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Havia poucos hóspedes no Pellicano e me deram um quarto grande e arejado, de frente para o mar. Pedi à telefonista que ligasse para a casa de Quadrocelli. Ele não estava e só deveria voltar no dia seguinte de manhã, informou ela. Pedi-lhe que deixasse recado de que eu estaria o dia inteiro no hotel.
Comprara petrechos de tênis em Roma, minha bolha sarara e, na manhã seguinte, joguei em duplas mistas com uns velhos ingleses que também estavam hospedados no hotel. Após ter tomado uma chuveirada, estava sentado no terraço, olhando para o Mediterrâneo, quando a moça da recepção surgiu com um homem baixo e moreno, metido numa velha calça de veludo cotelé e num suéter azul, de marinheiro.
– Sr. Grimes – disse a moça -, este é o Sr. Quadrocelli.
Levantei-me e apertei a mão de Quadrocelli, que era áspera e calosa como a mão de um lavrador. Todo ele parecia um camponês, a pele curtida do sol, o corpo forte e redondo. O cabelo e os olhos eram pretos, os movimentos rápidos e vivos. Tinha rugas fundas em volta dos olhos, como se toda a vida tivesse rido muito. Calculei que devia ter uns quarenta e cinco anos.
– Bem-vindo, amigo – disse ele. – Sente-se, sente-se. Que bela manhã, não? Que lhe parece a nossa vista? – perguntou, como se a vista, a costa rochosa da península de Argentario, o mar banhado de sol e a ilha de Genuttri, que sobressaía a distância, fossem sua propriedade particular. – Posso oferecer-lhe um drinque? – perguntou, tão logo nos sentamos.
– Ainda não, obrigado – respondi. – Ainda é um pouco cedo para mim.
– Ah, excelente! – exclamou ele. – Já vejo que o senhor vai me dar um bom exemplo. – Falava num inglês quase sem sotaque e rápido, como se mil pensamentos se sucedessem na sua cabeça, forçando-o a falar em alta velocidade. – E como vai o encantador Miles Fabian? Que pena que ele não pôde vir também! Minha mulher está desolada. Apaixonou-se perdidamente por ele e minhas três filhas também. – Riu alegremente. Tinha uma boca pequena, de lábios curvos, quase femininos, mas sua risada era forte e masculina. – Ah, como a vida dele deve estar cheia de amores! E, ainda por cima, solteiro. Sábio, sábio. É um autêntico filósofo, o nosso amigo Miles, não acha, Sr. Grimes?
– Ainda não o conheço bem – respondi. – Nossa amizade é recente.
– O tempo só lhe faz justiça, principalmente se o compararmos conosco, pobres mortais. – Quadrocelli riu de novo. – O senhor está aqui sozinho?
– Infelizmente, estou.
Ele fez uma pequena careta.
– Tenho pena do senhor. Num lugar como este… – Fez um gesto com a mão, indicando a magnificência da paisagem. – O senhor não é casado?
– Não.
– Vou apresentá-lo às minhas três filhas. Uma é linda, embora não fique bem a um pai dizê-lo, as outras têm muita personalidade. Cada qual com as suas virtudes. Mas não tenho favoritismo. Quando Miles me telefonou de Gstaad, falou-me muito bem do senhor. Disse que, além de ser ótima companhia, o senhor possuía inteligência e retidão, qualidades que nem sempre andam juntas, nos dias que correm. Mas eu diria o mesmo de Miles.
Não achei conveniente desiludir o meu novo e generoso amigo.
– Como foi que o senhor conheceu Miles? – perguntou ele.
– Viajamos no mesmo avião, vindo de Nova York. – Era verdade, embora eu não o tivesse visto durante o vôo e ele também nunca me houvesse dito que me tinha visto. Mas evitaria mais perguntas.
– E vocês bateram certo assim, de estalo? – perguntou Quadrocelli, estalando os dedos.
"Bater" e "de estalo" eram termos apropriados, pensei, lembrando que tinha batido com o abajur na cabeça de Fabian.
– É, de estalo – concordei.
– Como os casamentos – disse Quadrocelli -, as sociedades também são concertadas no céu. Tem alguma experiência de vinhos, Sr. Grimes?
