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De manhã, fiz as malas e carreguei-as eu próprio até o elevador. Não queria mais conversas com Morris. Paguei o hotel com parte do dinheiro que ganhara no segundo páreo das corridas de Hialeah. À porta do hotel, olhei em volta cautelosamente. Até onde os meus olhos alcançavam, não havia ninguém esperando por mim ou que me pudesse seguir. Tomei um táxi e dirigi-me para a estação rodoviária, onde pegaria um ônibus para Washington. Ninguém pensaria em procurar numa estação rodoviária um homem que acabava de roubar cem mil dólares.
Tentei primeiro o Hotel Mayflower. Enquanto estivesse em Washington, achei que devia aproveitar o melhor que a cidade tinha para oferecer. Mas o hotel estava cheio, informou-me o recepcionista, dando-me a impressão de que, naquele centro de poder, para se conseguir um quarto era preciso ser-se eleito por larga margem de votos ou, pelo menos, nomeado pelo presidente em pessoa. Apesar dos pesares, ele teve a amabilidade suficiente de me indicar um hotel a cerca de um quilômetro de distância. Geralmente tinha lugar, acrescentou, no mesmo tom com que poderia ter dito que um seu conhecido costumava usar camisas encardidas.
Ele tinha razão. O prédio era novo, todo em metal cromado e pintura berrante, mais parecendo um motel à beira de uma estrada americana, mas havia lugar. Preenchi a ficha com o meu nome verdadeiro. Achava que, naquela cidade, não era necessário tomar tantas precauções para ficar anônimo.
Lembrando-me do que tinha ouvido falar sobre assaltos nas ruas da capital, coloquei prudentemente a carteira no cofre do hotel, deixando só cem dólares para as despesas do dia. Todo o cuidado é pouco. O perigo espreita à nossa porta. A pistola das noites de sábado é quem dita a lei.
A última vez em que eu estivera em Washington fora quando pilotara um charter de republicanos de Vermont para a posse de Richard Nixon, em 1969. Os republicanos tinham bebido um bocado, no avião, e eu passara boa parte do vôo discutindo com um senador bêbado, que fora piloto de um B-17 durante a Segunda Guerra Mundial e queria que o deixasse pilotar depois que passamos Filadélfia. Não tinha ido à posse ou ao baile, para o qual os republicanos me haviam arranjado um convite. Nessa época, eu me considerava um democrata. Agora, já não sabia o que me considerava.
Tinha passado o dia da posse presidencial no Cemitério Nacional de Arlington. Parecera-me uma boa maneira de comemorar a posse de Richard Nixon no cargo de presidente dos Estados Unidos.
Havia um Grimes enterrado no cemitério, um tio que morrera em 1921, envenenado por gás de cloro na floresta de Argonne. Quanto a mim, jamais seria sepultado em Arlington. Não era veterano de nenhuma guerra. Por ocasião da Guerra da Coréia, eu era demasiado jovem, e quando a do Vietnam estourou tinha o meu emprego na companhia de aviação e não me sentira tentado a alistar-me como voluntário. Caminhando por entre os túmulos, não senti pena de saber que nunca seria levado a descansar na companhia de heróis. Nunca fui amigo de brigar – mesmo quando garoto, só uma vez troquei socos na escola – e, embora fosse razoavelmente patriota, as guerras não tinham nenhuma atração para mim. Meu patriotismo não estava orientado na direção do derramamento de sangue.
Quando saí do hotel, na manhã seguinte, vi que havia uma fila de gente esperando táxi, de modo que me pus a andar, na esperança de pegar um táxi a meio da avenida. A temperatura estava agradável, em contraste com o frio cortante de Nova York, e a rua tinha um ar de prosperidade, com os transeuntes bem vestidos e disciplinados. Durante meia quadra, caminhei lado a lado com um senhor de aspecto digno e bem nutrido, metido num sobretudo de gola de vison, e com aparência de senador. Diverti-me imaginando qual a reação do homem se eu me aproximasse dele, olhando-o bem fixamente, como o Velho Marinheiro, que deteve um entre três, e lhe dissesse o que havia feito desde a madrugada de terça-feira.
Parei junto a um cruzamento e fiz sinal para um táxi que vinha diminuindo a marcha. Só depois que o carro parou é que eu vi que no assento de trás havia uma passageira. Mas o motorista, um negro de cabelo grisalho, virou-se e abriu a janela.
– Para onde o senhor vai? – perguntou.
– Para o centro.
– Entre – disse o homem. – A senhora também vai para lá.
– Importa-se de que eu vá com a senhora? – perguntei, abrindo a porta de trás.
– Importo-me, sim – respondeu a mulher. Era jovem, não devia ter mais de trinta anos, e bonita, de uma beleza loura e agressiva, menos bonita, no momento, do que deveria ser normalmente, por causa dos lábios apertados.
– Desculpe – disse eu e fechei a porta. Ia voltar para a calçada, quando o motorista abriu a porta da frente.
– Entre – falou ele.
