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Não tinha destino certo. Dissera a Freddy Cunningham que ia ver o que faria com o resto da minha vida, e tanto fazia um lugar como outro.
Pensar no que iria fazer com o resto da minha vida. Tinha tempo de sobra para isso. Dirigindo o meu Volks rumo ao sul, descendo toda a costa leste dos Estados Unidos, eu estava só, livre, sem peias, sem nada que me distraísse, mergulhado nessa solidão que é tida como a condição essencial para a especulação filosófica. Havia a causa e o efeito de Pat Minot a serem considerados; a não esquecer, também, a máxima que me tinham ensinado nas aulas de literatura inglesa, segundo a qual o nosso caráter era o nosso destino, a nossa sorte e os nossos fracassos eram o resultado direto dos nossos defeitos e das nossas virtudes. Em Lorde Jim, livro que devo ter lido pelo menos cinco vezes desde que era garoto, o herói é morto por causa de uma falha de caráter, que lhe permitiu abandonar à morte todo um navio cheio de mendigos. No fim, ele paga pela sua covardia sendo morto. Eu sempre achara isso justo, inevitável. Ao volante do meu fusca, atravessando as grandes auto-estradas que cortam Washington, Richmond e Savannah, lembrei-me de Lorde Jim… só que isso já não me convencia. Não que eu fosse sem mácula, mas, pelo menos na minha opinião, fora um bom filho, um amigo dedicado, um profissional consciente, um cidadão respeitador das leis, um ser humano desejoso de evitar crueldade ou arrogância, procurando não fazer inimigos, indiferente ao poder, detestando a violência. Nunca seduzira uma mulher… ou ludibriara um comerciante, nunca batera em outra criatura desde que brigara no pátio da escola, aos dez anos. Nunca abandonara ninguém à morte. No entanto… acontecera aquela manhã, no consultório do Dr. Ryan.
Se o caráter determinava o destino de um homem, teria sido o caráter de trinta milhões de europeus que os fizera morrer na Segunda Guerra Mundial, ou o caráter dos habitantes de Calcutá que os levava a morrer de fome em plena rua, ou o de milhares de cidadãos de Pompéia que fizera com que eles fossem sepultados num mar de lava?
A explicação era simples: mero acaso. Como um lançar de dados, como um virar de cartas. Dali em diante, eu jogaria e confiaria na sorte. Talvez fosse do meu caráter ser jogador e o destino tivesse arranjado as coisas de modo a que eu pudesse desempenhar o papel que me estava designado. Talvez a minha curta carreira como piloto em céus nortistas tivesse sido uma aberração, e só agora, de volta à terra, eu estivesse no caminho certo.
Chegando à Flórida, pus-me a passar os dias no hipódromo. A princípio, tudo foi bem; ganhava com freqüência e o suficiente para viver com conforto e sem ter de me preocupar em arranjar emprego. Aliás, não podia imaginar emprego que eu pudesse aceitar. Vivia sozinho, sem fazer amigos nem me aproximar de mulheres. Descobri, algo surpreendido, que não sentia mais desejos. Se isso era temporário ou se se tornaria permanente, o fato é que não me preocupava. Não queria ligações.
Voltei-me, com amargo prazer, para mim mesmo, contente com as longas tardes ensolaradas no prado, com as refeições solitárias e as noites passadas estudando as atrações dos puro-sangues e os hábitos de treinadores e jóqueis. Tinha também tempo para ler, e devorava indiscriminadamente livros e mais livros. Conforme o Dr. Ryan me garantira, o problema da retina não me impedia de ler. Entretanto, em nenhum dos livros que lia encontrava algo que me pudesse ajudar ou, ao contrário, me prejudicar.
Vivia em pequenos hotéis, mudando-me quando outros hóspedes procuravam aproximar-se.
