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Apanhei o passaporte no dia seguinte. O Sr. Hale não estava em seu gabinete, disse a Srta. Schwartz, mas deixara todas as instruções. Eu estava quase certo de que ele não estava em seu gabinete, porque, no fim de semana, chegara à conclusão de que não se sentiria bem se me visse de novo. Pelo menos, na presença da Srta. Schwartz. Não era a primeira vez que um homem se arrependia, à luz do dia, das confidências que fizera à meia-noite.
A Srta. Schwartz estava tão linda e melodiosa como da primeira vez, mas não senti inveja de Jeremy Hale.
Descontei os cheques do jogo de pôquer e, munido do dinheiro, dirigi-me a uma loja de departamentos e comprei duas malas fortes, mas leves e bonitas, azul-escuras com debruns vermelhos, uma grande, outra pequena. Custaram-me caro, mas eu queria malas seguras e não pechinchas. Comprei também uma espaçosa pasta de couro modelo 007, com fecho bem resistente e que cabia dentro da maior das duas malas. Sentia-me agora armado para viajar, Ulisses com seus navios calafetados e vento favorável, perigos desconhecidos esperando-o no próximo promontório.
O vendedor perguntou que algarismos eu queria pôr na combinação.
– É preferível – aconselhou – escolher um número que signifique algo para o senhor, que o senhor não vá esquecer.
– 6-0-2 – falei. Era um número que significava muito para mim e que eu duvidava que alguma vez esquecesse.
Com as malas novas no porta-malas do carro alugado, às três da tarde eu estava a caminho de Nova York. Telefonara ao meu irmão, dizendo-lhe para me esperar em frente ao meu banco, às dez da manhã do dia seguinte.
Parei num motel nos arredores de Trenton, para passar a noite. Não queria permanecer em Nova York mais tempo do que precisava.
Sabendo que estava cometendo um erro, acumulando arrependimentos para o futuro, liguei para o número de Evelyn, em Washington. Não sabia o que iria lhe dizer, mas queria ouvir a voz dela. Deixei o telefone tocar umas doze vezes. Felizmente, não havia ninguém em casa.
Ao dirigir pela Park Avenue acima, rumo ao banco, parei num sinal na esquina da rua onde estava localizado o St. Augustine. Impulsivamente, quando a luz ficou verde, entrei na rua e passei lentamente diante da entrada falsamente elegante, chegando a pensar mesmo em entrar e perguntar por Drusack. Não, não eram saudades. Havia algumas perguntas que ele agora talvez me pudesse responder. E a sua provável raiva me teria alegrado a manhã. Se tivesse havido um lugar onde estacionar, eu teria feito a bobagem de entrar no hotel. Mas a rua estava toda bloqueada por carros e resolvi ir em frente.
Hank estava todo encurvado no seu sobretudo, o colarinho virado para cima, parecendo gelado e miserável sob o vento cortante, quando me aproximei do banco. Se eu fosse um policial, pensei, teria desconfiado dele, acharia que era suspeito de algum pequeno crime, como passar dinheiro falso, abusar da confiança de uma viúva, vender jóias roubadas.
Seu rosto se iluminou quando me viu, como se tivesse duvidado de que eu viesse, e deu um passo em minha direção, mas não parei.
– Encontre-me na próxima esquina – disse-lhe, ao passar por ele. – Não vou demorar nada. – A menos que alguém estivesse por perto e de sobreaviso, ninguém poderia dizer que havia alguma ligação entre nós. Eu tinha a sensação desconfortável de que a cidade era um olho gigantesco, focalizado em mim.
No subterrâneo do banco, o mesmo velho, mais pálido do que nunca, pegou na minha chave e, usando-a junto com a dele, abriu meu cofre e entregou-me a caixa de aço. Depois, levou-me de volta ao cubículo protegido com uma cortina e deixou-me a sós. Contei as duzentas e cinqüenta notas de cem dólares e coloquei-as num envelope pardo, que comprara em Washington. Estava me tornando um grande consumidor de envelopes pardos e, sem dúvida, dando um grande impulso a toda a indústria.