"Bem-feito", pensei, e, sem olhar para a mulher, sentei-me ao lado do chofer. Ouvimos um barulho furioso no banco de trás, mas nem eu nem o chofer nos viramos. Viajamos em silêncio.
Quando o táxi parou diante de um edifício do governo, a mulher inclinou-se para a frente.
– Um dólar e quarenta e cinco cents? – perguntou.
– Isso mesmo, dona – respondeu o motorista.
Ela abriu a bolsa, tirou uma nota de um dólar e algumas moedas e deixou o dinheiro no banco de trás.
– Não espere encontrar gorjeta – falou, ao sair. Dirigiu-se para o edifício, gingando furiosamente. Reparei que tinha lindas pernas.
O chofer riu, enquanto estendia o braço para trás e apanhava o dinheiro.
– Funcionária pública – disse ele.
– Apelido: bruxa – retruquei. O motorista riu de novo.
– Nesta cidade a gente vê de tudo – falou. E continuou a dirigir, abanando a cabeça e rindo consigo mesmo.
Ao chegar ao Departamento de Estado, dei ao homem um dólar de gorjeta.
– Obrigado, moço – disse o motorista -, mas essa dona loura já me fez ganhar o dia.
Entrei no edifício e dirigi-me ao balcão de informações.
– Gostaria de falar com o Sr. Jeremy Hale – disse à moça do balcão.
– Sabe qual é a sala dele?
– Não.
A moça suspirou. Pelo que via, Washington estava cheia de mulheres pouco amáveis. Enquanto a moça procurava numa lista em ordem alfabética o número da sala de Jeremy Hale, eu lembrava-me de ter dito a Hale, havia um bocado de tempo:
"Com um nome como o seu, Jerry, você tinha que acabar no Departamento de Estado". Sorri da lembrança.
– O Sr. Hale está à sua espera?
– Não. – Havia anos que não falava com Hale, nem lhe escrevia. Tínhamos sido colegas e amigos na Universidade de Ohio. Depois disso, eu pegara o emprego em Vermont e tínhamos esquiado juntos vários invernos, quando Hale não estava lotado no exterior.
– Seu nome, por favor? – perguntou a moça.
Dei-lhe o meu nome e ela discou um número no telefone em cima do balcão.
A moça falou qualquer coisa ao telefone e escrevinhou um passe.
– O Sr. Hale está à sua espera. – Entregou-me o passe e vi que ela tinha escrito o número da sala de Hale.
– Muito obrigado, senhorita – disse. Só depois é que reparei na aliança. Tinha feito mais uma inimiga em Washington.
Tomei o elevador. Estava quase cheio, mas dentro dele reinava um silêncio decoroso. Os segredos de Estado eram bem guardados.
O nome de Hale estava numa porta exatamente igual a uma longa série de portas que desapareciam, em perspectiva, por um corredor aparentemente interminável. "O que todas essas pessoas podem estar fazendo em prol dos Estados Unidos da América durante oito horas por dia, duzentos dias por ano?", pensei ao bater na porta.
– Entre – disse uma voz de mulher.
Empurrei a porta e entrei numa pequena sala, onde uma linda jovem batia a máquina. O velho Jeremy Hale!
A bela jovem sorriu radiosamente para mim. "Como se comportaria ela nos táxis?", pensei.
– Sr. Grimes? – perguntou, levantando-se. Era ainda mais linda de pé do que sentada, alta e morena, esbelta num suéter azul bem justo.
– Exatamente – respondi.
– O Sr. Hale está à sua espera. Entre, por favor – disse ela, abrindo-me a porta para o escritório de Hale.
Meu amigo estava sentado diante de uma mesa apinhada, tendo à sua frente um monte de papéis. Engordara desde a última vez em que o vira, e o seu rosto educado tinha agora a solidez do burocrata. Sobre a mesa, numa moldura de prata, via-se o retrato de uma mulher e duas crianças, um casal. Tudo com moderação. O crescimento demográfico perfeitamente controlado. Um exemplo para os pagãos. Hale ergueu-se ao me ver entrar e sorriu abertamente.
– Doug! – exclamou. – Você nem sabe a alegria que me dá!
Demo-nos as mãos e fiquei espantado de ver como aquela recepção me emocionava. Havia três anos que ninguém se mostrava feliz por me ver.
– Por onde tem andado, homem? – perguntou Hale. Indicou-me um sofá de couro a um dos lados do espaçoso gabinete e, depois que me sentei, puxou uma poltrona para perto do sofá e sentou-se também. – Pensei que você tinha desaparecido da face da Terra. Escrevi três cartas e todas elas foram devolvidas. Por que não me deu o seu endereço? Também escrevi à sua namorada, Pat, pedindo notícias suas, mas ela respondeu que não sabia do seu paradeiro. – Olhou para mim, com a testa franzida. Era um rapaz agradável, alto, com um bom físico e um rosto sensível, em quem a testa franzida não ficava bem. – Você também não parece muito em forma. Parece que há anos não toma ar.
– Ok, ok – atalhei. – Cada coisa a seu tempo, Jerry. Decidi que não queria mais voar e caí fora. Só isso.