Tinha ganho vários milhares de dólares quando a temporada terminou e resolvi ir para Nova York. Ir ao hipódromo não mais me atraía. Estava farto de ver corridas. Continuava apostando, mas por intermédio de bookmakers. Durante algum tempo fui ao teatro, ao cinema, procurando perder-me no mundo da fantasia. Nova York é a cidade ideal para quem quer ficar só. Deve ser a melhor cidade, em todo o mundo, para se curtir a solidão.
Minha sorte começou a mudar em Nova York e, com a entrada do inverno, vi que tinha de procurar emprego se quisesse continuar a comer. Foi então que o recepcionista noturno do St. Augustine foi assaltado pela segunda vez.
Coloquei as últimas contas do dia 15 de janeiro no arquivo. Eram três horas da manhã do dia 16 de janeiro. Feliz aniversário! Levantei-me e espreguicei-me. Estava com fome, de modo que apanhei o sanduíche e a garrafa de cerveja.
Estava desembrulhando o sanduíche, quando ouvi a porta da escada de emergência se abrir no hall e passos rápidos de mulher. Estendi a mão para o interruptor e o hall ficou todo iluminado. Uma mulher jovem avançou, quase correndo para o balcão. Era altíssima e ainda por cima usava esses sapatos de plataforma e saltões que fazem as mulheres parecerem membros da tribo dos watusis. Vestia um casaco branco, imitando pele, e tinha na cabeça uma peruca loura que não enganava ninguém. Reconheci-a. Era uma prostituta que tinha entrado pouco depois da meia-noite, com o homem do apartamento 610. Olhei para o relógio. Passava um pouco das três horas da manhã. A farra tinha sido longa, no 610, e a mulher mostrava isso. Correu para a porta da frente, apertou sem resultado o botão enguiçado e depois voltou para o balcão. Bateu ruidosamente com os dedos no vidro sobre o balcão.
– Abra a porta, moço! – quase gritou. – Quero sair. Tirei a chave da gaveta sob o balcão onde guardava a pistola e fui até o escritório, onde havia um enorme cofre encostado na parede, ao lado de vários pequenos cofres para uso dos hóspedes. Esses pequenos cofres eram uma relíquia de tempos idos. Os hóspedes atuais não os utilizavam. Abri a porta e passei para o hall. A mulher seguiu-me em direção à porta da frente. Ofegava. A sua profissão não a mantinha em forma para descer correndo seis lances de escada no meio da noite. Devia ter uns trinta anos, que, pela aparência dela, não pareciam ter sido fáceis. As mulheres que entravam e saíam do hotel à noite eram um ótimo argumento a favor do celibato.
– Por que não desceu de elevador? – perguntei.
– Eu estava esperando o elevador – respondeu a mulher. – Mas então um velho louco apareceu na porta, nu, fazendo uns barulhos esquisitos, grunhindo como um bicho e brandindo não sei o quê…
– B… brandindo… o quê?
– Uma coisa que parecia um bastão de beisebol. Estava escuro no hall. Vocês não gastam dinheiro em luz, neste hotel! "- A voz dela estava rouca de uísque, parecia amassada com concreto, arranhava. – Não fiquei esperando para ver o que era. Caí fora. Se você quiser ver o que é, suba até o sexto andar e veja com seus próprios olhos. Agora, abra a porta. Preciso ir para casa.
Abri a grande porta de vidro da frente, reforçada por uma pesada grade de ferro forjado. Para um hotel velho e decadente como o St. Augustine, a gerência parecia demasiado preocupada com a segurança. A mulher empurrou a porta impacientemente e correu para a rua escura. Respirei fundo o ar frio da noite, enquanto o ruído dos saltos altos diminuía na direção da Lexington Avenue. Fiquei ainda um momento parado na porta, olhando para a rua, na esperança de que uma radiopatrulha passasse por ali. Sentir-me-ia muito melhor se pudesse subir ao sexto andar com um policial do lado. Não me pagavam para bancar o herói solitário. Mas a rua estava vazia. Ouvi uma sirena a distância, provavelmente na Park Avenue, o que não adiantava. Fechei a porta, tranquei-a e atravessei lentamente o hall na direção do escritório, pensando: "Será que vou passar o resto da minha vida abrindo portas para prostitutas?"
