhã, eu não estava doente, mas agora estou.

Os sessenta primeiros chamados respondem exatamente a mesma coisa, um depois do outro. Apenas um vai até a franca recusa de obediência. Ele tinha provavelmente a intenção de ser mandado a Saint-Laurent, passar pelo conselho de guerra. Quando lhe dizem:

– Recusa?

Ele responde:

– Sim, recuso, três vezes.

– Três vezes? Por quê?

– Porque vocês me enchem o saco. Recuso categoricamente trabalhar para sujeitos tão fodidos como vocês.

A situação era muito tensa. Os guardas, principalmente os jovens, não agüentavam ser humilhados assim pelos presos. Só esperavam uma coisa: um gesto de ameaça que lhes permitiria entrar em ação com suas metralhadoras, aliás dirigidas para o chão.

– Todos aqueles que foram chamados, pelados! Em marcha para as celas!

À medida que as roupas iam caindo, ouvia-se às vezes o ruído de uma faca que batia sobre o asfalto do pátio. Aí chega o médico.

– Bom, esperem. O médico está chegando. Podia, doutor, examinar estes homens? Aqueles que não forem reconhecidos como doentes irão para as celas. Os outros ficarão na choça.

– Há sessenta doentes?

– Sim, doutor, com exceção deste, que se recusou a trabalhar.

– O primeiro – diz o médico. – Grandet, o que é que você tem?

– Uma indigestão de carcereiro, doutor. Somos todos homens condenados a longas penas, e a maioria à prisão perpétua, doutor. Nas ilhas não há esperança de fuga. Por isso, o pessoal só agüenta esta vida se houver uma certa elasticidade e compreensão no regulamento. Mas, hoje de manhã, um guarda tomou a liberdade, na frente da gente, de querer bater com um cabo de picareta num colega estimado por todos. Não era um gesto de defesa, já que este homem não tinha ameaçado ninguém. Ele disse que não queria usar uma picareta, nada mais. Essa é a razão da nossa epidemia coletiva, Agora, o senhor que julgue.

O médico abaixa a cabeça, fica pensando por mais de um minuto e diz:

– Enfermeiro, escreva: “Em virtude de uma intoxicação alimentar coletiva, o guarda-enfermeiro fulano tomará as providências necessárias para purgar com vinte gramas de sulfato de sódio todos os transportados que se declararam doentes neste dia. Quanto ao prisioneiro X, que ele seja posto sob observação no hospital, para que se verifique se a sua recusa de trabalho foi feita em posse de todas as suas faculdades mentais”.

Ele dá a volta e vai embora.

– Todos para dentro! – grita o segundo-comandante. – Peguem as suas coisas e não esqueçam as facas.

Neste dia, todos ficam na choça. Ninguém pôde sair, nem o portador de pão. Pelo meio-dia, no lugar da sopa, o guarda-enfermeiro, acompanhado por dois forçados-enfermeiros, chegou com um balde de madeira, cheio de purgativo de sulfato de sódio. Três apenas tiveram que engolir o purgante. O quarto caiu em cima do balde, fingindo uma crise de epilepsia perfeitamente imitada, jogando assim o purgante, o balde e a concha para todos os lados. Assim se encerrou o episódio, com o trabalho que teve o chefe da choça para enxugar o líquido derramado no chão.

Passei a tarde conversando com Jean Castelli. Ele veio comer com a gente. Ele vive associado a um sujeito de Toulon, Louis Gravon, condenado por roubo de peles. Quando lhe falei da fuga, seus olhos brilharam. Disse:

– No ano passado, quase fugi, mas a coisa gorou. Tinha certeza de que você não era daqueles que ficam quietos aqui. Só que falar em fuga nas ilhas é o mesmo que falar hebreu. Por outro lado, acho que você não entendeu ainda os forçados das ilhas. Tais como você os está vendo, 90 por cento se acham relativamente felizes. Se o cara mata alguém, nunca tem uma testemunha; se rouba, a mesma coisa. Qualquer coisa que um sujeito faça, todos se solidarizam para defendê-lo. Os forçados das ilhas têm medo de uma única coisa: que uma fuga dê certo. Porque, aí, sua relativa tranqüilidade fica abalada: investigações constantes, nada de baralho, nada de música – os instrumentos são quebrados nas investigações -, nada de jogo de xadrez e de damas, nada de livros, quer dizer, mais nada! Nada de artesanato, também. Tudo, absolutamente tudo é suprimido. Revistam sem parar. Açúcar, óleo, bife, manteiga, tudo isso desaparece. Os que conseguiram fugir das ilhas sempre foram presos no continente, perto de Kourou. Mas, para as ilhas, a fuga deu certo: os sujeitos puderam sair da ilha onde estavam. De modo que vêm sanções contra os guardas, que se vingam em cima de todo mundo.

