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– Acho que está na hora de pensarmos em dar um pulo até a Itália – disse Fabian. – 0 que você acha da Itália, querida?
– Adoro – respondeu Lily.
Estávamos num restaurante chamado Château Madrid, no alto de um penhasco sobre o Mediterrâneo. As luzes de Nice e das localidades costeiras, lá embaixo, piscavam à luz lilás do anoitecer. Estávamos tomando champanha, enquanto esperávamos que nos trouxessem o jantar. Tínhamos também bebido uma quantidade considerável de champanha no train bleu em que viéramos de Paris, na noite anterior. Eu estava começando a gostar do Moèt et Chandon. O velho Coombs viera conosco no trem e passara em nossa companhia quase toda a tarde. Após mais de duas semanas de exercícios, Rêve de Minuit dissera finalmente ao treinador que estava pronto para correr. E como correra! Ganhara por pescoço, nessa tarde, no quarto páreo das corridas de Cagnes, um hipódromo nos arredores de Nice. O prêmio fora de cem mil francos, quase vinte mil dólares. Jack Coombs correspondera à sua fama de saber escolher as corridas. Infelizmente, tivera de voar de volta a Paris logo após o páreo, privando-nos do prazer da sua companhia ao jantar. Eu estava curioso de ver quantas garrafas de champanha, entrecortadas de doses de conhaque, o velho podia consumir num dia inteiro.
Tínhamos também apostado quinhentos francos em Rêve de Minuit, a seis contra um. "Por motivos sentimentais", explicara Fabian, quando nos dirigíamos para o guichê. Em Nova York, eu jogava minha subsistência em cada aposta de dois dólares. Evidentemente, como princípio, o sentimento era mais lucrativo do que a sobrevivência, numa corrida de cavalos.
De regresso ao nosso hotel em Nice, a fim de nos vestirmos para jantar, Fabian ligara para Paris e Kentucky. De Paris, ficara sabendo que O Príncipe Adormecido fora concluído nessa mesma tarde e que, após uma exibição do copião ainda incompleto, na noite anterior, representantes de distribuidores para a Alemanha Ocidental e o Japão já tinham feito ofertas substanciais.
– Mais do que o suficiente – disse-me Fabian, com satisfação – para cobrir nosso investimento. E ainda falta o resto do mundo. Nadine não cabe em si de contente. Está até pensando em começar um filme "limpo". – Como se um assunto puxasse o outro, comunicou-me que o preço do ouro subira cinco pontos, nesse dia.
Seu amigo de Kentucky ficara impressionado com a notícia da vitória de Rêve de Minuit, mas queria consultar um sócio antes de fazer uma oferta definitiva. Telefonaria mais tarde, para o restaurante.
O champanha, a vista, o triunfo daquela tarde, o preço do ouro, as notícias de Nadine, o menu de um esplêndido jantar, a companhia de Lily Abbott, sentada entre nós dois em toda a sua beleza, faziam-me sentir uma enorme simpatia por todo o mundo e uma amizade toda especial pelo homem que roubara a minha mala no aeroporto de Zurique. Inimigos e aliados, eu estava descobrindo, como nos filmes em que entravam alemães e japoneses, eram entidades misturáveis.
Se Rêve de Minuit não tivesse ganho, acho que eu teria jogado Fabian no mar, dos trezentos metros de altura em que nos encontrávamos. Mas o cavalo vencera e olhei com simpatia para o bonito rosto do homem à minha frente.
– Você sugeriu algum preço ao seu amigo de Kentucky? – perguntei.
– Por volta de cinqüenta – respondeu Fabian.
– Cinqüenta o quê?
– Mil dólares – disse ele, levemente irritado.
– Você não acha que é um pouco exagerado para um cavalo de seis mil dólares? – falei. – Não nos convém assustá-lo.
– A verdade, Douglas – e Fabian tomou um gole de champanha -, é que ele não é um cavalo de seis mil dólares. Preciso confessar-lhe uma coisa: paguei quinze mil por ele.