"Louvai-o com cordas e órgãos."
No escritório, tirei a chave-mestra da gaveta, olhei um momento para a pistola. Abanei a cabeça e fechei a gaveta. Não fora minha idéia colocar ali a pistola. Não tinha adiantado, na noite em que os dois viciados tinham entrado e carregado todo o dinheiro que havia, deixando o meu predecessor banhado em sangue no chão, com um galo do tamanho de um melão na cabeça.
Vesti o paletó, como se o fato de estar convenientemente trajado me desse mais autoridade perante qualquer situação que se me deparasse no sexto andar, e dirigi-me de novo para o hall, fechando a chave a porta do escritório. Apertei o botão do elevador e ouvi o guincho dos cabos e do elevador descendo.
Quando a porta se abriu, com um rangido, hesitei antes de entrar. Talvez, pensei, eu devesse voltar ao escritório, pegar o meu sobretudo, meu sanduíche e minha cerveja e dar o fora dali. Quem precisava daquele empreguinho à-toa? Mas, quando a porta começou a se fechar, eu entrei.
Mal cheguei ao sexto andar, apertei o botão que mantinha a porta do elevador aberta e saí para o corredor. Uma luz estava acesa no quarto bem em frente do elevador, de número 602. Sobre o tapete gasto do corredor, metade na sombra e metade na luz, estava um homem nu, caído de bruços, a cabeça e o tronco na sombra, as nádegas enrugadas e as pernas magras de velho obscenamente iluminadas. O braço esquerdo estava estendido, os dedos da mão dobrados, como se o homem tivesse procurado segurar algo ao cair. O braço direito estava debaixo do seu corpo e todo ele estava imóvel. Ao me inclinar para virá-lo, já tinha a certeza de que nada que eu pudesse fazer, nem ninguém que eu pudesse chamar lhe poderia valer.
O homem era pesado, com uma grande barriga flácida que não combinava com as pernas e as nádegas magras, e resmunguei, ao colocar o corpo de costas. Foi então que vi o que a prostituta tinha dito que o homem havia brandido em sua direção e que lhe parecera um bastão de beisebol. Não era um bastão e sim um longo tubo de papelão, embrulhado em papel pardo, do tipo que os artistas e arquitetos usam para carregar gravuras e plantas sem amassar. A mão do homem continuava a segurá-lo. Não me espantava que a mulher tivesse ficado apavorada. À luz fraca do corredor, também eu teria ficado apavorado se um homem nu tivesse surgido de repente, brandindo aquilo ameaçadoramente para cima de mim.
Levantei-me, sentindo um arrepio percorrer-me, juntando coragem para tocar uma vez mais no corpo. Olhei para o rosto sem vida. Os olhos estavam abertos, como que olhando para mim, a boca torcida numa última careta torturada. Emitindo grunhidos de animal, dissera a prostituta. Não havia sangue, nenhum sinal de ferimento. Eu nunca vira aquele homem, mas issO não era de espantar, pois muitas vezes entrava de serviço depois que os hóspedes já se tinham recolhido e saía antes que eles descessem, de manhã. Tinha uma cara redonda e gorda de velho, com um nariz grande e carnudo e um resto de cabelo grisalho no crânio quase calvo. Mesmo descomposta pela morte, era uma face que traduzia poder e importância.
Lutando contra a náusea crescente, ajoelhei-me e encostei o ouvido ao peito do homem. Tinha mamas como as de uma velha, com alguns fios de cabelo branco e úmido e mamilos quase verdes à luz elétrica. O corpo continuava cheirando a suor, mas sem-movimento, sem ruído. "Velhinho," pensei, levantando-me, "por que diabos você foi morrer justamente no meu plantão?"
