39074.fb2
O ruído monótono do automóvel, voando muito alto acima do solo, embalava Margarita, e a luz da Lua aquecia-a agradavelmente. Fechando os olhos, ela oferecia o rosto ao vento e pensava com alguma tristeza na margem do rio desconhecido que acabava de deixar e que, segundo pressentia, nunca mais tornaria a ver. Depois de todas as feitiçarias e prodígios daquela noite, adivinhava já a casa para junto de quem a levavam, mas isso não a assustava. A esperança de aí recuperar a felicidade tornava-a intrépida. Não teve de resto muito tempo, no caminho, para sonhar com essa felicidade. Ou porque a gralha sabia bem do seu ofício, ou porque o carro era bom, mas dali a pouco Margarita, ao abrir os olhos, viu lá em baixo, não a escuridão da floresta, mas o lago tremulante das luzes de Moscovo. Ainda em voo, o negro pássaro-motorista desaparafusou a roda direita da frente, depois fez aterrar o carro num cemitério completamente deserto da zona de Dorogomilov. Deixando Margarita com a sua vassoura ao lado de uma das campas, a gralha pôs o carro em movimento, dirigindo-o para uma ravina, para lá do cemitério. O carro caiu com estrondo na ravina e esmagou-se. A gralha levou respeitosamente a mão à pala do boné, pôs-se a cavalo na roda e partiu voando.
Imediatamente, de trás de uma das estátuas surgiu uma capa negra. Um dente canino brilhou ao luar, e Margarita reconheceu Azazello. Este, com um gesto, convidou Margarita a sentar-se na vassoura, enquanto ele próprio montava num longo florete. Ambos levantaram voo e, sem que ninguém os visse, desceram alguns segundos depois junto ao prédio número 302 B da Rua Sadovaia.
Quando, com a vassoura e o florete debaixo do braço, os dois companheiros entraram pelo portão, Margarita reparou num homem de boné e botas altas que, ansioso, ali esperava evidentemente alguém. Embora os passos de Azazello e de Margarita fossem muito leves, o homem solitário ouviu-os e estremeceu, inquieto, sem compreender quem produzia aqueles sons.
Um segundo homem, muito parecido com o primeiro, encontraram-no junto à sexta entrada. E voltou a repetir-se a mesma história. Os passos… O homem voltou-se, ansioso, e franziu o cenho. E quando a porta se abriu e se fechou, ele deitou a correr atrás dos invisíveis que entravam, espreitou para a portaria, mas, naturalmente, nada viu.
Um terceiro, exacta cópia do segundo e, portanto, também do primeiro, estava postado no patamar do terceiro andar. Fumava cigarros fortes, e Margarita teve um acesso de tosse ao passar junto dele. O fumador, como se lhe tivessem picado, deu um salto do banco onde estava sentado, começou a olhar, ansioso, à sua volta, aproximou-se do corrimão, espreitou para baixo. Entretanto, Margarita, com o seu acompanhante, estava já à porta do apartamento número 50. Não tocaram à porta. Azazello abriu silenciosamente a porta com a sua chave.
A primeira coisa que impressionou Margarita foi a escuridão em que se encontrou. Não se via nada, como num subterrâneo, e Margarita agarrou-se involuntariamente à capa de Azazello, com receio de tropeçar. Mas então, lá em cima, muito longe, a luzinha de uma qualquer lamparina brilhou e começou a aproximar-se. Enquanto caminhavam, Azazello tirou a vassoura de debaixo do braço de Margarita e a vassoura desapareceu na escuridão sem qualquer ruído. Então, começaram a subir uns degraus muito largos, e parecia a Margarita que os degraus nunca mais acabavam. Surpreendia-a que no vestíbulo de um vulgar apartamento moscovita pudesse caber aquela interminável e extraordinária escada invisível, embora muito palpável. Mas de súbito a ascensão terminou e Margarita compreendeu que se encontrava num patamar. A luzinha aproximou-se até ficar muito perto e Margarita viu o rosto iluminado de um homem alto vestido de negro, que segurava na mão essa lamparina. Os que, naqueles dias, tinham tido já a infelicidade de, se cruzarem no seu caminho, tê-lo-iam reconhecido de imediato, mesmo à luz da chamazinha da lamparina. Era Koroviev, aliás Fagot.