– Mas você me disse…
– Eu sei, eu sei. Achei que seria melhor não o assustar demasiado. Se você duvida de mim, posso mostrar-lhe a conta.
– Já não duvido de você – retruquei. E era quase verdade. – É os quinze mil dólares investidos no filme? Devo multiplicá-los por mais também?
– Não. Palavra de honra, meu velho. – Ergueu o copo. – Vamos brindar a Rêve de Minuit. – Todos nós brindamos entusiasticamente. Eu me afeiçoara ao animal desde que o vira avançar em atropelada na reta final e dissera a Fabian que não gostaria de vendê-lo.
– Acho que você tem instintos de falido, meu amigo – retrucara Fabian. – Você ainda não é suficientemente rico para gostar tanto de cavalos a ponto de não querer vendê-los. Esse sentimento exagerado de posse também se aplica à sua atitude para com as mulheres. – E olhou para Lily. Em Paris, houvera um clima de tensão entre eles. Fabian tivera demasiadas conferências comerciais com Nadine, a horas mortas. Quanto a mim, evitara ir ao estúdio onde o filme estava sendo feito e nunca mais vira nenhuma das pessoas que trabalhavam nele. O sinal de ocupado no telefone ainda não fora esquecido.
– Sabem o que vamos fazer? – perguntou Fabian. – Comprar um carro. Vocês têm alguma objeção ao Jaguar?
Nem eu nem Lily tínhamos qualquer coisa contra o Jaguar.
– Um Mercedes daria muito na vista – continuou ele. – Não vamos querer parecer nouveaux-riches <emphasis><strong>[4]</strong></emphasis>. De qualquer maneira, gosto de estimular a pobre indústria britânica.
– Apoiado! – disse Lily.
O garçom trouxe o caviar.
– Só limão, obrigado – disse Fabian, mandando de volta o prato com ovos cozidos e cebolas picadas. – Não queremos diluir o prazer.
O garçom colocou pequenos montes de pérolas cinzentas nos nossos pratos. Aquela era a quarta vez, em toda a minha vida, que eu provava caviar. Lembrava-me claramente das outras três vezes.
– Tomamos um avião para Zurique – disse Fabian -, onde eu tenho um negócio a resolver, e lá podemos comprar o carro. Acho que na Suíça estão os únicos vendedores de automóveis honestos que há no mundo. Além disso, em Zurique há um hotel de primeira que eu gostaria que Douglas conhecesse.
"Puxa", pensei, "se Miles Fabian voltasse a Lowell, Massachusetts! Ou se Drusack pudesse me ver agora." Mas logo me arrependi de ter pensado em Drusack. Fabian ainda não me perguntara por que cargas d'água eu estava carregando setenta mil dólares numa mala e eu tampouco lhe contara. A verdade é que havia ainda muita coisa para conversar. Em Paris, Fabian passara a maior parte do tempo no estúdio, aprendendo o métier <emphasis><strong>[5]</strong></emphasis>, como ele dizia, enquanto eu bancava o turista, percorrendo a cidade. Quando estávamos juntos, Lily também quase sempre estava presente, e nenhum de nós dois, tinha a certeza, queria que ela soubesse dos detalhes da nossa sociedade, que era como eu agora a considerava. Quanto a ela, se achara estranho que o seu amante de uma noite em Florença tivesse aparecido noutro país como amigo e sócio do seu amante de alguns anos, não dera sinais disso. Como eu mais tarde constataria, desde que fosse admirada, alimentada e levada a lugares interessantes, ela não fazia perguntas. Tinha um desdém aristocrático pelo maquinismo por trás dos acontecimentos. Era uma dessas mulheres impossíveis de imaginar numa cozinha ou num escritório.
– Gostaria de trazer à baila um assunto delicado – disse Fabian, colocando destramente uma porção de caviar na sua torrada, sem deixar cair nem uma só ovinha. – Trata-se de números. Ou melhor, do número 3. – Olhou para Lily e depois para mim. – Entendem o que estou querendo dizer?
– Não – respondi.
Lily não disse nada.
