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CAPÍTULO XXIV

Acordei com o barulho de marteladas. Olhei para o relógio na mesa-de-cabeceira. Seis e quarenta. Suspirei. Johnson, o carpinteiro que estava trabalhando na nova ala da casa, teimava em dar o que ele chamava um dia de trabalho honesto pelo dinheiro que recebia. Evelyn mexeu-se na cama, a meu lado, mas não acordou. Respirava suavemente, as cobertas dobradas, os seios nus. Estava simplesmente deliciosa e eu senti vontade de fazer amor. Mas ela de manhã nunca estava bem-humorada e, além disso, tinha trabalhado até tarde na noite anterior, num memorial que trouxera do escritório. "Mais tarde", disse para mim mesmo.

Saí da cama e abri as cortinas, para ver como estava o tempo. Era uma bela manhã de verão e o sol já estava quente. Enfiei um calção, vesti um robe de toalha e saí do quarto, descalço e sem fazer barulho, congratulando-me por ter tido a sorte de casar com uma mulher dona de uma casa na praia.

Descendo a escada, entrei no quarto de hóspede, ora transformado em quarto de bebê. Anna, a babá, já estava na cozinha e o bebê no berço, tomando sua mamadeira. Olhei para ele: rosado, sério e vulnerável. Não se parecia nem comigo, nem com Evelyn; parecia apenas um bebê. Não procurei analisar os meus sentimentos enquanto olhava para meu filho, mas, quando saí do quarto, estava sorrindo.

Abri o ferrolho que tinha instalado na porta principal. Evelyn dissera que não era preciso, que, durante todo o tempo em que morara lá com os pais, nunca houvera nada. Até aquele dia, não tínhamos tido hóspedes não convidados, mas mesmo assim todas as noites eu corria o ferrolho antes de me deitar.

Lá fora, o gramado estava úmido de orvalho, fresco e agradável ao contato dos meus pés descalços.

– Bom dia, Sr. Johnson – falei para o carpinteiro, que estava colocando uma esquadria.

– Bom dia, Sr. Grimes – respondeu Johnson. Era um homem formal, que gostava de ser tratado com formalidade. Os outros operários só chegavam às oito, mas Johnson dissera-me que preferia trabalhar sozinho e que o que fazia de manhã cedo, quando não havia ninguém à volta, era o que mais rendia. Segundo Evelyn, a verdadeira razão para ele começar tão cedo era gostar de acordar as pessoas. Tinha uma formação puritana e não simpatizava com dorminhocos. Evelyn conhecia-o desde pequena.

A nova ala estava quase terminada. Íamos mudar o quarto do bebê para lá e haveria também uma biblioteca, onde Evelyn pudesse trabalhar e guardar seus livros. Por enquanto, trabalhava na mesa da sala de jantar. Tinha um escritório na cidade, mas o telefone estava sempre tocando e não conseguia concentrar-se. Tinha uma secretária e um auxiliar, mas o trabalho também era demais e ela não conseguia dar conta dele no horário entre as nove da manhã e as seis da tarde. Era incrível a quantidade de litígios que havia nesta pacífica parte do mundo.

Dei a volta à casa até a beira do penhasco. A baía estendia-se a meus pés, brilhante e calma ao sol da manhã. Desci os corroídos degraus de madeira até a pequena praia. Tirei o robe, respirei fundo e corri para a água. Estávamos ainda no princípio de julho e a água estava muito fria. Nadei para fora uns cem metros e voltei, sentindo-me feliz a ponto de ter vontade de cantar. Tirei o calção e enxuguei-me bem. Àquela hora da manhã, não havia ninguém na praia que pudesse escandalizar-se com aquela nudez momentânea.

De volta a casa, liguei o rádio da cozinha para ouvir o noticiário, enquanto preparava o meu café da manhã. Dizia-se em Washington que o Presidente Nixon ia ser forçado a deixar o cargo. Pensei em David Lorimer e na sua festa de despedida em Roma. Sentei-me à mesa da cozinha, bebi meu suco de laranja acabado de fazer, saboreei calmamente o bacon com ovos, torrada e café, pensando no gosto especial, maravilhoso, dos desjejuns preparados pela própria pessoa numa manhã de sol. Naqueles catorze meses desde que nos casáramos, eu me tornara viciado em domesticidade. Muitas vezes, quando Evelyn vinha cansada do escritório, eu fazia o jantar para nós dois. Fizera Evelyn jurar que nunca diria isso a ninguém, principalmente a Miles Fabian. Nas suas visitas posteriores, Evelyn e ele tinham, por assim dizer, feito um trato. Nunca seriam amigos de verdade, mas mostravam-se cordiais um com o outro.

Fabian tinha estado três semanas em East Hampton, ajudando-me a preparar tudo para a inauguração. No princípio do ano, fora a Roma e entrara em contato com Ângelo Quinn, que assinara um contrato de exclusividade conosco. O mesmo fizera Fabian com o homem cujas litografias comprara em Zurique. Depois, voltara a Sag Harbor e esboçara um plano que eu achara louco, mas que, surpreendentemente, Evelyn aprovara: abrir uma galeria de arte na vizinha East Hampton, ficando eu a dirigi-la.

– Você não está fazendo nada – dissera ele, o que não deixava de ser verdade -, e eu sempre estarei às ordens para lhe dar uma mão quando você precisar. Você ainda tem um bocado que aprender, mas acertou em cheio com Quinn.

