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Éramos oito, na pequena sala de projeção. Meus pés doíam, da visita ao Louvre. A sala cheirava a vinte anos de cigarros e suor. O prédio, nos Champs-Élysées, era velho e mal conservado, com elevadores antiquados e rangentes. Os cartazes dos escritórios, nos andares por onde passamos, pareciam anunciar firmas a caminho da bancarrota ou que tivessem algo a ocultar. Os corredores estavam debilmente iluminados, como se as pessoas que freqüentavam o prédio não quisessem ser claramente vistas entrando e saindo. No nosso grupo, além de Fabian, Lily e eu, estava a encantadora francesa de Fabian, cujo nome era Nadine Bonheur. Ao fundo, o câmara do filme, um profissional grisalho, com ar cansado e uns sessenta e cinco anos, uma boina na cabeça e um cigarro permanentemente pendurado nos lábios. Parecia demasiado velho para aquele tipo de trabalho e estava sempre de olhos quase fechados, como se não quisesse lembrar-se do que tinha fixado no filme que íamos ver.
Sentados juntos, do outro lado da fila de cadeiras, estavam os dois astros do filme, um jovem escuro e esbelto, provavelmente norte-africano, com um rosto comprido e triste, e uma jovem e bonita americana chamada Priscilla Dean, com um rabo-de-cavalo louro, anacrônica relíquia de uma geração anterior de virgens do centro-oeste. Estava vestida de maneira clássica e quase pudica.
– Muito prazer – disse ela, numa voz tipicamente interiorana.
Fui apresentado aos outros sem qualquer cerimônia, numa atmosfera de reunião de negócios. Poderíamos estar ali reunidos para uma conferência sobre a colocação no mercado de uma nova marca comercial.
Um homem barbudo e cabeludo, sentado longe dos outros e metido numa jaqueta bastante suja, com cara de quem acabou de comer algo extremamente desagradável, limitou-se a grunhir quando o cumprimentei.
– Trata-se de um crítico – murmurou Fabian. – Vive com Nadine.
– Prazer em conhecê-lo – disse Nadine Bonheur, estendendo-me a mão sedosa. Era baixinha e magrinha, mas com um busto atrevido e generoso, metade do qual o vestido preto e decotado deixava ver. Seu tom de pele era lindamente bronzeado. Imaginei-a nua, na praia de St. Tropez, rodeada por rapazes igualmente despidos e dissolutos.
– Vá ver o que esse maldito encarregado da projeção está fazendo – disse ela ao câmara. – Só temos a sala por trinta minutos. – Falava um inglês com essa pronúncia francesa de que os americanos tanto gostam.
O câmara berrou algo em francês num telefone que havia na sua frente e as luzes se apagaram.
Na meia hora que se seguiu, dei graças a Deus de que a sala estivesse às escuras. Corava tão intensamente que, embora ninguém me pudesse ver, parecia-me que o calor do sangue no meu rosto devia estar aumentando a temperatura da sala qual enorme lâmpada infravermelha. Os acontecimentos projetados na tela, em cores, eram do tipo que meu pai teria descrito como indescritíveis. Havia cópulas de todas as espécies, em todas as posições, numa variedade de back-grounds. A três, a quatro, com animais, inclusive um cisne negro, práticas lésbicas e dessas carícias que a Playboy nos ensinou a chamar "fellatio" e "cunnilingus". Havia sadismo e masoquismo, mais outros comportamentos para os quais eu, por exemplo, não tinha nome. Conforme Fabian dissera, havia de tudo para todos os gostos. A época parecia ser por volta de meados do século XIX, pois alguns dos homens usavam tricórnios e casacas e as mulheres, crinolinas e espartilhos. Havia também uniformes e hussardos, botas e esporas e, de vez em quando, um castelo, com curvilíneas camponesas sendo arrastadas para trás das moitas. Nadine Bonheur, escassamente vestida, com seu rosto levado mas incorruptível de colegial encimado por uma longa peruca negra, fazia uma espécie de mestra de orgias, dispondo corpos com a calma elegância de uma dona-de-casa arrumando flores num salão antes da chegada dos convidados. Fabian dissera-me que o script era intelectual, mas, como não havia som nem diálogos, era-me difícil julgar a que ponto sua opinião era acurada. O filme seria dublado mais tarde, disse-me ele. De vez em quando, aparecia na tela um jovem de aspecto angélico, vestindo uma longa túnica enfeitada de peles e aparando sebes. Ocasionalmente, olhava tristemente para o vácuo. Também aparecia sentado numa poltrona dourada semelhante a um trono, numa grande sala de pedra iluminada por candelabros, assistindo a várias combinações dos sexos em pleno orgasmo. A sua expressão nunca mudava, embora a certa altura, quando a ação atingia o clímax, ele languidamente colhesse uma rosa de cabo longo e a cheirasse. Lily, sentada do outro lado de Fabian, abafou uma risada.
