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CAPÍTULO VI

– Por favor, posso falar com o Sr. Grimes? – perguntei à moça que atendeu o telefone. – Com o Sr. Henry Grimes?

– Quem quer falar com ele?

Hesitei. Cada vez mais relutava em dar o meu nome.

– Diga que é o irmão dele – respondi. Como éramos três irmãos, isso podia deixar ao menos uma margem de dúvida.

– Oi, Hank! – exclamei, mal ouvi a voz de meu irmão.

– Quem está falando? Não, não acredito! Doug! Onde diabos você está? – Senti de novo a mesma gratidão que me inundara no escritório de Jeremy Hale por ver que havia quem ficasse feliz de ouvir minha voz. Meu irmão Hank era sete anos mais velho do que eu e, quando criança, ele me considerava uma peste. Desde que eu saíra de Scranton, tínhamo-nos visto poucas vezes, mas não havia dúvida do calor de sua acolhida.

– Estou aqui, na cidade. No Hotel Hilton.

– Pegue a mala e venha já para nossa casa. Temos um quarto de hóspedes e as crianças não o acordarão até as seis e meia da manhã. – Henry achou graça no seu próprio convite. Por trás de sua voz grave e familiar, ouvia-se o matraquear de máquinas de escritório. Henry trabalhava numa firma de contabilidade e o ruído mecânico do dinheiro entrando e saindo era o fundo musical dos seus dias. – Vou ligar para Madge – disse ele – para avisar que você vai jantar.

– Um momento, Hank! – falei. – Preciso pedir-lhe um favor.

– Peça logo, garoto! – disse ele.

– Vou precisar de um passaporte e necessito da minha certidão de nascimento. Se a mandar pedir em Harrisburg, vai levar no mínimo três semanas e estou com muita pressa…

– Você vai viajar para onde?

– Para o estrangeiro.

– Sim, mas para onde?

– Isso não importa. Será que, entre as coisas que você apanhou na casa de mamãe, poderia estar minha certidão de nascimento?

– Vá jantar lá em casa e procuraremos juntos.

– Preferia que Madge não soubesse que eu estou aqui – falei.

– Oh! – exclamou ele, imediatamente preocupado.

– Será que você pode ver se encontra a certidão e depois vir até o Hilton, jantar comigo… sozinho?

– Mas por que é que…?

– Depois eu explico. Pode fazer isso?

– Estarei no Hilton às seis e um quarto.

– Espero por você no bar.

– Ótimo lugar! – riu Henry; uma risada de bêbado.

– Até logo, então! – falei e desliguei. Fiquei um momento sentado na beira da cama daquele incaracterístico quarto de hotel, a mão no telefone, pensando se não teria sido melhor escrever para Harrisburg e esperar duas semanas do que ter vindo a Scranton e falado com meu irmão. Meneei a cabeça. Para se imaginar o que o futuro seria, era preciso contar com o passado. E meu irmão Henry desempenhava um importante papel no meu passado.

Como o nosso pai morreu quando Henry tinha vinte anos e os outros irmãos eram muito mais moços, ele tomara a si a responsabilidade de chefe da família, e eu aprendera a respeitá-lo e a depender dele. Era fácil depender de Henry, rapaz sociável, sem complicações, inteligente, bom aluno (era sempre o primeiro da classe, sempre eleito representante da turma, e ganhara uma bolsa para a Universidade da Pennsylvania). Tinha também tino comercial e era generoso com os irmãos, principalmente comigo, dividindo conosco o dinheiro que ganhava trabalhando depois das aulas e no verão. Conforme nossa mãe sempre dizia, ele era o único de seus filhos que nascera para ser rico e bem-sucedido. Foi Henry quem venceu as objeções de mamãe quando eu decidi aprender a pilotar. A essa altura, ele já era contador público, ganhando bastante bem para a idade, e já estava casado.

Com o correr dos anos, paguei a Henry o dinheiro que me tinha emprestado, embora ele nunca me tivesse pedido um tostão. Mas passávamos tempos sem nos vermos. Vivíamos longe um do outro e Henry tinha as filhas e a esposa, Madge. Devido ao escândalo do nosso irmão caçula, Bert, nas poucas vezes em que tínhamos estado juntos Madge insistira impertinentemente em saber por que razão eu ainda não me havia casado.

Por tudo isso, meu irmão Henry era das poucas pessoas em minha vida que, de certa maneira, me faziam sentir culpado, sem sentimentos. Eu sabia que tinha recebido muito mais do que lhe dera e o saldo negativo me incomodava. Estava satisfeito por ter a burocracia de Harrisburg me forçado a voltar à nossa cidade natal e a pedir, mais uma vez, que meu irmão me ajudasse.

Fiquei chocado quando o vi entrar no bar. Há cinco anos que não o via, e Henry era então um homem ereto, bem constituído, denotando autoconfiança. Agora, parecia que os cinco anos tinham dado cabo dele. Parecia diminuído, curvado. Perdera muito cabelo, e o que lhe restava era cinza-amarelado. Usava grossos óculos com armação de ouro, que lhe marcavam o alto do nariz. Sempre tivera belos olhos, de coloração bem definida como o resto da família, e boa visão, de modo que os óculos não lhe ficavam bem. Mesmo na penumbra do bar, Henry lembrava um animalzinho assustado, pronto a se meter num buraco ao primeiro sinal de perigo.

– Estou aqui, Hank – disse eu, levantando-me.

Apertamo-nos as mãos sem dizer palavra. Tinha certeza de que Henry sabia que mudara muito e que eu estava procurando esconder minha reação a esse fato.