– Comprei dois quadros para Evelyn – retruquei. – Não tencionava iniciar uma carreira.

– Alguma vez eu o fiz perder dinheiro? – perguntou ele.

– Não – tive de admitir. Entre as coisas com que ele me fizera ganhar dinheiro estava, além do ouro, do açúcar, do vinho, do zinco e do chumbo canadense e do terreno em Gstaad (o chalé ficaria pronto no Natal e todos os apartamentos já estavam alugados), o filme pornográfico de Nadine Bonheur, que há sete meses se mantinha em exibição, com casas cheias, em Nova York, Chicago, Dallas e Los Angeles, entre protestos das diversas publicações religiosas. Felizmente, os nossos nomes não estavam ligados ao filme, a não ser nos cheques que todos os meses recebíamos. E iam diretamente para Zurique. Meus saldos bancários, tanto o aberto como o secreto, eram impressionantes, para não dizer outra coisa. – Não – falei. – Não posso dizer que você me tenha feito perder dinheiro.

– Esta região é rica em três coisas – continuou Fabian: – dinheiro, batatas e pintores. Você poderia fazer cinco exposições por ano só com artistas locais e ainda sobrariam muitos. As pessoas estão interessadas em arte e têm dinheiro para investir. É como Palm Beach… as pessoas estão de férias e gostam de gastar dinheiro. Pode conseguir por um quadro duas vezes o preço que você obteria em Nova York. Isso não quer dizer que fiquemos apenas aqui. Começaremos modestamente, para ver no que dá, e, depois, poderemos sondar as possibilidades de Palm Beach, Houston, Beverly Hills, até mesmo Nova York. Você não se oporia a passar um mês em Palm Beach no inverno, pois não? – perguntou ele a Evelyn.

– Acho que não – respondeu ela.

– Além do mais, Douglas – prosseguiu ele -, teria uma boa explicação para os caras do imposto de renda. Foi você quem quis viver nos Estados Unidos e eles vão lhe cair em cima. Poderia mostrar os livros e dormir sossegado. E teria uma boa razão para ir à Europa, à procura de talentos. Uma vez na Europa, poderia fazer uma visitinha ao seu dinheiro. E, finalmente, por uma vez poderia fazer-me um favor.

– Por uma vez – repeti.

– Não espero gratidão – disse Fabian, ofendido -, mas sim afabilidade natural.

– Escute o que ele tem a dizer – falou Evelyn. – Ele está com a razão.

– Obrigado, minha cara – disse Fabian. E, voltando-se para mim: – Você decerto não se oporá se algo que interessar aos dois for também um projeto que me daria muito prazer.

– Talvez não – retruquei.

– Você às vezes é desagradável – disse ele. – Não obstante… permita-me continuar. Você me conhece. Acompanhou-me o suficiente a museus e galerias para ter uma idéia do que eu penso sobre a arte e sobre os artistas. E não apenas em termos de dinheiro. Gosto de artistas. Gostaria de ser um deles. Como não posso, acho que a melhor coisa do mundo é conviver com eles, ajudá-los, talvez um dia descobrir um grande artista. – Parte disso podia ser verdade, parte pura retórica a fim de me convencer. Duvidava de que o próprio Fabian soubesse distinguir uma da outra. – Ângelo Quinn é bastante bom – continuou ele -, mas talvez um dia um garoto entre com um quadro debaixo do braço e me faça dizer: "Agora, já posso deixar de lado tudo o mais. Era por isto que eu estava esperando".

– Ok – falei. Desde o princípio eu sabia que não podia lutar contra ele. – Você me convenceu. Como de hábito. Dedicarei a minha vida à construção do Museu Miles Fabian. Onde é que você vai querê-lo? Que tal perto do Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence?

– Não seria nada de mais – retrucou Fabian.

Tínhamos alugado um celeiro nos arredores de East Hampton, que mandáramos pintar, limpar e indicar com um cartaz: "The South Fork Gallery". Recusara-me a pôr o meu nome no negócio. Não tinha certeza de que essa recusa fosse motivada pela modéstia ou pelo medo do ridículo.

Agora, Fabian estaria esperando por mim às nove da manhã, rodeado por trinta quadros de Ângelo Quinn, que leváramos quatro dias pendurando nas paredes do celeiro. Os convites para o vernissage tinham sido expedidos duas semanas antes, e Fabian prometera champanha de graça para cerca de mil dos seus melhores amigos, que estavam em Hampton passando o verão. Tínhamos também contratado dois guardas para disciplinar o trânsito.

Eu estava terminando a segunda xícara de café, quando o telefone tocou no hall.

– Alô – atendi.

– Doug – disse uma voz de homem -, aqui fala Henry.

– Quem?

– Henry. Hank, seu irmão!

– Oh! – exclamei. Telefonara-lhe quando me casara, mas desde então nunca mais o vira nem falara com ele. Ele me escrevera duas vezes, dizendo-me que o negócio continuava promissor, o que subentendi como estando à beira da falência. – Que tal você está?

– Muito bem – respondeu ele, apressado. – Escute, Doug, preciso vê-lo. Ainda hoje.

– Tenho um dia cheio, Hank. Será que não…?

– Não posso esperar. Estou em Nova York. Você pode estar aqui em duas horas…

Suspirei.

– Impossível, Hank!

– Está bem. Então, eu vou até aí.

– Estou mesmo com o dia cheio…

– Mas vai almoçar, não vai? – perguntou ele, acusador. – Meu Deus, será que você não pode dedicar uma hora, a cada dois anos, ao seu irmão?