– Nenhuma. Até vir à Europa, só bebia cerveja.
– Não tem importância. Miles tem paladar por nós três. Digo-lhe, foi um dia de grande honra para o meu vinho, aquele em que Miles disse que estaria interessado em exportá-lo para todo o mundo, com o meu nome na garrafa. Cada vez que um americano disser: "Gostaria de um Chianti Quadrocelli", vou sentir um arrepiozinho de orgulho. Não sou vaidoso, mas há certas coisas que envaidecem. E vai ser um vinho honesto, isso eu lhe prometo. Não vai ter mistura de zurrapa grega ou de ácido siciliano. Ah, as coisas que se fazem aqui na Itália! Sangue de boi, produtos químicos. Sinto vergonha do meu país. O nosso vinho se parece tanto com a nossa política! Desacreditados, desvalorizados como as nossas liras. Mas isso não acontece só na Itália. Se soubesse o que vai pela França! Eu, o senhor e o nosso amigo Miles vamos poder olhar para qualquer pessoa e dizer: "Quando comprou o nosso vinho, o senhor não foi enganado". E, ao mesmo tempo, ficaremos ricos. Muito ricos, meu amigo! A sede é insaciável. Vou lhe mostrar os números depois do almoço… o senhor vai dar-me o prazer de almoçar comigo e com minha esposa…
– O prazer será meu – retruquei.
– É uma das poucas coisas que o imbecil do nosso governo não pôde estragar – continuou Quadrocelli. – O meu vinho. Tenho uma gráfica em Milão. O senhor não faz idéia de como é difícil sobreviver. Impostos, greves, restrições… Atentados a bomba. – Ficou subitamente sério. – Dolce Itália. Tenho que ter um guarda armado na minha gráfica, durante as vinte e quatro horas do dia. Imprimo, ao preço de custo, uns panfletos inofensivos para uns amigos socialistas e estou sempre sendo ameaçado. Não acredite, Sr. Grimes, quando lhe disserem que Mussolini morreu. Meu pai teve de fugir para a Inglaterra em 1928… houve uma vantagem, é claro, aprendi a sua bela língua… e não me surpreenderei se, um dia destes, eu também tiver que fugir. Da direita, da esquerda, de cima, de baixo. – Fez um gesto de impaciência, como se estivesse aborrecido consigo mesmo por demonstrar pessimismo. – Ah, não leve tudo o que eu disser demasiado a sério. Vou de um extremo ao outro. Minha família veio do sul e todos nós chorávamos e ríamos quase ao mesmo tempo. – Riu alegremente, recordando a versatilidade emocional da família. – O senhor está aqui para falar sobre vinho e não sobre a nossa maldita política. A eterna uva. Nem sequer os políticos e os ditadores podem impedir as uvas de crescerem. E os fermentos nunca entram em greve. O senhor e Miles escolheram o único investimento que pode ser considerado um risco razoável na Itália. Quando Miles falou comigo ao telefone, mencionou uma morte.
Comecei a ver que teria de ficar alerta às súbitas mudanças de assunto na conversa de Quadrocelli.
– É, um amigo nosso – falei.
– Espero que não tenha sido dolorosa.
– Acho que não foi.
– Ah! – exclamou ele. – Somos todos mortais. – Abraçou-se a si mesmo, como para ter a certeza de que o seu corpo continuava vivo. – Falemos de coisas mais agradáveis. Já esteve na Itália?
– Não – respondi, não achando que devia incluir a viagem a Florença, atrás de Miles Fabian.
– Permita-me, então, ser seu guia. É um país maravilhoso, cheio de surpresas. Algumas até boas. – Riu. Via-se que gostava de rir das próprias piadas. Simpatizara logo com ele, com a sua vitalidade, a sua saúde, a sua cínica sinceridade. – Já não somos grandes, mas herdeiros de grandeza. Zelamos mal pelas coisas, mas elas continuam de pé, embora algumas em ruínas. Faço questão de que vá a minha casa, perto de Florença, e veja os vinhedos com seus próprios olhos, beba o seu vinho onde ele é cultivado e produzido. Tenho algumas garrafas na adega que lhe farão vir lágrimas aos olhos, isso eu lhe garanto. Gosta de ópera?
