39384.fb2 Plant?o Da Noite - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 12

Plant?o Da Noite - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 12

CAPÍTULO X

– Estou preocupada com o meu marido – disse-me Flora Sloane. Estávamos tomando um drinque antes do almoço, sentados ao sol no terraço do Corvegíia Club, entre armadores gregos, industriais milaneses, pessoas que costumavam ser fotografadas à beira de piscinas em Acapulco e damas de todas as nacionalidades ansiosas por pegar um deles. Flora Sloane, que obviamente, como antes se dizia, "não tomara chá em pequena", e que quando entusiasmada descambava para um linguajar e uma pronúncia próprios de garçonete de botequim de Nova Jersey freqüentado quase que exclusivamente por choferes de caminhão, sentia-se completamente à vontade naquele ambiente e aceitava todas as atenções e deferências como se fosse uma rainha. Eu, ao contrário, sentia-me como se tivesse sido jogado atrás das linhas inimigas.

Ser sócio temporário do clube custara-me cento e vinte francos por duas semanas, mas eu tinha que ir aonde os Sloane fossem. Não que Sloane fosse a muitos lugares. De manhã, segundo Flora, ficava horas telefonando para o seu escritório em Nova York e à tarde e à noite jogava bridge.

– Nem sequer vai estar bronzeado quando voltarmos a Greenwich! – queixou-se ela. – Ninguém vai acreditar que ele esteve nos Alpes.

Entrementes, eu tinha a honra de esquiar com Flora Sloane e pagar-lhe o almoço. Era uma esquiadora bastante razoável, mas dessas que dão gritinhos quando atingem um lugar mais íngreme e constantemente se queixam das botas. Eu estava a toda hora de joelhos na neve, soltando os atacadores das botas, para logo depois apertá-las de novo. Recusara-me a aparecer na calça vermelha e no anoraque amarelo-limão que encontrara na mala e comprei um conjunto de esqui azul-marinho que me custou uma nota.

De noite, havia a inevitável dança suarenta e o não menos inevitável champanha. Além disso, a Sra. Sloane estava ficando cada vez mais apaixonada e tinha o desagradável hábito de enfiar a língua na minha orelha enquanto dançávamos. Eu queria entrar no quarto dos Sloane e revistá-lo, mas não daquele jeito. Havia várias razões para a minha frieza, sendo a principal a total ausência de reação a qualquer estímulo sexual desde o momento em que percebi que os meus setenta mil dólares tinham desaparecido. Dinheiro queria dizer poder, isso eu sabia. Não sabia era que a sua falta redundasse em impotência. Qualquer tentativa de desempenho sexual da minha parte, tinha a certeza, resultaria grotescamente inadequada. As provocações de Flora Sloane já eram demais. Sua zombaria seria catastrófica. Eu previa anos de tratamento psiquiátrico.

Meus esforços como detetive tinham sido pateticamente inúteis. Batera várias vezes à porta dos Sloane com um pretexto ou outro, na esperança de ser convidado a entrar, de modo a poder pelo menos olhar sub-repticiamente o quarto deles, mas, fosse a mulher ou o marido que atendessem, todas as conversas tinham lugar na soleira, com a porta apenas entreaberta.

Eu abria a minha porta todas as noites, quando o hotel dormia, mas nunca tinha visto os sapatos marrons no corredor. Começava a sentir que fora vítima de alucinações no compartimento do trem – que Sloane nunca usara sapatos marrons com solas de borracha e nunca ostentara uma gravata de lã vermelha. Trouxera à baila casos de confusão de bagagem nos aeroportos, mas os Sloane não haviam mostrado interesse. Ficaria até o fim da semana, esperando que algo acontecesse, e depois iria embora, se bem que não soubesse para onde. Talvez para algum país da cortina de ferro. Ou para Katmandu. A idéia de Drusack no hospital não me largava.