– Claro que posso, Hank.

– Posso estar aí ao meio-dia. Onde nos encontramos?

Dei-lhe o nome de um restaurante em East Hampton e expliquei-lhe como chegar até lá.

– Ótimo – disse ele. Desliguei e suspirei alto. Subi para me vestir.

Evelyn estava saindo da cama e dei-lhe um beijo de bom-dia. Pela primeira vez, ela não estava mal-humorada a essa hora.

– Você cheira a sal – murmurou ela. – Hum, delicioso! – Dei-lhe uma palmada carinhosa no bumbum e disse-lhe que ia estar ocupado à hora do almoço, mas que lhe telefonaria mais tarde, para lhe dizer como iam as coisas.

No carro, a caminho de East Hampton, resolvi que poderia dar a Hank dez mil dólares. No máximo, dez mil. Gostaria que ele tivesse escolhido outro dia para me telefonar.

Fabian andava de um lado para outro da galeria, endireitando os quadros, embora todos eles me parecessem perfeitamente direitos. A estudante que tínhamos contratado para nos ajudar durante o verão estava tirando as taças de champanha dos caixotes e arrumando-as na grande mesa que instaláramos num canto do celeiro. O champanha seria entregue à tarde, pela firma encarregada de banquetes que Fabian contratara. Os dois quadros do nosso living estavam também pendurados, com os "vendidos" que Fabian colocara.

– Para quebrar o gelo – explicara ele. – Ninguém gosta de ser o primeiro a comprar. Cada negócio tem os seus truques, meu caro.

– Não sei o que seria de mim sem você – falei.

– Nem eu – replicou ele. – Escute, estive pensando numa coisa.

Pelo tom de voz, vi que ele tinha tido uma nova idéia.

– O que é agora? – perguntei.

– Estamos cobrando preços baratos demais – respondeu ele.

– Pensei que já tínhamos resolvido isso. – Passáramos dias discutindo os preços. Tínhamos combinado que os quadros maiores seriam vendidas a mil e quinhentos dólares e os menores a oitocentos e mil dólares.

– Sei que já falamos nisso, mas acho que fomos demasiado modestos. As pessoas vão pensar que não confiamos no valor do homem.

– O que você sugere?

– Dois mil para os quadros maiores. De mil e duzentos a mil e quinhentos para os menores. Assim vão querer ver que somos sérios.

– Vamos acabar sendo proprietários de trinta Ângelo Quinn – disse eu.

– Confie no meu instinto, meu caro – disse Fabian. – Esta noite, vamos colocar o nosso amigo no mapa.

– Ainda bem que ele não vai estar aqui – falei. – Iria desmaiar.

– Pois acho uma pena que ele não possa vir. Pagando-lhe um corte de cabelo e um bom barbeiro, ele ficaria bem simpático. As amantes da arte adorariam! – Fabian oferecera-se para pagar a viagem de Quinn de Roma aos Estados Unidos, para que ele pudesse comparecer ao vernissage, mas o pintor respondera que ainda não tinha acabado de retratar a América. – Então – disse Fabian -, fixamos em dois mil?

– Você é quem sabe – respondi. – Vou me esconder no banheiro, quando alguém perguntar o preço de um quadro.

– É preciso ser ousado, meu caro – disse Fabian. – Estamos com sorte. Ontem à noite fui a uma festa e conheci o critico de arte do Times. Está passando o fim de semana aqui e prometeu vir hoje.

Fiquei apreensivo. Quinn só conseguira duas linhas num jornal italiano, quando da sua exposição em Roma. Tinham falado bem dele, mas em apenas duas linhas.

– Espero que você saiba o que está fazendo – disse eu.

– O homem vai ficar deslumbrado – assegurou Fabian. – Olhe só em volta. Este celeiro está que é uma maravilha.

Eu tinha olhado tanto e por tanto tempo para os quadros, que eles já não me provocavam nenhuma reação. Se fosse possível, eu teria ido até a ponta extrema da ilha e ficado a olhar para o oceano Atlântico até que tudo aquilo terminasse.

Ouviu-se um som de vidro partido atrás de nós e a moça exclamou:

– Pronto!

Virei-me e vi que ela havia deixado cair uma das taças de champanha. Talvez fosse boa aluna, mas não devia ter muita prática em lidar com taças de champanha.

– Não se preocupe, querida – disse Fabian, ajudando-a a recolher os cacos. – É um bom augúrio. Ainda bem que você deixou cair a taça, lembrou-me de que temos uma garrafa na geladeira.

A moça sorriu, grata, para Fabian. Nas três semanas em que estava trabalhando para nós, ele a conquistara completamente. Quando eu falava com ela, parecia que estava falando através de uma grossa parede.

Fabian entrou na divisão em que tínhamos instalado um escritório e voltou com a garrafa de champanha. Tinha insistido em comprar uma geladeira para a galeria.

– O dinheiro da compra será reembolsado logo na primeira semana – dissera.

Fiquei vendo-o desenrolar habilmente o arame.

– Miles – falei -, acabei de tomar café.

– E que tem isso, meu velho? – A rolha pulou. – Este é um grande dia. Temos de aproveitá-lo ao máximo. – A vida dele, segundo eu descobrira, estava cheia de grandes dias.

Serviu champanha para mim e para a moça. Depois, ergueu a sua taça.

– À saúde de Ângelo Quinn! – brindou. – E à nossa.

