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Mas que aconteceu em Moscovo, depois daquela tarde de sábado, ao pôr do Sol, em que Woland abandonou a capital, desaparecendo com o seu séquito dos montes de Vorobiev?
É escusado dizer que durante muito tempo toda a capital foi percorrida pelo penoso murmúrio dos boatos mais desencontrados, que rapidamente se propagaram até aos recantos mais afastados da província, e repetir esses boatos seria mesmo enfadonho.
O autor destas linhas verídicas ouviu pessoalmente, quando se dirigia de comboio a Feodossia, a história de como em Moscovo duas mil pessoas saíram do teatro nuas em pêlo, no sentido literal do termo, e que assim tinham voltado para casa em táxis.
O murmúrio “Forças do mal..” ouvia-se nas bichas para o leite, nos eléctricos, nos armazéns, nos apartamentos, nas cozinhas, nos comboios, tanto suburbanos como de longo curso, nas estações e apeadeiros, nas casas de campo e nas praias.
As pessoas mais evoluídas e cultas não participavam naturalmente nessas histórias sobre o maligno que teria visitado a cidade, e até se riam delas e tentavam chamar à razão aqueles que as contavam. Mas um facto, como se costuma dizer, sempre é um facto, e não se pode virar-lhe as costas sem explicações: alguém estivera na capital. Os restos carbonizados da Griboedov, e muitas outras coisas ainda, confirmavam-no com demasiada eloquência.
As pessoas cultas adoptaram o ponto de vista da comissão de inquérito: aquilo era obra de um bando de hipnotizadores e ventríloquos, que dominavam na perfeição a sua arte.
Foram tomadas medidas imediatas e enérgicas para a sua captura, tanto em Moscovo como muito para além dos limites da cidade. Mas, infelizmente, essas medidas não deram qualquer resultado. Aquele que a si mesmo se chamava Woland, com todos os seus cúmplices, tinha desaparecido e nunca mais regressara a Moscovo, nem se manifestara em parte alguma. Era pois muito natural que surgisse a suposição de que ele fugira para o estrangeiro, mas também aí ele não deu sinal de si.
O inquérito durou muito tempo. Porque, no fim de contas, o caso era horrível! Para já não falar das quatro casas incendiadas e das centenas de pessoas levadas à loucura, houvera também mortos. Dois deles eram certos: Berlioz, e aquele infeliz funcionário da agência de excursões para estrangeiros aos pontos notáveis de Moscovo, o antigo barão Meigel. Pois esses tinham sido mesmo mortos. Os ossos calcinados do segundo foram descobertos no apartamento número 50 da Rua Sadovaia, depois de o incêndio ter sido apagado. Sim, houvera vítimas, e essas vítimas exigiam um inquérito.
Mas houvera vítimas mesmo depois de Woland ter abandonado a capital, e essas vítimas foram, por mais triste que seja dizê-lo, os gatos pretos.
Uma centena desses animais pacíficos, dedicados e úteis ao homem, foram mortos a tiro ou exterminados por outros meios em diversas localidades do país. Uns quinze gatos, por vezes muito estropiados, foram levados às esquadras da milícia em diversas cidades. Por exemplo, em Armavir, um desses animais totalmente inocente foi entregue por um cidadão à milícia com as patas da frente amarradas.
O cidadão surpreendera esse gato no momento em que o animal, com ar furtivo (que se há-de fazer, se os gatos têm esse ar? Isso não se deve a que sejam viciosos, mas a que têm medo que algum dos seres mais fortes que eles — cães ou homens — lhes causem qualquer dano ou ofensa. Tanto uma coisa como outra é bastante fácil, mas isso, garanto, não traz nenhuma honra. Não, nenhuma!), procurava por qualquer razão alcançar um tufo de bardanas.
Lançando-se sobre o gato e tirando a gravata do pescoço para amarrá-lo, o cidadão murmurava em tom venenoso e ameaçador:
— Ah, ali! Pelos vistos, agora também nos veio visitar a Armavir, senhor hipnotizador? Mas aqui ninguém tem medo de si! Não se finja mudo! Bem sabemos o passarão que você é!
E o cidadão conduziu o gato à milícia, arrastando o pobre animal pelas patas dianteiras que amarrara com uma gravata verde, procurando, por meio de ligeiros pontapés, forçá-lo a caminhar sobre as patas traseiras.