– A história é simples – explicou-me Fabian, num murmúrio. – Tem lugar num país da Europa central. O jovem da túnica é um príncipe. Aliás, o título do filme é O Príncipe Adormecido. Ele acaba de desposar uma bela princesa estrangeira. Seu pai, o rei – essa parte vai ser filmada na semana que vem -, quer um herdeiro. Mas o rapaz é virgem. Não está interessado em mulheres. Só em jardinagem.
– Isso explica a tesoura de jardinagem – disse eu, esperando que isso provasse que eu ainda me sentia capaz de falar.
– Claro – disse Fabian, com impaciência. – A tia dele, representada por Nadine, foi encarregada pelo irmão, o rei, de estimular a libido do príncipe. Enquanto isso, a princesa recém-casada espera por ele, chorando numa das torres do castelo, deitada no leito nupcial por estrear, todo ele guarnecido de flores. Mas nada… e, como você vê, são apresentadas todas as atrações possíveis… nada desperta o príncipe. A tudo ele assiste com olhos desinteressados. Todo mundo está desesperado. Por fim, como último recurso, a tia, Nadine, dança sozinha diante dele, numa roupa diáfana, segurando uma rosa vermelha entre os dentes. O olhar do príncipe se anima. Senta-se, deixa cair a tesoura. Desce do trono. Toma a tia nos braços. Dança com ela. Beija-a. Os dois caem juntos na grama. Amam-se. Todos prorrompem em vivas no castelo. O rei declara o casamento com a princesa anulado. O príncipe casa com a tia. No castelo e atrás das moitas, há Uma orgia de três dias para comemorar. Nove meses mais tarde, nasce um herdeiro. Todos os anos, para celebrar a ocasião, o príncipe e sua tia repetem a dança, nas suas vestimentas originais, enquanto os sinos da igreja repicam. Assim contado, é tudo bem iraniano, mas há um encanto telúrico. Há ainda um enredo secundário, com um vilão que ambiciona o trono e tem uma tara por chicotes, mas não vou me estender mais, por ora…
As luzes acenderam-se. Fingi um ataque de tosse para explicar o rubor das faces.
– Em termos gerais – falou Fabian -, esse é o filme. Tem tudo para agradar ao público e aos intelectuais.
– Miles – disse Nadine Bonheur, passando rapidamente do seu papel de tia incestuosa para o de mulher de negócios. – Como é, você gostou? O público vai ficar tarado, não?
– Uma beleza – declarou Fabian. – Vamos ganhar uma nota.
Evitei olhar para os outros, enquanto saíamos rumo ao elevador. Cuidei principalmente de não olhar para a jovem americana, que aparecera em todas as cenas mais vergonhosas e que eu reconheceria, mesmo com um saco por cima da cabeça, em qualquer praia de nudistas deste mundo. Constatei que Lily também estava subitamente interessada no chão do elevador.
Enquanto descíamos os Champs-Élysées, a caminho de uma cervejaria alsaciana, Nadine tomou-me o braço.
– O que você achou da mocinha? – perguntou. – Talentosa, não?
– Demais – respondi.
– Ela não é propriamente uma profissional – continuou Nadine. – Só faz filmes para pagar seus estudos na Sorbonne. Está estudando literatura comparada. As moças americanas têm mais caráter do que as européias, você não acha?
– Não posso dizer – retruquei. – Estou na Europa há apenas umas semanas.
– Você acha que o filme vai ser sucesso na América? – perguntou ela, num tom de voz preocupado.
– Estou muito otimista – respondi.
– Receio que o filme tenha demasiada classe para a platéia comum.
– Se fosse eu, não me preocuparia – retruquei.
– Miles também acha – disse Nadine, apertando-me o braço por motivos ambíguos. – Ele é maravilhoso no sei. Tem sempre um sorriso para todo mundo. Você também precisa aparecer no set. O ambiente é uma beleza. Um por todos e todos por um. E como eles trabalham! Horas extras, e nunca uma queixa. Naturalmente, os salários são muito pequenos, os astros recebem apenas uma porcentagem dos lucros, o que ajuda muito. Que tal aparecer amanhã? Vamos filmar uma cena em que Priscilla está vestida de freira…
– Vim a Paris a negócios – falei. – Estou tremendamente ocupado.