Estou ouvindo com a máxima atenção. Nem estou acreditando. Nunca eu tinha pensado no assunto por esse lado.

– Conclusão – diz Castelli -, no dia em que você quiser preparar uma fuga, tome todas as precauções. Antes de conversar com qualquer cara, se não for um amigo íntimo, pense dez vezes.

Jean Castelli, assaltante profissional, é de uma vontade e de urna inteligência fora do comum. Ele detesta a violência. A alcunha dele é “O Antigo”. Por exemplo, ele só se lava com sabão e, se eu me lavei com Palmolive, ele me diz:

– Mas que cheiro de viado, seu! Você se lavou com sabão de mulher!

Infelizmente, ele já tem 52 anos, mas dá prazer ver sua energia de ferro. Ele me diz:

– Você, Papillon, parece que é meu filho. A vida das ilhas não lhe interessa. Você come bem porque é necessário se manter em boa forma, mas nunca vai se acostumar a viver nas ilhas. Parabéns. Entre todos os forçados, somos apenas uma meia dúzia os que pensam assim. Há, é verdade, uma quantidade de homens que pagam fortunas para serem desinternados e poder ir para o continente, pensando em fugir. Mas, aqui, ninguém acredita na fuga.

O velho Castelli me dá conselhos: aprender inglês e, sempre que puder, falar castelhano com um cara que fale essa língua. Ele me emprestou um livro para aprender o castelhano em 24 lições. Um dicionário francês-inglês. Ele é amigo de um marselhês, Gardès, que entende de tudo a respeito de fugas. Já fugiu duas vezes. A primeira, de uma prisão especial portuguesa; a segunda, da Terra Grande. Ele tem sua opinião a respeito da fuga das ilhas; Jean Castelli, também. Gravon, o cara de Toulon, vê também as coisas ao modo dele. Nenhuma dessas opiniões estão de acordo. A partir de agora, tomo a decisão de estudar a situação por mim mesmo e de não falar mais em fuga.

É duro, mas é assim. O único ponto sobre o qual eles concordam é que o jogo só interessa para ganhar dinheiro e que ele é muito perigoso. A qualquer momento, a gente pode ter que entrar numa rixa de faca com o primeiro valentão que encontrar na esquina. Os três são homens de ação e são realmente formidáveis, para a idade que têm: Louis Gravon está com 45 anos e Gardès com quase cinqüenta.

Ontem à noite, tive a oportunidade de mostrar a quase toda a nossa sala a minha maneira de ver as coisas e de agir. Um nanico de Toulouse é desafiado à faca por um cara de Nimes. O sujeito pequeno de Toulouse é alcunhado Sardinha e o corpulento de Nimes, Carneiro. Carneiro está no meio da passagem, de faca na mão:

– Ou você me paga 25 francos por partida de pôquer ou você não joga.

Sardinha responde:

– Nunca se pagou a ninguém para jogar pôquer. Por que é que você vem contra mim e não vai contra os controladores de jogo à marselhesa?

– Não tem que saber por quê. Ou você paga, ou você não joga. Ou então briga.

– Não, não vou brigar.

– Está com medo?

– Estou. Por que vou me arriscar a levar uma facada ou até morrer por causa de um valentão da sua espécie, que nunca tentou fugir? Eu sou um homem de fuga, e não estou aqui para matar nem para me deixar matar.

Todos estamos na expectativa do que vai acontecer. Grandet me diz:

– É verdade que é corajoso, o pequeno, e é um homem de fuga. Pena que não se possa dizer nada.

Abro minha faca e boto debaixo da perna. Estou sentado na rede de Grandet.

– Então, medroso, você vai pagar ou parar de jogar? Responda!

Ele dá um passo na direção do Sardinha. Aí eu grito:

– Feche a matraca, Carneiro, e deixe esse sujeito em paz!

– Você está louco, Papillon? – me diz Grandet.