— Deixe de se armar em parvo! — gritava o cidadão, acompanhado por um grupo de garotos que assobiavam. — Isso não pega! Faça favor de caminhar como toda a gente!
O gato preto limitava-se a rolar os seus olhos de mártir. Privado pela natureza do dom da palavra, não tinha maneira de se desculpar. O pobre animal deveu a sua salvação em primeiro lugar à Milícia, e, além disso, à sua dona, uma viúva idosa e respeitável. Assim que o gato foi entregue na esquadra, ali aperceberam-se que o cidadão exalava um forte cheiro a álcool, de modo que duvidaram imediatamente das suas declarações. Entretanto, a velhinha, tendo sabido pelos vizinhos que alguém deitara a mão ao seu gato, correu à esquadra, onde chegou mesmo a tempo. Ela forneceu as mais lisonjeiras referências a respeito do gato, explicou que o conhecia há cinco anos, desde que ele era pequenino, que respondia por ele como por si própria e provou que ele não fizera mal nenhum nem nunca estivera em Moscovo. Tinha nascido em Armavir, e ali crescera e aprendera a apanhar ratos.
O gato foi desamarrado e entregue à dona, depois de ter passado um mau bocado e ter aprendido na prática o que são o erro e a calúnia.
Além dos gatos, um certo número de pessoas passara também por pequenas dificuldades. Houve algumas prisões. Entre as pessoas detidas por algum tempo encontravam-se: em Leninegrado, os cidadãos Wolman e Wolper, em Saratóvia, Kiev e Carcóvia, três Volodine, em Kazan, Volokh, e, em Penza, ninguém sabe porquê, o candidato a doutor em Ciências Vetchinkevitch… É verdade que ele era de grande estatura, e de um moreno muito escuro.
Foram, além disso, capturados em vários lugares nove Korovine, quatro Korovkine, e dois Karavaev.
Na estação de Belgorod retiraram do comboio de Sebastópolis um cidadão amarrado. Esse cidadão tivera a ideia de divertir os passageiros que seguiam com ele com alguns truques de cartas.
Em laroslavi, à hora do almoço, entrou num restaurante um cidadão com um fogareiro nas mãos, que acabava de ir buscar à oficina de reparações. Assim que o viram, os dois porteiros abandonaram os seus postos junto ao vestiário e fugiram, e atrás deles fugiram do restaurante todos os clientes e empregados. Ao mesmo tempo, toda a receita do dia desapareceu incompreensivelmente da caixa.
Houve muitos outros incidentes, mas é impossível recordá-los todos. Houve uma grande excitação dos espíritos.
Deve-se render justiça à comissão de inquérito. Tudo foi feito não apenas para apanhar os criminosos, mas também para explicar aquilo que eles fizeram. E tudo isso foi explicado, e não se pode deixar de reconhecer que todas essas explicações foram sensatas e irrefutáveis.
Representantes da comissão de inquérito e psiquiatras experientes estabeleceram que os membros do bando criminoso, ou talvez um deles (a principal suspeita recaiu sobre Koroviev) eram hipnotizadores com poderes invulgares, capazes de se mostrarem em lugares onde não estavam, e em posições ilusórias, excêntricas. Além disso, eles convenciam livremente os cidadãos com quem se encontravam de que determinadas pessoas ou coisas estavam em sítios onde na verdade não estavam, e inversamente, removiam do campo de visão as coisas ou pessoas que na realidade se encontravam nesse campo de visão.
à luz destas explicações tudo ficou absolutamente claro, e até aquilo que mais emocionara os cidadãos e que era aparentemente inexplicável: a invulnerabilidade do gato, crivado de balas no apartamento número 50 durante a tentativa feita para a sua captura.
Não houvera naturalmente nenhum gato sobre o lustre, ninguém respondera ao fogo, tinham disparado para um lugar vazio, enquanto Koroviev, depois de fazer crer que o gato fazia disparates sobre o lustre, podia muito bem encontrar-se atrás daqueles que disparavam, fazendo caretas e deleitando-se com o seu enorme, mas criminosamente utilizado, poder de sugestão. E fora ele, por certo, quem deitara fogo ao apartamento, depois de derramar o petróleo.