Curvei-me de novo, coloquei as mãos sob as axilas do morto e arrastei-o pela porta aberta do quarto número 602. Não se pode deixar um corpo nu caído no corredor, sem mais nem menos. O tempo que eu trabalhava na indústria hoteleira já dava para saber que um morto era coisa que não se deixava a vista dos hóspedes.
Ao puxar o corpo para o pequeno hall que comunicava com o quarto, o tubo de papelão rolou para o lado. Coloquei o corpo no quarto, ao lado da cama, que era uma confusão de lençóis e cobertores, com manchas de batom sobre os travesseiros. Provavelmente da mulher para quem eu abrira a porta à uma da manhã. Contemplei, com um pouco de piedade, o velho corpo nu sobre o tapete gasto, a carne flácida e sem vida contra o papel de parede desbotado. Uma última ereção. O prazer e, depois, a morte.
Uma mala de tamanho médio mas de aparência cara, de couro, estava aberta em cima da pequena penteadeira. Junto dela havia uma carteira velha e um clipe de notas, de ouro, com algumas notas presas. Na mala, viam-se três camisas limpas, muito bem dobradas.
Sobre a penteadeira havia algumas moedas. Contei o dinheiro no clipe: quatro notas de dez dólares e três de um. Deixei cair o clipe de novo e peguei a carteira. Dentro dela havia dez notas novinhas, de cem dólares cada. Assobiei baixinho. Fosse o que fosse que tinha acontecido nessa noite ao velho, ele não fora roubado. Coloquei as dez notas de novo na carteira, que por sua vez pus cuidadosamente em cima da penteadeira. Não me ocorreu tirar nenhuma nota. Eu tinha sido criado assim. "Não roubarás." Não farás uma porção de coisas.
Olhei para a maleta aberta. Junto das camisas havia duas cuecas muito bem passadas, uma gravata listrada, dois pares de meias, um pijama azul. Fosse ele quem fosse, o hóspede do número 602 ia ficar em Nova York mais tempo do que havia planejado.
O cadáver no chão me oprimia, como se eu fosse em parte responsável por ele. Peguei um dos cobertores sobre a cama e joguei-o em cima do corpo, cobrindo com ele o rosto, os olhos abertos, os lábios que, apesar de mudos, pareciam gritar. Senti-me mais confortável, a morte era agora apenas uma forma geométrica no chão.
Voltei ao corredor para apanhar o tubo de papelão. Não havia nele etiquetas, endereços ou qualquer identificação. Ao levá-lo para o quarto, vi que o grosso papel pardo tinha sido rasgado bem em cima. Ia pô-lo sobre a penteadeira, junto dos outros pertences do morto, quando vislumbrei uma ponta de papel verde que saía pela abertura. Puxei-a. Era uma nota de cem dólares, não nova, como as cédulas da carteira, mas velha e amassada. Segurei o tubo a fim de poder olhar para dentro dele. Até onde eu podia ver, estava cheio de notas. Permaneci um momento imóvel; depois, enfiei a cédula que tinha puxado novamente para dentro do tubo, alisando o papel pardo da melhor maneira possível.
Com o tubo debaixo do braço, saí do quarto, apaguei a luz e fechei a porta do apartamento 602 com a chave-mestra. Tudo isso com gestos rápidos e precisos, quase automáticos, como se toda a vida eu tivesse ensaiado para aquele momento, como se não houvesse alternativas.
Peguei o elevador para o hall e abri a porta do cubículo vizinho ao escritório. Sobre o cofre havia uma prateleira cheia de papel de carta, contas velhas e revistas rasgadas, tudo apanhado nos quartos. Retratos de políticos falecidos, mulheres nuas que agora já não estariam em condições de ser fotografadas – mortos ilustres, mulheres desejáveis, assassinos de monóculo, artistas de cinema, autores famosos -, uma coletânea de acontecimentos recentes e antigos do panorama americano. Sem hesitar, estendi o braço e empurrei o tubo contra a parede até ficar fora da vista, por trás de todos aqueles testemunhos de escândalos e prazeres.
Voltei para o escritório iluminado e telefonei pedindo uma ambulância.