– Então, venha outro dia qualquer. Será sempre bem-vindo.
– Obrigado – falei.
– Acha que a censura americana vai deixar passar o filme? – perguntou ela, novamente preocupada.
– Imagino que sim. Pelo que ouço dizer, deixam passar tudo, hoje em dia. Há sempre a chance, é claro, de que um chefe de polícia local implique com o filme e mande fechar o cinema em que esteja sendo exibido. – Ao dizer isso, percebi que também tinha razões para me preocupar. Se eu fosse um chefe de polícia local, mandaria queimar o filme, mesmo contra a lei. Mas eu não era um policial. Era, quisesse ou não, um investidor. De quinze mil dólares. Procurei não parecer preocupado. – E na França? – perguntei. – Será liberado?
– Nunca se sabe – disse ela, apertando-me de novo o braço. – Um bispo gagá faz um sermão no domingo e, no dia seguinte, todos os cinemas podem fechar. E se a mulher do presidente ou de um ministro cisma com um cartaz… Você não tem idéia de como o povo francês é atrasado com respeito a arte. Felizmente, há sempre um novo escândalo, a cada semana, para distrair a atenção dos burgueses. – De repente, ela parou, soltando-me o braço. Recuou dois passos e olhou-me dos pés à cabeça. – A olho nu – observou – você parece muito bem-feito. Estarei errada?
– Costumava esquiar um bocado – falei.
– Ainda não arranjamos ninguém para o papel do vilão – prosseguiu Nadine. – Ele tem duas cenas muito interessantes. Uma com Priscilla e outra com Priscilla e uma moça núbia… Talvez lhe agradasse.
– Ela está lhe oferecendo trabalho, Douglas – disse Miles, sua voz ressoando no ruído do trânsito. – Proteja seu investimento.
– É muita gentileza de sua parte, madame – respondi a Nadine -, mas se minha mãe, lá nos Estados Unidos, visse o filme, receio que… – Senti vergonha de meter minha falecida mãe no assunto, mas achei que era a maneira mais rápida de pôr fim à conversa.
– Priscilla também tem a mãe na América – atalhou Nadine.
– Sim, mas nem todas as mães de lá são iguais. Eu sou filho único – expliquei, bobamente.
– Ora, aceite o papel – disse Lily. – Eu ajudo você a decorar as falas, no set. E poderíamos ensaiar as cenas mais difíceis no hotel.
– Sinto muito – respondi, furioso com ela. – Gostaria de aceitar, mas a qualquer momento posso ter que sair de Paris.
Nadine deu de ombros.
– O mal desses filmes – disse ela – é que as caras são sempre as mesmas. Sempre o mesmo equipamento, sempre os mesmos orgasmos. Talvez numa outra ocasião. Você tem algo… uma sexualidade oculta, como um jovem padre… Não acha Lily?
– Acho – confirmou Lily.
– Resultaria encantadoramente perverso – prosseguiu Nadine. – Inocentemente depravado. Os bispos rangeriam os dentes.
– Fica para outra vez – prometi.
– Vou cobrar de você. – E Nadine lançou-me o seu incorruptível sorriso de colegial.
Os dois chopes que tomara, um logo após o outro, pareciam ter estimulado o crítico barbudo. Pôs-se a falar excitadamente em francês com Nadine.
– Philippe – pediu ela -, fale em inglês. Temos convidados.
– Estamos na França, não estamos? – retrucou Philippe em voz bem alta, por entre a barba. – Por que eles não hão de falar francês?
– Porque somos uns anglo-saxões estúpidos, meu caro – respondeu Lily. – E, como todo francês sabe, mal-educados.
– Ele fala inglês muito bem – disse Nadine. – Muito bem. Esteve dois anos na América. Em Hollywood. Escrevia críticas para os Cahiers du Cinema.
– Gostou de Hollywood? – perguntou Fabian.
– Detestei.
– E os filmes?
– Detestei.
– Gosta dos filmes franceses? – perguntou Lily.
– O último de que eu gostei foi Acossado – respondeu Philippe, emborcando a cerveja.
– Isso foi há dez anos – disse Lily.
– Mais – corrigiu Philippe.
– Ele é muito exigente – explicou Nadine. – E também político.
– Quantas e quantas vezes – disse ele furioso, virando-se para ela – eu já lhe disse que as duas coisas são inseparáveis?