Stiopa Likhodeev não tinha evidentemente voado para Ialta (uma coisa dessas estava acima das forças até do próprio Koroviev), nem de lá enviara telegramas. Depois de ter desmaiado no apartamento da joalheira, assustado com o truque de Koroviev, que lhe mostrara o gato com um cogumelo de marinada espetado num garfo, ficou ali deitado até que Koroviev, escarnecendo dele, lhe enfiou na cabeça o chapéu de feltro e o mandou para o aeródromo de Moscovo, sugerindo previamente aos representantes da investigação criminal, que esperavam Stiopa, que este desembarcara de um avião chegado de Sebastópolis.
É verdade que a polícia criminal de Sebastópolis confirmou que tinha recebido Stiopa descalço e que havia enviado os telegramas para Moscovo. Mas não se encontrou nos arquivos nem uma cópia desses telegramas, o que levou à conclusão, triste mas absolutamente irrefutável, de que o bando de hipnotizadores tinha a capacidade de hipnotizar a enorme distância, e, além disso, não apenas pessoas isoladas, mas grupos inteiros. Nestas circunstâncias, os criminosos podiam enlouquecer pessoas com a mais sólida constituição psíquica.
Para quê falar de ninharias como o baralho de cartas num bolso alheio na plateia, ou de vestidos de mulheres que desapareciam, ou de boinas que miavam e outras coisas do género! Truques desses pode fazê-los qualquer hipnotizador profissional de poderes médios em qualquer palco, incluindo o truque ingénuo de arrancar a cabeça ao apresentador. O gato falante era também puro absurdo. Para apresentar às pessoas um gato desses, basta possuir os primeiros rudimentos da ventriloquia, e dificilmente alguém duvidará de que a arte de Koroviev ia muito para lá desses rudimentos.
Não, a questão aqui não estava nos baralhos de cartas nem nas cartas falsas encontradas na pasta de Nikanor Ivanovitch. Tudo isso são ninharias. Fora ele, Koroviev, que empurrara Berlioz para debaixo do eléctrico, expondo-o a uma morte certa. Fora ele que tornara louco o pobre poeta Ivan Bezdomni, forçando-o a delirar e a ver nos seus pesadelos a antiga Jerusalém e o árido monte Calvário queimado pelo Sol com os três homens pendurados nos postes. Fora ele e o seu bando que obrigara Margarita Nikolaevna e a sua criada Natacha a desaparecer de Moscovo. A propósito: a comissão de inquérito ocupou-se deste caso com particular atenção. Havia que esclarecer se essas mulheres tinham sido raptadas pelo bando de assassinos e incendiários ou se fugiram voluntariamente com a súcia de criminosos. Baseando-se nas declarações absurdas e confusas de Nikolai Ivanovitch e tomando em consideração a estranha e louca nota deixada por Margarita Nikolaevna ao marido, uma nota na qual ela escrevia que ia tornar-se feiticeira, tendo em conta o facto de que Natacha desapareceu deixando todas as suas roupas no local, os investigadores chegaram à conclusão de que a patroa e a criada tinham sido hipnotizadas, como muitas outras pessoas, e, nesse estado, raptadas pelo bando. Surgiu também a ideia, provavelmente justificada, de que os criminosos haviam sido atraídos pela beleza das duas mulheres.
Mas uma coisa que ficou completamente obscura para os investigadores foi o motivo que levara a quadrilha a raptar da clínica psiquiátrica o doente mental que a si próprio se chamava Mestre. Nunca se conseguiu estabelecer o motivo, tal como nunca se conseguiu saber o verdadeiro nome do doente raptado. Ele desapareceu assim para sempre sob a designação impessoal de: “Número 118 do primeiro edifício”.
E assim quase tudo se esclareceu, e a investigação terminou, como todas as coisas terminam.
Passaram-se alguns anos, e os cidadãos começaram a esquecer Woland, e Koroviev, e os outros. Ocorreram muitas mudanças nas vidas daqueles que tinham sido vítimas de Woland e dos seus cúmplices, e, por mais pequenas e insignificantes que sejam essas mudanças, é preciso no entanto assinalá-las.
George Bengalski, por exemplo, passou três meses no hospital, curou-se e saiu, mas teve que abandonar o seu lugar no Variedades, e isto precisamente na época em que o público acorria em grande número à procura de bilhetes: a lembrança da magia negra e dos seus segredos revelados era muito vivaz. Bengalski abandonou o Variedades porque compreendeu que apresentar-se todas as noites perante duas mil pessoas, ser inevitavelmente reconhecido, e, claro está, submetido a perguntas escarnecedoras do género: “Como se sentia melhor, com cabeça ou sem cabeça?”, era demasiado penoso.