– Não é um bom número para viajar – continuou Fabian. – Pode levar à divisão, ao subterfúgio, ao ciúme, à tragédia.
– Estou entendendo – falei, sentindo um calor subir-me pelo pescoço.
– Sem dúvida você concorda, Douglas, em que Lily é uma bela mulher.
Fiz que sim.
– E Douglas é um rapaz bem simpático – prosseguiu Fabian, num tom paternal e tolerante. – Que vai ficar ainda mais bem-parecido à medida que for se acostumando ao dinheiro e depois que tiver um guarda-roupa novo, o que eu pretendo providenciar tão logo cheguemos a Roma.
– Sim – disse Lily, olhando fixamente para o prato.
– Temos de enfrentar a verdade. Estou ficando velho. Espero que ninguém me contradiga.
Ninguém o contradisse.
– As chances de aborrecimentos são óbvias – disse Fabian, servindo-se de mais caviar. – Se você conhece alguma mulher com quem gostaria de viajar, Douglas, por que não entra em contato com ela?
A imagem de Pat veio-me imediatamente à idéia, numa onda de ternura, mesclada de arrependimento. Raramente pensara nela, durante os anos em que trabalhara no St. Augustine. O gelo protetor que tomara conta de mim naquele último dia em Vermont estava se derretendo rapidamente na companhia de Lily e Fabian. Tinha de reconhecer que, quisesse eu ou não, estava uma vez mais exposto a velhas emoções, a antigas lealdades, a lembranças de prazeres distantes. Mas, mesmo que Pat estivesse livre para viajar, não a podia imaginar aceitando as minhas relações com Fabian ou o seu ostensivo e luxuoso estilo de vida. A moça que doava uma parte do seu pequeno ordenado de professora para os refugiados de Biafra não poderia aprovar a atitude daquele homem sentado à minha frente, servindo-se de caviar. Ou a minha atitude. Evelyn Coates seria uma candidata mais apropriada a fazer parte do nosso pequeno grupo, mas quem poderia dizer qual das Evelyn Coates apareceria – a mulher surpreendentemente vulnerável daquela última noite de domingo, no meu quarto de hotel, ou a mulher abrasiva que eu conhecera no coquetel de Hale e no jogo de pôquer em Washington? Tinha também de levar em conta a possibilidade de que, de uma maneira ou de outra, eu e Fabian poderíamos ser desmascarados. Em nada favoreceria a sua carreira de advogada do governo se um dia ela fosse acusada de andar com um par de ladrões.
– Receio não me lembrar de ninguém, assim de repente – falei.
Pareceu-me detectar a sombra de um sorriso no rosto de Lily.
– Lily – perguntou Fabian -, o que sua irmã Eunice anda fazendo?
– Passando em revista os Coldstream Guards, em Londres – respondeu ela. – Ou a Guarda Irlandesa. Não sei qual a guarnição de serviço no palácio.
– Você acha que ela gostaria de fazer parte do nosso grupo?
– Acho – disse Lily.
– Acha que, se você lhe mandar um telegrama, ela poderá encontrar-se conosco amanhã à noite no Hotel Baur au Lac, em Zurique?
– Provavelmente – respondeu Lily. – Eunice está sempre pronta a viajar. Vou lhe telegrafar assim que voltarmos ao hotel.
– Você concorda com a sugestão, Douglas?
– Por que não? – Parecia-me a sugestão mais fria que eu já ouvira, mas meus companheiros eram frios. Em Roma, sê romano. Caviar e circo.
O maître veio até a nossa mesa dizer a Fabian que havia um telefonema para ele dos Estados Unidos.
– O que você acha, Douglas? – perguntou Fabian, levantando-se da mesa. – Qual o mínimo que você está disposto a aceitar? Podemos descer até quarenta, se necessário?
– Isso é com você – retruquei. – Nunca na minha vida vendi um cavalo.
– Nem eu. – Fabian sorriu. – Mas há sempre uma primeira vez para tudo. – E seguiu o maître.
