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UMA JANGADA DENTRO DE UM TÚMULO
Com cinco meses, já cheguei a conhecer mesmo os menores recantos da ilha. E agora estou convencido de que o jardim junto ao cemitério onde trabalhava meu amigo Carbonieri – agora, ele não está mais lá – é o ponto mais seguro para preparar uma jangada. Então peço a Carbonieri que volte ao trabalho do jardim, sem ajudante. Ele concorda. Graças a Dega, confiam-lhe outra vez o jardim.
Hoje de manhã, quando passo em frente à casa do novo comandante, com uma enfiada de pescados num arame, ouço um jovem forçado, moço de serviços, dizer à mulher dele, ainda moça:
– É este aqui, senhora comandanta, que trazia peixe todo dia Para a Sra. Barrot.
E ouço a bonita morena, de tipo argelino, pele bronzeada, responder:
– Então, o Papillon é ele? Ela se vira para mim e diz:
– Comi as lagostas deliciosas que você pescou, foi a Sra. Barrot que me deu. Entre aqui em casa. Aceite um copo de vinho e um pouco de queijo de cabra, que eu recebi há pouco tempo da França.
– Não, obrigado, minha senhora.
– Por quê? Quando era a Sra. Barrot, você entrava; por que, agora que sou eu, você não quer entrar?
– É que o marido dela tinha dado autorização para eu entrar.
– Papillon, meu marido é comandante no campo, na casa quem manda sou eu. Pode entrar sem medo.
Percebo que aquela morena bonita, tão decidida, pode ser ou útil ou perigosa. Entro.
Na mesa da sala de jantar, ela me serve um prato de presunto defumado com queijo. Sem fazer cerimônia, ela se senta à minha frente, me oferece vinho, depois café e um delicioso rum da Jamaica.
– Papillon – me diz ela -, apesar dos rebuliços da mudança dela e da nossa chegada, a Sra. Barrot teve tempo de me falar de você. Sei que ela era a única mulher das ilhas que ganhava peixe de você. Espero que você me faça a mesma gentileza.
– É que ela estava doente, mas a senhora está com boa saúde, pelo que vejo.
– Não sei mentir, Papillon. É verdade, tenho boa saúde, mas vim de uma cidade de porto e adoro peixe. Eu sou de Oran. Mas fico sem jeito porque sei também que você não vende seu peixe. E isso é pena.
Em suma, ficou entendido que eu traria peixe para ela.
Eu estava fumando um cigarro, depois de dar a ela 3 bons quilos de salmonetes e seis lagostins, quando chega o comandante. Ele me vê e diz:
– Já disse, Juliette, que, fora o moço de serviços, nenhum preso pode entrar aqui em casa.
Levanto, mas ela diz:
– Fique sentado. Este preso é o homem que a Sra. Barrot me recomendou quando foi embora. Portanto, você não tem nada a objetar. Ninguém mais além dele vai entrar aqui. Por outro lado, ele vai me trazer peixe quando eu precisar.
– Está bem – diz o comandante. – Como é que você se chama?
Vou me levantando para falar com ele, mas Juliette põe a mão no meu ombro e me faz sentar outra vez:
– Aqui – diz ela – é a minha casa. O comandante não é mais o comandante, é meu marido, o Sr. Prouillet.
– Obrigado, minha senhora. Meu nome é Papillon.
– Ah! Ouvi falar de você e de sua fuga há mais de três anos do hospital de Saint-Laurent-du-Maroni. Aliás, um dos vigias que você atacou naquela fuga é simplesmente sobrinho meu e da sua protetora.
Diante disso, Juliette começa a rir, um riso jovem cheio de frescor, e diz:
– Então foi você que atacou Gaston? Isso não altera nada nas nossas relações.
O comandante, que continuava em pé, me diz:
– É incrível a quantidade de morte e de assassinatos que se cometem todos os anos nas ilhas. Em muito maior número do que na Terra Grande. A que você atribui isso, Papillon?
– Aqui, senhor comandante, como os homens não podem fugir, vivem cheios de raiva. Vivem uns por cima dos outros há longos anos e é claro que se formam ódios e amizades indestrutíveis. Além disso, só menos de 5 por cento dos assassinatos é que são esclarecidos, o que deixa os assassinos quase certos da impunidade.
– Sua explicação é lógica. Há quanto tempo você pesca, e que trabalho você faz para ter esse direito?
– Sou limpador de latrinas. Às 6 da manhã, já acabei o serviço e posso pescar.
– O resto do dia inteiro? – pergunta Juliette.
– Não, ao meio-dia tenho que estar de volta ao campo e só posso sair outra vez das 3 às 6. Isso é chato, porque, conforme as horas da maré, às vezes eu perco a pesca.
– Você vai dar a ele uma autorização especial, não é, querido? – diz Juliette, virando-se para o marido. – Das 6 da manhã às 6 da tarde, assim ele poderá pescar à vontade.
– Está certo – responde ele.
Vou embora, contente comigo mesmo por ele ter concordado, pois essas três horas, do meio-dia às 3, são preciosas. É a hora da sesta e quase todos os vigilantes dormem nessas horas, a vigilância é afrouxada.
Juliette tomou conta de nós, de mim e da minha pesca. Ela chega ao ponto de mandar o moço de serviços ver onde eu estou pescando, para vir buscar os peixes. Muitas vezes, ele chega me dizendo: “A comandanta mandou buscar tudo o que você pescou, porque ela tem convidados para as refeições e quer fazer um cozido de peixes”. Enfim, ela toma conta de minha pesca e até chega a me pedir que pesque este ou aquele peixe ou que mergulhe para pegar lagostins. Isso atrapalha muito o menu da cozinha dos amigos, mas em compensação sou protegido como nenhum outro. Ela também me faz gentilezas: “Papillon, a maré é à 1 hora?” “É sim, senhora.” “Venha comer em casa, assim você não tem que ir até o campo.” E eu como na casa dela, nunca na cozinha, sempre na sala de jantar. Sentada à minha frente, ela me serve a comida e a bebida. Não é tão discreta como a Sra. Barrot. Muitas vezes, ela me faz perguntas sutis sobre o meu passado. Desvio sempre a conversa do assunto que a interessa mais, que é a minha vida em Montmartre, e conto minha juventude e minha infância. Nessa hora, o comandante dorme em seu quarto.
Uma manhã, depois de ter feito uma boa pesca, bem cedo, e de ter apanhado uns sessenta lagostins, passo pela casa dela às 10 horas. Encontro-a sentada, com um roupão branco, e uma outra moça enrolando o cabelo dela. Cumprimento-a e ofereço-lhe uma dúzia de lagostins.
– Não – diz ela -, me dê todos. Quantos você tem?
– Sessenta.
– Ótimo, ponha-os ali, por favor. Quantos peixes você precisa guardar para você e os seus amigos?
– Oito.
– Então pegue os seus oito e dê o resto ao rapaz, que ele vai colocá-los em lugar fresco.
Fico sem saber o que dizer. O jeito como ela me tratou foi de uma intimidade que nunca tivera antes, e ainda por cima na frente de outra mulher, que sem dúvida irá correndo comentar isso por aí. Viro-me para ir embora, sentindo um forte encabulamento, mas ela diz:
– Fique aqui à vontade, sente-se e tome um pouco de licor. Você deve estar com calor.
Essa mulher autoritária me deixa tão sem jeito, que sento e fico. Saboreio devagar o licor, fumando um cigarro e observando a outra jovem que penteia a comandanta e que de vez em quando dá uma olhada para mim. A comandanta, que está com um espelho na mão, percebe isso e diz à outra:
– É bonitão, este meu xodó, hem, Simone? Vocês estão todas com ciúmes de mim, é ou não é?
E ambas começam a rir. Eu fico que não sei onde me esconder. Como um bobo, digo:
– Felizmente o seu xodó, como a senhora diz, não tem nada de perigoso e, na situação em que está, não pode ter xodó por ninguém.
– Não venha me dizer que você não tem um xodó por mim – diz a argelina. – Ninguém conseguiu domar um leão como você, mas eu faço o que quero com você. Não pode ser sem motivo, hem, Simone?
– Eu não sei qual o motivo – diz Simone -, mas o que sei é que você, Papillon, é um bicho do mato com todo o mundo, menos com a comandanta. Tanto assim, que na semana passada você estava carregando mais de 15 quilos de peixe, como me contou a mulher do guarda-chefe, e se negou a vender a ela dois peixinhos de nada, que ela estava com uma vontade louca de comprar porque não havia carne no açougue.
– Ah, essa que você está me contando é a maior, Simone!
– E você sabe o que ele disse à Sra. Kargueret outro dia? – continua Simone. – Ela vê ele passar com uns lagostins e uma moréia grande: “Me venda essa moréia, ou a metade dela, Papillon. Você sabe que nós da Bretanha sabemos fazer um prato muito gostoso com esse peixe”. E ele: “Não é só na Bretanha que se aprecia a moréia, minha senhora. Muita gente, inclusive o pessoal de Ardèche, sabe muito bem, desde o tempo dos romanos, que a moréia é uma iguaria fina”. E continuou andando sem lhe vender nada.
Elas se torcem de rir.
Volto para o campo furioso e à noite, na choça, conto a história toda.
– Muito cuidado – diz Carbonieri. – Essa dona põe você em perigo. Vá lá o menos possível e só quando tiver certeza de que o comandante está em casa.
Todo mundo é da mesma opinião. Resolvo fazer isso mesmo.
Descobri um marceneiro de Valence. Praticamente conterrâneo meu. Ele matou um guarda-florestal. É jogador apaixonado, sempre endividado: passa o dia fabricando peças de artesanato e a noite perdendo o que ganhou. Muitas vezes, ele fica de fornecer um objeto que ainda vai fazer para compensar o que pede emprestado e perde. Então, abusam dele, e por uma caixinha de pau-rosa de 300 francos pagam-lhe 150 ou 200 francos. Resolvi falar com ele.
Um dia, na lavanderia, eu digo a ele:
– Quero falar com você hoje à noite, espero nas privadas. Faço um sinal.
À noite nos encontramos a sós, para falar sossegados. Digo a ele;
– Bourset, somos conterrâneos, sabe?
– Essa não! Como assim?
– Você não é de Valence?
– Sou.
– E eu sou de Ardèche, por isso somos conterrâneos.
– Bem, e daí?
– Daí que eu não quero que o explorem quando você fica devendo dinheiro e eles querem te pagar a metade do valor de um objeto que você fez. Traga o objeto para mim, eu consigo o preço justo. Só isso.
– Obrigado – diz Bourset.
A toda hora entro em cena para ajudá-lo. Ele tem sempre problemas com seus credores. Consigo arranjar sempre tudo bem, até o dia em que ele tem uma dívida com Vicioli, bandoleiro da Córsega, que é um dos companheiros com quem me entendo bem. Fico sabendo do caso através de Bourset, que vem me contar que Vicioli lhe faz ameaças se ele não pagar os 700 francos que deve, que no momento está fabricando uma pequena escrivaninha quase acabada, mas não sabe quando poderá acabá-la porque é um trabalho escondido. Realmente, não se tem autorização para fazer móveis muito grandes por causa da quantidade de madeira de que necessitam. Respondo a Bourset que vou pensar no caso. E, em combinação com Vicioli, armamos uma história.
Caberá a Vicioli fazer pressão sobre Bourset e mesmo ameaçá-lo do pior. Aí caberá a mim entrar em cena e salvar Bourset. E assim fazemos. Desde esse caso – que, para Bourset, fui eu que resolvi -, Bourset só acredita em mim e me devota uma confiança absoluta. Pela primeira vez na sua vida de forçado, ele pode dormir descansado. Então, resolvo arriscar algo com ele.
Uma noite, digo a ele:
– Dou 2 000 francos se você fizer o que eu lhe pedir: uma jangada para dois homens, feita em peças desmontadas.
– Escute, Papillon, eu não faria isso para ninguém, mas por você me disponho a arriscar dois anos de reclusão, se me pegarem. Só tem uma coisa: não posso tirar peças de madeira tão grandes da marcenaria.
– Já tenho quem vai se encarregar disso.
– Quem?
– Os caras do carrinho, Naric e Quenier. Qual é o teu plano de trabalho?