– Esses horríveis jogos de bridge! – suspirou Flora Sloane, enquanto bebericava o seu bloody-mary. – Ele está perdendo uma fortuna. Jogam a cinco cents cada ponto. Todo mundo sabe que Fabian é praticamente um profissional. Todo inverno ele passa aqui dois meses e sai rico. Procuro fazer Bill entender que não é tão bom jogador de bridge quanto Fabian, mas é tão teimoso, que se recusa a acreditar que alguém seja melhor do que ele em qualquer coisa. Depois, quando perde, fica furioso comigo. É o pior perdedor deste mundo. Você não acreditaria, se eu lhe contasse as coisas que ele me diz. Quando volta ao quarto, depois de um desses horríveis jogos, é um verdadeiro pesadelo. Não dormi bem uma noite sequer desde que chegamos. De manhã, tenho de me forçar a calçar as botas de esqui. Quando formos embora, vou parecer uma bruxa velha.

– Ora, por favor, Flora – disse eu, fazendo a esperada objeção. – Nem que quisesse, nunca pareceria uma bruxa. Você parece uma flor. – E era verdade. A qualquer hora do dia ou da noite, com qualquer roupa, ela parecia sempre uma peônia aberta.

– As aparências enganam – retrucou ela, com ar sombrio. – Não sou tão forte quanto pareço. Em criança, fui muito delicada. Francamente, querido, se eu não soubesse que você estava esperando por mim todas as manhãs, acho que ficaria o dia inteiro na cama.

– Pobrezinha – disse eu. A idéia de Flora ficando o dia inteiro na cama era deliciosa, mas não pela razão que ela poderia pensar. Com ela na cama, eu poderia devolver os esquis e as botas alugados e nunca mais subir a montanha nesse inverno. Mesmo tendo descoberto que a minha visão me permitia esquiar, depois de Vermont o esporte não tinha mais alegria para mim.

– Mas há um raio de esperança – disse Flora, deitando-me um daqueles olhares de esguelha, provocantes, que eu tanto detestava. – Parece que Bill vai ter que voltar a Nova York na semana que vem. Então, vamos poder ficar juntos o tempo todo. – Disse aquele "todo" com uma ênfase que me fez olhar em volta, para ver se alguém estava escutando. – Não seria maravilhoso?

– É… m… ma… maravilhoso – falei. Era a primeira vez que gaguejava desde que deixara o St. Augustine. – Va… vamos al… almoçar.

Nessa tarde, ela me presenteou com um relógio. Um modelo grande e esportivo, capaz de funcionar perfeitamente a cem metros debaixo d'água ou se atirado do alto de um edifício. Tinha um cronômetro e toda espécie de mostradores. Só faltava mesmo tocar o hino nacional suíço.

– Você não devia ter feito isso – protestei debilmente.

– Quero que você se lembre desta semana maravilhosa, sempre que olhar as horas – respondeu ela. – Como é? Não vai me dar nem um beijinho?

Estávamos num stübli no meio da cidade, onde tínhamos parado a caminho do hotel depois de esquiar. Eu gostava do lugar por não ter na adega nem uma garrafa de champanha. Havia no ar um cheiro de queijo derretido e lã úmida, proveniente dos outros esquiadores que enchiam a sala, bebendo cerveja. Beijei-lhe levemente a face.

– Não gostou do relógio? – perguntou ela.

– Adorei – respondi. – A… adorei m… mesmo. Só que deve ter custado tão caro!

– Nem tanto, querido – retrucou ela. – Se não tivesse vindo e me mimado, eu teria contratado um professor de esqui e você nem sabe como saem caros os professores de esqui num lugar como este! Além do mais, a gente ainda tem de lhes pagar o almoço. E como comem! Acho que passam a batatas o resto do ano e tiram a barriga da miséria no inverno. – Ela podia ser volúvel, mas era também econômica. – Deixe-me ajustar-lhe o relógio – falou, colocando-o no meu pulso. – Bem masculino, não?

– Acho que é uma boa maneira de descrevê-lo – falei. Quando conseguisse livrar-me dos Sloane, marido e mulher, levá-lo-ia de volta à joalheria, para ver quanto me davam. Devia ter custado pelo menos trezentos dólares.

– Mas não diga nada a Bill – pediu ela. – Quero que seja um segredo entre nós dois. Um segredinho. Você vai se lembrar, não vai?

– Vou – prometi. Era uma promessa que eu não iria esquecer.

A crise surgiu na manhã seguinte. Quando ela desceu para o hall, onde como de hábito eu a esperava às dez horas, não estava vestida para esquiar.