O único barulho, no terraço, era o dos dentes de Lily roendo sua torrada. Aquele barulhinho estava me pondo nervoso. Sentia que ela olhava especulativamente para mim.
– Foi você – perguntou ela – quem quebrou o abajur na cabeça de Miles?
– Ele disse que fui eu?
– Disse que tinha havido um ligeiro mal-entendido.
– Por que não deixamos as coisas assim?
– Como você quiser. – Continuou a roer a torrada. – Você lhe falou de Florença?
– Não. E você?
– Não sou idiota – respondeu ela.
– E ele suspeita?
– É demasiado orgulhoso para suspeitar.
– E o que vamos fazer agora?
– Esperar Eunice – disse Lily calmamente. – Você vai gostar de Eunice. Tudo quanto é homem gosta. Por um mês, aproximadamente. Estou desejando ter férias.
– Quando é que você tem de voltar para Jock?
Ela olhou vivamente para mim.
– Como é que você sabe a respeito de Jock?
– Deixe pra lá – respondi. Ela me ferira empurrando-me para a irmã e eu queria vingar-me de alguma maneira.
– Miles diz que nunca mais vai jogar bridge ou gamão. Você sabe por quê?
– Tenho uma idéia – respondi.
– Mas não vai me contar.
– Não.
– Miles é um homem complicado – disse ela. – Adora dinheiro, seja de quem for. Tome cuidado com ele.
– Obrigado. Terei.
Ela inclinou-se por cima da mesa e agarrou-me a mão.
– Adorei Florença – disse, baixinho.
Por um torturante momento, quis agarrá-la, pedindo-lhe que fugisse comigo.
– Lily!… – exclamei, repentinamente.
– Não seja tão impressionável, querido – disse ela, retirando sua mão. – Lembre-se sempre disso.
Fabian retornou, trazendo no rosto uma expressão grave.
– Tive que ceder – falou, sentando-se à mesa e servindo-se de mais caviar. – Chegamos aos quarenta e cinco mil. – Sorriu. – Acho que precisamos de uma boa garrafa de champanha.
Eu estava sentado no meu quarto de hotel, diante da grande secretária de carvalho entalhado. Antes de entrar, dissera "boa noite" a Lily e a Fabian, cuja suíte ficava bem ao lado, dando também para o Mediterrâneo. Lily beijara-me na face e Fabian apertara-me a mão.
– Durma bem – dissera ele. – Quero aproveitar a manhã para mostrar-lhe algo, antes de partirmos para Zurique.
Estava me sentindo um pouco tonto de tanto champanha, mas não tinha sono. Peguei numa folha do papel de carta do hotel e comecei a escrever, quase a esmo.
"Prêmio", escrevi, "- 20 000. Ouro – 15 000. Bridge e gamão – 36 000… Filme?"
Olhei para o que tinha escrito, semi-hipnotizado. Antes, mesmo quando ganhava bem na companhia de aviação, nunca me dera ao trabalho de somar meu livro de cheques e nem sequer soubera ao certo o que tinha no bolso. Agora, estava decidido a manter uma contabilidade semanal. Ou, da maneira como as coisas iam, diária. Tinha descoberto um dos maiores prazeres do dinheiro: o de somá-lo. Os números naquela folha davam-me uma satisfação maior do que a que poderia alcançar se comprasse algo com o dinheiro que aqueles números representavam. Cheguei a pensar, momentaneamente, se aquilo poderia ser considerado como um vício de que eu me devesse sentir envergonhado Mais tarde debateria isso.
Ouvi um som inconfundível vindo do quarto ao lado e estremeci. Até que ponto podia confiar em Fabian? Sua atitude para com o dinheiro, seu e dos outros, era pelo menos cavalheiresca. E não havia nada no que eu sabia do seu caráter e seu passado que sugerisse um compromisso formal com a honestidade fiscal. Não podia deixar passar mais um dia sem exigir que legalizássemos nossa situação por meio de um documento. Mesmo assim, sabia que teria de vigiá-lo constantemente.