– Demasiadas vezes. Não seja emmerdeur <emphasis><strong>[2]</strong></emphasis>, Philippe. Ele simpatiza com a China – explicou-nos Nadine.
– Gosta de filmes chineses? – perguntou Lily, que parecia deliciar-se em provocar o homem, no seu jeito tranqüilo de dama.
– Não vi nenhum… ainda – respondeu o homem. – Estou esperando. Há cinco, há dez anos. – Seu inglês, apesar da pronúncia estrangeira e das incorreções, era fluente. Seus olhos coruscavam. Era o tipo do sujeito que seria capaz de discutir até em sânscrito. Tive a impressão de que, se alguma vez encontrasse alguém que concordasse com ele, sairia furioso da sala.
– Escute aqui, meu velho – disse Fabian, num tom de voz cordial. – O que você achou do nosso filmezinho, até agora?
– Une merde.
– É mesmo? – Lily fingiu surpresa.
– Philippe – avisou Nadine. – Priscilla entende francês. Você não quer desencorajá-la, quer?
– Não faz mal – disse Priscilla, na sua voz de soprano do oeste americano. – Eu nunca levo a sério o que um francês diz.
– Estamos na cidade onde Racine apresentou Phèdre, onde Molière morreu – recitou o crítico. – Onde Flaubert foi ao tribunal defender Madame Bovary, onde houve tumulto nas ruas após a primeira apresentação de Hernani, onde Heine foi aplaudido pela sua poesia em outra língua e Turguêniev encontrou uma segunda pátria, – A barba de Philippe estava eletrizada pela discussão, os grandes nomes escorriam-lhe, deleitosos, da língua. – No nosso tempo e no mesmo campo, o cinema, temos a nosso crédito pelo menos A grande ilusão, Pega-Fogo, Brinquedo proibido. Mas esta noite nos reunimos para discutir o quê? Uma tentativa cômica e de mau gosto de despertar as nossas mais baixas emoções…
– Não queira dar a impressão, chéri – interveio Nadine, calmamente -, de que você é por demais superior para trepar. Eu podia testemunhar contra.
O crítico olhou para ela furioso e fez sinal para que lhe trouxessem outro chope.
– O que vocês me mostraram? Os cios de uma insossa poupée <emphasis><strong>[3]</strong></emphasis> americana e de um cáften marroquino, os…
– Chéri – atalhou novamente Nadine, agora num tom de voz mais severo. – Lembre-se de que você está sempre firmando abaixo-assinados contra o racismo.
– Não faz mal, Nadine – disse Priscilla, entre duas colheradas de um enorme sundae coberto de calda de chocolate. – Nunca levo a sério o que os franceses dizem.
O marroquino sorria benevolamente, seu inglês sem dúvida pobre demais para seguir o que se dizia.
– Made in France – prosseguiu o crítico. – Escrito na França, composto na França, pintado na França… Você se lembra… – E apontou um dedo acusador para Nadine. – Peço-lhe que se lembre do que isso significa. A glória. Devoção à beleza, à arte, às mais altas aspirações da raça humana. E o que significa o seu "made in France"? Uma titilação nos testículos, uma lubricidade da vagina…
– Oba, oba! – exclamou Lily.
– A típica leviandade inglesa – disse o crítico, inclinando -se por sobre a mesa, a barba tremendo furibundamente na direção de Lily. – O império foi-se. Agora, emitiremos uma casquinada do Palácio de Buckingham.
– Meu velho – disse Miles em tom amigável -, se me permite, acho que você está confundindo as coisas.
– Se me permite – retrucou Philippe -, acho que não estou confundindo nada.
– Para início de conversa, a nossa intenção é apenas ganhar os tubos – disse Miles. – E, pelo que tenho ouvido dizer, isso não é inteiramente contra o sério e austero caráter francês.
– Isso nada tem a ver com o caráter francês, e sim com o capitalismo que ora domina a França. São duas coisas muito diferentes, monsieur.
– Muito bem – concordou Fabian. – Vamos pôr o dinheiro de lado, por enquanto. Muito embora, se me permite lembrar-lhe, a maioria dos filmes pornográficos e também os mais… explícitos… provenham da Suécia e da Dinamarca, dois países socialistas, se não estou errado.
– Escandinavos – retificou o crítico. – Uma paródia do termo "socialismo". Cago nesse socialismo.
– Você é duro de roer, Philippe – disse Fabian, com um suspiro.