– Quis esquiar com você, no inverno passado. Tive duas semanas de férias e ouvi dizer que a neve estava ótima…
– Para dizer a verdade, também não tenho esquiado muito – falei.
Impulsivamente, Hale bateu-me no ombro.
– Está bem – disse ele. – Não lhe vou fazer nenhuma pergunta. – Mesmo quando jovem, na faculdade, ele sempre mostrara inteligência e sensibilidade. – Só uma pergunta. De onde você está vindo e o que está fazendo aqui em Washington? Riu. – Acho que são duas perguntas.
– Estou vindo de Nova York – respondi. – E vim a Washington para lhe pedir um pequeno favor.
– O governo está às suas ordens, rapaz. É só pedir.
– Preciso de um passaporte.
– Vai me dizer que nunca tirou passaporte?
– Nunca.
– Você nunca saiu do país? – perguntou Hale, espantado. Todo mundo que ele conhecia passava a maior parte do tempo fora do país.
– Estive no Canadá – respondi. – Só isso. Para ir ao Canadá não é preciso passaporte.
– Você diz que vem de Nova York – volveu ele, intrigado. – Por que não tirou o passaporte lá? Não que eu não esteja feliz de você ter tido um pretexto para me visitar – acrescentou, rapidamente. – Mas só precisava ter ido à…
– Eu sei – interrompi. – Apenas não queria esperar. Estou com pressa e achei melhor vir diretamente à fonte.
– Aqui, estão cheios de serviço – disse Hale. – Aonde você está querendo ir?
– Acho que, para começar, à Europa. Herdei um pouco de dinheiro e achei que estava na hora de tomar uma dose de cultura européia. Aqueles postais que você costumava mandar-me de Paris e de Atenas me deram água na boca. – Mentir estava sendo fácil para mim.
– Acho que posso conseguir-lhe o passaporte em um dia – disse Hale. – É só você me dar a sua certidão de nascimento… – Parou, ao me ver franzir a testa. – Não vai me dizer que não a trouxe…
– Não sabia que ia precisar.
– Claro que vai! – disse Hale. – Onde foi que você nasceu? Em Scranton, não é mesmo?
– Sim.
Hale fez uma careta.
– Que foi? – perguntei.
– A Pennsylvariia é fogo – disse ele. – Todas as certidões de nascimento são arquivadas em Harrisburg, capital do Estado. Você teria que escrever para lá e demoraria pelo menos duas semanas… com sorte.
– Bolas! – exclamei. Não queria esperar duas semanas em lugar nenhum.
– Você não precisou da certidão de nascimento quando tirou a sua primeira carteira de motorista?
– Precisei.
– E onde é que ela está? Você tem idéia? Talvez esteja com alguém de sua família. No fundo de alguma gaveta.
– Meu irmão Henry ainda vive em Scranton – falei, lembrando-me de que, depois da morte de minha mãe, ele pegara todos os papéis da família, velhos boletins, meu diploma do ginásio, o da faculdade, álbuns antigos de fotografias, e os guardara no seu sótão. – Talvez esteja com ele.
– Por que você não liga para ele e lhe pede para dar uma olhada? Se seu irmão a encontrar, diga-lhe para mandá-la registrada.
– Melhor ainda – disse eu. – Vou buscá-la pessoalmente. Há anos que não vejo Henry e será uma boa oportunidade para vê-lo. – Não quis explicar a Hale que preferia que Henry não soubesse que eu estava em Washington.
– Vamos ver – disse Hale. – Hoje é quinta-feira. O fim de semana está aí. Mesmo que você encontrasse logo a certidão, não voltaria a tempo de fazer nada antes de segunda-feira.
– Não faz mal – retruquei. – Acho que a Europa pode esperar mais um pouco por mim.
– Você vai precisar também de fotografias.
– Estão aqui comigo – disse eu, tirando o envelope de um dos bolsos.
Ele tirou uma foto do envelope e examinou-a.
– Você ainda parece que acaba de se formar. – Sacudiu a cabeça. – O que faz para se manter tão jovem?
– Levo a vida na flauta – falei.
– Ainda bem que há gente que pode – disse Hale. – Quando olho para fotos minhas, acho que podia ser meu pai. A mágica da arte fotográfica! – Guardou de novo a foto no envelope. – Vou preparar os papéis para você assinar na segunda-feira de manhã.
– Ótimo. Já estarei de volta.
– Por que você não passa o fim de semana aqui? – sugeriu Hale. – Washington fica bem melhor nos fins de semana. Sábado à noite temos um joguinho de pôquer. Você ainda joga pôquer?
– Um pouco.
– Ótimo. Um dos habitués está fora e você pode ficar no lugar dele. Há dois otários sempre prontos a perder dinheiro.
Sorriu. Também tinha sido bom jogador, na universidade. Vamos matar as saudades dos velhos tempos. O telefone tocou e Hale atendeu.
– Vou já para aí – disse e desligou. – Sinto muito, Doug, mas tenho que ir. A crise das onze horas da manhã.