– Nunca assisti a uma sequer.
– Vou levá-lo ao Scala, em Milão. O senhor vai ver o que é êxtase. Pensa ficar muito tempo na Itália?
– Isso depende, até certo ponto, de Miles.
– Não tenha pressa em ir embora, por favor. Não quero que as nossas relações sejam apenas comerciais – disse ele. – Sei que parece bobagem, mas isso prejudicaria o vinho. Gosta de navegar?
– Só andei em barcos pequenos, num lago que há na minha terra.
– Tenho um pequeno iate de oito metros de comprimento, aqui no porto. Podemos ir a Genuttri. – Indicou, com a mão, a ilha, que agora parecia uma pequena nuvem no horizonte. – Ainda está praticamente virgem, o que não é pouco, nos dias que correm. Infelizmente, não se pode nadar. A água parece feita de safiras, mas é demasiado fria. Faremos um piquenique e tomaremos sol. O senhor vai querer viver lá o resto de sua vida. Nos Estados Unidos, onde é que o senhor mora?
Hesitei.
– Em Vermont. Mas viajo muito.
– Vermont – repetiu ele, estremecendo. – Não posso entender por que há gente que gosta de morar no gelo e na neve. Como o nosso Miles, com a sua mania de esquiar. Já lhe disse que há uma casa ao lado da minha à venda. Uma linda casa, que eu podia conseguir bem barato. E, com o italiano dele… Podia viver como um rei. Com a idade dele, tinha uma boa chance de morrer antes que tudo virasse ruínas. Ouvi dizer que ele herdou um dinheiro… – sondou Quadrocelli, com uma expressão astuta, os olhos se estreitando. – É certo ou mero boato?
– Não sei – respondi. – Como já lhe disse, conheço-o há pouco tempo.
– Muito bem – disse ele. – Vejo que o senhor é discreto. Se Miles achar por bem, ele mesmo me dirá, não é?
– Acho que sim.
– Permita que lhe pergunte, Sr. Grimes… Ah! – Fez um gesto de impaciência. – Qual o seu nome de batismo?
– Douglas.
– O meu é Giuliano. Bem, permita que lhe pergunte, Douglas… qual o seu ramo de negócios?
Hesitei de novo.
– Bem, principalmente investimentos.
– Não pense que sou curioso – disse Quadrocelli, colocando as mãos à sua frente, num movimento de freio. – O fato de você ser amigo de Miles é o bastante para mim. Ou para qualquer pessoa. – Levantou-se. – Bem, está na hora do almoço. Pasta e peixe fresco. Comida simples, mas nunca tive uma dor de estômago desde que me casei. O médico diz que estou gordo, mas não pretendo virar galã de cinema. – Riu de novo.
Levantei-me, ele enfiou o braço no meu e dirigimo-nos para a porta do hotel. Mas, antes de a abrirmos, a porta se abriu e Evelyn Coates surgiu ao belo sol italiano.
– Lorimer telefonou-me – disse ela. – Disse-me que você devia estar aqui. Espero não ter vindo atrapalhar.
– Não, não veio – garanti.
Talvez fosse a primavera no Mediterrâneo, ou o fato de estar de férias ou simplesmente longe de Washington, mas, fosse qual fosse a razão, Evelyn era outra mulher. A dureza e o ar autoritário que me tinham repelido, quando a conhecera, tinham-se dissipado. Ela estava mais meiga, mais tranqüila, procurando não ferir. Quando fazíamos amor, eu já não tinha a impressão de que ela estava procurando desesperadamente algo que nunca encontraria. Mesmo naquela última noite de domingo em Washington, apesar da ternura, eu via agora que ela estivera tensa. Passávamos horas a sós, tomando sol, dando-nos as mãos, falando de ninharias, rindo como crianças de pequenas coisas, como as nossas tentativas de falar em italiano com um garçom ou de fazer poses para as fotos que tirávamos com a máquina que Evelyn trouxera.