– Acho que não vou poder esquiar com você esta manhã, querido – disse ela. – Bill tem de ir a Zurique hoje e vou acompanhá-lo até a estação. Pobre homem! Com toda esta neve e este dia lindo! – Riu. – E vai ter que pernoitar lá. Não é horrível?

– Horrível – assenti.

– Espero que você não se sinta muito só, esquiando sem mim – disse ela.

– Bem, o que não tem remédio, remediado está – retruquei.

– Na verdade – disse ela -, eu não estava mesmo com vontade de esquiar hoje. Tenho uma idéia! Por que você não vai esquiar agora e, à uma, desce e almoçamos juntos? O trem de Bill sai às vinte para a uma. Podemos passar uma tarde de sonho, juntos…

– Ótima idéia!

– Podemos começar tomando uma bela garrafa de champanha bem gelada no bar – sugeriu ela. – E depois veremos. Não acha boa idéia?

– Ótima – repeti.

Ela deitou-me um dos seus sorrisos significativos e voltou para junto do marido. Eu saí para o ar frio da manhã sentindo um princípio de dor de cabeça. Não tinha nenhuma intenção de esquiar. Se eu nunca mais visse um par de esquis na minha frente, não faria nenhuma diferença. Lamentava ter-me deixado levar pelo que Wales falara do charter do clube de esqui, pois fora o começo da cadeia de acontecimentos que estava levando a Sra. Sloane inexoravelmente para a minha cama. Entretanto, e isso eu tinha de admitir, se tivesse atravessado o oceano num vôo regular e minha mala tivesse sido roubada, eu não teria idéia alguma de onde procurá-la. E através dos Sloane conhecera alguns dos outros companheiros de viagem e pudera lhes falar da minha mala perdida. A verdade era que, até o momento, nenhum deles caíra na armadilha, mas sempre se podia esperar que, na próxima montanha ou no próximo bar alpino, um rosto se erguendo, uma exclamação involuntária ou uma palavra impensada me pusessem na pista da minha fortuna.

Pensei em pegar o mesmo trem que Sloane, mas que poderia eu fazer quando chegássemos a Zurique? Não podia espioná-lo por toda a cidade.

Pensei na tarde de sonho que me esperava, começando por uma bela garrafa de champanha (na minha conta), e gemi. Um rapaz que descia a rua à minha frente, apoiado em muletas, de perna engessada, ouviu-me e voltou-se, curioso. Cada qual com os seus problemas.

Olhei para uma vitrina e vi-me refletido no vidro: um homem jovem, metido numa roupa de esqui elegante, de férias num dos lugares mais glamourosos do mundo. Podiam tirar a minha foto para um anúncio de revista de turismo. As férias dos seus sonhos.

Foi então que ri para mim mesmo. Tive uma idéia. Comecei a descer a rua atrás do rapaz de muletas; quando passei por ele, eu coxeava bastante. Olhou para mim com simpatia e disse:

– Você também?

– Foi só uma distensão – respondi.

Quando cheguei ao pequeno hospital particular, convenientemente situado no centro da cidade, estava imitando bastante bem um esquiador que houvesse sofrido uma queda.

Duas horas depois, eu saía do hospital equipado com muletas, minha perna esquerda engessada acima do joelho. Fiquei o resto da manhã sentado num restaurante, bebendo café e comendo croissants, enquanto lia o Herald Tribune do dia anterior.

O jovem médico que me atendera mostrara-se cético quando eu lhe disse que tinha a certeza de ter quebrado a perna.

– Uma fissura – disse-lhe eu. – Já me aconteceu outras duas vezes. – Ficara ainda mais cético depois de olhar para as radiografias, mas eu insistira e ele dissera:

– Bem, a perna é sua.

A Suíça era um país onde se podia conseguir assistência médica de qualquer tipo, necessária ou não, desde que se pagasse. Tinha ouvido contar de um sujeito com uma infecção no polegar, que ficara obcecado com a idéia de que tinha um câncer. Médicos dos Estados Unidos, da Inglaterra, França, Espanha e Noruega tinham-lhe garantido que se tratava apenas de uma infecção por fungo e prescrito pomadas. Na Suíça, por um determinado preço, ele por fim conseguira que lhe amputassem o dedo. Atualmente, vivia feliz em San Francisco, sem polegar.