Sem me mexer, sempre sentado com a faca aberta debaixo da perna, a mão no cabo, digo:

– Não, não estou louco e prestem todos atenção ao que eu vou dizer. Carneiro, antes de lutar com você, o que vou fazer se você exigir, mesmo depois de eu ter falado, deixe que eu diga a você e a todos que, desde que eu cheguei a esta choça, onde somos mais de cem, todos da zona, eu me dei conta com vergonha de que a coisa mais bela, mais honrada, a única verdadeira – a fuga – não é respeitada. Qualquer homem que mostrou que é um homem de fuga, que ele tem peito para jogar a sua vida numa fuga, deve ser respeitado por todos acima de qualquer outra coisa. Quem é que diz o contrário? (Silêncio.) Em todas as leis de vocês, falta uma, fundamental: obrigação para todo mundo, não só de respeitar, mas também de ajudar, de amparar os homens de fuga. Ninguém está obrigado a ir embora e aceito que quase todos vocês tenham decidido ajeitar a sua vida aqui. Mas, se vocês não tiverem a coragem de tentar viver novamente, respeitem pelo menos os que o merecem, os homens de fuga. E, aquele que esquecer esta lei de homem, que espere graves conseqüências. Agora, Carneiro, se você ainda quiser brigar, vamos!

E pulo no meio da sala, de faca na mão. Carneiro joga a sua faca para o lado e diz:

– Você está certo, Papillon, por isso não quero brigar de faca com você, mas vamos sair na mão, para você saber que não sou um covarde.

Deixo minha faca com Grandet. Brigamos durante quase vinte minutos. No fim, com uma cabeçada bem acertada, ganho por pouco. Juntos, nas privadas, lavamos o sangue que pinga das nossas caras. Carneiro diz:

– É verdade que o pessoal se embrutece nestas ilhas. Faz quinze anos que estou aqui e não cheguei a gastar 1 000 francos para tentar ser desinternado. É uma vergonha.

Quando volto para junto dos amigos, Grandet e Galgani me xingam.

– É uma loucura provocar e insultar todo o pessoal, como você fez! Não sei por que cargas d’água ninguém pulou na passagem para pegar na faca contra você.

– Não, meus amigos, não é de espantar. Qualquer homem do nosso meio, quando vê que alguém está realmente certo, concorda com ele.

– Bom – diz Galgani. – Mas, sabe, é melhor não brincar demais com este vulcão.

A noite toda, homens vieram falar comigo. Aproximam-se de mim como por acaso, falam de qualquer coisa e antes de se retirar dizem:

– Estou de acordo com o que você disse, Papi.

Este incidente fortaleceu a minha situação junto aos homens.

A partir de então, os meus colegas me consideram provavelmente como um homem do meio deles, mas me vêem como uma pessoa que não se dobra diante das coisas sem analisá-las e discuti-las. Me dou conta de que, quando sou eu o controlador dos jogos, há menos brigas. E percebo que, quando dou uma ordem, obedecem logo.

O controlador do jogo, como já disse, retira 5 por cento em cada lance vitorioso. Fica sentado num banco, encostado na parede, para se proteger contra um assassino sempre possível. Um cobertor nos joelhos esconde uma faca aberta. Em volta dele, em círculo, trinta, quarenta e às vezes até cinqüenta jogadores de todas as regiões da França, muitos estrangeiros, inclusive árabes. O jogo é muito fácil: há o banqueiro e o cortador. Toda vez que o banqueiro perde, ele passa as cartas para o vizinho. Joga-se com 52 cartas. O cortador divide o maço e guarda uma carta escondida. O banqueiro tira uma carta e descobre. Aí fazem as apostas. Joga-se tanto para o corte, como para a banca. Quando as apostas são depositadas em montinhos, começa-se a tirar as cartas uma por uma. A carta que tem o mesmo valor que uma das duas em cima da mesa perde. Por exemplo, o cortador escondeu uma dama e o banqueiro tira um cinco. Se sair uma dama antes de um ‘5, o corte perde. Se for o contrário e sair um 5, é a banca que perde. O controlador do jogo deve conhecer a importância de cada aposta e lembrar-se de quem é cortador ou banqueiro, para saber para quem vai o dinheiro. Nada fácil. £ necessário defender os fracos contra os fortes, que estão sempre tentando abusar do prestígio. Quando o controlador de jogos toma uma decisão a respeito de um caso duvidoso, essa decisão tem que ser aceita sem piscar.