Além disso, o apresentador tinha perdido uma grande parte da sua jovialidade, tão necessária na sua profissão. Ficara-lhe o desagradável e penoso hábito de, em cada Primavera, na Lua cheia, cair num estado de ansiedade, agarrar subitamente o pescoço, olhar assustado à sua volta e chorar. Estes acessos passavam, mas enquanto duravam impediam-no de exercer a sua profissão. Por isso o apresentador aposentou-se e passou a viver das suas economias, que, segundo os seus cálculos modestos, deviam chegar-lhe para quinze anos.
Retirou-se e nunca mais se encontrou com Varenukha, que ganhara popularidade e o afecto gerais pela sua bondade e simpatia, invulgares mesmo entre os administradores teatrais. Os candongueiros, por exemplo, tratavam-no sempre por “pai e benfeitor”. Quem quer que telefonasse para o Variedades, fosse a que horas fosse, ouvia sempre uma voz suave mas triste: “Faça favor”. E ao pedido para que chamasse Varenukha, a mesma voz respondia apressadamente: “É o próprio, para o servir”. Mas, em contrapartida, o que Ivan Savelievitch sofria com a sua delicadeza!
Stiopa Likhodeev nunca mais teve que falar ao telefone do Variedades. Imediatamente após a sua saída do hospital, onde Stiopa passou oito dias, transferiram-no para Rostóvia, onde lhe foi dado o cargo de chefe de um grande armazém de produtos alimentares. Correm rumores de que deixou completamente de beber vinho do Porto e que só bebe vodca, em infusão de rebentos de groselheira, o que lhe fez muito bem à saúde. Dizem que se tornou taciturno e que evita as mulheres.
O afastamento de Stepan Bogdanovitch do Variedades não trouxe a Rimski a alegria com que ele tão avidamente sonhara durante vários anos. Depois da clínica e de uma cura de águas em Kisslovodsk, o director financeiro, velho, decrépito, com a cabeça trémula, entregou o pedido de aposentação. É interessante notar que esse pedido foi entregue no Variedades pela esposa de Rimski.
O próprio Grigori Danilovitch não encontrou forças, mesmo à luz do dia, para visitar aquele edifício, onde tinha visto o vidro da janela inundado de luar e um longo braço serpenteando até ao fecho inferior.
Tendo-se retirado do Variedades, o director financeiro foi trabalhar num teatro de fantoches para crianças, no bairro de Zamoskvoretchie. Nesse teatro nunca mais teve que encontrar-se com o estimado Arkadi Apollonovitch Sempleiarov para tratar de questões de acústica. Quanto a este, foi transferido em dois tempos para Briansk e nomeado director de um posto de tratamento de cogumelos. Os moscovitas comem agora míscaros em salmoura e cogumelos brancos em marinada, os quais não se cansam de gabar, e estão extremamente contentes com essa transferência. Isto é agora coisa do passado, e pode-se dizer que Arkadi Apollonovitch nunca se deu muito bem com as coisas da acústica, e por mais que ele se esforçasse por melhorá-la, ela continuava como dantes.
Entre as pessoas que, para além de Arkadi Apollonovitch, romperam com o teatro, devemos incluir também Nikanor Ivanovitch Bossol, embora este não estivesse de modo nenhum ligado ao teatro, a não ser no seu gosto pelos bilhetes de borla. Nikanor Ivanovitch não só nunca vai ao teatro, nem a pagar nem gratuitamente, como o seu rosto se altera quando à sua frente se fala de teatro. Além do teatro, ele passou a odiar o poeta Pushkine e o talentoso artista Savva Potapovitch Kurolessov. E este, de tal modo, que no ano passado, ao ver no jornal uma notícia enquadrada a negro segundo a qual Savva Potapovitch sofrera um ataque no alvorecer da sua carreira, Nikanor Ivanovitch ficou tão corado que por pouco não foi atrás de Savva Potapovitch, e rugiu: “É bem-feito!”. Além disso, nessa mesma noite, Nikanor Ivanovitch, em que a morte do popular artista produzira uma enorme massa de recordações penosas, sozinho, tendo por companhia apenas a Lua cheia, que iluminava a Sadovaia, embebedou-se até cair. E a cada copo alongava-se diante dele a cadeia maldita de figuras odiadas, entre as quais estava Serguei Guerardovitch Duritchil, e a beldade Ida Herculanovna, e aquele proprietário de um rebanho de gansos, e o sincero Nikolai Kanavkine.