– Tenho as minhas definições – falou Philippe. – Defino o socialismo.
– Lá vem a China de novo – gemeu Nadine.
– Não podemos viver todos na China, podemos? – perguntou Fabian, sempre razoável. – Gostemos ou não, vivemos num mundo que tem uma história diferente, gostos diferentes, diferentes necessidades…
– Cago para um mundo que precisa de merda como a que vimos esta noite. – Philippe mandou vir outro chope. Quando chegasse aos quarenta, teria uma barriga igual a um barril.
– Fui esta tarde ao Louvre com meu amigo – disse Fabian, fazendo um gesto em minha direção. – E ontem deliciei-me com uma visita ao Jeu de Paume. Onde estão reunidos os impressionistas.
– Não preciso que me descrevam os museus de Paris, monsieur – disse Philippe com frieza.
– Desculpe – retrucou Fabian. – Diga-me uma coisa, você é contra as obras de arte desses museus?
– Nem todas – falou Philippe, relutantemente. – Não.
– Os nus, as figuras se abraçando, as madonas opulentas, as deusas prometendo toda espécie de prazeres carnais aos pobres mortais, os belos mancebos, as princesas reclinadas… Você é contra isso?
– Não percebo até onde o senhor quer chegar – disse Philippe, salpicando a barba de cerveja.
– O que estou querendo dizer – falou Fabian, todo paciência e bonomia – é que, através da nossa civilização, os artistas sempre apresentaram objetos de desejo sexual, sob uma ou outra forma, sagrada, profana, baixa, elevada. Por exemplo, ontem, no Jeu de Paume, vi com prazer, talvez pela décima vez, o famoso quadro de Monet chamado Déjeuner sur Vherbe, em que duas mulheres soberbas estão nuas sobre a grama, com seus amigos totalmente vestidos e…
– Conheço o quadro – interrompeu Philippe. – Prossiga, por favor.
– Evidentemente – disse Fabian, triunfante -, Monet não queria que quem olhasse para o quadro achasse que nada acontecera antes e que nada aconteceria depois daquele momento. A impressão que eu tenho, pelo menos, é de uma deliciosa familiaridade, com todas as suas conotações… Está me acompanhando?
– Estou entendendo – disse Philippe, com aspereza. – Mas não sei aonde o senhor quer chegar.
– Talvez – disse Fabian -, se Monet tivesse tido tempo, teria pintado algumas cenas do que havia acontecido antes e do que iria acontecer depois do momento que ele captou no quadro. E essas cenas poderiam não ser tão diferentes assim de algumas daquelas que vimos esta noite. Podemos dizer que Nadine talvez não seja tão grande artista quanto Monet e que Priscilla pode não ser tão eternamente atraente quanto as damas da tela, mas, à sua maneira modesta, o filme de Nadine tem as mesmas raízes que o quadro de Monet.
– Bravo! – aplaudiu Nadine. – Ele está sempre querendo trepar comigo ao ar livre. Não negue, Philippe. Lembra-se da Bretanha, no verão passado? Toda aquela areia entre as minhas pernas.
– Eu não nego nada – disse Philippe, furioso.
– Sexo, amor, qualquer que seja o nome – prosseguiu Fabian -, nunca é apenas carne. Há sempre um elemento de fantasia no meio. Cada época espera dos seus artistas as fantasias que aprofundam, melhoram ou mesmo tornam possível o ato sexual. Nadine, sempre à sua maneira modesta… desculpe-me, querida… – Inclinou-se e acariciou a mão de Nadine à maneira de um pai. – Nadine está procurando enriquecer as fantasias dos seus contemporâneos. Nesta época de trevas, de ausência de alegria e de imaginação, acho que ela deveria ser aplaudida, e não criticada.
– Esse aí é capaz de convencer qualquer um – falou Lily.
– Concordo plenamente – falei, lembrando-me da série de coisas de que Fabian me convencera, no espaço de apenas uma tarde. De repente, ocorreu-me que ele deveria ser um advogado expulso da Ordem… sem dúvida, por algum motivo muito forte.
– Um dia, monsieur – falou Philippe, com dignidade -, gostaria de discutir com o senhor na minha língua. Em inglês, levo desvantagem. – Levantou-se. – Tenho que acordar cedo, amanhã. Pague a conta, Nadine, e vamos procurar um táxi.
– Pode deixar, Nadine – disse Fabian, embora ela não tivesse sequer esboçado um gesto na direção da bolsa. – Nós pagamos a despesa. – O plural não me passou despercebido. – E obrigado por uma noitada extremamente agradável.