Depois sentei-me, desembrulhei novamente o sanduíche e abri a garrafa de cerveja. Enquanto comia e bebia, olhei para o livro de registro. O hóspede do número 602 era um tal John Ferris, que entrara na tarde do dia anterior dando como endereço permanente um número na North Michigan Avenue, em Chicago, Illinois.
Estava terminando a minha cerveja quando a campainha tocou e vi dois homens saindo de uma ambulância. Um vestia um avental branco e carregava uma maca dobrada. O outro trajava um uniforme azul e trazia na mão uma maleta preta, mas eu sabia que não era médico. Em Manhattan, não se desperdiçam médicos em ambulâncias, aproveitam-se os enfermeiros capazes de prestar primeiros socorros sem matar os pacientes no local. Quando eu estava abrindo a porta, uma radiopatrulha aproximou-se e um policial saiu.
– Que foi que houve? – perguntou o policial, homem troncudo, de queixada escura e olheiras profundas.
– Um velho morreu lá em cima – respondi.
– Vou com eles, Dave – disse o policial para seu colega ao volante. Ouvi o rádio do carro transmitindo ordens, despachando policiais para acidentes, casos de homens surrando mulheres, suicídios, ruas onde homens de aspecto suspeito tinham sido vistos entrando em edifícios.
Calmamente, conduzi o grupo através do hall. O enfermeiro era jovem e bocejava como se não dormisse há semanas. As pessoas que trabalham à noite têm todas o ar de estarem sendo castigadas por algum pecado sem nome. No chão despido do hall, os sapatos do policial pareciam ter solas de chumbo. Subindo no elevador, ninguém falou. Não prestei qualquer informação. Um cheiro de medicamentos encheu o elevador. Carregam o hospital com eles, pensei. Teria preferido que a radiopatrulha não tivesse chegado junto com a ambulância.
Quando saímos no sexto andar, abri a porta do apartamento 602 e entrei na frente. O enfermeiro puxou o cobertor de cima do morto, inclinou-se sobre ele e colocou o estetoscópio no peito do homem. O policial ficou aos pés da cama, percorrendo com os olhos os lençóis manchados de batom, a mala em cima da penteadeira, a carteira e o clipe de dinheiro ao lado.
– Você quem é, cara? – perguntou-me ele.
– Sou recepcionista da noite.
– Qual é o seu nome? – perguntou ele, num tom de acusação, como se tivesse a certeza de que eu lhe daria um nome falso. Que teria ele feito, se eu tivesse respondido: "Meu nome é Ozimandias, rei dos reis"? Provavelmente puxaria do seu livrinho preto e escreveria: "Testemunha declara chamar-se Ozimandias. Na certa, um apelido". Era um verdadeiro policial noturno, fadado a patrulhar uma cidade às escuras, pulando de inimigos e de emboscadas.
– Meu nome é Grimes – respondi.
– Cadê a mulher que esteve com ele?
– Não tenho idéia. Abri a porta para uma mulher à uma da manhã. Talvez fosse a dita. – Espantosamente, não gaguejei.
O enfermeiro levantou-se e, tirando o estetoscópio dos ouvidos, declarou, secamente:
– Está morto.
Ora, eu podia ter afirmado isso sem precisar chamar uma ambulância! Quantos movimentos inúteis numa grande cidade!
– De que foi que ele morreu? – perguntou o policial. – Está ferido?
– Não. Deve ter sido um enfarte.
– Alguma coisa a fazer?
– Acho que não – disse o enfermeiro. – Só a rotina. – Inclinou-se novamente, revirou as pálpebras do morto e examinou-lhe os olhos sem vida. Depois, apalpou o pescoço com mãos suaves e hábeis.
– Você parece saber o que está fazendo, amigo – comentei. – Deve ter muita prática.
– Estou no segundo ano de medicina – respondeu ele. – Faço isto para poder comer.
O policial aproximou-se da penteadeira e pegou no clipe de dinheiro.