O que aconteceu com estes? Ora bem! Não lhes aconteceu absolutamente nada, e nada lhes podia acontecer, porque eles na realidade nunca existiram, tal como não existiu o simpático artista— apresentador, nem o próprio teatro, nem a velha tia avarenta Porokhovnikova, que guardava divisas na cave, nem, claro está, as trompetas de ouro e os cozinheiros insolentes. Tudo isso fora apenas um sonho de Nikanor Ivanovitch sob a influência do patife do Koroviev. O único ser vivo que entrou nesse sonho foi precisamente Savva Potapovitch, o artista, e entrou pela simples razão de que, graças às suas frequentes actuações pela rádio, estava gravado na memória de Nikanor Ivanovitch. Ele existia, e os outros não.
Mas talvez Aloisi Mogaritch também não existisse? Oh, sim! Este não só existia, como existe ainda, e ocupa precisamente o cargo abandonado por Rimski, ou seja, o de director financeiro do Variedades.
Voltando a si, cerca de vinte e quatro horas depois da visita a Woland, num comboio algures perto de Viatka, Aloisi apercebeu-se de que, tendo por qualquer razão partido de Moscovo num estado de perturbação mental, se esquecera de vestir as calças, mas que em contrapartida roubara, sem saber para quê, o livro de registos do senhorio. Tendo pago ao condutor uma enorme quantia, Aloisi comprou-lhe um par de calças velhas e sebentas e, em Viatka, voltou para trás. Mas a casita do senhorio, infelizmente, já não a encontrou. O velho edifício fora completamente devorado pelo fogo. Mas Aloisi era um homem muito empreendedor, e, ao fim de duas semanas, vivia já num belo quarto na Rua Briussov, e alguns meses depois ocupava o gabinete de Rimski. E tal como dantes Rimski sofria com a presença de Stiopa, também agora a presença de Aloisi é uma tortura para Varenukha. E agora o sonho de Ivan. Savelievitch é que aquele Aloisi seja expulso do Variedades e enviado para longe da vista, porque, como por vezes confidencia Varenukha na intimidade, “um. patife como aquele Aloisi, nunca na sua vida encontrara, e que daquele Aloisi espera tudo o que se possa imaginar”.
Aliás, é possível que o administrador não seja imparcial. Aloisi não se distingue por qualquer actividade obscura, nem em geral por qualquer actividade, se exceptuarmos, evidentemente, a nomeação de um novo gerente do bufete em lugar de Sokov. Quanto a Andrei Fokitch Sokov, morreu de cancro no fígado, no Hospital da Universidade Estatal, nove meses depois do aparecimento de Woland em Moscovo…
Sim, passaram-se vários anos, e os acontecimentos fielmente descritos neste livro esbateram-se e desapareceram da memória. Mas não para toda a gente, não para toda a gente.
Todos os anos, assim que começam as Festas de Primavera da Lua Cheia, ao entardecer, surge debaixo das tílias do lago do Patriarca um homem dos seus trinta ou trinta e poucos anos. Um homem de cabelo arruivado, olhos verdes, modestamente vestido. Esse homem é o professor Ivan Nikolaevitch Ponirov, colaborador do Instituto de História e Filosofia.
Ao chegar debaixo das tílias, senta-se sempre no mesmo banco em que se sentara naquela tarde em que o há muito esquecido por todos Berlioz viu pela última vez na sua vida a Lua estilhaçada.
Lá está ela agora, inteira, branca ao princípio da noite, depois dourada, com um pequeno cavalo-dragão, voga por cima do antigo poeta Ivan Nikolaevitch, e simultaneamente paira no mesmo lugar, lá no alto.
Ivan Nikolaevitch tem conhecimento de tudo, tudo sabe e tudo compreende. Sabe que na sua juventude foi vítima de hipnotizadores criminosos, que depois disso se tratou e se curou. Mas sabe também que há coisas que ele não consegue dominar. Não consegue enfrentar aquela Lua cheia de Primavera. Logo que ela começa a aproximar-se, logo que começa a crescer e a dourar-se o astro que em tempos pendia mais alto que os dois castiçais de cinco braços, Ivan Nikolaevitch torna-se inquieto, nervoso, perde o apetite e o sono, enquanto a Lua amadurece. E quando começa a Lua cheia, já nada consegue reter Ivan Nikolaevitch em casa. Ao anoitecer, ele sai e vai para o lago do Patriarca.