Durante a noite mataram um italiano chamado Carlino. Vivia com um rapaz que lhe servia de mulher. Os dois trabalhavam num jardim. Ele devia saber que sua vida estava em perigo, já que, quando dormia, o rapaz ficava de vigia, e vice-versa. Debaixo da rede, eles tinham colocado latas vazias, para que ninguém pudesse se aproximar deles sem fazer barulho. E assim mesmo foi assassinado. Ao seu grito seguiu-se imediatamente um barulhão horrível de latas vazias chutadas pelo assassino.

Grandet dirigia uma partida de marselhesa, com mais de trinta jogadores em volta dele. Eu estava batendo papo perto do jogo. O grito e o barulho das latas vazias interromperam o jogo. Todos se levantam e perguntam o que foi que aconteceu. O jovem amigo de Carlino não viu nada e Carlino deixou de respirar. O chefe da choça pergunta se deve chamar os guardas. Não. Dá para avisá-los amanhã na chamada; já que está morto, não há mais nada a fazer por ele. Grandet fala:

– Ninguém viu nada. Você também não, menino – diz ao colega de Carlino. – Amanhã, quando acordar, você se dará conta de que ele está morto.

E pronto! Vamos, o jogo continua. Os jogadores, como se nada tivesse acontecido, recomeçam a grita: “Cortador! não, banqueiro!”, etc.

Aguardo com impaciência para saber o que acontece quando os guardas descobrem um assassinato. Às 5 e meia, primeiro toque de sino. Às 6 horas, segundo toque e café. Às 6 e meia, terceiro toque e saímos para a chamada, como todo dia. Mas hoje é diferente. No segundo toque, o chefe da choça diz ao guarda que acompanha o distribuidor de café:

– Chefe, mataram um homem.

– Quem é?

– Carlino.

– Está bem.

Dez minutos mais tarde, chegam seis guardas:

– Onde está o morto?

– Aí.

Eles notam o punhal fincado nas costas de Carlino através da lona. A arma é removida.

– A maca. Podem levar ele.

Dois homens o levam numa maca. O dia desponta. O terceiro sino toca. Sempre com a faca ensangüentada na mão, o guarda-chefe manda:

– Todo mundo fora, em fila, para a chamada. Hoje não aceitamos doentes deitados.

Todo o pessoal sai. Na chamada da manhã, os comandantes e os guardas-chefes estão sempre presentes. Fazem a chamada. Chegando a Carlino, o chefe da choça responde:

– Morto durante a noite, foi levado para o necrotério.

– Está bem – diz o guarda que faz a chamada.

Depois de todo mundo ter respondido presente, o chefe do campo levanta a faca para cima e pergunta:

– Alguém conhece esta faca?

Ninguém responde.

– Alguém viu o assassino?

Silêncio absoluto.

– Então, ninguém sabe de nada, como de costume. Passem na minha frente, com as mãos estendidas, e depois cada um vai para o trabalho. É sempre a mesma coisa, meu comandante, não dá para saber quem fez o negócio.

– Assunto arquivado – diz o comandante. – Guarde a faca, prenda nela uma ficha indicando que foi usada para matar Carlino.

É só. Entro na choça e deito para dormir, pois não preguei o olho a noite toda. Quase adormecendo, penso que um forçado não é grande coisa. Mesmo se foi assassinado covardemente, ninguém quer se chatear para saber. Para a administração um forçado não é absolutamente nada. Menos que um cachorro.

Decidi começar segunda-feira meu trabalho de limpador de latrinas. Às 4 e meia da madrugada, vou sair com um colega para esvaziar as latrinas do bloco A, as nossas. O regulamento exige que, para esvaziá-las, sejam levadas até o mar. Mas, pagando um condutor de búfalos, ele nos espera num lugar do planalto, de onde um estreito canal cimentado desce até o mar. Então, rapidamente, em menos de vinte minutos, a gente esvazia todas as tinas neste canal e, para empurrar a matéria, joga-se 3 000 litros de água do mar, trazidos num enorme barril. O transporte da água custa 20 francos por dia, pagos ao condutor de búfalos, um preto das Antilhas simpático. A descida da matéria é ajudada com uma vassoura muito dura. Por ser meu primeiro dia de trabalho, carregar as tinas com duas barras de madeira me cansou os pulsos. Mas vou me acostumar rapidamente.