Todos nos levantamos, e Nadine beijou Fabian em ambas as faces, mas limitou-se a me dar a mão. Fiquei um pouco desapontado. O filme fizera o seu efeito em mim, apesar dos rubores. O contato dos seus lábios teria sido estimulante. Não sabia como o rapaz marroquino, que filmara com ela, sem dúvida voluntariamente, pelo menos duas longas cenas, podia ficar ali tranqüilamente vendo-a ir embora com outro homem. Atores, pensei, gente capaz de se dividir em compartimentos.
– Você mora perto daqui? – perguntou Fabian à Srta. Dean.
– Mais ou menos.
– Talvez queira que a acompanhemos até sua casa.
– Não, obrigada, não vou já para casa – respondeu Priscilla. – Tenho um encontro com meu noivo. – Estendeu-me a mão. – Até logo, vejo você na igreja – disse-me ela. Senti um bolinho de papel na minha mão e, pela primeira vez, olhei bem para ela. Havia um pouquinho de chocolate no canto de sua boca, mas seus olhos eram de um profundo azul-mar, com a maré subindo rapidamente e trazendo à tona incalculáveis tesouros submersos.
– Até logo – murmurei e fechei a mão sobre o pedacinho de papel, enquanto ela se afastava.
Uma vez fora da cervejaria, na avenida banhada pelo ar suavemente úmido da noite de Paris em fevereiro, depois de nos termos despedido de Priscilla, do marroquino e do câmara, enfiei a mão no bolso em que tinha jogado o pedacinho de papel. Desenrolei-o e, à luz de um lampião, vi que havia um número de telefone escrito nele. Guardei de novo o pedaço de papel no bolso e corri atrás de Fabian e de Lily, que iam andando à minha frente.
– Que tal, satisfeito por estar em Paris, Douglas? – perguntou Fabian.
– Foi um dia cheio – retruquei. – E muito educativo.
– Pois foi apenas o começo – disse Fabian. – Você ainda tem muita coisa para ver, meu amigo.
– Você acredita em tudo aquilo que falou? – perguntei. – Nadine, Moríet, etc?
– Quando comecei a falar – explicou ele, rindo – estava só reagindo, como sempre reajo quando ouço um francês começar a discursar sobre Racine, Molière e Victor Hugo. Mas, no fim, já quase me convencera de que eu era um patrono das artes. O que também inclui você, bem entendido – acrescentou, depressa.
– Você não vai pôr o seu nome… o nosso nome… no filme, vai? – perguntei, subitamente alarmado.
– Não – respondeu Fabian, quase com pena. – Acho que isso seria ir demasiado longe. Vamos ter que arranjar um nome para a companhia. Tem alguma idéia, Lily? Você sempre foi inteligente.
– Produções Por Cima e Por Baixo – falou Lily.
– Não seja vulgar, querida – replicou Fabian. – Não se esqueça de que vamos querer uma crítica no Times. Vamos ter que pensar no caso à calma luz do dia. Por falar nisso, Douglas, procure dormir bem. Vamos ter que acordar às cinco da manhã para ir a Chantilly assistir aos exercícios.
– Que exercícios? – Eu não tinha a menor idéia de onde ficava Chantilly e, por um momento, pensei que talvez fosse um lugar onde os atores de filmes pornográficos mantivessem a forma. Pelo que tinha visto nessa noite, um dia de filmagem envolvia, tanto para o homem quanto para a mulher, o mesmo desgaste físico que dez assaltos com um campeão peso-galo.
– Do nosso cavalo – respondeu Fabian. – Havia um telegrama para mim na recepção quando voltamos do Louvre, esta tarde… por falar nisso, você gostou da visita ao Louvre, não gostou?
– Gostei. Mas que dizia o telegrama?
– Era do meu amigo de Kentucky. Parece que ele descobriu que o cavalo esteve doente e, no momento, diz que não pode comprá-lo…
– Puxa vida! – exclamei.
– Não fique preocupado, meu caro – disse Fabian. – Meu amigo quer que o cavalo entre numa corrida importante, antes de investir o seu dinheiro. Você não pode culpá-lo, pode?
– Não. Mas posso culpar você.
– Receio que estejamos iniciando o nosso relacionamento com base na nota errada, Douglas – disse Fabian, ofendido.