É verdade que o aspecto de Koroviev tinha mudado consideravelmente. A luz vacilante reflectia-se, não nas lunetas rachadas, que há muito deviam ter sido lançadas para o lixo, mas num monóculo, é certo que também rachado. O bigode no rosto insolente estava frisado e brilhante, e a negrura de Koroviev explicava-se muito facilmente: ele estava de fraque. Só o peito era branco.
O mágico, chantre, feiticeiro, intérprete ou sabe lá o Diabo quem ele era realmente — em suma, Koroviev — fez uma vénia e, com um amplo gesto da mão que segurava a lamparina, convidou Margarita a segui-lo. Azazello tinha desaparecido.
“Que noite tão estranha”, pensou Margarita. “Esperava tudo, menos isto! Faltou-lhe talvez a electricidade? Mas o mais surpreendente é o tamanho desta casa. Como é possível meter tudo isto num apartamento de Moscovo? É simplesmente impossível!”
Apesar da pouca luz da lamparina, Margarita compreendeu que se encontrava numa sala imensa, ainda por cima com uma colunata, sombria e à primeira vista interminável. 1(oroviev parou junto a um divã, colocou a lamparina sobre uma espécie de pedestal, com um gesto convidou Margarita a sentar-se, enquanto ele próprio se instalava ao lado numa pose pitoresca apoiando um cotovelo no pedestal.
— Permita que me apresente — começou 1(oroviev numa voz chiada. — Está surpreendida com a falta de luz? Pensou certamente que era por economia? Não, não e não! Que o primeiro carrasco que apareça, mesmo um daqueles que hoje, um pouco mais tarde, terão a honra de lhe beijar o joelho, me corte a cabeça sobre este pedestal, se Isso é verdade! Simplesmente, messíre não gosta de luz eléctrica, e nós só a acendemos mesmo no último momento. E então, acredite, haverá luz suficiente. Seria até talvez melhor se ela fosse um pouco menos.
Margarita gostou de Koroviev, e a estridente tagarelice dele teve sobre ela um efeito tranquilizador.
— Não — respondeu Margarita. — O que mais me impressiona é como tudo isto cabe aqui. — Fez um gesto com a mão, sublinhando com isso a imensidade da sala.
Koroviev deu uma risadinha, o que fez com que as sombras se lhe agitassem nas rugas junto ao nariz.
— Isso é a coisa mais simples! — respondeu ele. — Aqueles que estão familiarizados com a quinta dimensão não têm qual— quer dificuldade em dilatar um lugar até aos limites desejados. Digo-lhe mais, minha cara senhora, só o Diabo sabe até que limites! Eu, de resto — continuou Koroviev a tagarelar —, conheci pessoas que não tinham qualquer noção, não só da quinta dimensão, como em geral não tinham qualquer noção de nada e que, no entanto, faziam autênticos milagres no sentido da expansão do seu espaço. Assim, por exemplo, um cidadão, segundo me disseram, tendo recebido um apartamento de três assoalhadas no Zerriliam Val, sem qualquer quinta dimensão nem nada dessas coisas capazes de pôr a cabeça a andar à roda, transformou-o instantaneamente num apartamento de quatro assoalhadas dividindo uma das salas ao meio com um tabique.