Meu novo colega é muito prestativo, mas Galgani me informou que é um homem extremamente perigoso. Teria cometido, parece, sete assassinatos nas ilhas. A viração dele é vender merda. De fato, cada jardineiro tem que fazer seu estrume. Para isso, ele cava uma fossa, bota dentro folhas secas e capim e o meu amigo das Antilhas leva clandestinamente uma ou duas tinas ao jardim indicado. Claro que isso não pode ser feito por uma pessoa só, e tenho que ajudá-lo. Mas sei que é uma falta grave, pois pode haver contaminação das verduras e difundir a disenteria tanto entre os guardas como entre os presos. Resolvo que um dia, quando conhecê-lo melhor, vou impedi-lo de fazer isso. Evidentemente, vou pagar-lhe o que ele perder por interromper seu comércio. Além disso, ele trabalha chifres de boi. No que diz respeito à pesca, ele me diz que não pode fazer nada, mas que, no cais, Chapar ou algum outro podem me ajudar.

Pronto, virei limpador de latrinas. Acabado o serviço, tomo um bom banho, boto um calção e vou todo dia pescar em liberdade onde bem entendo. Só tenho uma obrigação: estar ao meio-dia no campo. Graças a Chapar, não me faltam nem varas nem iscas. Quando volto com peixes enfiados pelas brânquias num arame, é raro que, das casinhas, as esposas dos guardas não me chamem. Todas sabem o meu nome:

– Papillon, me vende 2 quilos.

– Está doente?

– Não.

– Está com uma criança doente?

– Não.

– Então não vendo meu peixe.

Consigo pegar grandes quantidades de peixe que dou aos amigos do campo. Troco por pão de metro, verduras ou frutas. Meus amigos comem peixe pelo menos uma vez por dia. Um dia; estou de volta com uma dúzia de grandes lagostas e 7 ou 8 quilos de peixe, passo em frente da casa do comandante Barrot. Uma mulher bastante gorda me diz:

– Você teve sorte na pesca, Papillon. O mar está ruim e ninguém consegue pegar nada. Já faz quinze dias que não como peixe. É pena que você não venda. Meu marido me disse que você se recusa a vender às esposas dos guardas.

– É verdade, senhora. Mas com a senhora pode ser diferente.

– Por quê?

– Porque está gorda e é possível que carne seja ruim para a senhora.

– É verdade, me disseram que só devia comer verduras e peixe cozido. Mas aqui não é possível.

– Pronto, senhora, tome estas lagostas e estes peixes.

E dou para ela mais ou menos 2 quilos de peixe.

A partir desse dia, toda vez que fazia uma pesca grossa, dava para ela o necessário para fazer um bom regime. Ela, que sabe que tudo se vende nas ilhas, nunca me disse nada a não ser “obrigada”. Teve razão, pois adivinhou que, se me oferecesse dinheiro, eu levaria a mal. Mas freqüentemente ela me convida para entrar na casa dela. Oferece-me um licor ou um copo de vinho branco. Quando recebe “figatelli” da Córsega, ela me dá. Nunca a senhora Barrot fez perguntas sobre o meu passado. Apenas uma frase, um dia, lhe escapou, a respeito dos trabalhos forçados:

– É verdade que não dá para fugir das ilhas, mas é melhor estar aqui, num clima sadio, do que apodrecer como um bicho na prisão da Terra Grande.

Foi ela quem me explicou a origem do nome das ilhas: numa epidemia de febre amarela em Caiena, alguns padres e as freiras de um convento se refugiaram nas ilhas e todos se salvaram. Daí veio o nome de Ilhas da Salvação.

Graças à pesca, vou para qualquer lugar. Já faz três meses que sou limpador de latrinas è conheço a ilha melhor do que ninguém. Vou observar os jardins, a pretexto de oferecer meu peixe em troca de verduras e frutas. O jardineiro de um jardim localizado perto do cemitério dos guardas é Matthieu Carbonieri, que faz parte da minha patota. Ele trabalha sozinho e pensei que, mais tarde, a gente poderia enterrar ou preparar uma jangada no jardim dele. Mais dois meses e o comandante irá embora. Aí vou poder agir livremente.