– Teremos apenas que explicar as coisas ao treinador. Ele tem grande fé nesse cavalo. Só precisa é certificar-se de que o animal está em forma e escolher o páreo certo para inscrevê-lo. O nome do treinador é Coombs. Um nome inglês, mas a família dele estabeleceu-se em Chantilly no tempo da Imperatriz Josefina. Ele é um mago na escolha das corridas. Tem ganho páreos com animais que já iam ser vendidos para puxar carroças. De qualquer maneira, você vai adorar Chantilly. Ninguém que goste de cavalos pode ir a Paris sem ir a Chantilly.
– Mas eu não gosto de cavalos – falei. – Detesto cavalos. Tenho um medo louco deles.
– Ah, Douglas! – disse Fabian, quando chegamos ao hotel. – Você ainda tem muito, muito que aprender. – Bateu-me no ombro, como se fôssemos velhos camaradas. – Mas você chega lá, eu lhe garanto.
Subi ao meu quarto, olhei para a cama, já aberta, e depois para o telefone. Lembrei-me de algumas das cenas do filme que vira naquela noite e decidi que não estava com sono. Desci ao bar e pedi um uísque com soda. Bebi-o lentamente e depois tirei do bolso o pedaço de papel que Priscilla Dean pusera na minha mão e estendi-o diante de mim, sobre o bar.
– Vocês têm telefone aqui? – perguntei ao garçom.
– Lá embaixo – respondeu ele.
Desci, dei o número à telefonista, entrei na cabina que ela me indicou e tirei o aparelho do gancho. Após um momento de silêncio, deu sinal de ocupado. Esperei trinta segundos e depois recoloquei o fone no gancho. "Que se vai fazer?", pensei.
Voltei ao bar, peguei minha bebida e, dez minutos mais tarde, estava na cama. Sozinho.
O nome do cavalo era Rêve de Minuit. Eu, Fabian e Lily estávamos com Coombs, o treinador, em meio à neblina da manhã, numa das aléias da floresta de Chantilly, assistindo ao exercício dos cavalos. Eram sete da manhã e fazia frio. Meus sapatos e a bainha das minhas calças estavam enlameados e molhados. Eu estava metido no meu velho sobretudo esverdeado, o mesmo dos tempos do St. Augustine, e sentia-me ridiculamente vestido para estar ali, no meio dos bosques, rodeado pelo cheiro da folhagem molhada e dos cavalos suados. Fabian, sempre pronto para enfrentar qualquer situação, usava botas de montaria, um elegante blusão impermeável sobre o paletó quadriculado e uma calça de veludo cotelé. Um boné de tweed cobria-lhe a cabeça e seu bigode estava úmido de orvalho. Parecia que o alvorecer era a sua hora predileta e que durante toda a sua vida fora dono de puros-sangues. Qualquer pessoa que o visse ali teria certeza de que nenhum treinador seria capaz de lhe passar a perna.
Lily também estava vestida para a ocasião, com botas altas e um casaco solto, a cútis inglesa realçada pelo ar úmido da floresta. Se eu pretendesse permanecer na companhia deles – e a essa altura parecia-me difícil desvencilhar-me – teria que arrumar um novo guarda-roupa.
Coombs, um velho baixinho, vermelho e de ar astuto, de botas e com uma voz roufenha, indicara-nos o nosso cavalo. Achei-o parecido com qualquer outro cavalo castanho, com grandes olhos espantados e pernas aparentemente finas demais.
– O potro está se recuperando muito bem – disse Coombs.
Nisso, tivemos de nos esconder atrás de umas árvores, pois um dos outros cavalos começou a correr de costas na nossa direção, quase tão depressa quanto correra para a frente. – Ficam um pouco nervosos, nestas manhãs frias – explicou Coombs, indulgentemente. – Aquela egüinha ali só tem dois anos. Ainda gosta de brincar.
O cavalariço conseguiu, finalmente, controlar o bicho e nós pudemos sair de trás das árvores.
– Como vão os cascos dele, Jack – perguntou Fabian. O connaisseur de pintura e escultura, que me servira de guia no Louvre e que discursara sobre Monet para o crítico na noite anterior, fora agora substituído por um entendido em cavalos.
– Ora, se fosse eu, não me preocupava – disse Coombs. – Ele está se recuperando esplendidamente.
– Quando é que poderá correr? – perguntei, falando pela primeira vez desde que fora apresentado ao treinador. – Isto é, numa corrida para valer?