À uma hora, peguei um táxi de volta ao Palace. Aceitei as expressões de compaixão dos funcionários do hotel com um sorriso pálido e assumi um ar de sofrimento estóico ao entrar no bar.

Flora Sloane estava sentada a um canto, perto da janela, com uma garrafa de champanha por abrir num balde de gelo diante dela. Vestia uma calça comprida verde, bem justa, e um suéter que realçava ao máximo o seu busto generoso e, devo confessar, bem-feito. O casaco de pele de leopardo estava numa cadeira ao lado e o seu perfume fazia o bar parecer uma floricultura cheia de plantas tropicais exóticas.

Ela abriu a boca ao me ver entrar usando as muletas com dificuldade.

– Ora, bolas! – exclamou.

– Não é nada – disse eu, valentemente. – Apenas uma fraturinha. Daqui a um mês e meio poderei tirar o gesso. Pelo menos, foi isso que o médico falou. – Deixei-me cair numa cadeira, com um som que ouvidos sensíveis teriam distinguido como um gemido abafado, e coloquei a perna engessada numa outra cadeira.

– Como diabo você foi fazer isso? – perguntou ela, aborrecida.

– Meus esquis não se abriram. – Até aí, era verdade. Eu não tocara neles naquele dia. – Cruzei os esquis e eles não se abriram.

– Um bocado estranho – disse ela. – Você não caiu nem uma vez desde que chegou.

– Acho que eu não estava prestando atenção – expliquei. – Acho que estava pensando nesta tarde e…

A expressão dela mudou.

– Pobrezinho! – disse. – Bem, de qualquer maneira, podemos tomar o nosso champanha. – E fez um sinal ao garçom.

– O médico proibiu-me de beber – falei. – Disse que prejudicava o processo de cura.

– Todo mundo que eu conheço que quebrou ossos continuou bebendo – retrucou ela. Não era mulher que gostasse de se ver privada de champanha.

– Talvez – falei. – Mas o médico disse que meus ossos são muito frágeis. – E fiz uma careta de dor.

Ela tocou-me na mão.

– Está doendo?

– Um pouco – confessei. – O efeito da morfina está começando a passar.

– Ainda assim – disse ela -, vamos poder almoçar…

– Detesto ter de desapontá-la, Flora – atalhei. – Mas estou um pouco enjoado. Sinto até vontade de vomitar. O médico disse que era melhor eu ficar hoje de cama, com a perna apoiada numas almofadas. Sinto muito.

– Bem, só posso dizer que você escolheu o dia errado para cair – disse ela, passando a mão no busto vestido de caxemira. – E eu, que me vesti para você.

– Os acidentes acontecem quando têm de acontecer – falei, filosoficamente. – Mas você está linda. – Levantei-me com esforço, apoiando-me num pé só. – Acho melhor subir agora.

– Vou com você – disse ela, erguendo-se.

– Se você não se ofende, preferia ficar sozinho. Desde criança, gosto de estar sozinho quando não estou bem. – Não queria ficar deitado numa cama com Flora Sloane à solta no quarto. – Beba o champanha por nós dois. Por favor, ponha a garrafa na minha conta – disse eu para o garçom.

– Posso ir ao seu quarto mais tarde? – perguntou ela.

– Bem, agora vou procurar dormir. Telefono-lhe quando acordar. Não se preocupe comigo, meu bem.

E saí, deixando-a no bar, esplêndida e desapontada, na sua calça verde e justa e no seu suéter de caxemira.

Quando o sol estava se pondo, num fulgor rosado sobre os picos distantes que se viam da minha janela, a porta do meu quarto abriu-se de mansinho. Estava deitado na cama, olhando confortavelmente para o teto. Tinha mandado servir o almoço no quarto e comera avidamente. Por sorte, o garçom viera apanhar a bandeja, porque a cabeça de Flora Sloane apareceu à porta.

– Não quero perturbá-lo – disse ela. – Só queria saber se você estava precisando de alguma coisa. – Entrou no quarto. Quase não a podia ver na penumbra, mas sentia o cheiro dela. – Como é que você está, querido?