Bebemos. Pensei em todo o champanha que bebera desde que conhecera Miles Fabian, e abanei a cabeça.

– Oh, por falar nisso, Douglas – disse ele, voltando a encher sua taça. – Quase ia me esquecendo. Outro dos nossos investimentos vai estar representado aqui, esta noite,

– Qual deles?

– Na festa, ontem à noite, havia uma convidada de honra. – Riu, bem-humorado. – Priscilla Dean.

– Oh, meu Deus! – exclamei. Boa parte da grita contra nosso filme fora dirigida à estrela principal. Sua foto, nua e nas posições mais provocantes, aparecera em duas das maiores revistas sexy do país. Multidões seguiam-na pela rua. Fora vaiada por uma parte da platéia, ao aparecer num programa de televisão. Aumentara a bilheteria do filme, mas eu tinha medo de que prejudicasse a reputação de Quinn. – Não me diga – falei – que você a convidou para o vernissage.

– Claro que sim – disse Fabian, calmamente. – Vamos sair todos nos jornais. Não se preocupe, Alma Gentil. Chamei-a de lado e disse-lhe que a… nossa ligação com ela teria que permanecer secreta. Ela jurou pela saúde da mãe dela. Dora – disse ele para a estudante -, espero que você entenda que tudo o que for dito aqui dentro não é para ser repetido lá fora.

– Claro, Sr. Fabian – retrucou a moça, espantada. – Só o que não entendo é… quem é Priscilla Dean?

– Uma mulher à-toa – respondeu Fabian. – Gosto de ver que você não lê revistas imorais nem assiste a filmes impróprios.

Terminamos a garrafa de champanha sem fazer mais brindes.

Henry já estava à minha espera, quando cheguei ao restaurante, pouco depois do meio-dia. Não estava só. Sentado junto dele estava uma moça muito bonita, com longos cabelos castanhos. Quando me aproximei da mesa, ele levantou-se e apertou-me calorosamente a mão. Não estava usando óculos, seus dentes estavam brilhantes e certos, tinha um ar bronzeado e saudável e engordara um pouco. Tingira o cabelo e podia passar por um homem de trinta anos.

– Doug – disse ele -, quero lhe apresentar minha noiva. Madeleine, este é meu irmão.

Apertei a mão da moça, engolindo uma porção de perguntas.

– Hank me falou tanto em você! – disse Madeleine, numa voz grave e agradável.

Sentei-me diante deles. Reparei que não havia bebidas na mesa.

– Madeleine nunca veio aqui – explicou Henry -, e achou que gostaria de conhecer.

– Queria conhecer você – disse ela, olhando bem para mim. Tinha olhos grandes e cinzentos, que eu imaginei que pudessem ficar azuis conforme a luz. Não parecia uma mulher noiva de um homem que tinha fama de impotente.

– Isto pede um drinque. Garçom… – chamei.

– Para nós, não, obrigado – disse Henry. – Deixei de beber. – Seu tom de voz era levemente desafiante, como se estivesse à espera de que eu fizesse comentários. Mas não fiz.

– E eu nunca fui de beber – disse Madeleine.

– Nesse caso, nada de drinques – disse eu ao garçom.

– Posso pedir? – perguntou Henry. – Acho que temos pouco tempo.

Madeleine levantou-se e nós também.

– Não vou almoçar com vocês – disse ela. – Sei que têm muita coisa a falar. Vou dar uma volta, para conhecer esta cidadezinha, e depois tomo um café com vocês.

– Não vá se perder – disse Henry.

– Não há perigo – falou ela, rindo.

A expressão de Henry, ao vê-la caminhar para a porta, era de admiração. Madeleine tinha pernas longas, silhueta esbelta e um andar ao mesmo tempo elegante e sensual. Henry parecia ter-se esquecido de respirar.

– Meu Deus! – exclamei, assim que ela saiu. – Que história é esta?

– Ela não é o máximo? – perguntou ele, sentando-se.

– É uma garota encantadora – disse eu, com convicção. – Vamos, conte-me tudo.

– Vou me divorciar.

– Acho que já não era sem tempo.

– Também acho.

– Onde estão seus óculos? – perguntei.

– Agora, uso somente lentes de contato – explicou com um sorriso. – Aquele seu amigo, Fabian, mandou-me a um ótimo oculista. Dê-lhe um abraço, quando estiver com ele.

– Você pode fazê-lo pessoalmente. Acabo de deixá-lo.

– Gostaria, mas tenho de voltar a Nova York às quatro horas.

– O que você estava fazendo em Nova York esta manhã? – Nunca me tinha passado pela cabeça que meu irmão poderia sair de Scranton.

– Moro lá – respondeu Henry. – Madeleine tem um apartamento em Nova York e a firma mudou para Orangeburg, a meia hora, mais ou menos, da cidade.

O garçom voltou com dois copos de água. Henry mandou vir coquetel de camarão e um bife. Seu apetite, como sua aparência, melhorara.

– Agradeço-lhe ter vindo até aqui para me ver, Hank – falei. – Mas por que a pressa? Por que tinha de ser hoje?

– Os advogados querem fechar o negócio esta tarde – explicou ele. – Há três meses que estamos trabalhando nele e finalmente temos tudo pronto, de modo que eles não querem dar tempo ao outro lado para vir com objeções. Você sabe como os advogados são.

– Não sei, não – retruquei. – Que negócio é esse?

– Não quis falar com você enquanto não estivesse tudo definido – disse ele. – Espero que você não se incomode.