Quando finalmente adormeci, sonhei com meu irmão Hank, triste diante de suas máquinas de somar, lidando com o dinheiro dos outros.
Na manhã seguinte, tivemos, finalmente, uma chance de conversar. Lily tinha hora marcada no cabeleireiro e Fabian disse que- queria levar-me ao Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence.
Saímos de Nice com Fabian ao volante do carro alugado. O trânsito era pouco, o mar estava calmo, à nossa esquerda, e a manhã estava linda. Fabian guiava com cuidado, prudentemente, e eu descansava ao lado dele, a euforia da noite anterior ainda não inteiramente dissipada pela luz do dia. Viajamos em silêncio até sairmos de Nice e passarmos além do aeroporto. De repente, Fabian disse:
– Você não acha que eu devia conhecer as circunstâncias?
– Que circunstâncias? – perguntei, embora pudesse imaginar do que era que ele estava falando.
– Como foi que o dinheiro foi parar em suas mãos. Por que achou que devia sair dos Estados Unidos. Imagino que você estivesse correndo perigo. De certa forma, eu também agora poderia correr, não acha?
– Sim, de certa forma – concordei.
Estávamos subindo os contrafortes dos Alpes-Marítimos, a estrada ziguezagueando por entre florestas de pinheiros, plantações de oliveiras e vinhedos, o ar puro e perfumado. Naquela paisagem inocente, sob o sol mediterrâneo, a idéia de perigo parecia absurda, as ruas escuras da noite nova-iorquina remotas, como se fizessem parte de um outro mundo. Eu teria preferido não falar, não porque desejasse esconder os fatos, mas porque queria gozar daquele esplêndido presente, sem lembranças sinistras a turvá-lo. Mas reconhecia que Fabian tinha todo o direito de saber. Enquanto subíamos por entre os montes floridos, contei-lhe tudo, do princípio ao fim.
Ele ouviu em silêncio e, quando terminei, falou:
– Supondo que continuemos a ser bem sucedidos nas nossas… operações… – sorriu – como temos sido até agora… Supondo que em pouco tempo pudéssemos devolver os cem mil dólares e ainda ficar com bastante… Você procuraria descobrir a verdadeira identidade do seu legítimo dono e devolver o dinheiro a seus herdeiros?
– Não – respondi. – Não procuraria.
– Ótima resposta! – disse ele. – Não sei como você poderia fazer isso sem pôr alguém na sua pista. Na nossa pista. Tem de haver um limite para a curiosidade malsã. Houve alguma indicação de que você está sendo procurado?
– Só o que aconteceu com Drusack.
– Eu teria tomado isso como um bom aviso. – Fabian fez uma pequena careta. – Você, antes disto, teve algo a ver com criminosos?
– Não.
– Eu tampouco. Isso talvez seja uma vantagem. Não sabemos como eles pensam, de modo que não cairemos na tentação perigosa de procurar passar-lhes a perna. Ainda assim, acho que até aqui você agiu certo, não parando nunca num lugar. Durante algum tempo, acho que será prudente continuar. Você não se importa em viajar, não é?
– Adoro viajar – respondi. – Principalmente agora, que posso viajar confortavelmente.
– Já lhe passou pela cabeça que o caso pode não ter nada a ver com criminosos?
– Não.
– Li nos jornais, há algum tempo, que um homem morreu num acidente de avião e encontraram com ele sessenta mil dólares. Tratava-se de um preeminente republicano a caminho da sede do Partido Republicano na Califórnia. Foi durante a segunda campanha presidencial de Eisenhower. O dinheiro que você encontrou podia ser uma contribuição secreta para uma campanha eleitoral.
– Talvez – disse eu. – Só que um preeminente republicano jamais se hospedaria no Hotel St. Augustine…
– Bem… – Fabian deu de ombros. – Esperemos nunca descobrir a quem pertencia esse dinheiro ou a quem se destinava. Acha que seu irmão lhe pagará os vinte e cinco mil que você lhe emprestou?
– Não. Acho que não.