– Primeiro é preciso fazer um desenho com escala, depois as peças uma por uma, com chanfraduras para que tudo se encaixe perfeitamente. O difícil é achar madeira que flutue bem, porque nestas ilhas tudo é madeira dura, que não flutua.
– Quando é que você me dá uma resposta?
– Daqui a três dias.
– Você quer ir embora comigo?
– Não.
– Por quê?
– Tenho medo dos tubarões e de me afogar.
– Você me promete fazer tudo o que puder para me ajudar?
– Juro que sim, pela vida dos meus filhos. Só tem uma coisa, é que vai demorar um bocado.
– Escute bem: desde já, eu vou lhe preparar uma defesa para caso de imprevisto. Vou copiar o desenho da jangada eu mesmo numa folha de caderno. Embaixo eu escrevo: “Bourset, se você não quiser ser assassinado, fabrique uma jangada igual à do desenho acima”. Mais tarde, eu vou lhe dar por escrito as ordens para a execução de cada peça. Cada peça que terminar, você deposita no local que eu vou lhe dizer. A peça será levada embora. Não procure saber por quem, nem quando (com isso, Bourset parece aliviado). Assim eu evito que você seja torturado, se pegarem, e você só arrisca um mínimo de uns seis meses.
– E se for você que eles pegarem?
– Então será o contrário. Eu confesso que sou o autor dos bilhetes. Você, é claro, guarde bem as ordens escritas. Está prometido?
– Está.
– Você não está com medo?
– Não, não me assusto mais, e fico contente de ajudar você. Eu ainda não disse nada a ninguém. Primeiro espero a resposta de
Bourset. E é só uma longa e interminável semana mais tarde que consigo falar com ele a sós, na biblioteca. Não há mais ninguém. É um domingo de manhã. Na lavanderia, no pátio, o jogo está no auge. Uns oitenta jogadores e outro tanto de curiosos.
Imediatamente ele me enche o coração de sol:
– O mais difícil era ter certeza de conseguir madeira leve e seca em quantidade suficiente. Resolvi o problema bolando uma espécie de armação de madeira que será forrada de cocos secos, sem tirar a casca de fibra, é claro. Não há nada mais leve que essa fibra e a água não consegue penetrar nela. Quando a jangada estiver pronta, fica a seu cargo conseguir um número suficiente de cocos para pôr dentro. Então, amanhã faço a primeira peça. Vai me levar uns três dias. A partir de quinta-feira, ela pode ser retirada por um dos cunhados, logo na primeira calmaria. Eu nunca começarei uma nova peça antes que a anterior tenha sido retirada da oficina. Está aqui o desenho que eu fiz, copie e me escreva a carta que você prometeu. Você já falou com os caras do carrinho?
– Não, ainda não, eu estava esperando a sua resposta.
– Pronto, a minha resposta é sim.
– Obrigado, Bourset, não sei como lhe agradecer. Olhe, tome 500 francos.
Aí, então, me olhando bem nos olhos, ele me diz:
– Não, guarde o seu dinheiro. Se você chegar à Terra Grande, vai precisar dele para depois você dar o fora de lá também. A partir de hoje, eu não vou mais jogar até que você tenha ido embora. Com alguns trabalhos, sempre dá para eu pagar os cigarros e o de comer.
– Por, que você não aceita?
– Porque eu não faria isso nem por 10 000 francos. Estou arriscando alto, mesmo com as precauções tomadas. Só que, de graça, se faz. Você me ajudou, você é o único que me estendeu a mão. Mesmo se me dá medo, fico contente de ajudar você a voltar a ser livre.
Vou fazendo a cópia do desenho numa folha de caderno e sinto vergonha diante de tanta nobreza ingênua. Nem passou pela cabeça dele que minhas ações a favor dele eram interesseiras e com segunda intenção. Sou obrigado a dizer a mim mesmo, para subir no meu Próprio conceito, que preciso fugir a qualquer preço, e mesmo, se for o caso, ao preço de situações difíceis e nem sempre bonitas. Durante a noite, falo com Naric, apelidado de “Boa-Praça”, o qual, mais tarde, ficou de pôr o seu cunhado a par da história. Ele me diz sem hesitar:
– Pode contar comigo para retirar as peças da oficina. Só que a gente não pode se apressar, porque só dá para retirar quando se sai com uma quantidade grande de material para fazer um trabalho de marcenaria na ilha. Em todo caso, prometo que não vamos perder nenhuma oportunidade.
Certo. Falta falar com Matthieu Carbonieri, porque é com ele que eu quero cair fora daqui. Ele concorda cem por cento.
– Matthieu, já encontrei o homem que vai me fabricar a jangada, já encontrei o homem que vai retirar as peças da oficina. A seu cargo fica descobrir no seu jardim o local para enterrar a jangada.
– Não, é perigoso num canteiro de legumes, porque de noite alguns guardas vão roubar legumes e, se passam por cima e sentem que está oco por baixo, acabamos apanhados como fujões. Vou fazer um esconderijo numa parede de sustentação, retirando uma pedra grande e fazendo uma espécie de pequena gruta. Assim, cada vez que me chega uma peça, é só eu levantar a pedra e recolocá-la depois de esconder a madeira.
– É para levar as peças diretamente para o seu jardim?
– Não, seria perigoso demais. Os caras do carrinho não têm nada de justificável a fazer no meu jardim, o melhor é combinarmos que de cada vez eles a depositem em um lugar diferente, não muito longe do meu jardim.
– Entendido.
Tudo parece estar acertado. Só faltam os cocos. Vou ver como é que poderei, sem chamar atenção, preparar uma quantidade suficiente.
A essa altura, sinto-me renascer. Só me falta falar com Galgani e com Grandet. Não tenho o direito de me calar, porque eles podem ser acusados de cumplicidade. Normalmente, eu deveria me separar deles oficialmente para viver sozinho. Quando digo a eles que vou preparar uma fuga e que devo me separar deles, eles me xingam e recusam categoricamente:
– Prepare a sua fuga o quanto antes. Quanto a nós, a gente se arranja por aqui mesmo. Até lá, fique com a gente, não será a primeira vez.
Já faz um mês que a fuga está se armando. Já recebi sete peças, das quais duas grandes. Fui ver a parede de sustentação onde Matthieu cavou o esconderijo. Não se vê que a pedra foi mexida, porque ele toma o cuidado de pregar musgo em volta. O esconderijo é perfeito, mas a cavidade me parece muito pequena para abrigar tudo. Enfim, por enquanto tem lugar.
O fato de estar armando uma fuga me dá um moral formidável.
Como mais do que nunca, e a pesca me mantém em forma física perfeita. Além disso, todas as manhãs pratico mais de duas horas de cultura física nos rochedos. Faço funcionarem sobretudo as pernas, porque a pesca já me faz funcionarem os braços. Descobri um troço bom para as pernas: avanço até mais longe do que faço para pescar e as ondas vêm bater contra as minhas coxas. Para agüentá-las e manter o equilíbrio, contraio os músculos. O resultado é excelente.
Juliette, a comandanta, continua sempre muito amável comigo, mas percebeu que só entro na casa dela quando o marido está. Ela me disse isso francamente e, para me deixar mais à vontade, me explicou que no dia do penteado ela estava brincando. Mas a moça que lhe serve de cabeleireira fica me espiando muitas vezes quando volto da pesca, sempre com umas palavras gentis sobre a minha saúde e o meu moral. Portanto, vai tudo às mil maravilhas. Bourset não perde ocasião de me fazer uma peça. Já há dois meses e meio que começamos.
O esconderijo está repleto, conforme; eu havia previsto. Só faltam duas peças, as mais compridas: uma de 2 metros, outra de 1 metro e meio. Essas peças não vão caber na cavidade.
Olhando para os lados do cemitério, avisto um túmulo recente, é o túmulo da mulher de um vigia, que morreu na semana passada. Um maço vagabundo de flores murchas está em cima. O guarda do cemitério é um velho forçado meio cego que chamam de Papá. file passa o dia inteiro sentado à sombra de um coqueiro no canto oposto do cemitério e, de onde está, não dá para ele ver o túmulo nem para ver se alguém chega perto. Então, reflito sobre a idéia de me servir desse túmulo para montar a jangada e meter dentro da armação feita pelo marceneiro o maior número possível de cocos. Mais ou menos uns trinta a 34 cocos, muito menos do que se pensava. Espalhei mais de cinqüenta em diferentes lugares. Só no quintal de Juliette tem uma dúzia. O moço de serviços vai pensar que eu os armazenei assim para um dia fazer óleo de coco.
Quando fico sabendo que o marido da morta foi embora para a Terra Grande, resolvo esvaziar uma parte da terra do túmulo, até a altura do caixão.
Matthieu Carbonieri, sentado em cima de uma parede; fica de sentinela. Na cabeça pôs um lenço branco com quatro nós nos cantos. Junto dele está um lenço vermelho, também com quatro nós. Enquanto não houver perigo, ele fica com o branco. Se aparecer alguém, quem quer que seja, ele põe o vermelho.
Esse trabalho muito arriscado não me leva mais do que uma tarde e uma noite. Não tenho que tirar terra até o caixão, porque fui obrigado a alargar o buraco para que ele tenha a largura da jangada: 1 metro e 20 mais uma folga. As horas me pareciam intermináveis e o gorro vermelho apareceu várias vezes. Afinal, hoje de manhã acabei. O buraco está coberto de folhas de coqueiro trançadas, que formam uma espécie de assoalho bem resistente. Por cima, uma pequena camada de terra. Quase não se vê. Meus nervos estão a ponto de estourar.
Já faz três meses que está em andamento esta preparação de fuga. Amarrados e numerados, tiramos os paus do esconderijo. Repousam sobre o caixão da dona, bem escondidos debaixo da terra que recobre as esteiras. Na cavidade da parede pusemos três sacos de farinha e uma corda de 2 metros para a vela, um garrafão cheio de fósforos e de coisas para riscá-los, uma dúzia de latas de leite, e é só.
Bourset está cada vez mais excitado. Até parece que é ele que vai embora e não eu. Naric está arrependido de não ter dito que ia também, no começo. Era só planejar uma jangada para três, em vez de dois.
Estamos na temporada das chuvas, chove todo dia, o que favorece as minhas idas ao túmulo onde eu quase já acabei de montar a jangada. Faltam as duas peças laterais do esqueleto. Aos poucos fui trazendo os cocos para mais perto do jardim do meu amigo. Podem ser apanhados facilmente e sem perigo no viveiro descoberto dos búfalos. Nunca meus amigos me perguntam em que ponto está o negócio. Apenas de vez em quando me dizem: “Tudo bem?” – “Sim, tudo bem.” – “Demora, não?” – “Não dá para andar mais depressa sem arriscar demais.” Só isso. Eu estava levando os cocos depositados na casa de Juliette, ela viu e me deu um medo enorme.
– Então, Papillon, vai sair esse óleo de coco? Por que você não faz aqui no quintal? Você tem um martelo para abrir os cocos e eu emprestaria um caldeirão para você pôr a polpa.
– Prefiro fazer o óleo no campo.
– Esquisito, no campo deve ser mais complicado.
Depois pensa um instante e acrescenta:
– Quer saber de uma coisa? Não acredito que você, logo você, vá fazer óleo de coco.
Fico gelado. Ela continua:
– Em primeiro lugar, por que você iria fazer isso, se eu posso lhe dar quanto óleo de oliva você quiser? Esses cocos são para outra coisa, não é?
Fico suando em bagas, desde que ela começou a falar, e só espero que pronuncie a palavra “fuga”. Fico sem fôlego; Digo a ela:
– Comandanta, é um segredo, mas vejo que a senhora está tão interessada e curiosa, que vai acabar descobrindo a surpresa que eu queria lhe fazer. Mas só vou lhe dizer que eu escolhi esses grandes cocos para esvaziar a polpa deles e depois fabricar um objeto muito bonito para lhe presentear. Eis a verdade.
Consegui despistá-la, pois ela responde:
– Papillon, não quero lhe dar trabalho, e principalmente eu proíbo você de gastar dinheiro para me fazer qualquer coisa de especial. Agradeço sinceramente, mas não o faça, eu lhe peço.
– Bem, vou ver.