“Depois disso trocou-o por dois apartamentos diferentes em diferentes zonas de Moscovo: um de três e outro de duas assoalhadas. Há-de concordar que ele passou a ter cinco assoalhadas. O de três trocou-o por dois apartamentos separados de duas assoalhadas e passou a ter, como vê, seis divisões, é certo que dispersas em total desordem por toda a Moscovo. Já se preparava para efectuar um último e mais brilhante volteio, publicando no jornal um anúncio segundo o qual trocava seis divisões em diferentes zonas de Moscovo por um apartamento de cinco assoalhadas no Zerriliam Val, quando a sua actividade foi interrompida por motivos alheios à sua vontade. É possível que ele tenha agora algum quarto, mas atrevo-me a afirmar que não é em Moscovo. Aí tem um verdadeiro espertalhão. E a senhora ainda vem falar da quinta dimensão.
Embora Margarita nada tivesse dito acerca da quinta dimensão e fosse o próprio Koroviev quem falara do assunto, ela riu alegremente com a história das aventuras do especulador imobiliário. E Koroviev prosseguiu:
— Mas vamos ao que interessa, Margarita Nikolaevna, vamos ao que interessa. A senhora é uma mulher muito inteligente e já adivinhou, certamente, quem é o nosso anfitrião.
O coração de Margarita deu um salto e ela assentiu com a cabeça.
— Ora bem, ora bem — disse Koroviev. — Somos inimigos de toda a espécie de reticências e mistérios. Todos os anos messire dá um baile. Chama-se “Baile de Primavera da Lua Cheia” ou “Baile dos Cem Reis”. Uma multidão! — Koroviev levou a mão à face, como se lhe doesse um dente. — Mas espero que a senhora confirme isso com os seus próprios olhos. Pois bem, messire é solteiro, como certamente compreende, mas é necessária uma anfitriã. — Koroviev abriu os braços. — Há-de concordar que sem anfitriã…
Margarita escutava Koroviev, tentando não perder uma única palavra. Sentia um frio no coração, a esperança da felicidade entontecia-a.
— Por uma tradição estabelecida — continuou Koroviev a anfitriã do baile deve ter obrigatoriamente o nome de Margarita, em primeiro lugar, e, em segundo, deve ser natural da localidade. Ora nós, como vê, andamos em viagem e neste momento estamos em Moscovo. Encontrámos cento e vinte e uma Margaritas em Moscovo e, acredita? — Koroviev deu uma palmada na coxa, desesperado —, nenhuma delas servia! E, finalmente, um feliz acaso…
Koroviev fez um sorriso expressivo, curvando-se, e de novo Margarita sentiu um frio no coração.
— Em suma! — exclamou Koroviev. — Para ser breve: não recusará assumir esse encargo?
— Não recuso — respondeu Margarita com firmeza.
— Está combinado! — disse Koroviev e, erguendo a lamparina, acrescentou: — Queira seguir-me.
Passaram entre as colunas e chegaram finalmente a uma outra sala onde, por qualquer motivo, reinava um forte cheiro a limão, onde se ouviam uns rumores indefinidos e qualquer coisa roçou na cabeça de Margarita, que a fez estremecer.
— Não tenha medo — tranquilizou-a suavemente Koroviev, agarrando-a pelo braço —, são as astúcias mundanas de Beliemot, nada mais. E em geral, Margarita Nikolaevna, permitir-me-ei a audácia de lhe aconselhar a nunca ter medo de nada. Isso seria urna insensatez. O baile será sumptuoso, esse facto não lho ocultarei. Veremos pessoas que no seu tempo tiveram poderes extremamente amplos. É verdade que, quando pensamos na pequenez microscópica das suas possibilidades comparadas com as possibilidades daquele a cujo séquito eu tenho a honra de pertencer, isso torna-se ridículo e, diria mesmo, aflitivo. De resto, a senhora mesma é de sangue real.
— Porquê de sangue real? — murmurou Margarita, assustada, aproximando-se mais de Koroviev.