Hank estava à minha espera na esquina, diante de um café, parecendo mais gelado do que nunca. Olhou para o envelope pardo debaixo do meu braço com ar medroso, como se ele fosse explodir. A vidraça do café estava embaciada pelo vapor do aquecimento, mas dava para ver que o recinto estava quase vazio. Fiz sinal a Hank para que me seguisse e entrei. Escolhi uma mesa nos fundos, pousei o envelope e tirei o sobretudo. Fazia um calor sufocante no café, mas Hank sentou-se diante de mim sem tirar o sobretudo, nem o velho e ensebado chapéu de feltro que usava, de maneira quadrada e démodée. Seus olhos, por trás dos óculos que se lhe enterravam nos lados do nariz, escorriam lágrimas de frio. Sua cara era a de um velho suburbano, envelhecida por anos de ansiedade e dias passados em ambientes fechados, como a dos homens à espera dos trens nas escuras manhãs de inverno, pacientes como burros, cansados muito antes de começarem mais um longo dia de trabalho. Senti pena e, ao mesmo tempo, uma vontade enorme de me ver logo livre dele.
"Aconteça o que acontecer," pensei, "não vou ter essa cara quando for da sua idade." Ainda não tínhamos trocado uma palavra.
Quando a garçonete se aproximou da nossa mesa, pedi uma xícara de café.
– Estou precisando de um drinque – disse Hank, mas também pediu café.
Contra uma parede divisória, junto da nossa mesa, havia uma ranhura para moedas e um seletor para vitrola perto da entrada. Coloquei dois níqueis e girei o seletor ao acaso. Quando a garçonete voltou com os nossos cafés, a vitrola estava tocando tão alto, que ninguém me poderia ter ouvido na mesa do lado, a menos que eu gritasse. Hank bebeu avidamente o seu café. Não cheirava a canela, rum ou laranja.
– Vomitei duas vezes, esta manhã – disse ele.
– O dinheiro está aqui – falei, indicando o envelope.
– Puxa, Doug – disse Hank -, espero que você saiba o que está fazendo.
– Eu também – retruquei. – Seja como for, agora ele é seu. Vou sair primeiro. Daqui a dez minutos, você pode sair também. – Não queria que ele visse meu carro alugado e anotasse o número da placa. Eu não tinha planejado nada daquilo e nem achava que fosse realmente necessário, mas a cautela estava se tornando um hábito para mim.
– Você nunca se arrependerá do que está fazendo – garantiu ele.
– Eu sei que não.
Puxou de um lenço amassado e enxugou as lágrimas que lhe escorriam dos olhos.
– Disse aos dois rapazes que esta semana teria o dinheiro – falou. – Estão loucos de alegria. Aceitaram logo a proposta. – Abriu o sobretudo e meteu a mão por baixo de um velho cachecol cinzento, que pendia do seu pescoço como uma cobra morta. Tirou uma caneta e uma pequena agenda. – Vou escrever um recibo.
– Nada disso – atalhei. – Sei que lhe dei o dinheiro e você sabe que o recebeu. – Ele nunca me pedira recibos, quando me dera ou emprestara dinheiro.
– Daqui a um ano, você vai ser rico, Doug – disse ele.
– Ótimo! – exclamei. O otimismo dele era lastimável.
– Não quero nada escrito. Nada. Como contador, imagino que você saiba controlar o que me couber sem que isso conste dos livros. – Lembrava-me do que Evelyn Coates dissera a respeito dos xerox. Tinha quase certeza de que em Scranton também havia xerox.
– É, acho que sim – disse ele, com tristeza. Escolhera a profissão errada, mas agora era demasiado tarde para fazer alguma coisa.
– Não quero que a Secretaria de Finanças fique atrás de mim.
– Compreendo – disse ele. – Não vou dizer que gosto disso, mas entendo. – Sacudiu sombriamente a cabeça. – Você é o último homem a quem eu…
– Chega, Hank – atalhei.
O primeiro disco da vitrola automática terminou num clímax ensurdecedor e a voz da garçonete, transmitindo um pedido ao homem do balcão, soou estranhamente alta no silêncio que se seguiu.
– Ovos com bacon e um inglês.
Tomei mais um gole de café e levantei-me, deixando o envelope em cima da mesa. Vesti o sobretudo.
– Vou ficar em contato com você. De tempos em tempos. Ele sorriu debilmente e pôs a mão sobre o envelope.
– Cuide bem de você, garoto – falou.
– E você também. – Toquei-lhe o ombro e saí para o frio.
O meu vôo estava marcado para as oito da noite de quarta-feira.