– Quarenta e três dólares – falou. – E, na carteira… – As espessas sobrancelhas se ergueram, ao revistá-la. Tirou para fora as notas e contou-as. – Dez notas de cem! – exclamou.
– Puxa vida! – assobiei. Mas, pela maneira como o policial me olhou, vi que não conseguia enganá-lo.
– Quanto é que havia na carteira quando você descobriu o cara? – perguntou ele. Não era um tira simpático e humano. Talvez fosse diferente quando estivesse no plantão de dia.
– Não tenho a menor idéia – respondi. O fato de não gaguejar já era um triunfo.
– Vai me dizer que não olhou?
– Não olhei.
– Ah, é? E por quê?
– Por que o quê? – Ainda bem que eu tinha ar de garoto.
– Por que você não olhou?
– Nem pensei nisso.
– É… – repetiu o tira, mas não insistiu. Contou de novo as notas. – Tudo em notas de cem. Um cara com tanto dinheiro podia escolher um lugar melhor para esticar as canelas do que isto aqui. – Recolocou as cédulas na carteira. – Vou levar isto para a delegacia – disse. – Algum de vocês quer contar?
– A gente confia no senhor – disse o enfermeiro, com um leve tom de ironia na voz. Era jovem, mas já entendido em morte e espoliação.
O policial passou em revista os compartimentos da carteira- Seus dedos eram grossos e cabeludos.
– Engraçado! – exclamou.
– O quê? – perguntou o enfermeiro.
– Não há cartões de crédito, cartões de visita ou carteira de motorista. Um cara com mais de mil dólares no bolso. – Meneou a cabeça e empurrou o quepe para trás. – Não é normal, não acham? – Parecia insultado, como se o morto não tivesse agido como se esperava que agisse um cidadão americano decente, que contava ser protegido na vida ou na morte pela polícia do seu país. – Sabe quem ele é? – perguntou-me.
– Nunca o vi mais gordo – respondi. – O nome dele é Ferris e morava em Chicago. Vou mostrar-lhe a ficha de entrada.
O policial colocou a carteira no bolso, remexeu rapidamente na roupa que havia na mala, abriu a porta do armário e revistou os bolsos do terno escuro e do impermeável lá dependurados.
– Nada – disse. – Nenhuma carta, nenhuma agenda. Nada. Um cara de coração fraco. Há gente com menos juízo do que um bicho. Bem, tenho que fazer um inventário. Na presença de testemunhas. – Puxou do caderninho e foi anotando os poucos pertences, ou ex-pertences, do corpo estendido no chão. Não demorou muito. – Escute – disse ele, virando-se para mim -, você tem que assinar aqui.
Olhei para a lista. Mil e quarenta e três dólares. Uma maleta marrom, aberta, um terno, um impermeável cinzento, um chapéu… Assinei, logo abaixo do policial.
– Quem botou o cobertor em cima dele? – perguntou o tira.
– Eu – respondi.
– Você o encontrou aí no chão?
– Não. Estava lá fora, no corredor.
– Assim… pelado?
– Pelado. Arrastei-o para o quarto.
– Para que você foi fazer isso? – Agora o policial parecia queixoso, como se esperasse complicações.
– Isto aqui é um hotel – expliquei. – É preciso manter as aparências.
O policial ficou uma fera.
– O que você está querendo… bancar o espertinho?
– Não, nada disso. Se eu o tivesse deixado onde o encontrei e alguém o tivesse visto ali estendido, a gerência me teria dado a maior bronca.
– Da próxima vez que você vir um cara morto – disse o policial – trate de não mexer nele até a gente chegar, está me ouvindo?
– Sim – respondi.
– Você fica toda a noite no hotel, sozinho?
– Fico.
– Como foi que você veio até aqui? Ele telefonou para baixo?
– Não. Uma mulher que estava saindo disse-me que havia um velho louco, nu, no sexto andar, ameaçando atacá-la. – Tudo isso eu disse objetivamente, como se estivesse ouvindo uma fita que eu tivesse gravado. Reparei que não gaguejara nem uma só vez.