— Ah, rainha — galhofou jocosamente Koroviev — as questões de sangue são as mais complicadas do mundo! E se interrogássemos algumas bisavós, e em particular aquelas que gozavam da reputação de modéstia, revelar-se-iam segredos espantosos, respeitável Margarita Nikolaevna. Não cometerei nenhum pecado se, ao falar disso, penso num baralho de cartas caprichosamente baralhado. Há coisas em que de nada valem nem as barreiras sociais, nem mesmo as fronteiras entre os estados. Farei uma alusão: uma rainha francesa que viveu no século dezasseis ficaria provavelmente muito admirada se alguém lhe dissesse que, passados muitos anos, eu iria conduzir a sua encantadora tetraneta pelo braço, em Moscovo, rios salões de baile. Mas já chegámos!
Koroviev soprou a lamparina, que desapareceu da sua mão, e Margarita viu então à sua frente, no soalho, uma restiazinha de luz por baixo de uma porta escura. Koroviev bateu suavemente a essa porta. Margarita ficou tão emocionada nesse momento que começou a bater os dentes e sentiu um calafrio nas costas. A porta abriu-se. A sala era muito pequena. Margarita viu uma larga cama de madeira de carvalho com almofadas e lençóis sujos e amarrotados. Diante da cama havia uma mesa de carvalho de pés esculpidos, sobre a qual estava colocado um candelabro cujos braços tinham a forma das garras de uma ave. Nessas sete patas de ouro ardiam grossas velas de cera. Além disso, havia ainda sobre a mesa um tabuleiro de xadrez cujas figuras foram esculpidas com extrema arte. Sobre o pequeno tapete já bastante gasto havia um tamborete baixo. Havia ainda outra mesa com uma taça de ouro e outro candelabro, cujos braços eram em forma de serpente. Havia no quarto um cheiro a enxofre e a resina, e as sombras projectadas pelos castiçais entrecruzavam-se no soalho.
Entre as pessoas presentes, Margarita reconheceu imediatamente Azazello, que agora vestia um fraque e estava de pé junto à cabeceira da cama. Assim ataviado, Azazello não tinha já aquele ar de bandido com que aparecera a Margarita no jardim Alexandrovski. Inclinou-se diante de Margarita com extrema galanteria.
Uma feiticeira nua, aquela mesma Hella que tanto perturbara o respeitável gerente do bufete do Variedades, e, — ai! — a mesma a quem o galo felizmente assustou na noite da famosa sessão, estava sentada sobre o tapete junto à cama e remexia qualquer coisa numa panela de onde saía um vapor sulfuroso.
Além deles, havia ainda no quarto, sentado num banco alto diante do tabuleiro de xadrez, um enorme gato preto que segurava na pata direita um cavalo do xadrez.
Hella soergueu-se e fez uma vénia a Margarita. O mesmo fez o gato, descendo do banco. Arrastando a pata traseira direita, deixou cair o cavalo e meteu-se debaixo da cama para o apanhar.
Margarita, paralisada pelo medo, distinguia tudo isto com dificuldade entre as sombras pérfidas projectadas pelos castiçais.
O seu olhar era atraído pela cama, onde estava sentado aquele a quem ainda recentemente o infeliz Ivan afirmara no lago do Patriarca que o Diabo não existia. Era esse inexistente que estava agora sentado na cama.
Dois olhos estavam fixados no rosto de Margarita. No fundo do olho direito brilhava uma centelha dourada que penetrava até ao âmago da alma de qualquer um, e o esquerdo era vazio e negro, como o estreito buraco de uma agulha, como a boca de um poço de sombras e de trevas sem fundo. O rosto de Woland era torcido, o canto direito da boca puxado para baixo, e a sua testa alta e calva estava marcada por rugas profundas, paralelas às sobrancelhas pontiagudas. A pele do seu rosto parecia curtida por um bronzeado eterno.
Woland estava estendido sobre a cama, e vestia apenas uma comprida camisa de dormir, suja e remendada no ombro esquerdo. Uma das suas pernas nuas estava dobrada debaixo dele, e a outra estendida sobre o pequeno tamborete. Hella friccionava o joelho dessa perna com uma qualquer pomada fumegante.