Levantei-me.
– Obrigado por tudo – disse eu, dirigindo-me para a porta.
– De nada – retrucou Hale. – Para que servem os amigos? Escute, hoje à noite há um coquetel lá em casa. Você está muito ocupado?
– Não – respondi.
– Espero por você às sete – disse ele, já na ante-sala. – Estou com muita pressa, mas a Srta. Schwartz lhe dará o meu endereço. – E saiu pela porta afora, conservando, apesar da pressa, o decoro oficial.
A Srta. Schwartz escreveu um cartão e entregou-me, sorrindo como se me estivesse condecorando. Sua letra era tão bonita quanto ela própria.
Aos poucos fui despertando, enquanto uma mão macia me subia pela coxa. Já tínhamos feito amor duas vezes, mas a ereção foi imediata. Minha companheira de cama estava se aproveitando dos meus anos de abstinência.
– Melhorou – murmurou ela. – Melhorou muito. Não faça nada. Fique quieto. Não se mexa.
Fiquei quieto. As mãos sábias, os lábios macios e a língua lasciva tornavam uma tortura ficar imóvel. A dama levava muito a sério os seus prazeres – eram quase um ritual para ela -, e não admitia pressa. Mal entráramos no seu quarto, à meia-noite, ela me fizera deitar e começara lentamente a me despir. A última mulher que me despira fora minha mãe, quando eu tinha cinco anos e estava com sarampo.
Eu jamais esperara que a noite terminasse assim. O coquetel na bela casa estilo colonial, em Georgetown, decorrera dentro da maior sobriedade e correção. Tinha chegado cedo e fora levado ao andar de cima, para admirar os filhos de Hale. Antes da chegada dos outros convidados, conversara com a mulher de Hale, Vivian, que via pela primeira vez. Era uma mulher bonita, alourada, com um ar cansado. Pelo visto, Hale lhe falara um bocado a meu respeito.
– Depois de Washington – disse ela – Jerry falou que você era como que uma lufada de ar fresco. Contou-me que adorava esquiar com você e a sua garota… Pat, se não me engano?
– Isso mesmo.
– Dizia… espero que você não leve a mal… que vocês dois eram tão transparentemente decentes.
– Por que haveria de levar a mal? – perguntei.
– Ficou preocupado quando soube que já não estavam juntos. E que você tinha sumido. – Vivian Hale olhou para mim, à espera de uma reação, de uma resposta à pergunta que não fizera.
– Eu sabia onde estava – respondi.
– Se eu não tivesse conhecido Jerry – disse ela, subitamente parecendo bem mais jovem -, não teria nada. Nada! Nada! – A campainha tocou. – Meu Deus! – exclamou ela. – Aí vem o rebanho. Espero que nos vejamos durante a festa…
Mas o resto da festa transcorrera, pelo menos para mim, num clima vago, embora como sempre eu pouco bebesse. Tinham-me apresentado a tanta gente importante, o Senador Fulano, o Deputado Sicrano, Sua Excelência o embaixador de X, o Sr. Blank, colunista político do Washington Post, a Sra. Beltrana, alta funcionária do Departamento de Justiça, e a conversa fora sobre gente poderosa, famosa, desprezível, conivente, eloqüente, de partida para a Rússia, redigindo um decreto capaz de pôr os cabelos em pé.
Embora eu praticamente nada soubesse da estrutura social da capital, sabia que havia um bocado de poder ali reunido. Pelos padrões de Washington, todo mundo ali era mais importante do que o anfitrião, o qual, embora estivesse subindo, ainda tinha bastante que andar dentro do Departamento de Estado e não poderia dar muitos coquetéis como aquele contando apenas com o seu ordenado. Mas Vivian Hale era filha de um homem que fora por duas vezes senador e que, além do mais, era dono de boa parte da Carolina do Norte. Meu amigo fizera um bom casamento. Fiquei pensando no que teria sido de mim se eu tivesse casado com uma mulher rica. Não que eu tivesse tido essa oportunidade.
Tinha-me contentado em ficar de lado, recuando um pouco quando os drinques começaram a fazer efeito nas conversas, um copo sempre na mão, sorrindo como um garoto no seu primeiro baile. Não sabia como Hale podia aturar aquilo.
A Sra. Beltrana, cuja mão e cujos lábios agora me acariciavam, era a dama apresentada como alta funcionária do Departamento de Justiça. Parecia ter seus trinta e cinco anos, mas uns belos trinta e cinco, de corpo curvilíneo, pele brilhante, grandes olhos escuros e suaves cabelos de um louro escuro, quase da mesma cor dos meus, que lhe caíam até os ombros. Tínhamo-nos encontrado num canto do salão e ela dissera:
– Há algum tempo que o estou olhando. Coitado, você parece encurralado. Se não me engano, é um hóspede.
– Um hóspede – repeti, espantado. – De quem?
– De Washington.
– Dá para ver isso? – perguntei, com um sorriso.