Ufa! E imediatamente peço a ela para tomar um licor, iniciativa que nunca tomo. Ela não percebe minha atrapalhação, felizmente. Deus está do meu lado.
Todo dia chove, sobretudo de tarde e de noite. Fico com medo de que a água se infiltre na fina camada de terra e deixe a descoberto as esteiras de coqueiro. Matthieu continuamente repõe a terra que escorreu. Por baixo, o troço deve estar alagado. Com a ajuda de Matthieu, tiro as esteiras: a água quase escondeu o caixão, o momento é crítico. Perto há o túmulo de duas crianças mortas muito tempo atrás. Um dia, descerramos a laje, entro dentro e, com uma barra curta, ataco o cimento, o mais baixo possível, do lado do túmulo da jangada. Uma vez quebrado o cimento, assim que enfio a barra na terra, a água jorra forte. A água escorre do outro túmulo e entra no buraco. Saio para fora quando ela já me chega aos joelhos. Recolocamos a laje e a calafetamos com uma massa branca que Naric me arranjou. Esta operação reduziu a água à metade no nosso túmulo-esconderijo. À noite, Carbonieri me diz:
– Não acabam nunca os problemas que temos com essa fuga.
– Já estamos quase no fim, Matthieu.
– Quase, espero.
É verdade que estamos como que pisando sobre brasas.
De manhã, desci até o cais. Pedi a Chapar para me comprar 2 quilos de peixe, voltarei para buscá-los ao meio-dia. Combinado. Volto ao jardim de Carbonieri. Assim que chego perto, vejo três capacetes brancos. Por que há três guardas no jardim? Estão fazendo uma revista? Isso é novidade. Eu nunca tinha visto três vigias duma só vez no jardim. Espero mais de uma hora e não agüento mais. Resolvo avançar, para ver o que está acontecendo. De cara, vou diretamente pelo caminho que leva ao jardim. Os guardas me olham chegar. Estou desconfiado, estou a uns 20 metros deles, aí Matthieu põe seu lenço branco na cabeça. Respiro aliviado e consigo me refazer antes de chegar até o grupo.
– Bom dia, senhores vigilantes. Bom dia, Matthieu. Vim buscar o mamão que você me prometeu.
– Sinto muito, Papillon, mas me roubaram o seu mamão hoje de manhã, quando eu fui buscar as varetas para a minha trepadeira de ervilhas. Mas daqui a quatro ou cinco dias vai ter mais mamão maduro, já estão amarelando. E os senhores, seus guardas, não querem umas alfaces, uns tomates, rabanetes para levar para as suas senhoras?
– Você cuida bem do seu jardim, Carbonieri, parabéns – diz um deles.
Eles aceitam tomates, alfaces e rabanetes e vão embora. Eu voa embora ostensivamente um pouco antes deles, levando umas alfaces.
Passo pelo cemitério. O túmulo está meio descoberto pela chuva que lavou a terra. A dez passos já dá para eu ver as esteiras. Deus está mesmo do nosso lado, se não nos descobriram depois dessa. O vento sopra feito louco toda a noite, varrendo o planalto da ilha com rugidos raivosos, muitas vezes junto com chuva. É o tipo do tempo ideal para partir, mas não para o túmulo.
A maior de todas as tábuas, a de 2 metros, chegou sã e salva a seu domicílio. Foi juntar-se às outras peças da jangada. Eu até já montei a peça: ela se encaixou maravilhosamente, sem dificuldade nenhuma, nas chanfraduras. Bourset chegou ao campo correndo, para saber se eu recebi essa peça de importância primordial, mas um bocado grande para transportar. Fica todo contente ao saber que tudo deu certo. Até parecia que ele duvidava que ela pudesse chegar a seu destino. Procuro saber alguma coisa através dele:
– Você tem dúvidas? Acha que alguém está percebendo? Contou alguma coisa a alguém? Responda.
– Não, não e não.
– No entanto, você me dá a impressão de que alguma coisa o preocupa. Fale.
– Uma impressão desagradável que tive por causa de um olhar cheio de curiosidade interessada, de um cara chamado Bébert Celier. Tenho a impressão de que ele viu Naric tirar a peça e enfiá-la debaixo da bancada da marcenaria, dentro de um barril de cal, e depois levá-la. Os dois cunhados iam caiar um prédio. Era por isso que eu estava preocupado.
Pergunto a Grandet:
– Esse Bébert Celier é da nossa choça; então, será que é um dedo-duro?
Ele me diz:
– Esse homem é liberto das Obras Públicas. Já viu tudo: batalhão de sentenciados da África, etc. É um desses soldados cabeçudos que passaram por todas as prisões militares do Marrocos e da Argélia, briguento, bom na faca, pederasta apaixonado por mocinhos e jogador. Nunca foi civil. Conclusão: não nos interessa para nada, é um cara extremamente perigoso. Passou a vida inteira nos trabalhos forçados. Se você está com dúvidas sérias sobre ele, pegue a dianteira, assassine ele hoje à noite, assim ele não terá tempo de te denunciar, se tiver essa intenção.
– Não há nenhuma prova de que ele seja dedo-duro.
– Isso é certo – diz Galgani -, mas também não há nenhuma prova de que ele seja um bom rapaz. Você sabe muito bem que forçados desse tipo não gostam de fugas. Elas perturbam demais a vidinha tranqüila e organizada deles. Para qualquer outra coisa, eles não dedam de jeito nenhum, mas, uma fuga, quem é que vai saber?
Consulto Matthieu Carbonieri. A opinião dele é que devemos matar Celier hoje à noite. Quer fazer o serviço ele mesmo. Cometo o erro de impedi-lo. Assassinar ou deixar matar alguém a partir de meras aparências é coisa que me repugna. E se Bourset fantasiou a história que contou? O medo poderia fazê-lo ver as coisas pelo avesso. Procuro saber alguma coisa através de Naric:
– Boa-Praça, você reparou alguma coisa de suspeito por parte de Bébert Celier?
– Eu, não. Saí com o barril nas costas para que o guarda-chaves da porta não enxergasse nada dentro. O plano combinado era que eu ia me plantar justo na frente do guarda-chaves, sem arriar o barril, esperando que meu cunhado chegasse. Era para o árabe sentir que eu não estava com nenhuma pressa de sair e assim evitar qualquer desconfiança dele, para ele não revistar o barril. Mas mais tarde meu cunhado me disse que teve a impressão de que Bébert Celier estava observando a gente atentamente.
– Qual a sua opinião?
– Que, em virtude do tamanho da peça, logo se vê que é para uma jangada e meu cunhado estava nervoso e com medo. Ele está imaginando que viu mais do que viu mesmo.
– Também acho. Não se fala mais nisso. Na hora da última peça, antes de agir, vocês localizem onde se encontra Bébert Celier. E com ele tomem as mesmas precauções que tomam com um guarda.
A noite inteira eu passei jogando um jogo animadíssimo, a marselhesa. Ganhei 7 000 francos. Quanto mais eu jogava a olho, mais eu ganhava. Às 4 e meia, saio, a pretexto de fazer o meu trabalho. Deixo o antilhano fazendo o trabalho para mim. A chuva parou e lá pelo meio da noite, ainda bem escuro, vou até o cemitério. Conserto a terra com os pés, porque não acho o ancinho, mas, com os sapatos que uso, o negócio fica bem ajeitado. Às 7 horas, quando desço para a pesca, já está um sol maravilhoso. Encaminho-me para o extremo sul de Royale, onde tenho a intenção de lançar a jangada na água. O mar está alto e forte. Não sei, mas tenho a impressão de que não vai ser fácil se afastar da ilha sem ser jogado nos rochedos por uma onda. Ponho-me a pescar e logo apanho uma grande quantidade de peixes. Num instante, apanho mais de 5 quilos. Paro, depois de lavá-los com água do mar. Estou preocupado e cansado, depois dessa noite passada num jogo louco. Sentado à sombra, me recupero, e digo a mim mesmo que esta tensão em que vivo há mais de três meses está chegando ao fim e, pensando no caso de Celier, torno a concluir que não tenho o direito de assassiná-lo.
Vou falar com Matthieu. Do muro do seu jardim se vê bem o túmulo. Pelo caminho tem terra. Ao meio-dia, Carbonieri vai varrê-la. Passo pela casa de Juliette, dou a ela metade dos peixes. Ela diz:
– Papillon, tive sonhos maus com você; vi você cheio de sangue e depois acorrentado. Não faça besteiras, iria me doer demais se lhe acontecesse alguma coisa. Estou tão transtornada com esse sonho, que nem tomei banho nem me penteei. De binóculo, procurava o lugar onde você estava pescando e não achei. Onde você apanhou este peixe?
– Do outro lado da ilha. Por isso é que a senhora não me via.
– Por que vai pescar tão longe, onde eu não posso ver você de binóculo? E se uma onda o leva? Ninguém vai ver, ninguém vai ajudar você a escapar vivo dos tubarões.
– Ora, não exagere!
– Você acha que eu exagero? Eu proíbo você de pescar atrás da ilha e, se me desobedecer, eu mando retirar a sua autorização de pesca.
– Ora, vamos, seja sensata, minha senhora. Para que a senhora fique satisfeita, eu vou dizer ao moço de serviços o local onde eu vou pescar.
– Está bem. Você está com jeito de estar cansado.
– É, vou subir para me deitar no campo.
– Certo, mas estou à sua espera às 4 horas, para tomar café. Você vem?
– Sim, senhora. Até logo.
Só me faltava mais essa para me intranqüilizar: o sonho de Juliette. Como se eu já não tivesse bastante problemas concretos, precisava ainda de mais alguns, sonhados!
Bourset conta que se sente realmente observado. Já faz quinze dias que esperamos pela última peça de 1 metro e meio. Naric e Quenier dizem que não vêem nada de anormal, no entanto Bourset persiste em não querer fazer a peça. Se ela não tivesse cinco chanfraduras que têm de se encaixar sem 1 milímetro de folga, Matthieu teria fabricado ela no jardim. Realmente é nela que precisam se encaixar as cinco outras nervuras da jangada. Naric e Quenier estão encarregados de reformar a capela, e assim tiram e trazem facilmente muito material da oficina. E, ainda por cima, utilizam às vezes uma carreta puxada por um pequeno búfalo. Era preciso aproveitar estas circunstâncias.
Bourset, pressionado por nós, contra a sua vontade, faz a peça. Um dia, ele nos jura que, quando ele vai embora, mexem na peça e depois a recolocam no lugar. Falta talhar uma chanfradura na extremidade. Decidimos que Bourset talhe a chanfradura e depois coloque a madeira debaixo da sua bancada; ele deverá colocar em cima um fio de cabelo, para verificar depois se ela foi mexida: Ele faz a chanfradura e, às 6 horas, é o último a sair da oficina, após verificar que não há mais ninguém lá dentro, além do guarda. A peça está em seu lugar com o fio de cabelo. Ao meio-dia estou no campo, à espera da chegada dos trabalhadores da oficina, oitenta homens. Naric e Quenier estão Já, mas nada de Bourset. Um alemão vem para o meu lado e me entrega um bilhete bem fechado e colado. Verifico que não foi aberto. Leio: “O fio de cabelo desapareceu, quer dizer que mexeram na peça. Pedi ao guarda para ficar trabalhando durante a hora da sesta, para terminar uma caixinha de pau-rosa que estou fazendo. O guarda me deu autorização. Vou retirar a peça e colocá-la no lugar das ferramentas de Naric. Avise eles. É preciso que às 3 horas eles saiam imediatamente com a peça. Talvez a gente possa fazer isso antes de chegar o cara que mexe na peça”.
Naric e Quenier concordam. Estão entre os primeiros que esperam a hora da entrada na oficina. Na hora em que a turma vai começar a entrar na oficina, dois caras vão começar a brigar na frente da porta. Pedimos esse favor a dois conterrâneos de Carbonieri, dois corsos de Montmartre: Massani e Santini. Eles não perguntam por que, e isso é bom. Naric e Quenier deverão aproveitar o momento para tornar a sair depressa, com um material qualquer, como se estivessem preocupados em chegar logo a seu local de trabalho e não ligassem a mínima para o incidente. Todos concordamos que ainda temos uma oportunidade. Se der certo, eu é que devo ficar bem quietinho durante um mês ou dois, pois não resta dúvida de que alguém ou vários estão sabendo que uma jangada está sendo preparada. Eles que descubram quem a tem e onde a colocou.