– Não me incomodo. Mas gostaria que você começasse do princípio…

– Eu lhe disse que as coisas prometiam…

– Disse. – Recordei, com um sentimento de culpa, que eu tinha interpretado o verbo "prometer", na boca de Henry, como sinônimo de "falir".

– Pois bem, os resultados foram muito melhores do que nós poderíamos esperar. – Fez silêncio enquanto o garçom colocava o coquetel de camarão e a salada à nossa frente. Assim que o garçom se afastou, prosseguiu: – Melhores do que poderíamos sonhar. – Atirou-se com entusiasmo ao coquetel. – Tivemos de nos expandir. Já temos mais de cem pessoas trabalhando para nós na fábrica. As ações ainda não estão na Bolsa, mas estão subindo sem parar. Tivemos emissários de meia dúzia de companhias nos querendo comprar. A oferta maior foi da Northern Industries, um grupo enorme. Você deve ter ouvido falar…

– Não, não ouvi.

Ele olhou para mim com desaprovação, como um professor para um aluno que não fez o dever de casa.

– Bem, é um grupo enorme – repetiu. – Estão prontos a fechar o negócio hoje, oferecendo-nos… isto é, à nossa companhia… meio milhão de dólares. – Reclinou-se na cadeira, à espera da minha reação. – A quantia lhe interessa?

– Interessa – respondi.

– Devemos ter o dinheiro dentro de dois meses – disse Henry. – Ainda por cima, nós… eu e os dois rapazes que tiveram a idéia… vamos continuar a dirigir a companhia durante os próximos cinco anos… escute só!… ganhando três vezes mais do que estávamos retirando, além de ter direito à preferência nas ações. Naturalmente, você também terá o mesmo direito…

Senti vontade de que Fabian estivesse almoçando conosco. Era o tipo de coisa que o deleitava.

O garçom trouxe o bife de Henry, que se pôs a comê-lo esfomeadamente, acompanhando-o com uma batata assada e um pãozinho, ambos cobertos de manteiga. Não tardaria a precisar fazer regime.

– Faça um cálculo, Doug – disse ele, com a boca cheia. – Você investiu vinte e cinco mil. Nosso terço das ações vai-nos dar trinta e três por cento de meio milhão, ou seja, cento e sessenta e seis mil dólares. Os seus dois terços…

– Sei fazer contas – atalhei.

– Isso sem levar em conta as ações – disse Henry, continuando a comer. Fosse a comida quente ou as contas, o fato é que seu rosto estava todo vermelho e ele suava. – Mesmo com a inflação…

– É uma bela quantia – concluí.

– Eu lhe disse que você não se arrependeria, não disse?

– Disse.

– Adeus ao dinheiro dos outros – falou ele. Parou de comer e olhou para mim, muito sério. Através das lentes de contato, seus olhos eram fundos e brilhantes. As marcas vermelhas dos lados do nariz tinham desaparecido. – Você me salvou, Doug – disse ele, em voz baixa. – Nunca vou poder agradecer-lhe o suficiente.

– Nem precisa – retruquei.

– Você está bem? – perguntou ele. – Isto é… tudo bem?

– Tudo ótimo.

– É, você está com bom aspecto.

– E você também – falei.

– Bem – disse ele, sem jeito. – A decisão final é sua. É sim ou não?

– Sim – respondi. – Claro.

Ele sorriu e pegou novamente na faca e no garfo. Terminou o bife e mandou vir torta de morangos de sobremesa.

– Comendo dessa maneira, Hank – observei -, você vai ter que fazer algum exercício.

– Estou jogando tênis novamente.

– Então, venha jogar comigo de vez em quando – falei. – Há umas mil quadras neste pedaço da ilha.

– Gostaria. E também gostaria de conhecer sua mulher.

– Quando você quiser. – E comecei a rir.

Ele olhou para mim desconfiado.

– De que é que você está rindo?

– A caminho da cidade, esta manhã – contei -, depois que você telefonou, decidi não lhe emprestar mais do que dez mil dólares.

Por um momento, ele pareceu sentido. Mas depois começou também a rir. Estávamos ambos rindo, algo histericamente, quando Madeleine entrou no restaurante para tomar um cafezinho conosco.

– Qual a piada? – perguntou ela, sentando-se.

– Coisas de família – respondi. – Ou, melhor, de irmãos.

– Henry vai me contar mais tarde – disse ela. – Ele me conta tudo, não, Henry?

– Tudo – confirmou ele. Pegou na mão dela e beijou-a. Nunca fora homem de demonstrações, mas até isso tinha mudado, junto com os óculos, os dentes, o apetite. Se roubar cem mil dólares de um morto podia pôr no rosto do meu irmão a expressão que ele agora tinha, juro que roubaria outras dez vezes de outros dez mortos.

Acompanhei-os até o carro deles, e Madeleine deu-me o endereço.

– Venha nos visitar um dia destes – pediu.

– Irei – prometi. Nenhum de nós podia imaginar que seria tão cedo.

A exposição, garantiu Fabian, era um sucesso. A certa altura, devia haver mais de sessenta carros estacionados do lado de fora. A sala estava sempre cheia, com gente entrando e saindo. O champanha foi muito apreciado, mas os quadros também. Todos os comentários que ouvi eram entusiásticos.

– Eu não lhe disse? – sussurrou Fabian, quando nos encontramos ocasionalmente no bar.

Não vi o crítico do Times, mas Fabian disse-me que gostara da expressão no rosto do homem. Às oito, Dora já tinha afixado "vendidos" em quatro quadros grandes e seis pequenos.