– Vivo – respondi. – Como foi que você entrou? – O fato de estar inválido escusava-me de usar de galanteria.

– A arrumadeira deixou-me entrar. Expliquei e ela me abriu a porta. – Aproximou-se da minha cama e colocou a mão na minha testa, num gesto digno de Florence Nightingale. – Você não tem febre – declarou.

– O médico disse que talvez só à noite – disse eu.

– Passou bem a tarde? – perguntou ela, sentando-se na beira da minha cama.

– Como posso ter passado bem? – retruquei. Só que não era verdade… nunca passara melhor tarde do que aquela, desde que estava em St.Moritz.

De repente, ela inclinou-se e beijou-me, como sempre utilizando a língua. Contorci-me, a fim de poder respirar, e a minha perna doente (como eu agora a considerava) tombou para fora da cama. Gemi de maneira realística. Flora endireitou-se, toda afogueada e ofegante.

– Desculpe – disse ela. – Machuquei-o?

– Não – respondi. – Foi só… você sabe… o movimento brusco.

Ela levantou-se e olhou para mim. Estava demasiado escuro no quarto para eu lhe ver claramente o rosto, mas tive a impressão de que ela começara a desconfiar.

– Sabe? – disse ela. – Uma amiga minha conheceu um jovem esquiando em Gstaad, combinaram encontrar-se à noite e… bem, você sabe, ele partiu a perna às três da tarde, só que isso não impediu nada. Às dez horas da noite, eles estavam na cama.

– Talvez ele fosse mais jovem do que eu – argumentei. – Ou a fratura fosse diferente. Seja como for, a primeira vez… com você… eu gostaria que tudo fosse perfeito.

– É – disse ela, numa voz seca e desconfiada. – Bem, acho melhor eu ir andando. Vai haver uma festa hoje à noite e preciso arrumar-me. – Inclinou-se e beijou-me castamente na testa. – Se você quiser – acrescentou – posso vir aqui depois da festa.

– Não acho que seria boa idéia.

– Talvez não. Bom, durma bem – disse ela, e saiu do quarto.

Recostei-me, olhei mais uma vez para o teto às escuras e pensei no heróico jovem de Gstaad. Mais um dia e vou-me embora daqui, com muletas ou sem elas. Mas Flora Sloane me dera uma idéia. Sem ter a chave do meu quarto, ela conseguira entrar. A arrumadeira…

Nessa noite jantei sozinho, bem tarde. Tinha visto Flora Sloane num espetacular vestido longo, a distância, a caminho da festa com um grupo de pessoas, algumas das quais eu conhecia, outras não, mas todas passíveis de terem depositado os meus setenta mil dólares no banco. Se Flora me vira, não o demonstrara. Demorei jantando e, quando subi, não pedi a chave no balcão. O corredor que levava ao meu quarto estava vazio, mas, após um momento, vi a arrumadeira da noite saindo de um outro quarto. Aproximei-me da porta dos Sloane e chamei a arrumadeira.

– Sinto muito – disse, arrastando-me com as muletas -, mas acho que esqueci a chave. Será que a senhora pode abrir a porta para mim? – Era a primeira vez que a via.

Ela tirou uma chave do bolso do avental e abriu a porta. Agradeci e entrei, fechando a porta atrás de mim. O quarto já fora preparado para a noite e a cama estava aberta, com os dois abajures acesos. O perfume de Flora Sloane enchia o ar. Excetuando-se isso, o quarto era igual a todos os outros. Eu estava nervoso, procurando não fazer barulho. Dirigi-me para o grande armário embutido e abri uma porta. Roupa de mulher. Reconheci vários vestidos e conjuntos de esqui. Abri a outra porta: uma longa fila de ternos e camisas empilhadas. No chão, havia seis pares de sapatos. Os sapatos marrons, que Sloane usara no trem, eram os últimos na fila. Curvei-me com dificuldade e apanhei o pé direito. Depois, sentei-me numa cadeira e tirei o sapato direito. O meu pé esquerdo estava engessado. Tentei enfiar o pé no sapato marrom, mas não consegui. Devia ser dois números menor do que o meu. Fiquei ali sentado, segurando o sapato e olhando para ele, abobalhado. Desperdiçara quase uma semana, tempo precioso e uma pequena fortuna, numa pista falsa. Estava ali sentado, no quarto suavemente iluminado, segurando estupidamente o sapato, quando ouvi o ruído de uma chave girando na fechadura. A porta abriu-se e Bill Sloane, com roupa de viagem e segurando na mão uma maleta, entrou no quarto.