Margarita distinguiu sobre o peito descoberto e liso de Woland um escaravelho artisticamente talhado numa pedra negra, com umas inscrições nas costas e preso a uma corrente de ouro. Ao lado de Woland, sobre um pesado pedestal, havia um estranho globo, que parecia vivo e iluminado pelo Sol de um dos lados.
O silêncio prolongou-se por alguns segundos. “Está a estudar-me”, pensou Margarita e, num esforço de vontade, tentava reprimir o tremor que sentia nas pernas.
Por fim, Woland falou, sorrindo, o que fez com que o seu olho cintilante parecesse incendiar-se:
— Saúdo-a, rainha, e peço-lhe que me desculpe pelo meu traje doméstico.
A sua voz era tão baixa que algumas palavras se prolongavam num som rouco.
Woland agarrou uma longa espada estendida sobre a cama, debruçou-se, remexeu com ela debaixo da cama e disse:
— Sai daí! A partida é anulada. Chegou a nossa convidada.
— De modo nenhum — sibilou ansiosamente Koroviev, como um ponto no teatro, ao ouvido de Margarita.
— De modo nenhum… — começou Margarita.
— Messire… — soprou Koroviev.
— De modo nenhum, messire — disse Margarita, dominando-se, em voz baixa mas clara. Depois, sorrindo, acrescentou: — Suplico-lhe que não interrompa a partida. Suponho que as revistas de xadrez pagariam bastante dinheiro para poderem publicá-la.
Azazello emitiu um grasnido baixo e aprovador, e Woland, depois de olhar atentamente Margarita, observou como se falasse consigo mesmo:
— Sim, Koroviev tem razão! Como o baralho está caprichosamente misturado! O sangue!
Estendeu a mão e fez sinal a Margarita para que se aproximasse. Ela obedeceu, não sentindo o soalho debaixo dos pés descalços. Woland pousou a sua mão pesada como se fosse de pedra e ao mesmo tempo escaldante como fogo, no ombro de Margarita, puxou-a para si e fê-la sentar-se na cama a seu lado.
— Pois bem — disse ele —, já que é tão deliciosamente amável, e outra coisa eu não esperava de si, não façamos cerimónias.
— Debruçou-se de novo na beira da cama e gritou: — Essa palhaçada aí debaixo da cama vai durar muito? Sai daí, maldito Hans!
— Não consigo achar o cavalo — respondeu o gato debaixo da cama, numa voz abafada e hipócrita. — Escapuliu-se não sei para onde e em vez dele encontrei uma rã.
— Não pensarás tu que estás numa praça de feira? — perguntou Woland, fingindo-se zangado. — Não havia nenhuma rã debaixo da cama! Guarda esses truques vulgares para o Variedades. Se não apareces imediatamente, consideraremos que abandonaste o jogo, maldito desertor!
— Por nada deste mundo, messire! — vociferou o gato, que saiu de debaixo da cama, com o cavalo na pata.
— Apresento-lhe… — começou Woland mas imediatamente se interrompeu: — Não, não posso olhar para este palhaço ridículo. Veja no que ele se transformou debaixo da cama.
De pé sobre as patas traseiras, todo coberto de poeira, o gato fazia uma reverência diante de Margarita. Trazia agora ao pescoço uma gravata branca e, ao peito, preso por um cordão, um binóculo de nácar. Além disso, tinha os bigodes dourados.
— Mas que vem a ser isso?! — exclamou Woland. — Para que douraste os bigodes? E para que diabo precisas de gravata, se não tens calças?
— Os gatos não usam calças, messire — respondeu o gato com grande dignidade. — Não vai ordenar-me que use também botas? O gato das botas só existe nos contos, messire. Mas já viu alguém ir ao baile sem gravata? Não quero achar-me numa situação cómica e correr o risco de me porem no olho da rua! Cada qual adorna-se como pode. E considere que aquilo que eu disse se refere também aos binóculos, messire!