– Fantástico! – exultou Fabian, ao passar por mim. – E muita gente prometeu voltar. Que pena Lily não estar aqui! Ela enfeitaria a sala. E adora festas. – Sua fala estava um pouco pastosa. Não comera durante todo o dia e estava sempre com uma taça de champanha na mão. Nunca o tinha visto embriagado. Pensava que ele não podia ficar embriagado.

Evelyn parecia algo estonteada com tudo aquilo. Muitos dos convidados eram gente do teatro e do cinema e havia quatro ou cinco escritores famosos, que ela reconheceu, apesar de ser a primeira vez que os via ao vivo. Em Washington, nem os senadores nem os embaixadores a impressionavam, mas aquele era um mundo novo para ela e ficava quase sem poder falar quando apresentada a um escritor cujos livros admirava ou a uma atriz que a tinha emocionado no palco. Gostei ainda mais dela por isso.

– Puxa, seu amigo Miles – disse-me ela, abanando a cabeça – conhece todo mundo.

– Você nem faz idéia das pessoas que ele conhece – retruquei.

Evelyn teve que ir cedo para casa, pois era a noite de folga de Anna.

– Parabéns, querido – disse-me, quando a acompanhei até seu carro. – Foi esplêndido. – Beijou-me e disse: – Vou ficar acordada, esperando por você.

O ar da noite era fresco, em contraste com o calor da galeria cheia de gente; e fiquei uns minutos lá fora, respirando o ar não poluído pela fumaça de cigarros. Vi um grande Lincoln Continental parar e Priscilla Dean sair dele com dois jovens de aspecto elegante. Os homens estavam em traje a rigor e Priscilla usava um longo preto, com uma capa de um vermelho vivo jogada sobre os ombros nus. Não me viu e eu não achei que tivesse de ir cumprimentá-la. Segui-os para a galeria. Todo mundo parou momentaneamente de falar, quando ela entrou na sala, mas logo a conversa voltou a seu tom normal. Eram todas pessoas bem-educadas, e não era difícil imaginar que, como Dora, a maioria dos presentes não era do tipo que costumava ver filmes como O Príncipe Adormecido ou assinar revistas como aquelas em que Priscilla Dean, sem roupas, aparecia com tanto destaque.

Fabian em pessoa acompanhou-a até o bar. Não a vi olhar para um único quadro. Depois das dez, quando todos os outros convidados já tinham saído, ela ficou sozinha no bar. Bêbada, completamente bêbada. Os dois rapazes tinham tentado convencê-la a ir embora.

– Estão nos esperando para jantar, Prissy – dissera um deles. – Vamos chegar tarde. Venha, Prissy.

– Para o inferno o jantar – retrucou Priscilla.

– Nós temos que ir embora – falara o outro rapaz.

– Vão logo, ora bolas! – disse Priscilla, firmando-se contra o bar. A capa caíra no chão e uma porção generosa de seu busto aparecia. – Podem ir também para o inferno, veados! Miles Fabian, meu velho amigo de Paris, vai me levar para casa, não vai, Miles?

– Claro – respondeu Fabian, sem qualquer entusiasmo.

– Ele é velho – disse Priscilla. – Mas oh, lá, lá! Nadine Bonheur espalhou a fama dele desde Passy até Vincennes. Classe A. Três bien <emphasis><strong>[7]</strong></emphasis>. Estou falando francês, estão ouvindo, seus veados?

Agora, o último dos convidados já se fora. Agradeci, intimamente, o fato de Priscilla ter chegado tarde e Evelyn ter tido de ir para casa cedo, cuidar do bebê. Dora olhava para Priscilla de boca aberta. Dissera-nos, quando entrevistada, que desejava um emprego sossegado e decente, que lhe permitisse estudar. Meus olhos evitaram os de Fabian.

– Saiam de perto de mim, que merda! – disse Priscilla para os dois rapazes. – Uma coisa que eu não suporto é ver gente à minha volta.

Os dois rapazes entreolharam-se e deram de ombros. Despediram-se polidamente de Fabian e de mim e elogiaram os quadros.

– Incidentalmente – disse o mais velho – não somos homossexuais. Somos irmãos. – Dirigiram-se com dignidade para a porta e, um minuto depois, ouvi o Lincoln Continental arrancar.

Fabian inclinou-se para apanhar do chão a capa de Priscilla. Cambaleou um pouco, mas logo se recuperou. Colocou a capa nos ombros da moça.

– Hora de ir para a cama, querida – disse ele. – Na minha condição, acho melhor não guiar… – "Pelo menos", pensei, "ele não está tão bêbado assim." – Mas Douglas nos levará em perfeita segurança.

– Na sua condição! – Priscilla riu um riso roufenho. – Conheço bem a sua condição, velho sátiro. Dê-me um beijo, papai. – E estendeu os braços.

– Dentro do carro – disse Fabian.

Priscilla agarrou-se à mesa.

– Não vou sair daqui enquanto não ganhar o meu beijo – anunciou.

Olhando encabulado para Dora, que recuara contra a parede, Fabian curvou-se e beijou Priscilla, que logo limpou a boca nas costas da mão, borrando todo o batom.

– Sei que você é capaz de fazer melhor do que isto – falou ela. – Que é que há… fora de forma? Acho que você devia voltar à França… – Mas deixou que Fabian a levasse até a porta.

– Dora – disse Fabian -, apague as luzes e tranque as portas. Amanhã, arrumaremos tudo.