Parou, quando me viu, e deixou cair a maleta, que fez um som abafado sobre o tapete do quarto.

– Que diabos…? – falou, mas não parecia zangado. Não tinha tido tempo de se zangar.

– Olá! – disse eu, bobamente. – Pensei que você estivesse em Zurique.

– Estou vendo. – A voz dele começava a se altear. – Onde diabos está Flora? – E acendeu a luz do teto, como se a mulher pudesse estar escondida nas sombras.

– Foi a uma festa. – Eu não sabia se devia levantar-me ou ficar onde estava. Levantar-me apresentava problemas, com a perna engessada e o pé livre metido apenas numa meia.

– Foi a uma festa – repetiu ele, sombriamente. – E que diabos você está fazendo aqui?

– Esqueci a minha chave – respondi, embora visse que a explicação era muito pouco razoável. – Pedi à arrumadeira para abrir a porta do meu quarto e não reparei…

– O que você está fazendo com meu sapato na mão? – Cada pergunta era como que um arco numa curva ascendente.

Olhei para o sapato como se nunca o tivesse visto.

– Sinceramente, não sei – respondi, deixando-o cair no chão.

– O relógio – disse ele. – O maldito relógio.

Olhei para o relógio automaticamente. Eram dez e dez.

– Sei quem lhe deu esse maldito relógio. – O seu tom de voz era agora francamente ameaçador. – Foi a minha mulher. A cretina da minha mulher.

– Foi… bem… só uma brincadeira. – Nada, na minha vida, me preparara para uma situação daquelas, e percebi com amargura que as minhas improvisações estavam longe de ser brilhantes.

– Todos os anos ela se apaixona por algum idiota professor de esqui e lhe dá um relógio… para começar – disse ele. – Só para começar. Quer dizer que… este ano, você foi eleito. É o ano dos amadores.

– É apenas um relógio, Bill – disse eu.

– Ela é uma vagabunda – afirmou Sloane, avançando para mim. – Este ano, pensei: bem, até que enfim ela anda com alguém em quem eu posso confiar. – Começou a chorar.

– Por favor, Bill – supliquei. – Não chore. Juro que não houve nada. – Desejava poder explicar-lhe que, nos últimos sete dias, não sentira o mínimo desejo sexual.

– Você jura – grunhiu ele, chorando. – Você jura! Todos juram! – Com um movimento surpreendente e rápido, inclinou-se, agarrou o meu braço e puxou-o. – Dê-me de volta esse maldito relógio, seu filho da mãe!

– Naturalmente – respondi, com considerável dignidade. Tirei o relógio do pulso e o entreguei a ele. Sloane ficou um momento olhando-o e depois avançou para a janela, abriu-a e atirou-o. Aproveitei a ocasião para me levantar e me equilibrar nas muletas. Ele deu meia-volta e retornou até junto de mim, tão junto, que eu podia cheirar o uísque em seu hálito.

– Eu devia jogá-lo também pela janela, mas não costumo bater em aleijados – falou, ao mesmo tempo em que dava um pontapé no gesso, não com muita força, mas o bastante para me fazer cambalear. – Não sei que diabos você estava fazendo aqui e nem quero saber. Mas, se não cair fora deste hotel e desta cidade amanhã de manhã, juro que vou mandar expulsá-lo. Juro que vai se arrepender de ter vindo à Suíça. – Curvou-se de novo, pegou o meu sapato e jogou-o pela janela, no mais estranho ato de vingança que eu já vira. Tudo isso chorando. Não havia dúvida de que, apesar das aparências em contrário (passar a manhã telefonando e a tarde jogando bridge), ele tinha uma grande e, para um homem da sua idade e do seu temperamento, incomum paixão pela esposa.

Quando saí do quarto, com as minhas muletas, ele estava sentado qual urso enorme e trágico, a cabeça entre as mãos, soluçando.