— Mas os bigodes?…
— Não compreendo — replicou secamente o gato —, porque é que, ao barbearem-se hoje, Azazello e Koroviev puderam encher-se de pó-de-arroz, e em que é que o pó-de-arroz é melhor que o pó de ouro? Empoei os bigodes, só isso! Seria outra a história se eu me tivesse barbeado! Um gato barbeado é um horror, estou mil vezes de acordo em reconhecê-lo. Mas, afinal aqui a voz do gato vibrou de indignação —, vejo que me preparam não sei que tramóias, e vejo que se me coloca um problema muito sério: deverei eu ir a esse baile? Que me responde a isto, messire?
E o gato inflou-se tanto de indignação, que parecia estar quase a rebentar.
— Ah, o malandro, o malandro — disse Woland, abanando a cabeça. — Sempre que a partida lhe parece desesperada, ele começa a desconversar como o último dos charlatães. Senta-te e acaba imediatamente com essas baboseiras.
— Eu sento-me — respondeu o gato —, mas protesto contra o que acaba de dizer. As minhas palavras não são de modo nenhum baboseiras, expressão que se permitiu usar diante de uma senhora, mas um rosário de silogismos bem alinhados, que seriam devidamente apreciados por entendidos como Sexto Empírico, Marciano Capela e, porque não, pelo próprio Aristóteles.
— Xeque ao rei — disse Woland.
— Faça favor, faça favor — respondeu o gato, pondo-se a olhar o tabuleiro pelo binóculo.
— Portanto — continuou Woland, dirigindo-se a Margarita apresento-lhe, donna, a minha comitiva. Aquele, que se está a fazer de tolo, é o gato Behernot. Já conhece Azazello e Koroviev. E esta é a minha criada Hella. É expedita, inteligente, e não há serviço que ela não seja capaz de prestar.
A formosa Hella sorriu, voltando para Margarita os seus olhos esverdeados, sem parar de colocar unguento na concha da mão para o espalhar no joelho de Woland.
— E pronto, é tudo — concluiu Woland, fazendo uma careta quando Hella lhe carregava no joelho com mais força. Uma companhia pouco numerosa, como vê, variada e sem astúcias.
Calou-se e começou a fazer girar o globo à sua frente. O globo era feito com tal arte que os oceanos azuis agitavam-se, e a calote polar estava, como a verdadeira, gelada e coberta de neve.
Entretanto, sobre o tabuleiro de xadrez reinava uma grande confusão. O rei, de capa branca, completamente transtornado, batia os pés na sua casa, erguendo os braços, desesperado. Três peões brancos, vestidos de lansquenetes e armados de alabardas, olhavam perplexos um oficial que agitava a espada e apontava à frente deles duas casas contíguas, uma branca outra preta, onde se viam os cavaleiros pretos de Woland, montados em dois cavalos fogosos que raspavam a superfície do tabuleiro com as patas.
Margarita viu, com grande interesse e extrema surpresa, que as figuras do xadrez eram vivas.
O gato, tirando o binóculo dos olhos, empurrou ligeiramente o seu rei pelas costas. Este, desesperado, cobriu o rosto com as mãos.
— Isso vai mal, meu caro Beliernot — disse Koroviev numa voz venenosa.
— A situação é grave, mas de modo nenhum desesperada retorquiu Beliernot. — Mais do que isso: estou seguro da vitória final. Basta analisar devidamente a situação.
Ele começou essa análise de uma maneira bastante estranha, fazendo caretas e piscando o olho ao seu rei.
— Isso não serve de nada — observou Koroviev. — Ai! — exclamou Behemot. — Os papagaios voaram como eu tinha previsto!
Efectivamente, algures ao longe, ouviu-se um rumor de muitas asas. Koroviev e Azazello precipitaram-se para fora do quarto.
— Que o Diabo vos carregue com os vossos divertimentos de salão! — resmungou Woland, sem desviar os olhos do seu globo.