Às duas e meia da tarde de quarta-feira, deixei uma nota de cem dólares na caixa-forte e saí do banco com setenta e dois mil e novecentos dólares na pasta 007 que comprara em Washington. Estava farto de envelopes pardos. Não saberia explicar, nem sequer para mim, por que razão deixara os cem dólares no banco. Superstição? Uma forma de prometer a mim mesmo que algum dia voltaria aos Estados Unidos? De qualquer maneira, pagara adiantado pelo aluguel da caixa por um ano.
Dessa vez, havia-me hospedado no Waldorf Astoria. A essa altura, quem quer que estivesse à minha procura já teria pensado que eu saíra da cidade. Voltei ao meu quarto, abri a pasta e tirei três mil dólares, que coloquei na nova carteira de pele de foca que comprara. Era suficientemente grande para conter meu passaporte e a passagem de ida e volta no charter. Nos escritórios do Christie Ski Club, -na 47 th Street, aonde tinha ido logo depois de deixar Hank no café, perguntara pela amiga de Wales, Srta. Mansfield, que automaticamente me preenchera uma proposta de sócio e a pré-datara, dizendo-me que eu estava com sorte, pois naquela manhã tinham recebido dois pedidos de cancelamento. Como quem não quer nada, perguntei-lhe se os Wales também iam naquele vôo. Ela olhou na lista e, para meu alívio, disse que não constavam nela. Eu ainda tinha um bocado de dinheiro do que ganhara apostando em Ask Gloria e no jogo de pôquer em Washington. Mesmo sem mexer no dinheiro da pasta e após ter pago os hotéis de Washington e de Scranton, além do carro alugado, ainda tinha mais dinheiro na carteira do que jamais tivera. Quando pedira um quarto no Waldorf, não me dei ao trabalho de perguntar o preço. Era uma experiência agradável.
Dera o endereço de Evelyn Coates em Washington como minha residência. Agora, que estava inteiramente só, todas as minhas brincadeiras tinham de ser particulares.
Naqueles últimos dias, tinha havido poucas oportunidades para rir. Washington fora, para mim, uma experiência importante. Se, como tanta gente acreditava, a riqueza trazia felicidade, eu ainda era um principiante. Escolhera mal as companhias, no meu novo estado: Hale, com sua carreira truncada e o seu furtivo caso amoroso; Evelyn Coates, com sua armadura; e meu pobre irmão.
Na Europa, decidi, só ia procurar pessoas sem problemas.
A Europa sempre fora um lugar para onde os americanos ricos tinham fugido. Agora, eu me considerava um membro dessa classe. Deixaria os que me tinham precedido ensinar-me a doce técnica da fuga. Procuraria rostos alegres.
Passei a noite de terça-feira sozinho no meu quarto, vendo televisão. Na última noite na América não havia por que correr riscos desnecessários.
Meu último gesto foi pôr cento e cinqüenta dólares num envelope com um bilhete para o bookmaker do St. Augustine: "Desculpe tê-lo feito esperar pelo dinheiro" e a minha assinatura. Haveria pelo menos um homem, nos Estados Unidos, que garantiria minha reputação como homem honesto. Pus o envelope no correio quando saí do hotel.
Cheguei cedo ao aeroporto, de táxi. A pasta 007, com o dinheiro dentro, estava na mala azul grande, a da fechadura com o segredo. O dinheiro ficaria fora do meu alcance, no compartimento da bagagem, enquanto atravessássemos o Atlântico, mas era o jeito. Sabia que todos os passageiros eram revistados e a bagagem de mão aberta e examinada antes de embarcar, como precaução contra seqüestradores, e teria sido difícil tentar explicar a um guarda armado por que razão eu precisava levar mais de setenta mil dólares para uma excursão de três semanas, cujo fim era esquiar.
Wales tampouco mentira sobre o excesso de peso. O homem do balcão nem sequer olhou para a balança quando o carregador jogou as minhas duas malas em cima dela.
– Nada de esquis nem botas? – estranhou ele.
– Não – respondi. – Vou comprá-los na Europa.
– Compre Rossignols – aconselhou. – Ouvi dizer que são os melhores. – Tinha se tornado entendido em equipamento de esqui no balcão de embarque do Aeroporto Kennedy.
Mostrei-lhe meu passaporte, ele verificou a lista de passageiros, deu-me um talão de embarque, e as formalidades terminaram.