Afinal, são 2 e meia, os homens se preparam. Entre a chamada e a saída para os trabalhos, temos meia hora. Partem. Bébert Celier está mais ou menos no meio da coluna das vinte fileiras de quatro.
Naric e Quenier estão na primeira fila, Massani e Santini na 12.a, Bébert Celier na décima. Considero que está bom assim, porque, no momento em que Naric pegar madeiras, barras e a peça, os outros ainda não terão acabado de entrar. Bébert terá chegado quase à porta da oficina ou talvez até um pouco adiante. Quando estourar a briga, como os dois vão urrar como bezerros, automaticamente todo mundo, e Bébert também, vai se virar para olhar. Quatro horas, tudo correu bem, a peça está debaixo de um monte de material na igreja. Eles não puderam retirá-la da capela, mas lá é um ótimo lugar para ela,
Vou falar com Juliette, ela não está em casa. Quando subo de volta, passo pela praça onde fica a administração. Na sombra, em pé, vejo Massani e Jean Santini esperando para entrar na cadeia. Com isso a gente já contava. Passo junto deles e pergunto:
– Quanto?
– Oito dias – responde Santini.
Um guarda corso diz:
– Que vergonha, dois conterrâneos brigarem!
Volto para o campo. Seis horas, Bourset retorna muito feliz:
– Até parece – me diz ele – que eu tinha um câncer e depois o médico me informa que era engano dele, que não tenho nada.
Carbonieri e meus amigos estão triunfantes e me dão parabéns pela maneira como organizei a operação. Naric e Quenier também estão satisfeitos. Vai indo tudo muito bem. Durmo a noite toda, embora, no fim do dia, os jogadores me tivessem convidado. Faço de conta que estou com uma tremenda dor de cabeça. O que eu tenho, na verdade, é que estou morto de sono, mas contente e feliz por estar tão perto da solução. Pois o mais difícil está feito.
Hoje de manhã, a peça foi colocada provisoriamente por Matthieu na cavidade da parede. De fato, o guarda do cemitério faz a limpeza das alamedas, pelos lados do túmulo-esconderijo. Não seria prudente chegar perto agora. Todas as manhãs, ao nascer do sol, às pressas, eu pego um ancinho de madeira e vou arrumar a terra em cima do túmulo. Com uma vassoura limpo a alameda; depois, e sempre às pressas, volto ao meu serviço, deixando a vassoura e o ancinho junto com o meu material de limpeza.
Agora já faz quatro meses justos que a fuga está sendo preparada, e nove dias que afinal recebemos a última peça da jangada. Já não chove mais de dia e às vezes nem durante a noite. Todas as minhas faculdades estão em estado de alerta, para as duas horas H: primeiro, para a hora de tirar do jardim de Matthieu a famosa peça e montá-la na jangada, com cada nervura bem encaixada nela. É uma operação que só se pode fazer de dia. Depois, para a hora da partida. Ela não poderá ser imediata, porque, depois de tirarmos a jangada de seu esconderijo, vai ser preciso recheá-la com os cocos e guardar dentro os víveres.
Ontem contei tudo a Jean Castelli e em que pé estão as coisas. Ele ficou contente por mim, de ver que eu estou quase alcançando o meu objetivo.
– A lua – disse-me ele – está em quarto crescente.
– Bem sei. Por isso, à meia-noite, ela não me atrapalha. A maré vazante é às 10 horas, a melhor hora para embarcarmos seria entre 1 e 2 da manhã.
Carbonieri e eu resolvemos precipitar os acontecimentos. Amanhã de manhã, às 9 horas, colocação da peça. Durante a noite, a partida.
No dia seguinte de manhã, em ações bem coordenadas, indo para o cemitério, passo pelo jardim e pulo o muro com uma pá. Enquanto retiro a terra que está por cima das esteiras, Matthieu desloca sua pedra e vem para o meu lado com a peça. Juntos, levantamos as esteiras e as colocamos ao lado. Surge a jangada bem ajeitada, em perfeito estado. Suja de barro, mas perfeita: Tiramos a jangada da cova porque, para encaixar a peça, é preciso espaço dos lados. Encaixamos as cinco nervuras, cada uma bem ajeitada em seu lugar. Para fazê-las entrar, somos obrigados a martelar com uma pedra. No instante em que finalmente terminamos e estamos recolocando a jangada em seu lugar, aparece um guarda, de carabina na mão:
– Nem um movimento ou estão mortos!
Deixamos cair a jangada e levantamos as mãos para o alto. Esse guarda, eu o reconheço, é o guarda-chefe da oficina.
– Não façam a besteira de opor resistência, estão presos. Reconheçam a situação em que estão e, pelo menos, salvem as suas peles, que estão por um fio, com a vontade que tenho de passar fogo em vocês. Vamos, andem, de mãos para o alto! Para o comando!
Ao passar pela porta do cemitério, encontramos um árabe servente. O guarda diz a ele:
– Mohamed, obrigado pelo favor. Passe pela minha casa amanhã de manhã, eu lhe dou o que prometi.
– Obrigado – diz o canalha. – Irei sem falta, mas diga, chefe, Bébert Celier também tem que me pagar, não é?
– Acerte com ele – diz o guarda.
Aí eu digo:
– Foi Bébert Celier que nos dedou, chefe?
– Não fui eu que lhe disse isso.
– Tanto faz quem disse, é bom saber.
O guarda, sempre com a mira da carabina em cima da gente, diz:
– Reviste eles, Mohamed.
O árabe tira a faca enfiada na minha cintura e a faca de Matthieu. Digo a ele:
– Mohamed, você é bem esperto. Como é que você nos descobriu?
– Eu trepava no alto de um coqueiro todo dia, para ver onde vocês tinham enfiado a jangada.
– Quem lhe mandou fazer isso?
– Primeiro foi Bébert Celier; depois foi o vigilante Bruet.
– Vamos – diz o guarda -, já houve conversa demais. Agora, vocês podem baixar as mãos e andar mais depressa.
Os 400 metros que tínhamos de percorrer para chegar ao comando me pareceram o caminho mais comprido de toda a minha vida. Eu estava arrasado. Tanta luta, para nos deixarmos apanhar como uns fodidos.
Meu Deus, como sois cruel contra mim!
Foi um belo escândalo a nossa chegada ao comando. Pois, à medida que íamos avançando, encontrávamos mais guardas e vigilantes que se juntavam ao nosso, que continuava nos ameaçando com a carabina. Ao chegar, tínhamos uns sete ou oito guardas atrás de nós.
O comandante, prevenido pelo árabe que viera correndo na nossa frente, está à soleira da porta do prédio da administração, bem como Dega e cinco guardas-chefes.
– O que está acontecendo, Sr. Bruet? – pergunta o comandante.
– Está acontecendo que apanhei em flagrante delito estes dois homens escondendo uma jangada que me parece estar pronta.
– Papillon, o que tem a dizer?
– Nada, deixo para falar na instrução.
– Meta-os na cela.
Colocam-me numa cela que dá, pela sua janela tapada, para o lado da entrada do comando. A cela é completamente escura, mas ouço as pessoas que falam na rua do comando.
Os acontecimentos se precipitam. Às 3 horas nos tiram e nos põem algemas.
Na sala, uma espécie de tribunal: comandante, subcomandante, guarda-chefe. Um guarda funciona como escrivão. Sentado, mais afastado, diante de uma mesinha, Dega, com um lápis na mão, tem provavelmente a incumbência de anotar na hora e fielmente as declarações.
– Charrière e Carbonieri, ouçam o relatório que o Sr. Bruet fez contra vocês: “Eu, Bruet Auguste, guarda-chefe, diretor da oficina das Ilhas da Salvação, acuso de roubo, desvio de material pertencente ao Estado, os dois forçados Charrière e Carbonieri. Acuso de cumplicidade o marceneiro Bourset. Acredito também poder responsabilizar por cumplicidade Naric e Quenier. Acrescento que surpreendi em flagrante delito Charrière e Carbonieri, que estavam violando a sepultura da Sra. Privat, a qual sepultura servia de esconderijo para ocultar a jangada deles”.
– Que tem você a dizer? – pergunta o comandante.
– Em primeiro lugar, que Carbonieri não tem nada a ver com isso. A jangada é planejada para levar um único homem, eu. Eu o obriguei a me ajudar na retirada das esteiras de cima do túmulo, operação que eu não podia fazer sozinho. Portanto, Carbonieri não é culpado de desvio e roubo de material pertencente ao Estado, nem de cumplicidade na evasão, uma vez que a evasão não se efetivou. Bourset é um pobre coitado que agiu sob ameaça de morte. Quanto a Naric e Quenier, são indivíduos que eu mal conheço. Afirmo que eles não têm relação nenhuma com o caso.
– Não é nada disso que me contou meu informante – diz o guarda.
– Esse tal de Bébert Celier, que é o seu informante, pode muito bem servir-se deste caso para se vingar de alguém, comprometendo-o falsamente. Quem é que pode confiar num dedo-duro?
– Em suma – diz o comandante -, você é oficialmente acusado de roubo e de desvio de material pertencente ao Estado, de profanação de sepultura e de tentativa de fuga. Queira ter a bondade de assinar o documento.
– Só assino se se acrescentar minha declaração a respeito de Carbonieri, Bourset e os dois cunhados Naric e Quenier.
– Concordo. Acrescente isso no documento.
Assino. Não consigo exprimir com clareza tudo o que se desenrola dentro de mim desde esse fracasso de última hora. Estou como louco dentro desta cela, mal como, não ando, mas fumo, sem parar, um cigarro atrás do outro. Por sorte, Dega me abastece fartamente de fumo.
Todos os dias, fazemos uma hora de marcha pela manhã, ao sol, no pátio das celas disciplinares.
Hoje de manhã, o comandante veio falar comigo. Coisa curiosa, ele, que seria o mais prejudicado se a fuga tivesse sido levada a efeito, é quem tem menos raiva de mim.
Fala-me, sorrindo, que sua esposa disse que era normal que um homem, se não está podre, tente fugir. Com muita habilidade, ele procura ver se confirmo a cumplicidade de Carbonieri. Tenho a impressão de que o convenci, de que lhe expliquei bem que era praticamente impossível Carbonieri recusar-me ajuda por alguns momentos, para retirar as esteiras.
Bourset mostrou o bilhete de ameaça e o desenho feito por mim. Quanto a Bourset, aliás, o comandante está completamente convencido de que as coisas se passaram assim mesmo. Pergunto a ele a quanto pode, na sua opinião, chegar essa acusação de roubo de material. Ele me diz:
– No máximo, dezoito meses.
Em suma, recomeço a subir a encosta do abismo em que afundara. Recebi um recado de Chatal, o enfermeiro. Avisou-me que Bébert Celier está em quarto isolado, no hospital, com perspectiva de ser desinternado com um diagnóstico raro: abscesso no fígado. Deve ser um estratagema combinado entre a administração e o médico, para proteger Celier contra represálias.
Nunca revistaram nem a minha cela nem a mim. Aproveito para mandar vir uma faca. Mando dizer a Naric e a Quenier que requeiram uma acareação entre o vigia da oficina, Bébert Celier, o marceneiro e eu, e solicitem ao comandante que, após esse confronto, tome a decisão que achar mais justa em relação aos dois cunhados: ou prisão preventiva, ou punição disciplinar, ou liberdade limitada ao interior do campo…
Durante o passeio de hoje, Naric me disse que o comandante aceitou. A acareação vai ser feita amanhã, às 10 horas. A essa audiência assistirá um guarda-chefe que funcionará como instrutor. Passo a noite inteira tentando racionalizar minhas emoções, pois tenho intenção de matar Bébert Celier. Não consigo raciocinar. Não, seria injusto demais que esse homem fosse desinternado após ter prestado esse serviço, e que depois, da Terra Grande, ele se vá embora numa bela fuga, como recompensa por ter impedido uma outra fuga. Sim, mas eu, eu posso ser condenado à morte, podem me acusar de premeditação. Pois que seja. É a minha conclusão, tão desesperado estou. Quatro meses de esperança, de alegria, de medo de ser apanhado, de inventivas e, afinal, quando estava a ponto de conseguir, acabar tudo tão lamentavelmente pela língua de um dedo-duro. Aconteça o que acontecer, amanhã eu vou ver se mato Celier!