– Sim, Sr. Fabian – murmurou Dora.

E saímos, deixando a pobre moça encostada à parede, sem se mover, como que em estado de choque.

Priscilla insistiu em sentar-se no meio de nós dois, no banco da frente.

– É mais gostoso – disse ela. Derramara champanha na parte da frente do vestido e o cheiro era desagradável. Abri a janela do meu lado antes de ligar o motor.

– Escute – perguntou Fabian -, onde é que você está hospedada?

– Em Springs – disse Priscilla. – É isso aí. Em Springs.

– Mas em que lugar de Springs? – insistiu Fabian, pacientemente. – Qual o endereço?

– Como diabo é que eu vou saber? – retrucou Priscilla. – Vá andando. Mostro-lhe o caminho.

– Como é o nome das pessoas em casa de quem você está hospedada? Podíamos telefonar para eles e pedir que nos indicassem o caminho. – Fabian parecia um policial tentando conseguir informações de uma criança perdida numa praia cheia. – Sem dúvida, você sabe o nome das pessoas em casa de quem está hospedada.

– Claro que sei! Levy, Cohen, McMahon, uma coisa assim. Quem está ligando para eles? Uma porção de idiotas. – Priscilla esticou a mão e ligou o rádio. A música de A Ponte do Rio Kwai invadiu o carro. – Como é que é, quadradão? – disse ela para mim. – Essa carroça vai andar ou não vai? Será que você não sabe onde fica Springs?

– Vá andando para Springs – falou Fabian.

Arranquei. Mas, dois minutos depois de termos deixado para trás o cartaz que dizia: "Bem-vindos a Springs", eu vi que só por milagre acharíamos a casa que tinha a honra de hospedar Priscilla naquele fim de semana. Diminuía a marcha do carro a cada cruzamento e a cada casa por onde passávamos, mas ela sacudia a cabeça e dizia:

– Não, não é aqui.

Por mais dinheiro que O Príncipe Adormecido nos estivesse rendendo, pensei, não compensava aquilo.

– Estamos perdendo tempo – disse Priscilla. – Tenho uma idéia. Duas amigas minhas têm uma casa em Quogue. Na praia. Acho que você pode encontrar pelo menos o Atlântico em Quogue. Elas são o máximo, fantásticas! Swingers, já imaginaram? Vocês vão adorar. Vamos até Quogue no embalo.

– Quogue fica a uma hora daqui – disse Fabian. Parecia muito cansado.

– E que é que tem isso? – retrucou Priscilla. – Vamos até lá nos divertir um pouco.

– Tivemos um dia estafante – explicou Fabian.

– Ora, todo mundo teve – disse Priscilla. – Avante, rumo a Quogue.

– Talvez amanhã à noite – falou Fabian.

– Veados – replicou Priscilla.

Atravessávamos bosques, correndo por uma pequena estrada não iluminada que eu não conhecia, e fiquei pensando como voltar à cidade sem levar horas procurando o caminho. Tinha resolvido tentar voltar a East Hampton e encontrar um hotel para Priscilla ou largá-la no meio da calçada, se necessário, quando os meus faróis iluminaram um carro bem à nossa frente, encostado à beira da estrada, com o capô levantado e dois homens olhando para dentro do motor. Parei meu carro e gritei:

– Será que um de vocês poderia dizer-me onde…

De repente, percebi que estava olhando para o cano de uma arma.

Os dois homens aproximaram-se do carro, andando lentamente. No escuro, não podia ver suas caras, mas via que ambos usavam blusões de couro e bonés.

– Estão armados – murmurei para Fabian e senti Priscilla ficar rígida, a meu lado. -

– Isso mesmo, cara – disse o que empunhava a arma. – Estamos armados. Agora, escute com atenção. Deixe a chave no motor, porque vamos pedir emprestado seu carro. E vá saindo, você e o velho também. Vão saindo bem bonitinho. Deixem a dona no carro. Vamos levar ela também.

Priscilla fez um som com a boca, mas ficou imóvel. O homem recuou um passo, enquanto eu abria a porta e saía. O outro deu a volta para o lado de Fabian.

– Vá para onde está o seu chapa. – Fabian deu a volta ao carro e ficou a meu lado. Ofegava.

Foi aí que Priscilla começou a gritar. Eu nunca tinha ouvido grito mais estridente.

– Faça essa puta calar – berrou o homem da arma para o colega.

Priscilla continuava gritando, a cabeça no volante, dando pontapés no homem que tentava agarrá-la.

– Porra! – disse o da arma. Avançou, como se quisesse segurar Priscilla pelo outro lado. A arma oscilou e Fabian atirou-se a ele. Ouviu-se um enorme estrondo quando a arma disparou. Fabian gemeu e eu pulei em cima do homem. O nosso peso combinado foi demais e ele caiu para trás, largando a arma. Priscilla continuava a gritar. Apanhei a arma bem na hora em que o segundo homem dava a volta pela frente do carro, iluminado pelos faróis. Atirei e ele saiu correndo para o bosque. O que tinha caído começou a rastejar e atirei nele também. O homem deu um pulo e correu para refugiar-se no escuro. Priscilla gritava sem parar.

Fabian estava agora caído de costas, segurando o peito com ambas as mãos. Respirava com esforço, a intervalos irregulares.

– Acho bom você me levar a um hospital, meu velho – disse ele, com longas pausas entre as palavras. – Depressa. E diga a Priscilla para parar de gritar.