Sentado num banco, Ivan Nikolaevitch conversa já abertamente consigo próprio, fuma e, semicerrando os olhos, observa ora a Lua, ora o torniquete que tão bem conhece.
Ivan Nikolaevitch passa assim uma hora ou duas. Depois levanta-se do lugar e, sempre pelo mesmo percurso, pela Rua Spiridonov, de olhos vazios e sem ver, dirige-se para as ruelas de Arbat.
Passa ao lado das lojas que vendem petróleo, vira na esquina onde pende o velho candeeiro a gás, e aproxima-se sorrateiramente do gradeamento atrás do qual vê um jardim sumptuoso mas ainda nu, e, nesse jardim, iluminada pelo luar do lado em que existe uma lanterna com uma janela de três batentes, e escura do outro lado, uma mansão gótica.
O professor não sabe o que é que o atrai para o gradeamento nem quem vive naquela mansão, mas sabe que nas noites de Lua cheia é incapaz de lutar consigo mesmo. Além disso, sabe também que no jardim, atrás do gradeamento, verá sempre inevitavelmente a mesma coisa.
Verá, sentado num banco, um homem já de certa idade, de aspecto grave, de barbicha e lunetas, e de feições um pouco porcinas. Ivan Nikolaevitch encontra sempre aquele habitante da mansão na mesma pose sonhadora, de olhar voltado para a Lua. Ivan Nikolaevitch sabe que, depois de ter admirado a Lua, o homem ali sentado dirigirá inevitavelmente o seu olhar para as janelas da lanterna e as fixará, como se esperasse que elas se abrissem de súbito e mostrassem qualquer coisa de extraordinário.
Ivan Nikolaevitch sabe de cor tudo o que se passa a seguir. Neste momento, deve necessariamente esconder-se melhor atrás das grades, porque o homem começa a virar a cabeça para todos os lados, inquieto, procurando com os olhos errantes qualquer coisa no ar, sorrindo, extasiado, e depois junta de súbito as mãos numa espécie de voluptuosa tristeza, e começa a murmurar simplesmente, numa voz bastante sonora:
— Vénus! Vénus!… Ah, que idiota eu sou!…
— Deuses, deuses! — murmurou então Ivan Nikolaevitch, escondendo-se atrás da grade, sem desviar os olhos inflamados do misterioso desconhecido. — Mais uma vítima da Lua… Sim, mais uma vítima, como eu…
E o homem sentado continua o seu discurso:
— Ah, que idiota eu sou! Porquê, porque não voei com ela? De que foi que tive medo, velho burro! Obtive um pedaço de papel! Eh, agora sofre, velho cretino!
E continuará assim até que na parte obscura da mansão se ouve bater uma janela, e nela surge qualquer coisa esbranquiçada e se ouve uma desagradável voz feminina:
— Nikolai Ivanovitch, onde está? Que fantasia é essa? Quer apanhar a malária? Venha beber o chá!
Então, naturalmente, o homem volta a si e responde numa voz falsa:
— É o ar, vim tomar um pouco de ar, minha boa amiga! O ar é muito bom!
E então levanta-se do banco, à socapa ameaça com o punho a janela que se voltou a fechar e caminha vagarosamente para casa.
— Ele mente, mente! Oh, deuses, como ele mente! — murmura Ivan. Nikolaevitch, afastando-se do gradeamento. — Não é nada o ar que o atrai para o jardim, é qualquer coisa que ele vê nesta Lua cheia e primaveril, e no jardim, e no céu. Ah, o que eu não daria para penetrar no seu segredo, para saber que Vénus é essa que ele perdeu e que agora tenta em vão apanhar no ar.
E o professor regressa a casa já completamente enfermo. A mulher finge que não repara no seu estado, e apressa-o a deitar-se na cama. Mas ela não se deita. Fica sentada junto ao candeeiro com um livro e contempla com os olhos carregados de amargura o homem adormecido. Sabe que ao amanhecer Ivan Nikolaevitch acordará com um grito aflitivo, começará a chorar e a agitar-se. Por isso ela tem à sua frente, sobre o naperão junto ao candeeiro, uma seringa mergulhada em álcool e uma ampola com um líquido cor de chá escuro.
A pobre mulher, ligada a um homem muito doente, pode agora adormecer livremente e sem receio. Ivan Nikolaevitch dormirá até de manhã com uma expressão feliz no rosto e terá sonhos exaltados e felizes de que ela nada sabe.