– Você é um homem generoso. Gosto disso. É uma das coisas boas de se ter dinheiro. Leva à generosidade. – Estávamos entrando no terreno do museu. – Veja isto, por exemplo – disse Fabian. – Soberbo edifício, esplêndida coleção, maravilhosamente apresentada. Que satisfação deve ter sido assinar o cheque que tornou tudo isto possível!
Estacionou o carro, saímos e encaminhamo-nos para o belo e severo edifício erigido no alto de um morro, rodeado por um parque em que enormes estátuas angulares, colocadas entre a folhagem das árvores, pareciam também estar a ponto de adquirir movimento.
Ao entrar no museu, que estava quase deserto, fiquei impressionado com as obras expostas. Nunca fora muito de freqüentar museus e minha experiência de artes plásticas se resumia a pintores e escultores tradicionais. Mas ali havia formas que só existiam nas mentes dos artistas, manchas em telas, distorções de objetos cotidianos e do corpo humano que me diziam muito pouco. Fabian, pelo contrário, ia lentamente de uma obra para outra, silencioso, expressão concentrada. Quando por fim saímos e nos dirigimos para o carro, ele suspirou profundamente, como se estivesse se recuperando de um tremendo esforço.
– Que coleção de tesouros! – exclamou. – Tanta energia, tanta luta, tanto humor demente, tudo reunido num só lugar. Como é, gostou?
– Receio não ter entendido quase nada.
– O último homem sincero – comentou, com um sorriso. – Bem, estou vendo que nós dois vamos dedicar bastante tempo aos museus. Você eventualmente acabará atravessando um limiar de emoção… quase que só olhando. Mas é como todas as coisas… é preciso aprender.
– E valerá a pena? – Sabia que estava falando como um ignorante, mas não gostava daquela história de que o meu dever era aprender e o dele ensinar. Afinal de contas, se não fosse o meu dinheiro, ele não estaria essa manhã no litoral mediterrâneo e sim em St. Moritz, procurando ganhar, à mesa de bridge, dinheiro suficiente para pagar o hotel.
– Para mim, vale a pena – respondeu Fabian, pousando a mão no meu braço. – Não subestime os prazeres do espírito, Douglas. Nem só de caviar vive o homem.
Paramos num café numa praça de St. Paul-de-Vence e sentamo-nos a uma mesa ao ar livre, tomando uma garrafa de vinho branco e vendo alguns velhos jogarem boules ' sob as árvores da praça, suas vozes ecoando roucamente no muro velho e cor de ferrugem que fizera parte das fortificações da cidade na Idade Média. Bebemos lentamente o vinho frio, gozando do ócio, da ausência de pressa em ir a algum lugar ou fazer alguma coisa, vendo um jogo cujo resultado não traria lucros ou prejuízos a ninguém.
– Não diluamos o prazer – disse eu. – Lembra-se de quem disse isso?
Fabian riu.
– Claro que me lembro. – E, após um momento: – Por falar nisso… deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Qual é o seu conceito de "dinheiro"?
– Acho que nunca pensei nisso. – Dei de ombros. – Não creio que tenha um conceito. Estranho, não?
– Um pouco – disse Fabian.
– Se eu lhe fizesse essa mesma pergunta, qual seria a sua resposta?
– Nenhum conceito sobre dinheiro – respondeu Fabian – existe num estado puro. É preciso você saber o que pensa do mundo em geral antes de poder ter uma noção clara a respeito do dinheiro. Por exemplo, seu modo de ver o mundo, pelo que você me disse, mudou de um dia para o outro.
– Sim, naquele dia no consultório do médico – concordei.
– Não é verdade que, antes desse dia, você tinha um conceito sobre o dinheiro e o que ele significava para você diferente do que passou a ter depois?
– Sim, é verdade.