Ao vê-la chegar, o Sr. Quadrocelli deixara-nos diplomaticamente a sós, dizendo:
– Deve haver muita coisa que você queira falar com a sua linda amiga americana. Podemos almoçar juntos amanhã, em vez de hoje. Minha mulher vai compreender. E as minhas três filhas. – De novo a sua risada robusta ressoou. – Sabe, já não tenho pena de você, Douglas. – Piscou o olho. – Nem um pouco.
Depois, telefonara durante a tarde, pedindo mil desculpas, para dizer que tinha recebido um telefonema e que tinha de voar nessa mesma tarde para Milão, pois tinha havido sabotagem na gráfica.
– Imagine! – exclamou. – Até num sábado. – Mas voltaria o mais depressa possível, prometeu. E mandou cumprimentos para a bela americana. Telefonara depois do almoço, quando eu e Evelyn estávamos na cama, no quente e bonito quarto debruçado sobre o mar, todas as nossas fomes momentaneamente saciadas. Embora eu lamentasse a sabotagem na gráfica de Quadrocelli, não sentia o fato de não poder almoçar com ele, por mais simpático que o achasse: teria mais tempo para estar com Evelyn.
O hotel estava praticamente vazio por não ser temporada e era como uma luxuosa casa de campo, equipada com um pessoal simpático e eficiente, às nossas ordens. O grande terraço, que pertencia ao quarto, era indevassável e jazíamos nus ao sol, lado a lado, durante horas, bronzeando-nos. O corpo de Evelyn parecia mais suave e mais redondo. Em Washington, era duro e tenso, treinado para competir, o corpo de uma mulher que religiosamente fazia ginástica e tomava massagens para se manter em forma. Falávamos de várias coisas, mas nunca sobre Washington ou sobre o seu trabalho. Não lhe perguntei quanto tempo ela poderia ficar comigo e ela não disse quando teria que ir embora. Não lhe contei a conversa que tivera com Lorimer no Tre Scalini.
Foi um interlúdio maravilhoso, sensual e despreocupado, não perturbado por relógio ou calendário, num belo país, cuja língua não falávamos e cujos problemas não eram os nossos. Não líamos jornais, não escutávamos rádio e não fazíamos planos para o futuro. Fabian telefonou-me diversas vezes para me dizer que as coisas estavam indo otimamente em Nova York e que estávamos ficando cada dia mais ricos, mas que, devido a certas complicações que não me iria explicar por telefone, teria de ficar nos Estados Unidos mais tempo do que esperava. Quadrocelli mandara-me os cálculos relativos ao negócio da vinha e eu os enviara a Fabian sem sequer olhar para eles. Tudo esplêndido, disse Fabian, e, quando Quadrocelli voltasse a Porto Ercole, eu lhe podia dizer que aceitava suas condições.
– Incidentalmente – perguntei -, como foi o funeral?
– Um prazer – respondeu Fabian. – Ah, já me ia esquecendo… seu irmão veio a Nova York me visitar. É bem diferente de você, não?
– É, acho que sim – falei.
– Ele diz que a companhia da qual vocês são sócios promete. Contou-me do problema com os olhos e eu mandei-o ao meu médico em Nova York, que o está tratando com um novo medicamento. O médico diz que ele vai ficar bom. Lily manda um abraço.
Naquela semana, nada podia sair errado.
Fomos a Roma, apanhar os meus cinco ternos, e hospedamo-nos num hotel que dava para as Escadarias Espanholas. Como bons turistas, fomos a tudo quanto era lugar, almoçamos na Piazza Navona, bebemos Frascati, visitamos o Vaticano, o Foro e o Museu Borghese, fomos ouvir a Tosca. Evelyn elogiou muito meus ternos e dizia que todas as moças por que passávamos olhavam para mim. Já eu não era cego ao fato de que praticamente todos os italianos por que passávamos olhavam para ela.
Num dos nossos passeios, levei-a até a Galeria Bonelli. O quadro representando uma cidadezinha americana ainda estava na vitrina, com o "vendido" na moldura. Não disse a Evelyn que o tinha comprado. Queria saber o que ela achava dele. Ela era muito mais sofisticada do que eu e, dividindo um apartamento com a dona de uma galeria, devia estar muito mais acostumada a apreciar arte moderna. Fiquei em silêncio ao lado dela, ambos olhando para o quadro. Se ela dissesse que não valia nada, eu provavelmente não iria buscar o quadro nem nunca lhe diria que o havia comprado.