– Atacá-la sexualmente?
– Foi o que ela insinuou.
– Uma mulher? Que espécie de mulher?
– Pareceu-me uma prostituta – respondi.
– Você já a tinha visto alguma vez?
– Não.
– Há uma porção de mulheres entrando e saindo do hotel, não é?
– Mais ou menos – respondi.
O tira olhou para o rosto contorcido e azulado no chão.
– Há quanto tempo você acha que ele morreu, doutorzinho?
– É di… fícil dizer. Pode ter sido há dez minutos ou há meia hora – disse o enfermeiro. Olhou para mim. – Chamou o hospital tão logo o descobriu? O chamado foi às três e quinze.
– Bem – expliquei -, primeiro escutei para ver se ele ainda estava vivo, depois puxei-o aqui para dentro e cobri-o, e só depois é que desci para telefonar.
– Tentou a respiração boca a boca?
– Não.
– Por que não? – O rapaz não estava sendo impertinente; era muito tarde e ele estava demasiado cansado para isso; estava apenas seguindo uma rotina.
– Não pensei nisso – respondi.
– Você não pensou numa porção de coisas – disse o tira, acusadoramente. Do mesmo modo que o enfermeiro, também estava sendo rotineiro. A suspeita era a sua rotina, só já parecia cansado dela.
– Ok – disse o enfermeiro. – Vamos levá-lo daqui. Não adianta ficar perdendo tempo. Quando souber o que a família pretende fazer com o corpo – falou, dirigindo-se a mim -, ligue para o necrotério.
– Vou já mandar um telegrama para Chicago – falei.
Os dois homens da ambulância colocaram o corpo na maca.
– Pesado, o velho, hem? – comentou o motorista. – Aposto como comia do melhor, o velho sátiro. Ameaças sexuais. Murcho desse jeito. – Cobriu o corpo com um lençol e amarrou os tornozelos aos pés da maca, enquanto o enfermeiro lhe afivelava uma correia no peito. O elevador era pequeno demais para levar o corpo deitado, iam ter que entrar com a maca em pé. Saíram para o corredor, seguidos pelo tira. Dei uma última olhadela ao quarto e apaguei a luz antes de fechar a porta.
– Noite movimentada? – perguntei ao enfermeiro, assim que o elevador começou a descer. "Procure agir com normalidade, à vontade," disse comigo mesmo. Não havia dúvida de que, para aqueles três homens, era perfeitamente normal carregar mortos de hotéis no meio da noite, e procurei ajustar-me aos seus padrões de comportamento.
– È a minha quarta saída desde que entrei de serviço – respondeu ele. – Gostaria de estar no seu lugar.
– É? – retruquei. – Pois eu continuarei trabalhando toda a noite na máquina de calcular, enquanto você estiver acumulando dinheiro, ano após ano. – "Por que é que eu fui falar em dinheiro?", pensei. – Leio os jornais – acrescentei, depressa. – Neste país, os médicos ganham mais do que quaisquer outros profissionais.
– Deus abençoe a América – disse o enfermeiro, quando o elevador parou e a porta se abriu. Ele e o motorista pegaram na maca e eu fui à frente. Abri a porta com a chave e vi-os colocar o corpo na ambulância. O policial ao volante da rádio-patrulha estava dormindo, roncando baixo, o quepe caído e a cabeça encostada para trás.
O enfermeiro entrou na ambulância com o cadáver e o motorista bateu a porta. Depois, deu meia-volta, sentou-se ao volante e ligou o motor ao mesmo tempo que a sirena.
– Para que tanta pressa? – disse o policial, na calçada, perto de mim. – Eles não vão a lugar nenhum.
– Não vai acordar seu colega? – perguntei.
– Não. Se vier um chamado, ele acorda. Tem o instinto de um animal. É melhor ele descansar um pouco. Gostaria de ser calmo assim. – Suspirou, abatido por preocupações que seus nervos não tinham força suficiente para suportar. – Quero dar uma olhadela nas fichas – Entrou no hotel comigo, o passo pesado, o passo da lei.