– Dá, meu caro, dá. Mas não se preocupe. Adoro falar com alguém que não trabalhe para o governo. – Olhou para o relógio. – Quarenta e cinco minutos. Já cumpri com o meu dever. Ninguém pode me acusar de não saber comportar-me em sociedade. Hora de comer. Grimes, você tem alguém esperando-o para jantar?
– Não – respondi, espantado de que ela se lembrasse do meu nome.
– Saímos juntos ou separadamente?
Ri.
– Isso é problema seu, Sra…
– Coates, Evelyn – completou ela, com um amplo sorriso. Tinha uma boca feita para sorrir. – Juntos. Sou divorciada. Acha que sou atirada?
– Acho.
– Ótimo! – Tocou-me levemente no braço. – Espero por você no hall de entrada. Despeça-se dos donos da casa, como um bom menino.
Vi-a atravessar a sala cheia, dominante e segura de si. Nunca tinha visto uma mulher como aquela. Mas, mesmo assim, nunca poderia imaginar que a noite terminasse como terminou. Nunca na minha vida tinha ido para a cama com uma mulher logo após tê-la conhecido. Com a minha gagueira e a minha aparência ridiculamente jovial, sempre fora tímido e desajeitado com as mulheres. Estava resignado ao fato de que outros homens ficassem com as beldades. Nunca havia entendido por que Pat, que era excepcionalmente bonita, quisera alguma coisa comigo. Felizmente para o meu ego não me interessavam as conquistas comuns, e os restos da minha educação religiosa faziam com que não gostasse de promiscuidade.
O restaurante que a Sra. Coates escolheu era francês e, ao que parecia, muito bom.
– Espero que você seja muito rico – disse ela. – Porque, aqui, os preços são ferozes. Você é muito rico?
– Muito.
Ela me olhou fixo, como se me estudasse.
– Pois não parece.
– Não somos novos-ricos – expliquei. – A família não gosta de mostrar que tem dinheiro.
– Que família?
– Vamos deixar isso para outra ocasião – disse eu.
Ela, porém, falou de si mesma sem que eu lhe pedisse. Era advogada, trabalhava na Divisão Antitruste do Departamento de Justiça, havia onze anos que estava em Washington, seu ex-marido fora comandante da Marinha e uma autêntica besta, não tinha filhos nem tencionava tê-los, sempre que podia ia para Hamptons, em Long Island, nadar e cultivar um pequeno jardim, havia cinco anos que seu chefe andava atrás dela, mas fora isso era um amor, ela tinha a intenção de se candidatar ao Congresso antes de morrer. Ao mesmo tempo em que me contava tudo isso, numa voz baixa e melodiosa, interrompeu-se várias vezes durante o jantar para me indicar outros comensais e descrever o seu caráter e as suas funções de maneira breve e maliciosa. Havia um senador com o qual nenhuma mulher podia estar a salvo, mesmo dentro de um elevador; uma segunda-secretária de embaixada que traficava drogas pela mala diplomática; um politiqueiro que escrevia em blocos das duas casas; um homem da cia que era responsável por assassinatos em vários países sul-americanos. Eu a tinha deixado escolher o vinho, embora tivesse preferido cerveja, e pedir os pratos para ambos, dizendo:
– Sou apenas um caipira, confio no seu bom gosto. – Era uma vitória poder falar com uma bela mulher sem gaguejar. Um novo mundo parecia abrir-se para mim.
– Toda a sua família, tão cheia de dinheiro, é composta de caipiras como você?
– Mais ou menos – respondi.
– Você não será da cia? – perguntou ela, olhando para mim criticamente.
Meneei a cabeça, sorrindo.
– Nem isso.
– Hale me disse que você era piloto.
– Fui. Não sou mais. – Fiquei imaginando quando ela tivera tempo, em meio à confusão do coquetel, de perguntar a Hale sobre mim. Por um momento, a curiosidade da mulher me britou e eu quase decidi colocá-la num táxi, depois do jantar, e deixá-la voltar para casa sozinha. Mas depois pensei que não devia encarar a coisa assim e resolvi divertir-me. – Não acha que precisamos de outra garrafa?
– Acho – respondeu ela.
Fomos os últimos a sair do restaurante, e eu estava agradavelmente embriagado quando entramos no táxi. Durante todo o caminho não nos tocamos, e, quando o táxi parou diante do edifício em que a Sra. Coates morava, eu disse ao motorista:
– Espere um pouco, sim? Vou só acompanhar a senhora até a porta.
– Nada disso, motorista – retrucou ela. – O cavalheiro vai entrar para tomar um drinque.
– Era só do que eu precisava! – falei, procurando não engrolar as palavras. – Um drinque! – Mas paguei ao motorista e subi com ela.
Não pude ver como era o apartamento, porque ela não acendeu a luz. Mal fechei a porta, ela me enlaçou e beijou. Um beijo delicioso.
– Agora, vou seduzi-lo – avisou -, aproveitando que as suas defesas estão enfraquecidas.
– Considere-me seduzido.