– O que você acha? – perguntei, por fim.
– Uma beleza – disse ela. – Quero ver a exposição. Tenho de escrever a Brenda sobre este pintor.
Mas era hora do almoço e a galeria estava fechada, de modo que não pudemos entrar. Tanto melhor, pensei. Ela poderia não gostar dos outros quadros, e Bonelli sem dúvida teria vindo falar comigo, agradecer o cheque, fazendo-me ficar diminuído aos olhos dela. Sabia que, depois dos dias que tínhamos passado juntos desde que ela chegara a Porto Ercole, eu queria que ela sempre tivesse uma boa opinião de mim. Em todos os campos.
No dia seguinte, fui à galeria apanhar os dois quadros. Evelyn tinha marcado encontro com uma amiga, na embaixada, e eu estava só. Bonelli pareceu-me mais animado do que da última vez em que o vira. Havia mais três "vendidos" nos quadros e isso talvez explicasse seu estado de espírito. Enquanto embrulhava as minhas telas, assobiava uma melodia que reconheci como sendo uma ária da Tosca. Quinn não estava lá.
– Foi tomado de um ataque de talento – disse Bonelli quando lhe perguntei por ele. – Desde que você falou com ele, tem estado em casa pintando, noite e dia.
"Pondo na tela mais andanças do pai", pensei.
– Acho que é em parte responsável por isso, Sr. Grimes – disse Bonelli. – Ele estava muito desanimado, ficava aqui desde que a galeria abria até que fechasse, olhando para mais de um ano de trabalho e sem procurar fazer mais nada. Todo artista, sobretudo quando jovem, precisa desesperadamente de estímulo.
– Não só os artistas – retruquei.
– Sim, sem dúvida – concordou Bonelli. – O desânimo não é privilégio dos artistas. Eu mesmo tenho dias em que penso se não desperdicei totalmente a minha vida. Até mesmo na América, eu acho… – Deu de ombros, deixando a frase por terminar.
– Até mesmo na América – falei.
Quando voltei ao hotel, Evelyn ainda não regressara. Coloquei, então, os dois quadros um ao lado do outro sobre a lareira, com um bilhete no qual escrevi apenas: "Para Evelyn. Com gratidão, Roma" e a data. Depois saí, desci até a Via Veneto e sentei-me na esplanada do Downey's, tomando café e vendo a multidão passar. Queria que Evelyn visse os quadros e o bilhete na minha ausência.
Quando voltei ao hotel, ela estava deitada na cama, aninhada nos travesseiros, olhando para os quadros e chorando. Sem dizer palavra, fez um sinal para que eu me aproximasse, puxou-me para ela e beijou-me.
Passado algum tempo, disse:
– Eu sou mesmo horrível.
– O que é isso? – reclamei.
Afastou-se de mim e sentou-se na cama.
– Preciso contar-lhe por que vim até aqui. À Itália.
– Ainda bem que você veio – falei. – É quanto basta. E não me interessa saber por que você se acha horrível.
– Estou grávida – disse ela. – De você. Minhas pílulas tinham acabado no dia em que conheci você. Se não quiser acreditar-me, não precisa.
– Acredito – retruquei.
– Estava pronta para abortar – continuou ela – quando Lorimer me telefonou.
– Ainda bem que ele o fez.
– Sempre disse que não queria filhos – falou ela. – Mas, quando David me disse onde você estava… de repente vi que estava me iludindo. Sobre isso e sobre uma porção de outras coisas. Pedi demissão. Não quero mais nada com o governo. Estava me destruindo, em Washington. Junto com todas as outras pessoas que eu conhecia. Tinha uma proposta de advogada para lhe fazer…
– Qual era?
– Ia lhe pedir para você se casar comigo – respondeu ela.
– Não acho que seja proposta de advogada – retruquei.
– Ia lhe dizer que podíamos nos divorciar depois que a criança nascesse. Não gostaria de ter um filho ilegítimo, por mais mulher liberada e dura que eu possa ser, o flagelo do Departamento de Justiça. – Riu pateticamente. – Estava pronta a me comportar como uma jovem desmiolada, coquete. Mas, depois desta semana que passamos juntos… – Fez um gesto de impotência. – Você tem sido tão bom. Os quadros foram a última gota. Vou cuidar de tudo sozinha.