Abri a porta do escritório. Não olhei para a prateleira acima do cofre, onde o tubo de papelão estava escondido por trás das caixas de papel de cartas e das pilhas de revistas velhas.
– Tenho uma garrafa de uísque, se o senhor quiser um trago – disse, espantado com a maneira tranqüila como estava agindo. Como se eu fosse um computador, com todos os cartões corretamente perfurados e os dados certos. Mas tinha sido um esforço não olhar para a prateleira.
– Bem, eu estou de serviço – disse o policial. – Mas acho que um tragozinho…
Abri o livro de registro e mostrei a página onde estava anotada a ficha do apartamento 602. O policial copiou-a lentamente no seu caderninho preto. A história da cidade de Nova York, fielmente copiada em vinte mil páginas escritas a mão pelos diplomados da Academia de Polícia. Uma interessante descoberta arqueológica.
Apanhei a garrafa e a abri.
– Desculpe, mas não tenho copo – falei.
– Não é a primeira vez que bebo na garrafa – retrucou o policial. Ergueu a garrafa e disse: – L’chaim. – E tomou um longo trago.
– O senhor é judeu? – perguntei, quando ele me passou a garrafa.
– Não. O meu colega é que é. Aprendi com ele. L’chaim. "À vida", segundo eu recordava de uma canção de Um violinista no telhado.
– Acho que vou beber também – falei, erguendo a garrafa. – Uma noite como esta faz um homem ficar meio bombardeado.
– Isto não é nada – retrucou o tira. – Você precisava ver o que nós vemos.
– Posso imaginar – disse eu, bebendo.
– Bem – falou o policial -, preciso ir andando. Vai vir um detetive, de manhã. Deixe o quarto trancado até ele chegar, ok?
– Vou avisar o meu colega do dia.
– Plantão da noite – disse o policial. – Você consegue dormir bem de dia?
– Mais ou menos.
– Eu, não – disse o tira, abanando queixosamente a cabeça. – Olhe só para as minhas olheiras!
– Está precisando de uma boa noite de sono! – comentei, olhando para as olheiras dele.
– Quem sou eu! – exclamou o homem, enfiando brutalmente um dedo no olho. – Bem, pelo menos não houve crime. A gente tem que dar graças a Deus pelas pequenas coisas – acrescentou, surpreendentemente. Um vocabulário que incluía Deus numa tirada filosófica!
Acompanhei-o até a porta da frente.
– Um bom dia para você – disse o policial.
– Obrigado. Para você também.
– Ah! – exclamou ele.
Vi-o subir lentamente para a radiopatrulha e acordar o colega. Logo depois, o veículo descia a rua silenciosa. Tranquei a porta e voltei para o escritório. Peguei no telefone e disquei. Tive de esperar pelo menos dez toques para que atendessem. "Este país está em completa decadência", pensei. "Ninguém se mexe."
– Western Union – disse a voz.
– Quero mandar um telegrama para Chicago – falei, dando o nome e o endereço, soletrando "Ferris" bem devagar.
– A mensagem, por favor? – A voz parecia irritada.
– Lamento informar John Ferris faleceu esta manhã, três e trinta. Queiram entrar contato comigo imediatamente. Assinado, H. M. Drusack, gerente Hotel St. Augustine, Manhattan. – Quando a resposta chegasse, Drusack estaria de serviço e eu estaria longe, a salvo. Não havia necessidade de que a família, em Chicago, soubesse o meu nome. – Quanto é, por favor?
O funcionário disse-me quanto era. Anotei a importância numa folha de papel. O velho Drusack ia pô-la na conta de Ferris. Eu o conhecia.
Tomei outro trago de uísque e depois instalei-me na cadeira giratória e peguei a Bíblia. Tinha tempo de ler os provérbios antes que o meu plantão acabasse.