A única maneira de não ser condenado à morte é fazer que ele puxe a faca dele. Para conseguir isso, é preciso que ostensivamente eu o faça ver que estou com a minha faca aberta. Aí, é certo que ele puxe a dele. Seria preciso fazer isso um pouco antes, ou imediatamente depois da acareação. Não posso matá-lo durante a acareação, me arrisco a que um guarda me dê um tiro de revólver. Conto com a negligência crônica dos guardas.
Passo a noite inteira lutando contra essa idéia. Não consigo vencê-la. Existem verdadeiramente na vida coisas imperdoáveis. Sei que não se tem direito de fazer justiça com as próprias mãos, mas isso é coisa para gente de outra classe social. Como admitir que não se possa pensar em punir inexoravelmente um indivíduo tão abjeto? Não lhe fiz mal algum, a esse rebotalho de caserna, ele nem mesmo me conhece. Portanto, ele me condenou à reclusão sem ter nada contra mim. O que ele fez foi tentar me enterrar para poder renascer. Não, não e não! É impossível eu deixar ele aproveitar esse seu ato nojento. Impossível. Sinto que estou perdido. Perdido por perdido, que ele o seja também, e ainda mais do que eu. E se me condenarem à morte? Seria bem estúpido morrer por um personagem tão ignóbil. Consigo chegar a prometer a mim mesmo uma única coisa: se ele não puxar a faca dele, não o mato.
Não dormi nem um pouco a noite inteira, fumei um maço inteiro de cigarros. Restam-me dois cigarros quando chega o café da manhã, às 6 horas. Tamanha é a minha tensão, que, mesmo diante do guarda – embora seja proibido -, digo ao distribuidor de café:
– Você podia me arranjar uns cigarros ou um pouco de fumo, com a permissão aqui do chefe? Estou em ponto de bala, Sr. Antartaglia.
– Tá bom, dá para ele, se você tem aí. Eu não fumo. Sinceramente, Papillon, tenho pena de você. Eu, que sou corso, aprecio os homens, detesto a falta de caráter.
Quinze para as dez, estou no tribunal à espera da hora de entrar na sala. Naric, Quenier, Bourset, Carbonieri estão presentes. O guarda que nos vigia é Antartaglia, o mesmo do café. Conversa em corso com Carbonieri. Entendo que ele está dizendo que é uma pena o que lhe aconteceu, a Carbonieri, que bem pode pegar três anos de reclusão. Nesse momento, a porta se abre e entram na sala o árabe do coqueiro, o árabe guarda da porta da oficina e Bébert Celier. Assim que me vê, ele faz um movimento de recuo, mas o guarda que o acompanha lhe diz:
– Entre e coloque-se à parte, aqui à direita. Antartaglia, não deixe eles se comunicarem.
Pronto, estamos a menos de 2 metros um do outro. Antartaglia diz:
– É proibido falar entre os dois grupos.
Carbonieri continua sua conversa em corso com seu conterrâneo que vigia os dois grupos. O guarda ajeita o nó do cordão do sapato, faço um sinal a Matthieu, para ele vir um pouco mais para a frente. Ele imediatamente entende a situação, olha para o lado de Bébert Celier e escarra nessa direção. Quando o guarda se levanta, Carbonieri começa a falar com ele sem parar e monopoliza sua atenção tão completamente, que dou um passo para a frente sem que o guarda perceba. Abro a faca na palma da minha mão, de jeito que só Bébert Celier possa ver. E, com uma rapidez inesperada, ele puxa a sua faca, que estava aberta dentro da calça, e me dá um golpe que me abre fundo o músculo do braço direito. Eu, que sou canhoto, com um único golpe enfio-lhe a faca no peito até o cabo. Um grito de animal: “A-a-ah”. Ele cai como saco de batatas. Antartaglia, de revólver em punho, me diz:
– Sai daí, rapaz, sai daí. Não bate nele no chão, senão sou obrigado a lhe dar um tiro e isso não quero.
Carbonieri se aproxima de Celier e com o pé mexe a cabeça dele. Diz uma frase em corso. Entendo que ele diz que o outro está morto. O guarda repete:
– Me dá a sua faca, rapaz.
Eu dou, ele guarda o revólver no estojo, vai para a porta de ferro e bate. Um guarda abre e ele diz ao outro:
– Mande trazer uma maca, para levar um morto.
– Quem está morto? – indaga o guarda.
– Bébert Celier.
– Ah! Pensei que fosse Papillon.
Mandam-nos de volta para as celas. Está suspensa a acareação. Carbonieri me diz, antes de entrar no corredor:
– Papi, meu filho, desta vez você entrou pelo cano mesmo.
– Certo, mas eu estou vivo e ele está morto.
O guarda volta só, abre a porta bem devagar e me diz, ainda meio abalado:
– Bata na porta, fale que você está ferido. Foi ele que atacou primeiro, eu vi bem.
E fecha a porta novamente, bem devagar.
Esses guardas corsos são incríveis; ou completamente maus ou completamente bons. Bato na porta e grito:
– Estou ferido, quero que me levem para o hospital, para fazer curativo.
O guarda volta com o guarda-chefe do setor disciplinar.
– O que é que você tem? Pra que tanto barulho?
– Estou ferido, chefe.
– Ah! Você está ferido? Eu pensava que ele não tinha feito nem um arranhão, quando atacou você.
– Estou com o músculo do braço direito cortado.
– Abra – diz o outro guarda.
A porta se abre, eu saio. Realmente, há um grande corte no músculo.
– Ponha as algemas nele e leve ao hospital. Não saia de perto dele lá no hospital. Traga ele de volta para cá depois de tratar do ferimento.
Na hora em que saímos, há mais de dez guardas com o comandante. O guarda da oficina me diz:
– Assassino!
Antes de qualquer resposta minha, o comandante diz a ele:
– Cale-se, guarda Bruet. Papillon foi atacado.
– Não é fácil de acreditar – diz Bruet.
– Eu vi tudo e sou testemunha – diz Antartaglia. – E saiba, Sr. Bruet, que um corso não mente.
No hospital, Chatal chama um médico. Ele costura meu braço sem anestesia, nem mesmo anestesia local, depois me põe oito grampos, sem me dirigir uma palavra. No fim. ele diz:
– Eu não pude fazer anestesia local, não tenho mais injeções de anestesia.
E acrescenta:
– Não está certo o que você fez.
– Ah, que nada! De qualquer jeito, ele não ia continuar vivo muito tempo, com aquele abscesso no fígado.
Minha resposta inesperada deixou o homem embasbacado.
A instrução prossegue. A responsabilidade de Bourset é completamente eliminada. Admitem que ele estava aterrorizado e eu colaboro para fazer aceitarem esta versão. Quanto a Naric e Quenier, também se safam, por inexistência de provas. Sobramos eu e Carbonieri. Para Carbonieri, eliminam a acusação de roubo e desvio de material pertencente ao Estado. Fica a acusação de cumplicidade em tentativa de evasão. Não lhe podem dar mais de seis meses. Quanto a mim, as coisas se complicam. Com efeito, apesar de todos os testemunhos a meu favor, o encarregado da instrução não quer admitir a legítima defesa. Dega, que viu o dossiê inteirinho, me diz que, apesar dos esforços do instrutor, é impossível que me condenem à morte, pelo fato de eu ter recebido um ferimento. Uma coisa em que se apóia a acusação para me arrasar é que os dois guardas árabes declaram que fui eu que puxei a faca primeiro.
A instrução terminou. Aguardo o momento de descer até Saint-Laurent, para passar pelo tribunal militar. Só fico fumando, quase não ando. Deram-me o direito de um segundo passeio de uma hora, durante a tarde. Nunca o comandante nem os guardas, salvo aquele da oficina e o da instrução, demonstraram hostilidade para comigo. Todos me falam sem rancor e me deixam mandar vir quanto fumo eu quiser.
A minha partida está marcada para sexta-feira, hoje é terça. Na quarta de manhã, às 10 horas, estou no pátio já faz umas duas horas, quando o comandante me manda chamar e diz:
– Venha falar comigo.
Saio com ele, sem escolta. Pergunto para onde vamos, ele pega o caminho da casa dele. A certa altura, ele me diz:
– Minha esposa quer falar com você antes da sua partida. Não quero impressioná-la, por isso não mandei vir junto nenhum guarda armado. Espero que você se comporte corretamente.
– Sim, meu comandante.
Chegamos à casa dele.
– Juliette, eu lhe trouxe o seu protegido, conforme prometi. Você sabe que preciso levá-lo de volta antes do meio-dia. Você tem quase uma hora para conversar com ele.
E ele se retira discretamente.
Juliette se aproxima de mim e põe a mão no meu ombro, olhando-me nos olhos. Os olhos dela brilham ainda mais assim cheios de lágrimas, que felizmente ela contém.
– Você está louco, meu amigo. Se você tivesse me dito que queria ir embora, eu acho que poderia ter sido capaz de facilitar as coisas. Pedi a meu marido que ajudasse você o mais possível e ele me disse que isso não depende dele, infelizmente. Mandei buscar você, em primeiro lugar, para ver como está. Dou-lhe parabéns pela sua coragem, você está com um aspecto melhor do que eu esperava. E também para dizer que eu quero lhe pagar o peixe que você tão generosamente me deu durante tantos meses. Olhe, tome 1000 francos, é tudo o que eu posso lhe dar. Lamento não poder fazer mais por você.
– Olhe, minha senhora, não estou precisando de dinheiro. Eu lhe peço, por favor, compreenda que eu não devo aceitar; isso seria, na minha opinião, manchar a nossa amizade.
E afasto com um gesto as duas notas de 500 francos que ela me oferecia tão generosamente.
– Não insista, lhe peço, por favor.
– Como você preferir – diz ela. – Aceita um pouco de licor?
E, durante mais de uma hora, essa mulher admirável conversa comigo, uma conversa encantadora. Ela considera que eu serei certamente absolvido pela morte daquele canalha e que vou pegar talvez de dezoito meses a dois anos pelo resto.
No instante da despedida, ela me aperta a mão entre as suas, demoradamente, e me diz:
– Até breve, boa sorte.
Explodem os soluços.
O comandante me leva de volta à cela. No caminho, digo a ele:
– Comandante, o senhor tem a mulher mais nobre do mundo.
– Eu sei, Papillon, ela não é feita para viver aqui, é cruel demais para ela. E, no entanto, o que fazer? Afinal, daqui a quatro anos, me aposento.
– Aproveito este momento em que estamos sós, comandante, para lhe agradecer, porque graças ao senhor recebi o melhor tratamento possível. Sei que poderia ter prejudicado seriamente o senhor, se eu tivesse conseguido o meu intento.
– É verdade, você poderia ter-me causado grandes aborrecimentos. Apesar disso, quer saber de uma coisa? Você merecia ter conseguido.
E, já às portas do bloco das celas disciplinares, ele acrescenta:
– Adeus, Papillon. Que Deus lhe proteja, você vai precisar.
– Adeus, comandante.
Ah! sim, bem que era necessária a proteção de Deus para mim, porque o tribunal militar presidido por um oficial de quatro galões foi inexorável. Três anos por roubo e desvio de material pertencente ao Estado, profanação de sepultura e tentativa de evasão, e mais cinco anos, sem prejuízo da primeira pena, pela morte de Celier. Total: oito anos de reclusão. Se eu não tivesse sido ferido, é garantido que me condenavam à morte.
Esse mesmo tribunal, tão severo comigo, foi mais compreensivo ante um polaco da cavalaria francesa, chamado Dandosky, que tinha matado dois homens. O tribunal o condenou a apenas cinco anos e, no entanto, no caso dele havia premeditação indiscutível.