Rindo, ela me guiou pela mão através do living às escuras até o quarto. De uma porta entreaberta vinha um fino feixe de luz, que permitia distinguir os contornos de alguns móveis, uma grande mesa cheia de papéis, uma cômoda, uma estante contra a parede. Ela me guiou até a cama, fez-me dar meia-volta e me empurrou. Caí de costas na cama.
– O resto – disse ela – é comigo.
Se ela era tão boa no Departamento de Justiça quanto na cama, o governo estava de parabéns.
– Agora – disse ela, montando em mim, usando a mão para me fazer entrar nela. Começou a mover-se, primeiro bem devagar, depois cada vez mais depressa, a cabeça jogada para trás, os braços rígidos, as mãos estendidas sobre a cama, suportando-lhe o peso. Seus seios amplos erguiam-se sobre mim, pálidos à luz refletida por um espelho. Ergui as mãos, acariciei-lhe os seios e ela gemeu. Começou a soluçar alto, incontrolavelmente, e ao atingir o orgasmo estava chorando.
Atingi-o logo depois, deixando escapar um longo suspiro. Ela saiu de mim e ficou deitada de bruços ao meu lado, aos poucos parando de chorar. Estendi a mão e toquei-lhe o ombro redondo e firme.
– Eu a machuquei? – perguntei.
– Que bobagem. Não, que idéia! – exclamou ela, rindo.
– Tive medo de que…
– É a primeira vez que uma mulher chora enquanto você trepa com ela?
– Que eu me lembre, é – respondi. E também era a primeira vez que uma mulher usava essa expressão. Não havia dúvida de que o pessoal da justiça gostava da máxima "pão, pão, queijo, queijo".
Ela riu de novo, sentou-se na cama, estendeu a mão para o maço de cigarros e acendeu um. A luz do fósforo, seu rosto estava calmo e repousado.
– Quer um?
– Não fumo cigarro.
– Vai viver cem anos. Ótimo! Quantos anos você tem, por falar nisso?
– Trinta e três.
– No melhor da vida! – exclamou ela. – Ei, não adormeça. Quero conversar. Que tal um drinque?
– Que horas são?
– Horas de tomar um drinque. – Saiu da cama e vestiu um robe. – Que tal um uísque?
– Uísque está bem.
Ela saiu para a sala, o robe farfalhando. Olhei para meu relógio. Ela o tirara do meu pulso, quando me despira, e o colocara na mesinha-de-cabeceira. Uma mulher ordenada. O mostrador luminoso do relógio indicava que passava um pouco das três. "Tudo a seu tempo", pensei, recostando-me sibariticamente, recordando outras madrugadas, o barulho da máquina de calcular, o vidro à prova de balas, as mulheres desgrenhadas pedindo-me para abrir a porta.
Ela voltou com os dois copos, deu-me um e sentou-se na beira da cama, seu perfil destacando-se contra a luz que vinha do banheiro. Bebeu avidamente. Era uma mulher ávida, além de organizada.
– Ótimo! – falou. – E você também foi ótimo.
Não pude deixar de rir.
– Você sempre classifica os seus amantes?
– Você não é meu amante, Grimes – respondeu ela. – apenas um homem jovem e atraente, de boas maneiras, com quem eu simpatizei num coquetel e que tem a grande virtude de estar passando pela cidade. Essa é a maior das suas virtudes, Grimes.
– Entendo – falei, tomando um trago do uísque.
– Acho que você não entende, mas não me vou dar ao trabalho de explicar.
– Você não precisa explicar-me nada – disse eu. – Basta o prazer que me deu.
– Você não costuma ir para a cama com uma mulher que mal conhece, não é?
– Para ser franco, não. – Ri de novo. – É a primeira vez. Por quê… dá para ver?
– Dá para ver de longe. Você não é nada do que parece, sabe?
– O que eu pareço?
– Parece um desses jovens que fazem de vilões nos filmes italianos… ousados e inescrupulosos.
Era a primeira vez que alguém me dizia uma coisa dessas. Estava acostumado a ouvir dizer que me parecia com o irmão caçula de Fulano ou Sicrano. Ou eu tinha mudado drasticamente, ou Evelyn Coates não se deixava enganar pelas aparências, era capaz de ver o que havia de recôndito nas pessoas.
– E é bom parecer isso? – perguntei, algo preocupado com o "inescrupuloso".
– É ótimo. Em certas circunstâncias.
– Como hoje à noite, por exemplo?
– Exatamente.
– Talvez eu volte a Washington daqui a dias – falei. – Posso telefonar-lhe?
– Se você não tiver nada melhor a fazer.
– Vai querer ver-me de novo?
– Se eu não tiver nada melhor para fazer.
– Você é assim tão dura como finge ser?
– Mais dura ainda, Grimes, muito mais dura. Por que motivo você voltaria a Washington?
– Talvez por sua causa.
– Repita isso, por favor.
– Talvez por sua causa.
– Você é mesmo gentil. E por que outra razão?
– Bem – disse eu lentamente, pensando que talvez pudesse obter algumas informações -, suponha que eu esteja procurando alguém…
– Alguém em particular?
– Sim. Alguém cujo nome eu sei, mas que sumiu de circulação.