Estou organizado: limpador titular das latrinas, saio como se fosse Para fazer a limpeza, mas quem faz no meu lugar é o cara das Antilhas, mediante dinheiro, é claro. Travei relações de amizade com dois cunhados condenados à prisão perpétua, Narric e Quenier. São chamados “os cunhados do carrinho”. Contam que foram acusados de ter transformado em bloco de cimento um cobrador que tinham assassinado. Testemunhas teriam visto eles transportarem num carrinho de mão um bloco de cimento que teriam jogado no Marne ou no Sena. O inquérito estabeleceu que o cobrador foi até a casa deles para receber uma duplicata e, depois, ninguém mais o viu. Eles negaram a vida toda. Até na prisão, eles se diziam inocentes. Embora o corpo nunca tenha sido encontrado, foi achada a cabeça embrulhada num lenço. E na casa deles havia lenços do mesmo tecido e da mesma linha, “conforme os peritos”. Mas os advogados e eles mesmos provaram que foram feitos lenços com milhares de metros dessa fazenda. Todo mundo tinha lenços iguais àquele. Finalmente, os dois cunhados pegaram a prisão perpétua e a mulher de um dos dois, irmã do outro, pegou vinte anos de reclusão.

Consegui travar relações com eles. Já que são pedreiros, eles têm entrada e saída livres na oficina de trabalho. Eles poderiam talvez, peça por peça, tirar o necessário para fazer uma jangada. Agora tenho que convencê-los.

Ontem me encontrei com o médico. Levava um peixe de pelo menos 20 quilos, de carne delicada, chamado cherna. Ele e eu caminhamos na direção do planalto. Na metade do caminho, sentamos num murinho. Ele me diz que com a cabeça desse peixe se faz uma sopa deliciosa. Ofereço-lhe a cabeça, com um grande pedaço de carne. Fica espantado com meu gesto e diz:

– Você não guarda ressentimento, Papillon.

– Quer dizer, doutor, este gesto meu, confesso que não o faço por mim. Sou grato ao senhor porque fez o possível para o meu amigo Clousiot.

A gente conversa um pouco e ele me diz:

– Bem que você gostaria de fugir, não é? Você não é um forçado. Parece que você é outra coisa.

– O senhor tem razão, doutor, não pertenço aos trabalhos forçados, estou aqui apenas de passagem.

Começa a rir. Aí ataco:

– Doutor, o senhor acredita que um homem possa se regenerar?

– Acredito.

– O senhor admitiria a idéia de que eu possa viver na sociedade, sem ser um perigo para ela, e me transformar em cidadão honesto?

– Acredito sinceramente que sim.

– Então, por que o senhor não me ajudaria para chegar a isso?

– Como?

– Fazendo com que eu seja mandado ao continente como tuberculoso.

Ele confirma, então, alguma coisa de que eu já tinha ouvido falar:

– Não é possível e lhe aconselho a nunca fazer isso. É perigoso demais. A administração só desinterna um homem por doença depois de ele ter ficado pelo menos um ano no pavilhão correspondente à doença.

– Por quê?

– É um pouco vergonhoso dizer isso, mas penso que é para que o sujeito em questão, se for um simulador, saiba que ele tem toda a probabilidade de ser contaminado pela coabitação com os outros doentes e que ele adoeça mesmo. Portanto, nada posso fazer por você.

Desse dia em diante, ficamos bastante camaradas, o curandeiro e eu. Até o dia em que o meu amigo Carbonieri quase foi morto por causa dele. De fato, Matthieu Carbonieri, de comum acordo comigo, tinha aceito ser cozinheiro dos guardas-chefes. Era para ver se dava para roubar três barris de vinho, óleo ou vinagre e achar um meio de amarrá-los e sair para o mar. Isso, claro, depois da saída de Barrot. As dificuldades eram muitas, pois era necessário, na mesma noite, roubar os barris, transportá-los até o mar sem que ninguém nos visse nem ouvisse, e juntá-los com cabos. O que só seria possível numa noite de tempestade, com vento e chuva. Mas, com vento e chuva, o mais difícil seria botar essa jangada no mar, que forçosamente estaria muito agitado.

Carbonieri é agora cozinheiro. O chefe do refeitório dos guardas lhe dá três coelhos para preparar para o dia seguinte, um domingo. Carbonieri manda, sem a pele felizmente, um coelho para o irmão, no cais, e dois para a gente. E então ele mata três grandes gatos e faz um guisado fantástico.

Infelizmente para ele, no dia seguinte, o médico é convidado para comer e, saboreando o coelho, diz:

– Senhor Filidori, dou-lhe os parabéns pelo cardápio, este gato é uma delícia.

– Não brinque comigo, doutor, estamos comendo três ótimos coelhos.