Respirei fundo.
– Tenho uma idéia melhor – falei. – Por que não nos casamos, você tem o bebê e não nos divorciamos? – Tão logo disse isto, me arrependi. Havia sombras pairando sobre mim, sombras que precisavam ser dissipadas antes que eu me pudesse casar com alguém. A principal dessas sombras era Pat. Quase lhe pedira que se casasse comigo e tudo acabara em nada. Tentara esquecê-la, mas tinha conseguido? A verdade é que, às vezes, ainda sonhava com ela. Mesmo com Evelyn a meu lado, na cama, eu sonhara com ela.
Foi com alívio que ouvi Evelyn dizer:
– Calma, não tão depressa. Em primeiro lugar, eu posso estar mentindo…
– Sobre o quê?
– Sobre quem é o pai da criança, por exemplo.
– Por que você faria isso?
– Muitas mulheres fazem, não sabe?
– E você está mentindo?
– Não.
– Isso me basta – respondi.
– Mesmo assim – disse ela, meneando a cabeça -, calma. Não quero arrepender-me. Não quero ver um rosto arrependido ano após ano. Poupe os seus gestos espontâneos de generosidade para coisas menos importantes. Vá pensando no que eu lhe disse. Vamos pensar em tudo durante algum tempo. Esperemos para ter certeza de que sabemos o que estamos fazendo. Concedamo-nos pelo menos umas duas semanas.
– Mas você disse… – A súbita resistência dela fez com que eu ficasse irracionalmente teimoso. – A razão por que você veio à Itália…
– Eu sei o que disse. Sei por que vim à Itália. Só que essa razão não é mais válida… palavra muito popular em Washington, atualmente.
– Por que não é mais válida?
– Porque eu mudei – disse Evelyn. – Você era um estranho que eu ia utilizar. Você não é mais um estranho e não posso mais utilizá-lo.
– O que sou, agora?
Ela riu, um risinho triste.
– Uma outra vez lhe digo. – Levantou-se. – Que tal tomarmos um drinque? – sugeriu. – Estou precisando.
– Lembra-se do que você me disse na primeira noite, em Washington? – perguntou Evelyn, enquanto descíamos a Via Condotti e olhávamos as vitrinas. Desde a cena no quarto do hotel, tínhamos evitado falar em casamento. Comportávamo-nos como se nunca tivéssemos falado nisso. Ou quase. Éramos mais ternos um com o outro do que antes. Quando fazíamos amor, era com uma ponta de tristeza.
– O que foi que eu lhe disse em Washington?
– Que você era um rapaz simples, do interior, filho de uma família riquíssima.
– E você acreditou?
– Não.
– Com toda a razão.
Ela sorriu.
– Não se esqueça – disse – de que sou advogada. A que você se dedica? Como sua possível futura esposa, acho que deveria saber.
– Não se preocupe – falei. – Ganho o bastante para sustentá-la. – Sem pensar, continuava a falar como se ainda estivesse comprometido com o que lhe dissera. Sabia que era idiota, irreal, mas era o caminho mais fácil. Pelo menos, de momento.
– Não estou preocupada com que ninguém me sustente – retrucou ela. – Tenho dinheiro e, aonde quer que eu vá, sempre posso ganhar a vida. Não conheço nenhum advogado passando fome nos Estados Unidos.
– Por que os Estados Unidos? Que há de errado em viver na Europa?
Ela abanou a cabeça.
– A Europa não é para mim. Gosto de vir passar férias, de vez em quando, mas não gostaria de viver aqui permanentemente. – Olhou para mim indagadoramente. – Há alguma razão pela qual você não queira voltar?
– Não.
– Você está mentindo. – Parou de andar.
– Talvez – confessei. Um homem que saía de uma loja de artigos de couro esbarrou em mim e disse: "Scusi".
– Você acha que essa seria uma boa maneira de começar um casamento?
– Não lhe estou fazendo nenhuma pergunta.