– Boa viagem – desejou-me. – Quem dera eu ir com o senhor. – As outras pessoas na fila já tinham, obviamente, começado a celebrar e havia no ar um clima de férias, com as pessoas se abraçando, chamando-se umas às outras, e os esquis batendo no chão.
Cheguei cedo ao aeroporto, de modo que fui até o restaurante comer um sanduíche e beber um chope. Não almoçara; tão cedo não serviriam nada no avião e eu estava faminto.
Enquanto comia e bebia, li o jornal da tarde. Um policial fora baleado no Harlem, naquela manhã. Os Rangers tinham ganho o jogo, na noite anterior. Um juiz se manifestava contra os filmes pornográficos. Os diretores do jornal eram a favor de um impeachment contra o presidente. Falava-se que ele se demitiria. Homens que tinham ocupado altos cargos na Casa Branca estavam sendo mandados para a cadeia. O envelope que Evelyn Coates me dera para entregar em Roma estava na minha mala menor, agora sendo arrumada no porta-bagagens do avião. Não sabia se iria ajudar a pôr alguém na cadeia ou a evitar sua prisão. Fiquei pensando em minha visita a Washington.
Havia um telefone na parede, perto de onde eu estava sentado, e, de repente, senti vontade de falar com alguém, de ouvir uma voz familiar antes de deixar o país. Levantei-me, liguei para interurbano e mais uma vez pedi o número de Evelyn Coates.
De novo, não houve resposta. Evelyn era uma mulher difícil de ser encontrada em casa. Desliguei e peguei de volta a ficha. Ia voltar para a mesa, onde me esperava o sanduíche meio comido, quando estaquei. Lembrei-me de ter passado de carro diante do St. Augustine e de quase ter parado. Desta vez, não haveria perigo. Dentro de quarenta minutos, estaria em pleno espaço internacional. Enfiei novamente a ficha e disquei o número do hotel.
Como de costume, o telefone tocou e tocou antes que eu ouvisse a voz de Clara.
– Hotel St. Augustine – atendeu ela, pondo nessas três palavras toda a raiva e irritação que sentia pelo mundo.
– Gostaria de falar com o Sr. Drusack, por favor – disse eu.
– Sr. Grimes! – exclamou ela, num grito. Tinha reconhecido minha voz.
– Gostaria de falar com o Sr. Drusack, por favor – repeti, fingindo não a ter ouvido ou, pelo menos, não a ter entendido.
– Sr. Grimes – volveu ela -, onde é que o senhor está?
– Por favor, senhorita – insisti -, gostaria de falar com o Sr. Drusack. Ele está no hotel?
– Está no hospital, Sr. Grimes – respondeu ele. – Dois homens seguiram o carro dele e lhe bateram na cabeça com a coronha dos revólveres. Ele está em coma. Parece que com fratura do crânio e…
Desliguei e voltei para minha mesa, onde acabei o chope e o sanduíche.
As luzes de amarrar o cinto e não fumar se acenderam e o avião começou a descer da zona do sol da manhã. Os picos cobertos de neve dos Alpes brilhavam a distância quando o 747 penetrou na névoa cinzenta que envolvia as cercanias do Aeroporto de Kloten.
O grandalhão sentado a meu lado roncava escandalosamente. Entre as oito e a meia-noite, quando eu desistira de continuar contando, ele bebera onze doses de uísque. Sua espora, no assento ao lado, mantivera o ritmo de um uísque para cada dois dele. Tinham-me dito que planejavam pegar o primeiro trem de Zurique para St.Moritz e esquiar no Corvatch nessa mesma tarde. Lamentava não estar presente para vê-los descer a primeira encosta.
O vôo não fora tranqüilo. Como todos os passageiros eram sócios do mesmo clube de esqui e muitos deles viajavam juntos todos os invernos, tinha havido grandes manifestações, risadas, brincadeiras, etc, acompanhadas por abundante consumo de bebidas. Os passageiros não eram jovens. Na sua maioria, tinham trinta e poucos ou quarenta e pouco anos, os homens pertencendo aparentemente à vaga categoria dos executivos e as mulheres, donas-de-casa típicas e cuidadosamente penteadas, cujo maior atributo social era saber beber tão bem quanto os maridos. Podia-se imaginar uma determinada porcentagem de troca de esposas nos fins de semana. Se eu tivesse que fazer um cálculo, diria que a renda média familiar dos passageiros do charter era de uns trinta e cinco mil dólares anuais e que seus filhos tinham todos belas cadernetas de poupança abertas por vovô ou vovó, a fim de evitar ao máximo os impostos sobre heranças.