– Em Washington?
– Não necessariamente. Em qualquer parte do país, ou mesmo fora…
– Você é misterioso, não acha?
– Algum dia, talvez lhe conte – disse eu, certo de que esse dia nunca chegaria, mas satisfeito de que a sorte me tivesse posto na cama de uma mulher que estava por dentro dos segredos do governo e cujo trabalho, pelo menos em parte, deveria incluir descobrir o paradeiro de pessoas que geralmente não queriam ser descobertas. – É um assunto particular e delicado. Mas suponha que eu precisasse encontrar esse amigo hipotético, que é que eu faria?
– Bem, você poderia procurar em vários lugares – respondeu ela. – Na Secretaria da Receita Federal… o endereço dele constaria da última declaração de imposto de renda. Na Previdência Social. Devem ter o endereço da firma para a qual ele trabalha. No fbi. No Departamento de Estado. Tudo depende de você conhecer as pessoas certas.
– Parta do princípio de que eu conheço as pessoas certas – retruquei. Por cem mil dólares, eu podia ter a certeza de que alguém teria acesso às pessoas certas.
– Você provavelmente acabaria por descobrir a pista do seu amigo. Ei, por acaso é detetive particular ou coisa parecida?
– Coisa parecida – respondi, ambiguamente.
– Bem, mais cedo ou mais tarde, todo mundo vem a Washington – disse ela. – Por que não você? É o verdadeiro teatro vivo da América. Todas as sessões com lotação esgotada. Só que a platéia é muito especial. Os bons lugares estão sempre ocupados por atores.
– Você é uma das atrizes?
– Claro que sou! Desempenho um papel importantíssimo. A indômita Portia desfechando golpes mortais nos malfeitores de grande fortuna. O Women's Lib na justiça e na injustiça. Mereci críticas entusiásticas nas melhores camas da cidade. Chocado?
– Um pouco.
– Por falar nisso – disse ela -, você merece quatro estrelas.
– Que é isso?
– Oh, inocente! – exclamou ela, beliscando-me a face. – Quatro estrelas equivalem a um elogio. O seu desempenho foi um dos melhores entre as pessoas com quem já dormi nesta cidade. Você foi tão bom quanto um certo senador de um Estado do oeste, cujo nome não direi, mas que costumava encabeçar a lista. Até que o pobre foi derrotado, nas últimas eleições.
– Não sabia que estava desempenhando um papel – falei. Não tinha o menor desejo de saber o nome do senador derrotado.
– Lógico que estava! De outra maneira não estaria em Washington. E nesta cidade qualquer desempenho exige um enorme talento. Todos temos que fingir que adoramos nossos papéis.
– Você também?
– Será que está brincando? Claro! Sou uma mulher adulta. Você acha que, se eu continuasse indo ao escritório diariamente, durante os próximos cem anos, isso faria alguma diferença para você, para a General Motors ou para as Nações Unidas? Eu simplesmente faço o meu papel e me divirto como todo mundo, porque esta cidade é o melhor lugar para pessoas como nós se divertirem. Na verdade, a minha opinião é que se todo mundo aqui, desde o presidente até o mais humilde dos serventes, só pudesse trabalhar quinze dias por ano, os Estados Unidos seriam o maior país do mundo.
Eu tinha terminado o uísque e sentia uma vontade enorme de dormir. A custo, reprimi um bocejo.
– Oh! – disse ela. – Estou enchendo sua paciência.
– Nada disso – retruquei, sinceramente. – Mas você não está cansada?
– Não muito. – Pousou o copo, tirou o robe e deitou-se a meu lado. – O sexo me revigora. Mas tenho que acordar cedo e não me convém ir trabalhar com ar de quem passou a noite em claro. – Aninhou-se contra mim e beijou-me a orelha. – Boa noite, Grimes. Ligue para mim quando voltar.
Quando acordei, eram quase dez horas e estava só. As cortinas deixavam passar sol suficiente para se ver que estava um lindo dia. Havia um bilhete sobre a cômoda, onde ela pusera a minha carteira na noite anterior: "Caro hóspede: saí para trabalhar. Você estava dormindo tão bem, que não tive coragem de acordá-lo. Gostei de ver tal prova de consciência tranqüila neste mundo perdido. Há uma gilete e creme de barbear no armário do banheiro, um copo de suco de laranja na geladeira e um bule de café sobre o fogão. Espero que você encontre seu amigo. E. C."
Sorri ao ler a última frase, dirigi-me ao banheiro, fiz a barba e tomei um banho. A água fria acabou de me despertar e me fez sentir fresco e bem-humorado… além de satisfeito comigo mesmo, modéstia à parte. Olhei-me cuidadosamente no espelho. Minha cor melhorara.
Ao entrar no living, senti cheiro de bacon frito. Abri a porta que dava para a cozinha e vi uma jovem sentada à mesa, de calça comprida e suéter, com um lenço na cabeça, lendo o jornal e mastigando um pedaço de torrada.
– Oi! – saudou a jovem, olhando para cima. – Pensei que você ia passar o dia todo dormindo.