– Eu nunca passei por mudanças dramáticas como essa – disse Fabian. – Há muito tempo, decidi que o mundo era um lugar de infinitas injustiças. Nesses anos todos de vida, o que tenho visto? Guerras em que milhões de inocentes morreram, hecatombes, secas, fracassos de todos os tipos, corrupção, o enriquecimento de ladrões, a multiplicação geométrica das vítimas. E nada que eu pudesse fazer para alterar ou aliviar esse estado de coisas. Não sou nenhum mártir nem um reformador e, mesmo que fosse, nada de bom resultaria do meu sofrimento ou dos meus ensinamentos. Por isso… a minha intenção sempre foi procurar não pertencer ao número das vítimas. Até onde eu pude ver, as pessoas que não queriam ser vítimas tinham, pelo menos, uma coisa em comum: dinheiro. Assim, o meu conceito de "dinheiro" começou baseando-se na liberdade. Liberdade de movimentos. De ser nosso próprio dono. De dizer "vá pro diabo" no momento apropriado. Um homem pobre é como um rato num labirinto. Um poder superior decide por ele. Torna-se uma máquina cujo combustível é a fome. Suas satisfações são penosamente restritas. Naturalmente, há sempre um rato excepcional, que consegue sair do labirinto, quase sempre levado por uma fome excepcional. Ou por simples acidente. Ou pela sorte. Como eu e você. Bem, eu não pretendo que toda a raça humana aspire, ou devesse aspirar, às mesmas coisas. Há homens que almejam o poder e que se rebaixam, traem, matam para obtê-lo. É só olhar para alguns dos nossos presidentes e para os coronéis que governam quase todo o mundo, atualmente. Há santos que preferem a fogueira a negar alguma verdade que eles acreditam lhes tenha sido confiada. Há homens que sofrem de úlceras ou morrem de ataques cardíacos antes dos sessenta, a troco da ridícula distinção de chefiarem uma linha de produção, uma agência de publicidade, uma firma de corretagem. Para não falar das mulheres que se deixam escravizar por amor ou que se tornam prostitutas por mera preguiça. Quando você ganhava a vida como piloto, imagino que se julgasse feliz.
– Muito feliz – disse eu.
– Já eu não gosto de voar – falou Fabian. – No ar, ou me sinto chateado, ou apavorado. Cada qual gosta do que gosta. Meus gostos, receio que sejam banais e egoístas. Detesto trabalhar. Gosto da companhia de mulheres elegantes, gosto de viajar, de hospedar-me em hotéis de primeira, tradicionais. Tenho alma de colecionador, coisa que até aqui tive de sufocar. Nada disso é particularmente admirável, mas eu não pretendo ser admirável. Na verdade, já que somos sócios, gostaria que tivéssemos os mesmos gostos. Isso reduziria a probabilidade de atrito entre nós. – Olhou para mim especulativamente. – Você se considera digno de admiração? – perguntou.
Pensei por um momento, procurando ser sincero comigo mesmo.
– Acho que nunca pensei nisso, que nunca me passou pela cabeça ser ou não digno de admiração.
– Você é perigosamente modesto, Douglas – disse Fabian. – Num momento crucial, pode transformar-se num terrível peso morto. Modéstia e dinheiro não combinam. Gosto de dinheiro, como você bem pode imaginar, mas o processo de acumulá-lo me entedia e a maioria das pessoas que passam a maior parte da sua vida acumulando-o me chateiam. Acho que o mundo do dinheiro é como uma cidade mal guardada, que deve ser atacada esporadicamente por forasteiros, gente como eu, não sujeita às suas leis ou às suas pretensões morais. Graças a você, Douglas, e ao feliz acidente que nos levou a comprar malas idênticas, posso agora viver de acordo com a imagem ideal que sempre fiz de mim mesmo. Quanto a você… embora passe dos trinta, há algo – espero que você não se ofenda -, algo juvenil, quase adolescente, ou não formado, na sua personalidade. Se me permite dizê-lo, como homem que sempre teve um fito na vida, acho que lhe falta justamente isso: direção. Ou estarei sendo injusto?
– Um pouco – respondi. – Talvez não seja falta de direção e sim confusão de direções.
– Talvez seja isso – assentiu Fabian. – Talvez você ainda não esteja pronto para aceitar as conseqüências do ato que cometeu.