– Pode fazer – disse ela.
– Prefiro não fazer.
– Tenho uma pequena casa perto da baía de Sag Harbor – disse Evelyn. – Herdei de meus pais e gosto dela. Podia advogar e ganhar dinheiro sem quase sair de lá. Seja qual for a sua ocupação, você não poderia viver lá?
– Talvez – respondi.
– Se eu dissesse que o único lugar onde eu aceitaria viver, depois que nos casássemos, seria lá, você ainda se casaria comigo?
– Você está dizendo isso?
– Estou – respondeu ela. Era a primeira vez, desde que ela surgira no terraço do hotel, em Porto Ercole, que falava no tom de Washington. Via-se que não ia ser uma mulherzinha submissa. Tínhamos recomeçado a andar e caminhei uns vinte metros em silêncio. – Você não vai me responder?
– Não imediatamente – disse eu.
– Quando, então?
– Esta noite, daqui a alguns dias, daqui a um mês… – Ela estava fazendo com que eu pensasse nos Estados Unidos e isso me irritava. Os quadros de Ângelo Quinn, no quarto do hotel, estavam fazendo efeito em mim. Desde que os vira pela primeira vez, com a sua óptica dura e melancólica do meu país de origem, vinha lutando contra a certeza de que algum dia eu teria de voltar. Algumas pessoas, descobrira, nasceram para ser estrangeiras, adoram ser estrangeiras. Eu, não. Essa era uma das coisas que os quadros me tinham provado. "Diabo", pensei, "nunca aprenderei outras línguas. Nem mesmo uma outra língua." Talvez tivesse sido por acaso que eu entrara na galeria de Bonelli, naquele dia, talvez tivesse sido uma coincidência os quadros serem tão bons, mas quadros ou não quadros, no fim, sabia agora, fosse com Evelyn ou sem ela, eu acabaria voltando. Tinha certeza de que Fabian não aprovaria. Podia até imaginar os seus argumentos. "Pense bem, meu velho, você vai acabar com uma bala na cabeça!" Mas eu não podia passar a vida procurando a aprovação de Miles Fabian.
– Não estou dizendo que não vou viver nos Estados Unidos – falei. – Na sua casa de Sag Harbor, se você quiser. Mas, se eu lhe dissesse que tenho razões, que prefiro não explicar, para querer viver no estrangeiro, razões que talvez eu nunca lhe diga, você ainda assim se casaria comigo?
– Não gosto de aceitar as pessoas em confiança – disse ela. – Nem mesmo você. Não tenho assim tanta fé nas pessoas.
– Agora sou eu que pergunto: você continuaria querendo casar-se comigo?
– Não vou responder já – disse ela, rindo. Uma risada dura.
– Quando, então? – perguntei.
– Hoje à noite, dentro de alguns dias, daqui a um mês…
Andamos mais um pouco em silêncio. Ao atravessar a rua, quase fomos atropelados por um enorme Mercedes, correndo para aproveitar o sinal. De repente, senti que estava farto de Roma.
– Por falar nisso – disse Evelyn -, quem é Pat?
– Por que você me pergunta a respeito de Pat?
– Sei que você conhece uma moça chamada Pat.
– Como é que você sabe que é uma moça? – Fora apanhado de surpresa e tentava ganhar tempo. Nunca falara em Pat com Evelyn. – É um nome de homem.
– Não da maneira como você o diz – objetou Evelyn.
– Quando foi que o disse?
– Duas vezes. Ontem à noite, dormindo. E, da maneira pela qual você o disse, não podia estar se referindo a um homem.
– Oh! – Eu parara de andar.
– É. Oh!
– É uma moça que eu conheço. Conhecia – corrigi.
– Você falou como se a conhecesse muito bem.
– Falei?
– Falou.
– Pode ser.
– Você a amava?
– Achava que sim. Às vezes.
– Quando foi que você a viu pela última vez?
– Há três anos.
– Mas você ainda a chama em sonhos.
– Se você diz que sim…
– Ainda a ama? – perguntou ela e sorriu. – Às vezes
Esperei um bocado, antes de responder:
– Não sei.
– Não acha que seria melhor revê-la e ficar sabendo?
– Acho – respondi.