Eu estava tentando erguer Fabian, com o máximo de cuidado possível, e colocá-lo no banco traseiro do carro, quando percebi que os faróis de um outro carro me iluminavam por trás.

– Desculpe – disse eu a Fabian, que já estava meio dentro do carro – mas vem alguém aí. – Peguei novamente a arma e fiquei entre Fabian e o carro que se aproximava. Priscilla tinha parado de gritar e agora soluçava histericamente no banco da frente, batendo com a cabeça, como louca, no painel. Não sabia o que era pior, se ela gritar ou fazer aquilo.

Quando o carro se aproximou, vi que era um carro da polícia. Deixei cair a arma que empunhava. O carro parou e dois policiais pularam dele, revólveres na mão.

– O que está havendo aqui? – perguntou um deles.

– Houve um assalto. Dois homens; esconderam-se no bosque. Meu amigo foi ferido. Temos de levá-lo imediatamente para o hospital.

– De quem é essa arma? – perguntou o policial, curvando-se para apanhá-la, a meus pés.

– O senhor se atracou com um cara armado? – perguntou o policial, incrédulo.

– Eu, não – respondi. – Ele.

– Meu Deus! – disse baixinho o policial.

Ajudou-me a colocar Fabian no banco de trás do carro, enquanto o colega, um rapaz magro, de óculos, que parecia jovem demais para ser policial, foi inspecionar o carro do capô levantado, que os dois homens tinham estado vendo quando nos aproximáramos.

– O carro é este mesmo – disse ele. – Foi roubado ontem à noite, em Montauk, e desde a manhã estávamos atrás dele. O senhor deu sorte.

– É, dei mesmo – repliquei.

Olhou de maneira estranha para Priscilla, que continuava batendo com a cabeça no painel, mas não disse nada.

– Siga-nos – disse ele. – Vamos indicar-lhe o caminho do hospital.

Com os faróis do carro da polícia iluminando a pista e a sirena soando, atravessamos à toda as estradas escuras. Em sentido contrário, vi primeiro um e depois outro carro da polícia, dirigindo-se para o local do assalto. O que ia à nossa frente devia ter se comunicado com eles pelo rádio.

A operação levou três horas. Fabian perdera a consciência antes de chegarmos ao hospital, em Southampton. Um dos médicos olhara para Priscilla e mandara que a deitassem numa cama, sob sedativos. Fiquei na ante-sala da Emergência, procurando responder às perguntas dos policiais sobre o aspecto dos assaltantes, a seqüência em que as coisas tinham acontecido, o que estávamos fazendo na estrada àquela hora, quem era a moça, se eu achava que tinha acertado um ou ambos os homens, ao disparar contra eles. Era difícil concatenar as idéias. Minha mente parecia em estado de choque. Era difícil fazer os policiais entenderem quem era Priscilla Dean e como é que ela não sabia dizer onde estava hospedada. Eles mostraram-se bem-educados e não desconfiados, mas faziam sempre as mesmas perguntas, com ligeiras variações, como se o que tinha havido não pudesse ter acontecido da maneira que eu pensava. Tinha telefonado a Evelyn tão logo Fabian fora levado para a mesa de operações, dizendo-lhe que ele tivera um acidente mas que eu estava bem e que lhe contaria tudo quando chegasse a casa.

Era perto da meia-noite quando o jovem policial voltou do telefone para me dizer que os dois assaltantes se tinham rendido.

– O senhor não acertou em nenhum deles – acrescentou, sem poder evitar um sorriso. Na manhã seguinte, eu teria de ir à delegacia a fim de identificá-los. E a moça também, disse ele.

Quando Fabian voltou da mesa de operações, seu aspecto era tranqüilo, sereno. O cirurgião, ainda de avental e máscara pendurada ao pescoço, tinha um olhar grave, ao tirar as luvas de borracha.

– A coisa me parece um pouco séria – disse-me ele. – Só poderemos fazer um prognóstico daqui a vinte e quatro horas.

– Daqui a vinte e quatro horas – repeti, apático.

– Ele é seu amigo? – perguntou o médico.

– Muito amigo.

– Onde foi que ele ganhou aquela cicatriz enorme no peito e no abdome?

– Cicatriz? Nunca vi nenhuma cicatriz – respondi. – Acho que nunca o vi sem roupa.

– Parece ter sido um ferimento profundo – falou o médico. – Está com aspecto de ferimento a granada. Sabe se ele foi ferido em alguma guerra? – O médico era jovem, não devia ter mais de trinta e dois ou trinta e três anos, e eu pensei: "Que sabe ele de guerras?"

– Sim – respondi. – Ele esteve na guerra. Mas nunca me disse que tinha sido ferido.

– Todos os dias a gente fica sabendo algo novo – sentenciou o médico. – Boa noite.

Quando saí do hospital, um flash estourou nos meus olhos, fazendo-me recuar. Mas era apenas um fotógrafo. "Espere até amanhã, amigo", pensei, "quando levarem Priscilla Dean até a delegacia. Aí, sim, você vai poder tirar ótimas fotos."

Voltei para casa dirigindo devagar, mal vendo a estrada. Evelyn estava de pé, à minha espera, e tomamos um uísque na cozinha, enquanto eu lhe contava tudo o que tinha acontecido. Quando terminei, ela disse:

– Que mulher horrível! Acho que seria capaz de estrangulá-la!


  1. <a l:href="#_ftnref7">[7]</a>“Muito bem”. Em francês no original