– Que ato? – perguntei, intrigado.
– O daquela noite, no Hotel St. Augustine. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Suponha que você se tivesse deparado com o morto, com todo aquele dinheiro, antes de saber que estava sofrendo da visão, quando ainda estava voando e pensando em se casar… você teria feito o que fez?
– Não – respondi. – Nunca.
– Essa é uma coisa com que sempre se pode contar – disse Fabian. – O homem errado estará sempre no lugar errado no momento certo. – Encheu novamente seu copo de vinho. – Quanto a mim… nunca em toda a minha vida tive ocasião de hesitar. Bem, mas tudo isso pertence ao passado. Precisamos afastar-nos o mais possível da fonte, tapá-la, por assim dizer, com tanto capital novo, que as pessoas nunca se lembrem de perguntar como foi que começamos. Não concorda?
– Em princípio, sim – falei. – Mas como vamos fazer isso? Não podemos comprar cavalos campeões todos os dias…
– Não – admitiu Fabian. – Temos de encarar isso como incomum.
– E você me disse que não pretende mais jogar bridge ou gamão.
– Não. As pessoas com quem jogava me deprimiam. E sentia-me envergonhado por ter de fingir. A duplicidade é desagradável para um homem que gosta de fazer um ótimo conceito de si mesmo. Minha intenção, noite após noite, era apenas ganhar dinheiro, mas tinha de fingir ser amigo deles, interessar-me pelas famílias deles, gostar da companhia deles… Acho que estava ficando demasiado velho para isso. Dinheiro… – Pronunciou a palavra como se fosse um símbolo num problema de matemática que precisasse ser resolvido. – Para se tirar o máximo de prazer do dinheiro, o melhor é não ter que pensar nele a toda hora. Não precisar continuar a ganhá-lo, pelo próprio esforço ou pela sorte. No nosso caso, isso significaria investir nosso capital de modo a garantir-nos uma renda confortável ano após ano. Por falar nisso, Douglas, qual a sua idéia de uma renda anual confortável?
– Quinze, vinte mil dólares – respondi.
– Ora, homem, seja mais ambicioso! – exclamou ele, rindo.
– Quanto você diria?
– No mínimo, cem mil – disse ele.
– Isso vai exigir algum trabalho – retruquei.
– Sem dúvida. E acarretar alguns riscos. De vez em quando, também vai exigir coragem. E, aconteça o que acontecer, nada de recriminações. Nem de punhais.
– Não se preocupe – falei, esperando parecer mais confiante no futuro do que realmente estava.
– Compartilharemos todas as decisões – disse Fabian. – Que isto seja uma advertência para ambos.
– Compreendo. Miles – aproveitei -, gostaria de ter um documento escrito.
Ele me olhou como se eu o tivesse esbofeteado.
– Douglas, meu filho… – disse ele, com ar ofendido.
– Ou você aceita isso – impus – ou eu caio fora.
– Você não confia em mim? – perguntou ele. – Não tenho sido honesto com você?
– Depois que lhe acertei a cabeça com o abajur – respondi. Por questão de tato, não trouxe à baila o cavalo de seis mil dólares, que na verdade custara quinze mil. – Bem, o que você prefere?
– Quando se põe no papel um acordo, sempre resultam feias diferenças de interpretação. Instintivamente, detesto documentos. Prefiro um simples e varonil aperto de mão. – Estendeu a mão para mim por cima da mesa, mas não o imitei. Tá que você insiste… – Retirou a mão. – Em Zurique, poremos tudo em linguagem legal. Espero que nenhum de nós se arrependa. – Olhou para o relógio. – Lily deve estar à nossa espera para almoçar. – Levantou-se. Puxei da minha carteira para pagar o vinho, mas ele me deteve e jogou algumas moedas em cima da mesa. – Permita-me o prazer – falou.
<a l:href="#_ftnref4">[4]</a> "Novos-ricos." Em francês no original.
<a l:href="#_ftnref5">[5]</a> "Ofício." Em francês no original.