– Não – diz o médico, teimoso como uma mula. – São gatos. Está vendo as costelas que estou comendo? Elas são achatadas e as dos coelhos são redondas. Portanto, não há erro possível: estamos comendo gato.

– Virgem, mãe de Cristo! – diz o corso. – Estou com um gato na barriga.

E saí correndo para a cozinha, bota o revólver na cara de Matthieu e diz:

– Por mais que você seja napoleonista como eu, eu vou te matar porque você me fez comer um gato.

Tinha o olhar de um louco e Carbonieri, sem saber como a coisa viera à tona, responde:

– Se o senhor acha que aquilo que me deu é gato, não é culpa minha.

– Eu lhe dei coelhos.

– Então foram coelhos que eu cozinhei. Olhe, as peles e as cabeças ainda estão aqui.

Perplexo, o guarda olha para as peles e as cabeças dos coelhos.

– Então o médico não sabe o que diz?

– É o médico que está dizendo isso? – pergunta Carbonieri, aliviado. – Ele está brincando com o senhor. Diga que isso não é brincadeira que se faça.

Acalmado, convencido, Filidori volta para a sala de jantar e diz ao médico:

– Pode falar, pode falar quanto quiser, curandeiro. É o vinho que lhe subiu à cabeça. Achatadas ou redondas as suas costelas, eu sei que foi coelho que eu comi. Acabo de ver os três ternos deles e as três cabeças.

Matthieu tinha escapado por pouco. Mas ele achou melhor se demitir do cargo de cozinheiro alguns dias mais tarde.

Aproxima-se o dia em que vou poder agir. Mais algumas semanas e Barrot irá embora. Ontem fui visitar sua gorda esposa, que, diga-se de passagem, emagreceu muito graças ao regime de peixe cozido e verduras frescas. Essa mulher simpática me convida para entrar na casa dela e me oferece uma garrafa de vermute. Na sala há várias malas que estão arrumando. Estão preparando a viagem. A comandanta, como todo mundo a chama, me diz:

– Papillon, não sei como agradecer a sua gentileza comigo nesses últimos meses. Eu sei que, em alguns dias de pesca fraca, você me deu tudo o que conseguiu pescar. Agradeço muito. Graças a você, estou me sentindo muito melhor, emagreci 14 quilos. O que poderia fazer para retribuir?

– Uma coisa difícil para a senhora. Me conseguir uma boa bússola. Pequena, mas de precisão.

– O que você está pedindo Papillon, não é muita coisa e, ao mesmo tempo, é. E, em três semanas, isso vai ser muito difícil.

Oito dias antes da partida, esta nobre mulher, aborrecida por não ter conseguido uma boa bússola, teve a gentileza de tomar um barco costeiro e ir até Caiena. Quatro dias depois, ela voltava com uma magnífica bússola antimagnética.

O comandante e a comandanta Barrot saíram hoje pela manhã. Ontem, ele entregou o comando a um oficial da mesma patente dele, da Tunísia, chamado Prouillet. Boa notícia: o novo comandante manteve Dega no seu cargo de contador geral. É muito importante para todo mundo, principalmente para mim. No discurso que fez para os forçados reunidos em formação no pátio grande, o novo comandante deu a impressão de ser um homem muito enérgico, mas inteligente. Entre outras coisas, ele disse:

– A partir de hoje, assumo o comando das Ilhas da Salvação. Depois de ter verificado que os métodos do meu predecessor tiveram resultados positivos, não vejo motivos para alterar o que existe. Se, pelo seu comportamento, vocês não me obrigarem a isso, não vejo razão para modificar o seu modo de viver.

Foi com uma alegria bem justificada que vi partirem a comandanta e seu marido, embora estes cinco meses de espera forçada tenham passado com uma rapidez incrível. Esta falsa liberdade de que gozam quase todos os forçados das ilhas, os jogos, a pesca, as conversas, as novas relações, as discussões, as brigas são derivativos poderosos e a gente não tem tempo para se aborrecer.

Mas não me deixei realmente envolver por este ambiente. Toda vez que adquiria um novo amigo, eu me fazia a seguinte pergunta: “É candidato à fuga? Poderia ajudar um outro a preparar uma evasão, se ele mesmo não quiser partir?”

Vivo só para isto: fugir, fugir, sozinho ou acompanhado, mas fugir. É uma idéia fixa, da qual não falo com ninguém, conforme o conselho de Jean Castelli, que sigo à risca, E, sem fraquejar, cumprirei o meu ideal: fugir.