Mal Koroviev e Azazello desapareceram, as piscadelas de olho de Beliernot aumentaram acentuadamente. O rei branco compreendeu por fim o que se esperava dele e tirou de súbito a capa, atirou-a para a casa e fugiu do tabuleiro. O oficial envolveu-se na capa real, e ocupou o lugar do rei. Koroviev e Azazello regressaram.
— Patranhas, como sempre — rosnou Azazello, olhando de lado para Beliernot.
— Pareceu-me ouvir — disse o gato.
— Então, isso vai durar muito? — perguntou Woland. Xeque ao rei.
— Eu sem dúvida ouvi mal, mestre — respondeu o gato. Não há nem pode haver xeque ao rei.
— Repito, xeque ao rei.
— Messire — disse o gato numa voz falsamente inquieta está com certeza fatigado: não há xeque ao rei!
— O rei está na casa gê dois — disse Woland sem olhar para o tabuleiro.
— Messire, estou consternado — vociferou o gato, pondo no focinho uma expressão de consternação. — Não há nenhum rei nessa casa.
— Que vem a ser isto? — perguntou Woland perplexo, olhando o tabuleiro, onde o oficial que ocupava a casa do rei se voltou e escondeu o rosto com o braço.
— Ah, tu, canalha — disse Woland pensativamente.
— Messire! Recorro novamente à lógica — disse o gato, — apertando as patas contra o peito. — Se um jogador anuncia xeque ao rei, quando no tabuleiro já não há nem sombra do rei, o xeque é declarado nulo.
— Tu abandonas, ou não? — gritou Woland numa voz terrível.
— Deixe-me pensar — respondeu humildemente o gato, que apoiou os cotovelos na mesa, enfiou as orelhas entre as patas e começou a reflectir. Pensou longamente e, por fim, disse: — Abandono.
— Matar essa criatura obstinada — murmurou Azazello.
— Sim, abandono — repetiu o gato —, mas abandono exclusivamente porque não posso jogar numa atmosfera de perseguição por parte dos invejosos! — levantou-se, e as figuras do xadrez entraram para a caixa.
— Hella, são horas — disse Woland, e Hella desapareceu do quarto. — Com dores na perna, e agora este baile — continuou Woland.
— Permita-me, messire — pediu amavelmente Margarita. Woland olhou-a e depois estendeu o joelho para ela. Quente como lava, o líquido queimou as mãos de Margarita, mas ela, sem um esgar, friccionou-o no joelho, esforçando-se por não causar dor.
— Os meus próximos afirmam que isto é reumatismo — disse Woland sem afastar os olhos de Margarita. — Mas eu desconfio que esta dor no joelho foi-me deixada como recordação por uma feiticeira encantadora que conheci intimamente em mil quinhentos e setenta e um no monte Brocken, na Assembleia dos Demónios.
— Ah! Pode lá ser! — exclamou Margarita.
— Tolice! Daqui a trezentos anos isto passa. Aconselharam-me uma quantidade de medicamentos, mas eu continuo, como nos velhos tempos, a preferir os remédios da minha avó. É que ela deixou-me em herança umas ervas espantosas, a ignóbil velha da minha avó! A propósito, diga-me, não padece de nenhuma dor? Há talvez algum desgosto, alguma tristeza que lhe envenena a alma?
— Não, messire, nada — respondeu a inteligente Margarita. — E agora, aqui consigo, sinto-me muito bem.
— O sangue é uma grande coisa — disse Woland alegremente, sem que se soubesse porquê. E acrescentou: — Vejo que se interessa pelo meu globo.
— Oh, sim, nunca tinha visto uma coisa assim.