– Bem – começou Coombs, abanando ambiguamente a cabeça. – Bem, isso já são outros quinhentos. O senhor não vai querer puxar pelo potro, vai? Não está vendo que ele ainda não está cem por cento? – Sua maneira de falar inglês era tipicamente irlandesa, para alguém cuja família se estabelecera na França desde os tempos da Imperatriz Josefina.
– Acho que mais duas semanas de treino não lhe fariam nenhum mal – sentenciou Fabian.
– Ele ainda parece estar sentindo a pata dianteira – disse Lily.
– Ah, a senhora notou! – falou Coombs, sorrindo para ela. – É mais psicológico do que outra coisa, entende?
– Eu sei – concordou Lily. – Não é a primeira vez que vejo um caso desses.
– Ah, é uma satisfação falar com entendidos – disse Coombs, sorrindo ainda mais.
– Pode nos dar uma data aproximada? – teimei, lembrando-me dos seis mil dólares investidos em Rêve de Minuit. – Duas semanas, três semanas, um mês?
– Não gosto que me ponham a corda no pescoço – falou Coombs, sacudindo novamente a cabeça. – Não gosto de alimentar as esperanças de um proprietário para depois ter que desapontá-lo.
– Mesmo assim, o senhor podia fazer um cálculo – insisti.
Coombs olhou fixo para mim, seus olhinhos cinzentos, cercados por milhares de rugas, de repente gelados.
– É, eu podia fazer um cálculo. Mas não vou. Ele é que vai me dizer quando estiver pronto para correr. – Sorriu jovialmente, o gelo em seus olhos derretendo-se. – Bem, acho que já vimos bastante por hoje, não acham? Agora, vamos tomar um bom café, senhora… – E ofereceu galantemente o braço a Lily.
– Você precisa ter cuidado com esses sujeitos, Douglas – disse-me Fabian em voz baixa, enquanto seguíamos Coombs e Lily por um atalho na floresta. – Eles são muito sensíveis. Este é um dos melhores que há. É uma sorte tê-lo conseguido. Você tem que deixá-los marcar as datas.
– Mas o cavalo é nosso, não é? Os seis mil são nossos.
– Eu não falaria assim onde ele me pudesse ouvir. Ah, que belo dia vai fazer! – Estávamos saindo da floresta e o sol rompia através da neblina, brilhando no pêlo dos cavalos, que voltavam a passo para as baias. – Tudo isto não lhe faz bem? – disse Fabian, abrindo os braços num gesto largo. – Esta linda paisagem, este sol matinal, estes belos e delicados animais…
– Delicados uma ova! – observei, grosseiramente.
– Estou muito otimista – disse Fabian. – Vou até arriscar uma previsão. Ainda vamos fazer nome nas pistas. E não apenas com um potro de seis mil dólares. Espere, que você ainda acabará vindo a Chantilly ver vinte cavalos seus treinando. Ainda acabará sentado nas sociais em Longchamp vendo as suas cores ganharem corridas… Espere só…
– Vou esperar – retruquei, sombrio. Mas, embora não quisesse demonstrar, também eu me sentia atraído por aquele lugar, pelos cavalos e pelo velho treinador. Não tinha o mesmo entusiasmo maníaco de Fabian, mas sentia-me tocado pela força do seu sonho.
Se especular com ouro e arriscar enormes quantias em loucos filmes pornográficos escritos por um iraniano e estrelados por uma ninfômana oriunda do centro-oeste americano e estudante de literatura comparada na Sorbonne pudessem garantir trinta manhãs por ano como aquela, eu de bom grado obedeceria a Fabian. Por fim, o dinheiro que eu roubara resultará em algo de concretamente bom. Respirei profundamente o ar puro e frio do campo antes de entrar para tomar o café da manhã na comprida mesa da sala de jantar dos Coombs, cujas paredes e prateleiras estavam tranqüilizadoramente cobertas de taças e placas que a sua coudelaria recebera através dos anos. O velho serviu-nos uma generosa dose de Calvados antes de nos sentarmos à mesa com sua gorda e rosada esposa, e oito ou nove jóqueis e cavalariços. O aroma do café e do bacon mesclava-se ao cheiro de arreios e botas. Era o mundo mais simples e saudável que eu jamais pudera imaginar que ainda existia, e quando Coombs me piscou o olho do outro lado da mesa e me disse: "Ele é que vai me dizer quando estiver com vontade de correr", eu pisquei também e ergui a minha caneca de café à saúde do velho treinador.
<a l:href="#_ftnref2">[2]</a> "Chato." Em francês no original.
<a l:href="#_ftnref3">[3]</a> Boneca." Em francês no original.