Se havia passageiros naquele avião lendo calmamente ou olhando para as estrelas e o nascer do dia, eles não estavam no meu lado do avião. Não tendo bebido, eu contemplava os meus "altos" e barulhentos companheiros de viagem com repugnância. Num país menos livre do que os Estados Unidos, pensei, não lhes teriam permitido viajar. Se meu irmão Hank estivesse a bordo, lembrei com pena, teria sentido inveja deles.
Fizera calor no avião e eu não pudera tirar o paletó porque minha carteira, com o dinheiro e o passaporte, estava nele, e ela era demasiado grande e estava muito cheia para caber no bolso das minhas calças.
O avião pousou suavemente e, por um momento, tive inveja dos homens que pilotavam aquelas máquinas maravilhosas. Para eles, o que interessava era a viagem, não o valor da carga. Procurei ser um dos primeiros passageiros a sair do avião. Na alfândega, passei pela porta reservada para os passageiros sem nada a declarar. Tive a sorte de ver as minhas duas malas, ambas azuis, uma grande, outra pequena, saírem logo. Agarrei um carrinho, joguei as malas dentro dele e saí da alfândega sem que ninguém me detivesse. Pelo que via, os suíços eram muito tolerantes com os turistas prósperos.
Entrei num táxi que estava esperando e mandei seguir para o Hotel Savoy. Tinha ouvido dizer que se tratava de um bom hotel, no centro comercial.
Não tinha trocado nenhum dinheiro em francos suíços, mas quando chegamos ao hotel o motorista aceitou duas notas de dez dólares. Mais dois ou três dólares do que teria sido se eu tivesse francos, mas resolvi não discutir com o homem.
Na portaria do hotel, enquanto preenchia a ficha, perguntei ao recepcionista o nome e o telefone do banco particular mais próximo. Como a maioria dos americanos, tinha apenas uma noção muito vaga do que eram os bancos suíços, mas acreditava firmemente, pelo que lera em artigos de jornais e revistas, na sua capacidade em esconder dinheiro com toda a segurança. O homem escreveu um nome e um número, como se esse fosse o primeiro serviço pedido por todos os americanos que se hospedavam no hotel.
Outro empregado subiu comigo para me mostrar o quarto, que era grande e confortável, com móveis pesados e antigos, e muito limpo, como sempre ouvira dizer dos hotéis suíços.
Enquanto esperava que minhas malas subissem, peguei o telefone e dei à telefonista o número que o recepcionista me fornecera. Eram nove e meia da manhã na Suíça, quatro e meia da madrugada em Nova York, mas, embora não tivesse pregado o olho no avião, não me sentia cansado.
Uma voz atendeu em alemão.
– A senhora fala inglês? – perguntei, lamentando pela primeira vez na vida não saber sequer dizer "bom dia" em nenhuma língua senão a minha.
– Sim – respondeu a mulher. – Com quem deseja falar?
– Gostaria de marcar hora para abrir uma conta – expliquei.
– Um momento, por favor – disse ela. Quase imediatamente, uma voz de homem anunciou:
– Aqui fala o Dr. Hauser. Bom dia!
Ah, então, na Suíça, os homens a quem se confiava dinheiro eram doutores. Por que não? O dinheiro era ao mesmo tempo uma doença e uma cura.
Disse ao doutor o meu nome e expliquei, mais uma vez, que desejava abrir uma conta. Ele disse que me esperaria às dez e meia e desligou.
Bateram à porta e o rapaz das malas apareceu com minha bagagem. Pedi desculpas por não ter dinheiro suíço para lhe dar uma gorjeta, mas ele apenas sorriu, disse "obrigado" e saiu. Comecei a sentir que ia gostar muito da Suíça.
Girei a combinação para abrir a mala grande. Nada. Tentei mais uma vez… e, de novo, nada. Tinha certeza de que os números estavam certos. Peguei a mala pequena, que tinha a mesma combinação, e ela abriu logo.