– S… sinto muito… – gaguejei. – Não queria perturbá-la.
– Não está me perturbando. – Levantou-se, abriu a geladeira e tirou um copo de suco de laranja. – Evelyn deixou isto para você. Deve estar com sede. – Não explicou por que achava que eu devia estar com sede. – Quer ovos com bacon?
– Não lhe quero dar trabalho.
– Não dá trabalho. O café da manhã está incluído. – Tirou três fatias de bacon de um pacote aberto e colocou-as na frigideira com as outras. Era alta e esbelta. – Bem passado?
– Como você quiser.
– Bem passado – decidiu ela. Colocou um pedaço de manteiga em outra frigideira e estrelou quatro ovos, com movimentos rápidos e autoritários. – Meu nome é Brenda Morrissey – anunciou. – Divido o apartamento com Evelyn. Ela não lhe falou de mim?
– Que eu me lembre, não – respondi, bebendo o suco de laranja.
– Acho que Evelyn estava muito ocupada – declarou ela. Encheu duas xícaras de café, apontou para o leite e o açúcar em cima da mesa. – Sente-se. Está com pressa?
– Não muito – disse eu, sentando-me.
– Eu também não. Dirijo uma galeria de arte. Ninguém compra quadros antes das onze da manhã. É o trabalho ideal para uma pessoa como eu. Evelyn esqueceu de me dizer o seu nome.
Disse-lhe.
– Há quanto tempo você conhece Evelyn? – perguntou ela, de pé junto ao fogão, com uma mão mexendo os ovos e com a outra enfiando fatias de pão na torradeira.
– Bem – disse eu, encabulado -, a verdade é que nos conhecemos ontem à noite.
Ela deu uma risadinha curta.
– Assim é Washington. A gente arranja votos onde quer que os encontre. Todo tipo de votos. Talvez esse seja o melhor tipo. Cara Evelyn! – disse ela, mas sem malícia. – Ouvi vocês ontem à noite.
Senti-me corar.
– Não sabia que havia mais alguém em casa.
– Não faz mal. A verdade é que sempre me esqueço de comprar tampões para os ouvidos. – Passou os ovos para os pratos e colocou o bacon por cima deles. Sentou-se do outro lado da mesa, os olhos esverdeados fitos em mim. Não usava batom e seus lábios eram rosapálido, suas faces estavam afogueadas do calor do fogão. Tinha um rosto comprido, ossudo, e o lenço em volta da cabeça fazia-a parecer severa. – Evelyn não gosta de guardar os prazeres para si – disse ela, partindo um pedaço de bacon e comendo-o com a mão. – Tive de me conter para não entrar também na brincadeira.
Meu rosto ficou rígido e baixei os olhos. Ela riu.
– Não se preocupe! – disse ela. – Isso foi coisa que nunca aconteceu. Nós podemos fazer muita coisa, mas não gostamos de orgias. Contudo, se você vai ficar em Washington esta noite e me disser em que hotel está hospedado, talvez possa convidar-me a tomar um drinque.
Não vou dizer que não fiquei tentado. A noite despertara em mim a sensualidade havia tanto adormecida. E a impessoalidade da sugestão era provocante, nem que fosse pela novidade. Coisas desse tipo tinham acontecido com amigos meus, ou pelo menos assim diziam, mas nunca comigo. E, depois do que eu tinha feito no quarto 602 do St. Augustine, mal podia recusar-me, com base em princípios morais, a dormir com a amiga de uma mulher que conhecera na noite anterior. Deixaria que as coisas acontecessem. Mas havia a certidão de nascimento.
– Sinto muito – falei. – Mas vou viajar esta manhã.
– Que pena! – fez a moça, numa voz desanimada.
– Devo estar de volta ao hotel… – hesitei, lembrando-me do jogo de pôquer com Jeremy Hale, sábado à noite. Cada coisa a seu tempo. – Devo estar de volta no domingo.
– Em que hotel você está hospedado?
Disse-lhe.
– Talvez eu ligue no domingo – falou ela. – Não tenho nada contra os domingos.
Dinheiro no banco, pensei, ao sair do edifício, mesmo que o banco estivesse a quinhentos quilômetros de distância, devia exalar uma irresistível aura sexual.
Procurei examinar como me sentia naquela manhã. Bem-disposto e de ânimo leve. Perverso. O termo era démodé, mas fora o que me viera à cabeça. Seria possível que, durante trinta e três anos, eu me tivesse enganado redondamente a respeito do homem que era? Olhei para as caras dos homens e das mulheres com quem cruzava na rua. Estariam todos à beira do crime?
Chegando ao hotel, aluguei um carro e tirei o dinheiro do cofre. Estava começando a me sentir mal se não andasse com várias notas de cem dólares no bolso.
As estradas que cortavam a Pennsylvania estavam cobertas de gelo, de modo que procurei guiar cuidadosamente. Tinha de evitar a todo custo uma batida. Não podia ficar imobilizado e indefeso semanas, ou mesmo meses, num hospital.