— É uma coisinha jeitosa. Para falar com franqueza, não gosto de ouvir as últimas notícias pela rádio. São sempre lidas por raparigas que pronunciam incompreensivelmente os nomes dos lugares. Além disso, uma em cada três delas tem defeitos de pronúncia, como se fossem deliberadamente escolhidas por isso. O meu globo é muito mais cómodo, tanto mais que preciso de conhecer os acontecimentos com exactidão. Vê, por exemplo, este bocado de terra, de que o oceano banha um dos lados? Olhe, ele a cobrir-se de fogo. Começou ali uma guerra. Se aproximar os olhos, verá até os pormenores.
Margarita inclinou-se para o globo e viu que o pequeno quadrado de terra aumentou de tamanho, se cobriu de cor e transformou-se numa espécie de mapa em relevo. Depois distinguiu também a estreita fita de um rio e, ao lado dele, uma povoação. Uma casita do tamanho de uma ervilha cresceu e tomou as dimensões de uma caixa de fósforos. De súbito, sem qualquer ruído, o telhado da casa voou pelos ares com uma nuvem de fumo negro, as paredes ruíram e da pequena caixa de dois andares não restou mais que um monte de escombros de onde subia um fumo negro. Aproximando ainda mais os olhos, Margarita viu uma pequena figura de mulher, estendida no chão, e, ao lado dela, numa poça de sangue, uma criança de braços abertos.
— E pronto — disse Woland sorrindo. — Este não teve tempo de pecar. O trabalho de Ábadon é impecável.
— Eu não queria estar no campo inimigo desse Ábadon — afirmou Margarita. — De que lado está ele?
— Quanto mais falo consigo — disse amavelmente Woland — mais me convenço de que você é muito inteligente. Sossegue. Ele é imparcial e simpatiza por igual com as duas partes combatentes. Como consequência, os resultados são sempre semelhantes para os dois lados. Ábadon — chamou em voz baixa Woland, e imediatamente saiu da parede a figura de um homem magro de óculos escuros. Por qualquer razão desconhecida, esses óculos produziram em Margarita uma impressão tão forte que ela, soltando um leve grito, escondeu o rosto na perna de Woland. — Vá lá, pare com isso — gritou Woland. — Como as pessoas de hoje são nervosas! — Deu uma palmada nas costas de Margarita, de tal modo que o corpo dela retiniu. — Bem vê que ele está de óculos. Além disso, nunca aconteceu, e nunca acontecerá, que Ábadon aparecesse diante de alguém antes de tempo. E depois, enfim, eu estou aqui. Você é minha convidada! Quis simplesmente que o viesse.
Ábadon permanecia imóvel.
— Seria possível que ele tirasse os óculos durante um segundo? — perguntou Margarita, estremecendo e encostando-se a Woland, mas agora curiosa.
— Isso é impossível — respondeu seriamente Woland e fez com a mão um gesto a Ãbadon, o qual desapareceu. — Que queres tu dizer, Azazello?
— Messíre — respondeu Azazello —, permita-me que lhe diga. Temos cá estranhos: uma beldade que choraminga suplica que a deixem ficar com a senhora, e com ela, peço desculpa, o seu porco.
— Estranho comportamento o das beldades — observou Woland.
— É Natacha, Natacha! — exclamou Margarita.
— Bom, que fique junto da senhora. E o porco para a cozinha!
— Para o matarem?! — exclamou Margarita, assustada. — Por caridade, messire, ele é Níkolai Ivanovitch, o inquilino do andar de baixo. Há aqui um mal-entendido, compreende, ela untou-o com o creme…
— Permita-me — disse Woland. — Para que diabo e quem iria matá-lo? Que fique lá com os cozinheiros, e mais nada! Há-de concordar que não posso deixá-lo entrar na sala de baile!
— Bem, então… — disse Azazello, e anunciou: — Aproxima-se a meia-noite, messíre.
— Ah, bom! — exclamou Woland e, voltando-se para Margarita: — Então, faça favor! Agradeço-lhe antecipadamente. Não se perturbe, e nada receie. Não beba nada a não ser água, se não ficará mole e sentir-se-á mal. Está na hora!
Margarita levantou-se do tapete, e então Koroviev surgiu à porta.