– Diabo! – praguejei. A mala grande provavelmente levara algum encontrão e a fechadura ficara danificada. Não tinha nada à mão com que forçar o fecho. Não queria que ninguém mais mexesse na mala, de modo que desci à portaria e pedi uma grande chave de fenda. O vocabulário inglês do recepcionista não incluía a expressão "chave de fenda", mas finalmente consegui fazê-lo compreender, através de gestos complicados, o que queria. Ele falou qualquer coisa em alemão para um colega e, dois minutos depois, o homem voltava com uma chave de fenda.
– Ele pode subir com o senhor – disse o recepcionista – e ajudá-lo a abrir a mala.
– Acho que não vai ser preciso, obrigado – respondi, e voltei ao meu quarto.
Levei cinco minutos lutando para forçar a fechadura e, quando ela finalmente abriu, chorei a minha bela mala nova. Teria de mandar pôr outra fechadura, se fosse possível.
Levantei a tampa. Bem em cima estava um paletó esporte de um xadrez espalhafatoso, gigante. Um paletó que nunca fora meu.
Tinha pegado a mala errada no aeroporto. Uma igualzinha à minha, do mesmo tamanho e fabricante, da mesma cor, azul-escura debruada em vermelho. Praguejei contra o sistema de fabricação e venda em massa vigente nos Estados Unidos, onde todo mundo fabrica e vende um milhão de cópias idênticas de qualquer artigo.
Deixei cair a tampa e fechei a mala dos lados. Não estava interessado em remexer nos pertences de outro. Já bastava eu ter quebrado a fechadura. Depois, desci de novo até a portaria. Devolvi a chave de fenda ao recepcionista e expliquei-lhe o que acontecera, pedindo-lhe para ligar para o aeroporto e perguntar se qualquer dos outros passageiros do meu vôo tinha comunicado uma troca de malas e, em caso afirmativo, como e onde eu poderia apanhar a minha mala.
– O senhor tem os talões de bagagem? – perguntou ele. Procurei nos bolsos, enquanto o recepcionista olhava, condescendente.
– Acidentes acontecem. É preciso prevê-los – sentenciou ele. – Sempre que viajo, colo uma enorme etiqueta colorida com as minhas iniciais em todas as minhas malas.
– Ótima idéia – concordei. – Farei isso no futuro. – Não tinha os bilhetes da bagagem. Sem dúvida os jogara fora quando passara pela alfândega e vira que não eram mais necessários. – O senhor poderia telefonar agora? Não sei falar alemão e…
– Vou telefonar – disse ele. Pegou o fone e pediu um número.
Cinco minutos depois, após uma agitada conversa em alemão-suíço, interrompida por longa espera que o recepcionista preencheu tamborilando com as pontas dos dedos sobre o balcão, ele desligou.
– Ninguém comunicou nada -. disse ele. – Vão telefonar para aqui se houver alguma notícia. Quando o passageiro que pegou sua mala chegar ao hotel, sem dúvida vai notar que houve uma troca e tentará comunicar-se com o aeroporto.
– Obrigado – agradeci.
– De nada – disse ele, com uma curvatura. Subi para meu quarto.
"Quando o passageiro abrir a mala no hotel," dissera o recepcionista. Mas eu tinha ouvido algumas conversas no avião. Devia haver uns quinhentos locais onde se esquiava na Europa e, pelo que eu ouvira, minha mala naquele momento poderia muito bem estar a caminho de Davos, Chamonix, Zermatt, Lech ou… abanei a cabeça, desesperado. Quem quer que estivesse com minha mala poderia não tentar abri-la senão no dia seguinte. E, quando isso acontecesse, provavelmente faria como eu e arrebentaria a fechadura. Só que talvez não tivesse os mesmos escrúpulos que eu em remexer nas coisas dos outros.
Levantei a tampa da mala sobre a cama e olhei para o paletó quadriculado. Tive um pressentimento de que teria problemas com um homem capaz de usar um paletó daqueles. Voltei a fechar a mala.
Peguei no telefone e dei o número do banco. Assim que atenderam, pedi de novo para falar com o Dr. Hauser. Ele se mostrou muito amável quando eu lhe disse que infelizmente não poderia ir naquele dia. Especialista em crises de moedas internacionais, não se alterava com pequenos contratempos. Disse-lhe que procuraria marcar uma hora para o dia seguinte.
– Estarei às suas ordens – retrucou.
Depois que ele desligou, fiquei muito tempo olhando para o telefone. Não havia nada a fazer senão esperar.
"Acidentes acontecem", disse o recepcionista. "É preciso prevê-los."
O conselho chegara um pouco tarde.