Dandosky era um padeiro encarregado de fazer somente o fermento. O horário dele era apenas das 3 às 4 da manhã. Como a padaria ficava no cais, diante do mar, ele passava todas as suas horas de folga pescando. Era um tipo tranqüilo, falava mal o francês e não se dava com ninguém. Esse condenado aos trabalhos forçados perpétuos dedicava todos os seus sentimentos de ternura a um belo gato preto de olhos verdes, que praticamente vivia com ele. Os dois dormiam juntos, o gato o seguia como um cachorro ao trabalho, para lhe fazer companhia. Em resumo, era uma grande estima entre ele e o bichinho. O gato o acompanhava na pesca, mas, quando fazia calor demais e não havia uma sombrinha por perto, voltava sozinho até a padaria e se deitava na rede de seu amigo. Ao meio-dia, quando batia o sino, saía ao encontro do polaco e pulava para pegar o peixinho com que o homem o atiçava, até o gato o agarrar.
Os padeiros moram todos juntos numa sala pegada à padaria. Um dia, dois forçados chamados Corrazi e Angelo convidam Dandosky a comer um guisado de coelho preparado por Corrazi, como ele fazia pelo menos uma vez por semana. Dandosky senta-se à mesa com eles e comem juntos; para a refeição, Dandosky levara, por sua vez, uma garrafa de vinho. À noite, o gato não voltou para casa. O polaco procurou o gato por toda parte em vão. Passa uma semana inteira e nada do gato. Triste com a perda do companheiro, Dandosky não se interessa mais por nada. Era mesmo triste que o único ser que Dandosky amava e que tão bem lhe retribuía esse amor tivesse desaparecido misteriosamente. A esposa de um vigia, quando soube da imensa dor de Dandosky, deu-lhe de presente um filhotinho de gato. Dandosky expulsou o gatinho, indignado, e perguntou à mulher como é que ela podia conceber que ele pudesse gostar de outro gato que não o dele; seria, dizia ele, uma grave ofensa à memória do amado desaparecido.
Um dia, Dandosky agrediu um aprendiz de padeiro que era também distribuidor de pão. O aprendiz não morava na mesma sala dos padeiros, mas com ele e lhe diz:
– Quer saber de uma coisa, o coelho que Corrazi e Angelo te fizeram comer era o teu gato.
– Cadê a prova? – grita o polaco, agarrando o outro pelo pescoço.
– Debaixo da mangueira que fica atrás dos canoeiros, um pouco mais para lá, eu vi Corrazi, quando ele estava enterrando a pele do seu gato.
Como um louco, o polaco vai verificar e realmente encontra a pele. Recolhe a pele, já meio podre, a cabeça em decomposição. Lava-a com água do mar, estende-a ao sol para que seque, depois a envolve num pano muito limpo e enterra-a num local seco, bem fundo, para que as formigas não a comam. Foi isso que ele me contou.
De noite, à luz de um lampião de petróleo, Corrazi e Angelo um ao lado do outro, sentados num banco de tábuas muito grossas, na sala dos padeiros, jogam cartas com mais dois parceiros. Dandosky é um homem de uns quarenta anos, estatura mediana, entroncado, largo de ombros, muito forte. Prepara um grande porrete de pau-ferro, aliás tão pesado como esse metal; aproxima-se por trás e sem uma palavra vibra um fortíssimo golpe na cabeça de cada um dos dois. Os crânios se abrem como duas granadas e escorrem os miolos pelo chão. Possuído de raiva furiosa, Dandosky não se satisfaz simplesmente com a morte dos dois, ele pega os miolos e os esmaga contra a parede da sala. Fica tudo borrado de sangue e miolos.
Se eu, por um lado, não encontrei compreensão por parte do comandante da gendarmaria, presidente do tribunal militar, Dandosky, por outro lado, embora tivesse cometido dois assassinatos com premeditação, encontrou tanta compreensão, que foi condenado a apenas cinco anos.
SEGUNDA RECLUSÃO
Amarrado ao polaco, eu fui levado para as ilhas. Não demoramos muito no presídio de Saint-Laurent. Chegamos numa segunda-feira, passamos pelo tribunal militar na quinta, e na sexta de manhã nos embarcavam de volta para as ilhas.
Vão nesta viagem para as ilhas dezesseis homens, dos quais doze para a reclusão. A travessia se faz com um mar muito agitado, muitas vezes o passadiço é varrido por um vagalhão mais forte que os outros. Meu desespero é tanto, que chego a desejar que esse barco afunde. Não falo com ninguém, vou concentrado, preocupado comigo mesmo, por causa desse vento molhado que me fustiga o rosto. Não protejo o rosto, pelo contrário. De propósito deixo voar meu chapéu, não vou precisar dele durante meus oito anos de reclusão. Com o rosto virado de frente para o vento, aspiro até perder o fôlego esse ar que me açoita. Primeiro, desejei o naufrágio; depois, consigo novamente pôr as idéias no lugar: “Bébert Celier foi devorado pelos tubarões; eu tenho trinta anos e oito a passar na reclusão”. Mas será que é possível sobreviver oito anos na devoradora de homens?
Segundo a experiência que já tenho, acredito que seja impossível. Quatro ou cinco anos devem ser o limite extremo da resistência possível. Se eu não tivesse matado Celier, teria apenas três anos a cumprir, talvez mesmo só dois, porque a morte dele agravou todas as outras coisas, inclusive a evasão. Eu não devia ter matado aquele crápula. Meu dever de homem para comigo mesmo não é de fazer a minha justiça; é, em primeiro lugar e acima de tudo, viver, viver para fugir. Como é que eu pude cometer tamanho erro? Sem contar que, por pouco, era ele que me matava, aquele merda. Viver, viver, viver é o que deveria ter sido e deverá ser a minha única religião.
Entre os guardas que escoltam o grupo de forçados, há um que eu já conheci na reclusão. Não sei como ele se chama, mas estou louco de vontade de perguntar uma coisa a ele.
– Chefe, queria lhe perguntar uma coisa.
Espantado, ele chega mais para perto de mim e diz:
– O quê?
– Você sabe de algum homem que conseguiu passar oito anos na reclusão?
Ele fica pensativo durante uns momentos e depois me diz:
– Não, mas já vi muitos que passaram cinco anos, e até um cara, me lembro muito bem, que saiu com uma saúde razoável e bem equilibrado após seis anos. Eu estava na reclusão quando ele foi liberado.
– Obrigado.
– De nada – diz o guarda. – Você, se não me engano, vai para ficar oito anos?
– Certo, chefe.
– Você só pode sair dessa se não pegar nenhuma punição, nenhuma vez.
E ele se afasta.
Essa frase é muito importante. É verdade, só saio vivo se não for punido nenhuma vez. Isso porque, como as punições são na base de suprimir parte ou toda a alimentação durante algum tempo, em seguida a isso, mesmo voltando ao regime normal, a gente não se recupera nunca mais. Certas punições mais fortes impedem que se resista até o fim, a gente se acaba antes do fim. Conclusão: não devo aceitar cocos nem cigarros, nem mesmo escrever ou receber bilhetes.
Durante todo o resto da viagem rumino incessantemente essa decisão. Nada, absolutamente nada, nem com o exterior nem com o interior. Ocorre-me uma idéia: o único jeito de receber apoio, sem arriscar a comida, é que do exterior alguém pague aos distribuidores de sopa para que eles escolham um dos maiores e melhores pedaços de carne no almoço. É fácil, porque há um que serve o caldo e outro que vem atrás, com uma bandeja, e põe na tigela um pedaço de carne. É preciso que ele remexa até o fundo do ensopado e me dê uma concha com o máximo possível de legumes. Só o fato de eu ter tido essa idéia já me reanima. Realmente, assim eu poderia muito bem comer o suficiente para matar a fome e quase que satisfatoriamente, se esse esquema for bem montado. E eu, por minha vez, que trate de sonhar e de me ausentar o mais possível, escolhendo temas agradáveis, senão fico louco.
Chegamos às ilhas. São 3 horas da tarde. Assim que desembarco, vejo o vestido amarelo claro de Juliette, ela ao lado do marido. O comandante se aproxima de mim rapidamente, antes mesmo que a turma tenha tido tempo de se pôr em fila, e me diz:
– Quanto?
– Oito anos.
Ele volta para junto da esposa e fala com ela. Emocionada, com certeza, ela se senta numa pedra. Completamente prostrada. Seu marido a segura pelo braço, ela se levanta e, depois de me lançar um sombrio olhar com aqueles seus imensos olhos, os dois vão embora sem se virar mais.
– Papillon – pergunta Dega -, quanto?
– Oito anos de reclusão.
Ele não responde nada e não tem coragem de olhar para mim. Galgani se aproxima e, antes que ele fale, eu digo:
– Não me mande nada e nem me escreva nada. Com uma pena assim longa, eu não posso me arriscar a uma punição.
– Compreendo.
Em voz baixa, acrescento apressadamente:
– Dê um jeito para que eles me sirvam o melhor possível no almoço e no jantar. Se você conseguir isso, talvez a gente volte a se ver um dia. Adeus.
Voluntariamente me dirijo para a primeira canoa que vai nos levar para Saint-Joseph. Todo mundo me olha como se olhasse um caixão que está baixando para a sepultura. Ninguém fala nada. Durante a curta viagem, eu repito a Chapar o que disse a Galgani. Ele me responde:
– Acho que dá pra arranjar isso. Coragem, Papi.
E acrescenta:
– E Matthieu Carbonieri?
– Me desculpe, eu tinha me esquecido dele. O presidente do tribunal militar solicitou que seja feita uma complementação de informação sobre o caso dele antes de tomar uma decisão; isso é bom ou mau sinal?
– É bom sinal, acho eu.
Sou dos primeiros na pequena coluna de doze homens que escala a encosta para chegar à reclusão. Subo rápido, tenho pressa, engraçado, de me ver só na minha cela. Apresso tanto o passo, que o guarda me diz.
– Mais devagar, Papillon. Até parece que você está com pressa de chegar nessa casa donde você saiu há tão pouco tempo.
Estamos chegando.
– Sentido! Apresento-lhes o comandante da reclusão.
– Lamento que você tenha voltado para cá, Papillon – diz ele.
E em seguida:
– Reclusos, para cá, etc. Faz seu discurso habitual:
– Prédio A, cela 127. É a melhor, Papillon, porque você fica em frente da porta do corredor e assim tem um pouco mais de luz e é sempre ventilado. Espero que você mantenha uma boa conduta. É muito tempo, oito anos, mas quem sabe, pode ser que, com um excelente comportamento você venha a merecer uma comutação de um ou dois anos na sua pena. É o que eu lhe desejo, porque você é um homem corajoso..
Pronto, estou na 127. Realmente, ela fica bem em frente de uma grande porta gradeada que dá para o corredor. Embora sejam quase 6 horas, ainda há uma certa claridade. À cela também não tem aquele sabor e aquele cheiro de podre da minha primeira cela. Isso me anima um pouco:
“Meu velho Papillon”, digo a mim mesmo, “eis aqui as quatro paredes que vão ficar olhando você durante oito anos. Negue-se a contar os meses e as horas, é inútil. Se você quiser tomar uma unidade de medida aceitável, é de seis em seis meses que você deve contar. Dezesseis vezes seis meses e você estará livre outra vez. De qualquer jeito, você tem uma vantagem. Se esticar as canelas aqui e se for de dia, terá pelo menos a satisfação de morrer na luz. É muito importante. Não deve ser muito divertido morrer no escuro. Se você ficar doente, pelo menos aqui o médico vai enxergar a sua cara. Você não tem nada que se arrepender por ter tentado viver novamente por meio de uma fuga e, aliás, verdade seja dita, nem por ter matado Celier. Imagine só o quanto torturaria você, ficar pensando que, enquanto está aqui, ele fugiu. O tempo dirá. Pode ser que aconteça uma anistia, uma guerra, um terremoto, um furacão que destrua esta fortaleza. Por que não? Pode surgir um homem de caráter, que volte para a França e consiga comover os franceses e estes, por sua vez, obriguem a administração penitenciária a suprimir esta forma de guilhotinar gente sem usar a guilhotina. Quem sabe se um médico, revoltado, não vai contar tudo isso a um jornalista, a um padre, sei lá eu quem mais?… De qualquer jeito, Celier há muito tempo que foi digerido pelos tubarões. Eu não, eu estou aqui e, se for digno de mim mesmo, tenho de sair vivo deste sepulcro”.
Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta; um, dois, três, quatro, cinco, outra meia volta, começo a andar e reencontro imediatamente a posição da cabeça, dos braços, e a medida exata da passada, para que o passeio funcione com precisão. Resolvo andar apenas duas horas de manhã e duas horas de tarde, até saber se posso contar com uma alimentação privilegiada em quantidade. Nada de começar a desperdiçar energia inutilmente com esse nervosismo dos primeiros dias.
Sem dúvida, é lamentável ter fracassado na etapa final. Claro que era só o primeiro episódio da fuga, além disso era preciso fazer uma travessia bem sucedida de mais de 50 quilômetros, com aquela frágil jangada. E, depois que aportássemos na Terra Grande, talvez precisássemos executar de novo uma evasão. Se a partida funcionasse bem, a vela de três sacos de farinha teria impelido a jangada a mais de 10 quilômetros por hora. Em menos de quinze horas, talvez doze, nós tocaríamos a terra. Isso, claro, se chovesse durante o dia, porque apenas com chuva podíamos nos arriscar a içar vela. Se bem me lembro, no dia seguinte ao dia em que me fecharam na cela, choveu. Não tenho muita certeza. Procuro encontrar falhas ou erros cometidos. Encontro só dois. O marceneiro quis fazer uma jangada muito bem feita demais, segura demais, e por isso, para encaixar os cocos, precisou fazer uma armação especial; praticamente, eram duas jangadas, uma dentro da outra. Daí, havia um número grande demais de peças a fabricar, e ele precisava de tempo demais para fabricá-las com todas as precauções.
Em segundo lugar, o mais grave: logo à primeira dúvida séria sobre Celier, na mesma noite, eu devia ter matado ele. Se eu tivesse feito isso, quem sabe onde estaria agora! Mesmo se a coisa desse certo ao chegarmos à Terra Grande ou se eu fosse apanhado na hora do embarque, só pegaria três anos e não oito, e me ficaria a satisfação da ação realizada. Onde eu estaria agora, se tudo tivesse dado certo, nas ilhas ou na Terra Grande? Quem é que vai saber? Talvez conversando com Bowen, em Trinidad ou protegido em Curaçau pelo Bispo Irénée de Bruyne. E, então, só se tornaria a partir depois de estarmos seguros de que tal ou tal outro país nos receberia. Em caso contrário, me seria fácil voltar sozinho, diretamente, num barco pequeno, para Guajira, para a minha tribo.
Adormeci muito tarde, consegui dormir um sono normal. Essa primeira noite não foi tão deprimente. Viver, viver, viver. Devo repetir cada vez que estiver a ponto de me entregar ao desespero, três vezes, essa palavra de esperança: “Enquanto há vida, há esperança”.
Passou-se uma semana. Desde ontem notei modificação das porções da minha comida. Um espetacular pedaço de carne cozida no almoço, e no jantar uma tigela de lentilhas puras, quase sem água. Como criança, digo a mim mesmo: lentilhas tem ferro, que é muito bom para a saúde.
Se continuar assim, vou poder andar dez a doze horas por dia, e à noite, então, bem cansado, estarei em estado propício para viajar pelas estrelas. Não, não é delírio, estou com os pés na terra, bem na terra, penso em todos os casos de forçados que conheci nas ilhas. Cada um tem a sua história, antes e durante. Penso também nas lendas que correm de boca em boca nas ilhas. Uma dessas lendas, que tenho intenção de verificar se é verdadeira, caso eu volte às ilhas, é a lenda do sino.
Conforme já contei, os forçados não são enterrados, são jogados ao mar entre Saint-Joseph e Royale, num ponto infestado de tubarões. O morto é envolvido em sacos de farinha, tendo aos pés uma corda amarrada a uma grande pedra. Um caixão retangular, sempre o mesmo, é instalado na horizontal, na parte dianteira do barco. Uma vez chegados ao local designado, os seis forçados remadores levantam os remos horizontalmente, à altura da bordagern. Um homem inclina o caixão e outro abre uma espécie de alçapão. Então o corpo desliza para dentro da água. É certo, e não há margem para nenhuma dúvida, que os tubarões imediatamente cortam a corda. Nunca dá para um morto afundar muito. Volta á superfície e os tubarões começam a disputar esse manjar de festa. Ver comer um homem, segundo aqueles que já assistiram a esse espetáculo, é impressionante, porque, além de tudo, quando os tubarões são muitos, conseguem levar a mortalha com seu conteúdo para fora da água, e então, dilacerando os sacos de farinha, carregam grandes nacos do cadáver.
Tudo se passa exatamente conforme descrevi, mas há uma coisa que não pude verificar. Os condenados, sem exceção, contam que o que atrai os tubarões àquele local é o som do sino que tocam na capela quando há um morto. Dizem que às vezes a gente pode ficar na ponta do quebra-mar de Royale às 6 da tarde sem ver um único tubarão. Quando batem o sino da igrejinha, na mesma hora o local se infesta de tubarões à espera do cadáver. Além do sino, não há nada que explique por que eles acorrem a esse ponto nessa hora precisa. Esperemos que eu não venha a servir de prato do dia para os tubarões de Royale em semelhantes condições. Que eles me devorem vivo durante uma fuga, pouco ligo, pelo menos terá sido durante uma iniciativa minha na luta pela liberdade. Mas, depois de uma morte por doença numa cela, isso não, isso não pode acontecer.
Podendo comer bastante, graças à organização montada pelos meus amigos, estou em perfeita saúde. Ando das 7 horas da manhã às 6 da tarde sem parar. Dessa forma, a tigela do jantar, cheia de legumes secos, feijão, lentilha, ervilha seca ou arroz na gordura, fica vazia em pouco tempo. Como sempre tudo sem ter de me esforçar. Andar me faz bem, o cansaço que isso dá é sadio e consigo me transformar noutro homem enquanto ando. Ontem, por exemplo, passei o dia todo nos campos de uma aldeia de Ardèche que se chama Favras. Muitas vezes, depois que minha mãe morreu, eu ia passar umas semanas na casa da minha tia, irmã da minha mãe, professora primária do lugarejo. Pois bem, ontem eu estava virtualmente nesse bosque de castanheiros, colhendo cogumelos, e depois ouvia meu pequeno amigo, o pastor, dar ordens a seu cachorro treinado, que obedecia com grande eficiência trazendo de volta uma ovelha desgarrada ou castigando uma cabra muito passeadeira. E, mais ainda, cheguei até a sentir na boca o sabor fresco da fonte ferruginosa, me deliciei com as leves cócegas das bolhas minúsculas que me subiam ao nariz. Essa capacidade tão autêntica e verdadeira de reencontrar momentos passados há mais de quinze anos, essa faculdade de revivê-los sentidamente com tanta intensidade só podem ser conseguidas numa cela, longe de tudo quanto é barulho, no silêncio mais completo.
Chego a ver a cor amarela do vestido de tia Outine. Ouço o murmúrio do vento nos castanheiros, o ruído seco que faz a casca da castanha ao cair no chão seco e macio, quando mergulha num tapete de folhas. Um enorme javali apareceu por entre as esbeltas giestas e me deu um medo tão grande, que saí correndo, deixando cair pelo caminho grande parte dos cogumelos colhidos. Sim, passei – enquanto andava – o dia inteiro em Favras com a titia e meu coleguinha, o pastor Julien. Essas lembranças revividas, tão doces, tão límpidas, tão precisas, não há ninguém que possa me impedir de me refugiar nelas, de buscar nelas a paz que é necessária ao meu espírito atormentado e magoado.
Para a sociedade, estou em uma dessas inúmeras celas da devoradora de homens. Na realidade, roubei-lhes um dia inteiro, que passei em Favras, nos campos, entre os castanheiros, e até mesmo bebi água mineral na fonte chamada do Pessegueiro.
Já passaram os seis primeiros meses. Eu me determinara a contar por unidades de seis meses; mantive meu propósito. Só hoje de manhã diminuí de dezesseis para quinze… Mais quinze vezes seis meses.
Vamos fazer o balanço da situação. Nenhum incidente pessoal nestes seis meses. A comida é sempre a mesma, mas, por outro lado, a ração que recebo é bem razoável e assim minha saúde não vai se prejudicar. À minha volta, muitos suicidas e loucos furiosos, que felizmente logo são levados embora. É deprimente ficar ouvindo gritarem, gemerem ou se queixarem durante horas, ou dias inteiros. Bolei um recurso bom, só que faz mal para o ouvido. Corto um pedaço de sabão e enfio nos dois ouvidos, para não ouvir mais esses gritos horripilantes. Infelizmente, o sabão me prejudica os ouvidos, que começam a doer muito daí a um ou dois dias.
Pela primeira vez desde que estou nos trabalhos forçados, me rebaixo a pedir uma coisa a um guarda. Acontece que um guarda que traz a sopa é de Montélimar, perto da minha terra. Eu o conheci na Ilha Royale e peço a ele para me arranjar uma pequena bola de cera, para me ajudar a suportar a barulheira que fazem os loucos antes de serem levados embora. No dia seguinte, ele me traz uma bola de cera do tamanho de uma noz. É incrível o alívio que dá não ouvir mais esses infelizes.
Já tenho bastante prática com as grandes lacraias. Em seis meses, só fui mordido uma vez. Resisto muito bem, quando acordo e há uma passeando pelo meu corpo nu. A gente se acostuma com qualquer coisa, é só questão de se controlar, porque as cócegas que fazem as patas e as antenas das lacraias são muito desagradáveis. Mas, se a gente pega a lacraia de mau jeito, ela morde. Vale mais a pena esperar que desça espontaneamente de cima da gente e, aí sim, ir para cima dela e matá-la. Em cima do meu banco de cimento há sempre dois ou três pedacinhos de pão fresco. Forçosamente, o cheiro do pão as atrai e elas vão para lá. Então eu as mato.
Preciso afastar uma idéia fixa que me persegue. Por que não matei Bébert Celier no mesmo dia em que tive dúvidas sobre sua função nefasta? Então, incessantemente, argumento e contra-argumento comigo mesmo: quando é que se tem o direito de matar? Em seguida, me defino: o fim justifica os meios. O fim, para mim, era lograr a fuga, eu tive a oportunidade de terminar uma jangada bem construída, de escondê-la em local seguro. O embarque seria dentro de alguns dias. Uma vez que eu estava a par do perigo que Celier representava – e isso na época da penúltima peça, que, por milagre, chegara a seu destino – deveria ter executado o homem sem hesitação. E se eu estivesse enganado, se as aparências fossem falsas? Teria matado um inocente. Que horror! Mas é ilógico que eu me coloque um problema de consciência, eu, um condenado aos trabalhos forçados perpétuos. Pior do que isso, condenado a oito anos de reclusão no meio de uma pena perpétua!
E o que é que você pretende, que é você, sobra de lixo, tratado como uma imundície da sociedade? Só queria saber se os doze jurados de merda que o condenaram se perguntaram, uma vez que fosse, se achavam que verdadeiramente, conscientemente, fizeram bem em condená-lo a uma pena tão dura. E se o promotor (ainda estou escolhendo com qual instrumento vou arrancar a língua dele) se perguntou se não foi um pouco exagerado no seu requisitório. Com certeza, nem mesmo os meus advogados se lembram mais de mim! Na certa aludem em termos gerais a “aquele caso infeliz do Papillon” no julgamento de 1932: “Vocês sabem, prezados colegas, naquele dia eu não estava lá muito em forma e, para meu azar, o promotor Pradel estava num de seus melhores dias. Ele ganhou esse caso para a acusação de forma magistral. É verdadeiramente um adversário de grande classe”.
Visualizo e ouço tudo isso como se estivesse ao lado do Dr. Raymond Hubert, no meio de uma conversa entre advogados, ou em uma reunião mundana, ou mais precisamente nos corredores do Palácio da Justiça.
Um único homem, sem sombra de dúvida, tem uma posição de magistrado probo e honesto, o presidente do tribunal, Bévin. Este, sim, pode muito bem, homem imparcial que é, discutir entre colegas ou numa reunião mundana o perigo que existe em fazer julgar um homem por jurados. Sem dúvida ele deve dizer, evidentemente que com palavras bem adequadas, que os doze sacanas do júri não estão preparados para uma tal responsabilidade, que eles se impressionam demais pelo brilho da acusação ou da defesa, conforme uma das duas domina esse torneio de oratória; que eles absolvem depressa demais, ou condenam sem saber muito bem como, conforme a atmosfera positiva ou negativa que consegue criar o mais forte dos dois partidos.
Isso quanto ao presidente, e também à minha família, mas a minha família talvez tenha ficado com raiva de mim, por causa dos problemas que criei para ela. Só um, papai, meu pobre pai, é que não deve ter-se queixado da cruz que seu filho lhe pôs nos ombros, tenho certeza. Essa cruz tão pesada, ele a carrega sem acusar seu menino, sem censurá-lo, e isso apesar de, como professor primário, ser respeitador da lei e até ensine a compreendê-la e a aceitá-la. Tenho certeza de que, do fundo do seu coração, ele exclama: “Seus sórdidos, vocês mataram meu filho, fizeram pior, condenaram ele a morrer aos pouquinhos, com 25 anos!” Se meu pai soubesse onde anda agora o menino dele, o que fizeram com o menino dele, era capaz de virar anarquista.
Hoje à noite, a devoradora de homens esteve mais do que nunca à altura da sua fama. Percebi que houve dois enforcados e um que se sufocou enfiando trapos de pano na boca e nas narinas. A cela 127 fica perto do lugar onde os guardas fazem o revezamento de horário e, as vezes, ouço pequenos trechos das conversas deles. Hoje de manhã, por exemplo, eles falaram bem baixinho, para eu não ouvir o que diziam sobre os acontecimentos da noite.
Mais seis meses passaram. Faço um balanço da situação e acabo de gravar na madeira um belo “14”. Tenho um prego que uso apenas de seis em seis meses. Faço o balanço: a saúde continua boa e o moral vai muito bem.
Graças às minhas viagens por entre as estrelas, é muito raro que eu tenha crises demoradas de desespero. Bem depressa eu as supero, e armo com todos os detalhes uma viagem real ou imaginária que afugenta as idéias sombrias. A morte de Celier me ajuda muito a sair vitorioso desses momentos de crises agudas. Digo a mim mesmo: “Eu estou vivo, estou vivo, estou vivo e preciso continuar vivo, viver, viver para um dia reviver livre. Ele, que me impediu de fugir, ele está morto e nunca vai ser livre como eu vou ser um dia, é certo, é garantido. De qualquer maneira, se eu sair com 38 anos, não é ainda a velhice, e a próxima fuga vai ser definitiva, tenho certeza”.
Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta; um, dois, três, quatro, cinco, outra meia volta. Já faz alguns dias que minhas pernas estão pretas e me sangram as gengivas. Deveria me declarar doente? Aperto com o polegar a minha perna perto do calcanhar e a marca fica estampada. Tenho a impressão de que estou cheio de água. Já faz uma semana que não posso mais andar dez ou doze horas por dia, fico muito cansado só com seis horas de marcha, em duas vezes. Quando limpo os dentes, não posso mais esfregá-los com a toalha felpuda embebida em sabão, porque as gengivas doem e sangram muito. E até um dente me caiu, sem mais nem menos, ontem, um incisivo do maxilar superior.
É com uma verdadeira revolução que terminam os seis meses seguintes. Efetivamente, ontem nos mandaram pôr a cabeça para fora e passou um médico que levantava os lábios de cada um de nós. E, hoje de manhã, depois de exatamente dezoito meses que estou nesta cela, a porta se abriu e me disseram:
– Saia, encoste-se na parede e fique esperando.
Eu era o primeiro ao lado da porta, saíram uns setenta homens.
– Meia volta, esquerda.
Sou agora o último de uma fila que se alonga até a outra extremidade do prédio e sai para o pátio.
São 9 horas. Um jovem doutorzinho, com camisa cáqui de mangas curtas, está sentado ao ar livre, junto a uma mesa de madeira. Ao lado dele, dois forçados enfermeiros e um guarda enfermeiro. Todos eles, e o médico também, me são desconhecidos. Dez guardas, de carabina em punho, fazem a cobertura do cerimonial. Comandante e guarda-chefe, em pé, contemplam a cena em silêncio.
– Todo mundo nu – grita o guarda-chefe. – A roupa debaixo do braço. O primeiro. Seu nome?
– X…
– Abra a boca, as pernas. Arranque estes três dentes dele. Álcool iodado primeiro, azul-de-metileno depois, xarope de cocleária duas vezes por dia, antes das refeições.
Sou o último.
– Seu nome?
– Charrière.
– Puxa, você é o único que está com um corpo apresentável. Você chegou há pouco tempo?
– Não.
– Há quanto tempo está aqui?
– Faz hoje dezoito meses.
– Por que você não está magro como os outros?
– Não sei.
– Bom, eu vou lhe dizer por quê. É porque você come melhor do que eles, salvo se você se masturba menos. A boca, as pernas. Dois limões por dia: um de manhã, um na hora do jantar. Chupe os limões e passe o suco nas gengivas, você está com escorbuto.
Limpam-me as gengivas com álcool iodado, depois me pincelam com azul-de-metileno, me dão um limão. Meia volta, sou o último da fila e volto para a minha cela.
O que acaba de acontecer é uma verdadeira revolução, levar para fora os doentes até o pátio, deixá-los ver o sol, mostrá-los ao médico, de perto. Isso nunca se viu na reclusão. O que estará acontecendo? Será que, afinal, um médico se recusou a ser cúmplice calado desse famoso regulamento? Este médico, que mais tarde vai se tornar meu amigo, se chama Germain Guibert. Morreu na Indochina. Sua esposa me contou isso, muitos anos depois desse dia, numa carta que me escreveu para Maracaibo, na Venezuela.
De dez em dez dias, consulta no sol. Sempre a mesma receita: álcool iodado, azul-de-metileno, dois limões. Meu estado não piora, mas também não melhora. Duas vezes eu pedi xarope de cocleária e duas vezes o médico me negou, e isso começa a me irritar, porque continuo sem poder andar mais de seis horas por dia, a parte de baixo das minhas pernas está preta e inchada.
Um dia, ao esperar a minha vez de consulta, percebo que a pequena árvore raquítica que me protege um pouco contra os raios do sol é um limoeiro sem limões. Arranco uma folha e a mastigo e, em seguida, maquinalmente, corto fora um pequeno ramo com algumas folhas, sem idéia preconcebida. Quando o médico me chama, meto o ramo no traseiro e digo a ele:
– Doutor, não sei se é culpa dos seus limões, mas olhe só o que me brotou atrás.
E me viro com o meu raminho cheio de folhas no traseiro.
Os guardas primeiro caem na gargalhada e depois o guarda-chefe diz:
– Você terá uma punição, Papillon, por falta de respeito ao médico.
– De jeito nenhum – diz o médico. – Este homem não deve ser punido, uma vez que eu não fiz queixa. Você não quer mais limões? É isso que você quis dizer?
– É isso, doutor, já chega de limões, isso não me cura. Quero experimentar o xarope de cocleária.
– Não lhe receitei porque tenho muito pouco e economizo para os doentes graves. Mas vou lhe receitar uma colherada por dia e vamos continuar com os limões.
– Doutor, já vi índios comerem algas do mar, e sei que existem as mesmas algas na Ilha Royale. Deve ter também na Ilha Saint-Joseph.
– Você me deu uma idéia brilhante. Vou mandar distribuir para vocês todo dia uma certa alga que realmente eu também já vi na praia. Os índios a comem crua ou cozida?
– Crua.
– Está bem, obrigado. Meu comandante, espero que este homem não seja punido, confio no senhor.
– Certo, capitão.
Um milagre aconteceu. Sair toda semana para o sol por duas horas, ou ficar à espera do momento da consulta, espiando a consulta dos outros, ver caras de gente, murmurar algumas palavras; quem poderia sonhar que uma coisa tão maravilhosa pudesse acontecer. É uma transformação fantástica para todos: os mortos se erguem e caminham sob o sol; esses enterrados vivos, afinal, podem dizer algumas palavras. É uma botija de oxigênio que insufla vida nova a cada um de nós.
Claque, claque, infinidades de claques abrem todas as portas das celas uma quinta-feira de manhã, às 9 horas. Todo recluso recebe ordem de ficar de pé na soleira de sua porta.
– Reclusos – grita uma voz -, inspeção do governador.
Acompanhado por cinco oficiais, sem dúvida todos médicos, um homem alto, elegante, cabelos grisalhos prateados, passa lentamente ao longo do corredor, diante de cada cela. Ouço que lhe indicam quais os de pena mais pesada e os motivos delas. Antes de chegar à altura da minha cela, levantam um homem que não teve forças para esperar por tanto tempo em pé. É um dos antropófagos Graville. Um dos militares diz:
– Mas é um cadáver ambulante, esse aí!
O governador responde:
– Estão todos em estado deplorável.
A comissão chega até a minha cela. O comandante diz:
– Este aqui tem a pena mais pesada da reclusão.
– Como se chama? – pergunta o governador.
– Charrière.
– Sua pena?
– Oito anos por roubo de material do Estado, etc, morte, três e cinco anos, com distinção entre as penas.
– Quanto já cumpriu?
– Dezoito meses.
– Seu comportamento?
– Bom – diz o comandante.
– De saúde?
– Sofrível – diz o médico.
– Que tem a declarar?
– Que este regime é desumano e pouco digno de um povo como o da França.
– Os motivos?
– Silêncio absoluto, nenhuma saída ao pátio e até poucos dias nenhum cuidado médico.
– Mantenha-se em boa conduta e talvez a sua pena seja comutada, se eu continuar no cargo de governador.
– Obrigado.
A partir desse dia, por ordem do governador e do médico-chefe vindos da Martinica e de Caiena, todos os dias, uma hora de saída ao pátio e banho de mar, em uma espécie de piscina improvisada onde os banhistas são protegidos dos tubarões por grandes blocos de pedra.
Às 9 horas, toda manhã, em grupos de cem, descemos da reclusão, completamente nus, para o banho. As esposas e os filhos dos vigias tem ordem de ficar dentro de casa, para a gente poder ir nu.
Já faz um mês que as coisas estão assim. As caras dos homens se transformaram completamente. Essa hora de sol, esse banho em água salgada, o fato de poder falar uma hora por dia, tudo isso transformou radicalmente a manada de reclusos, doentes física e moralmente.
Um dia, no caminho de volta da piscina para a reclusão, estou entre os últimos, quando se ouvem gritos desesperados de mulher e dois tiros de revólver. Percebo:
– Socorro! Minha filha está se afogando!
Os gritos vêm do cais, que não passa de um declive cimentado que entra pelo mar adentro e onde encostam as canoas. Mais gritos:
– Os tubarões!
E mais dois tiros de revólver. Como todo mundo se virou para o lado dos gritos e tiros de revólver, sem pensar duas vezes eu empurro um guarda e saio correndo todo nu para o cais. Quando chego, vejo duas mulheres gritando como duas perdidas, três vigias e uns árabes.
– Entrem na água! – grita a mulher. – Ela não está longe! Eu não sei nadar, senão eu ia. Corja de covardes!
– Os tubarões! – diz um guarda.
E dá outro tiro.
Uma menina com seu vestido azul e branco flutua no mar, levada devagar por uma correnteza fraca. Ela vai sendo levada diretamente para a confluência das correntezas que serve de cemitério para os forçados, mas ainda está muito longe desse ponto. Os guardas atiram sem parar e sem dúvida acertaram vários tubarões porque há umas reviravoltas perto da menina.
– Parem de atirar! – grito eu.
E, sem pensar duas vezes, me atiro na água. Com a ajuda da correnteza, me dirijo rapidamente para o lado da menina, que continua flutuando por causa de seu vestido, batendo os pés com toda a força, para espantar os tubarões.
Só me faltam uns 30 ou 40 metros para alcançá-la, quando chega uma canoa que veio de Royale e que viu a cena de longe. Alcança a menina antes de mim, agarra-a e a põe a salvo. Choro de ódio, sem nem pensar nos tubarões. Por minha vez, também sou pescado para bordo. Arrisquei a vida por nada.
Era isso pelo menos o que eu pensava, porque um mês depois, como uma espécie de recompensa, o Doutor Germain Guibert obtém uma suspensão da minha pena de reclusão, por motivo médico.