– Você está com sorte – disse Henry. – Encontrei logo. – Meteu a mão no bolso, puxou um envelope amarelado e entregou-me. Tirei de seu interior a certidão. Lá estava, a minha identidade confirmada. Douglas Traynor Grimes, cidadão nascido nos Estados Unidos, sexo masculino, filho de Margaret Traynor Grimes.

Enquanto eu examinava o pedaço de papel envelhecido, Henry tirou o sobretudo e o dobrou sobre uma cadeira. O paletó tinha os punhos e os cotovelos gastos.

– O que você vai tomar, Hank? – perguntei, num tom de voz falsamente animado.

– Um old-fashioned. – Sua voz permanecera a mesma, quente e profunda, uma bem conservada relíquia de melhores dias.

– O mesmo para mim – disse eu ao garçom, de pé junto à mesa.

– Muito bem! – disse Henry. – A volta do filho pródigo. – Se eu fechasse os olhos, a voz continuaria sendo o meu irmão.

– Não é bem isso. Eu diria que estou fazendo uma escala para reabastecer.

– Não está mais voando?

– Já lhe escrevi dizendo isso.

– Foi a única vez em que me escreveu – retrucou Henry. – Não pense que estou me queixando. – E estendeu as mãos num gesto de paz. Reparei que suas mãos tremiam. "Meu Deus", pensei, "ele só tem quarenta anos!" – O mundo está cada vez mais difícil – continuou Henry. – O tempo passa, os irmãos seguem caminhos diferentes.

Quando nos trouxeram os drinques, brindamos à nossa saúde. Henry bebeu avidamente metade do copo de um só gole.

– Depois de um dia no escritório… – disse, reparando no meu olhar. – Os dias parecem intermináveis, naquele escritório.

– Posso imaginar – falei.

– Agora, conte-me as novidades – pediu Henry.

– Conte você – retruquei. – Madge, as crianças, etc, etc.

Henry mandou vir mais dois drinques, enquanto me falava de Madge e das crianças. Madge estava bem, um pouco cansada de tomar conta da casa sem empregada, além de fazer parte do comitê de pais de alunos e de dar aulas à noite num curso de estenografia, as três filhas estavam lindas, embora a mais velha, de catorze anos, fosse algo problemática, como quase todas as meninas dessa idade, hoje em dia, e precisasse de uma ajuda psiquiátrica. Tirou fotografias da carteira, a família junto de um lago, as mulheres bronzeadas, robustas e bem-dispostas, Henry metido num calção demasiado grande, pálido e com ar preocupado, como se estivesse pressentindo um desastre. As notícias sobre nosso irmão Bert não eram surpreendentes.

– É um conhecido homossexual, locutor de rádio em San Diego – disse Henry. – Nós devíamos ter previsto isso. Você nunca se deu conta?

– Não.

– Bem, hoje em dia isso não é tão mau assim, acho eu – disse Henry com um suspiro. – Mas na nossa própria família… Papai teria morrido de desgosto. Bert tem bom coração; no Natal sempre manda presentes para as meninas, lá da Califórnia, mas eu não saberia o que fazer se ele aparecesse por aqui.

Nossa irmã Clara, a caçula, estava casada, em Chicago, e tinha dois filhos, eu sabia?

– Sabia que ela tinha se casado, mas não que tinha filhos.

– Poucas vezes a vemos – disse Henry. – As famílias parecem desintegrar-se. Daqui a alguns anos, minhas filhas seguirão o seu caminho e eu e Madge ficaremos em casa, vendo televisão. – Riu amargamente. – Belos pensamentos! Mas há uma vantagem. Os desgraçados não vão poder pegar num filho meu e matá-lo numa dessas guerras. Que país, onde a gente dá graças a Deus por não ter um filho homem! – Abanou a cabeça, como se a conversa tivesse tomado rumos indesejáveis. – Não acha que é hora de pedir outro drinque?

Eu ainda tinha o primeiro copo quase cheio, mas ele mandou vir mais dois drinques. Dali a pouco, Henry estaria bêbado. Talvez isso explicasse tudo, embora eu soubesse que nunca explicava tudo.

– Clara está muito bem – continuou Henry. – Pelo menos, é o que ela nos diz. Quando escreve. O marido é um dos diretores de uma firma de corretores da Bolsa, lá em Chicago. Tem até um iate no lago. Imagine só… uma Grimes com um iate. Bem, chega de falar de nós. E você?

– Ao jantar – repliquei. Era evidente que Henry precisava comer qualquer coisa… e depressa.

No restaurante do hotel, Henry mandou vir um grande jantar.

– Que tal uma garrafa de vinho? – perguntou, sorrindo muito, como se acabasse de ter uma idéia brilhante e original.

– Se você quiser – falei. Sabia que Henry ficaria muito pior com o vinho, mas desde criança me habituara a obedecer às suas ordens, e notei que o hábito persistia.

Henry quase não comeu, mas em compensação bebeu muito. De vez em quando ficava sóbrio, olhava fixo para mim e me falava quase com severidade, como se de repente se lembrasse da sua posição de chefe da família.

– Agora, diga-me, rapaz – falou, durante uma dessas ocasiões. – Por onde você tem andado, o que tem feito, o que o traz aqui? Imagino que precise de ajuda. Não nado em dinheiro mas acho que posso lhe…

– Não é nada disso, Hank – falei depressa. – O problema não é dinheiro.

– Isso é o que você pensa, irmão – riu Henry, amargamente. – Isso é o que você pensa.

– Escute o que lhe vou falar, Hank – disse eu, inclinando-me para a frente, falando em voz baixa, procurando atrair-lhe a atenção. – Vou-me embora.

– Embora? Para onde? – perguntou Henry. – Você tem passado toda a vida indo embora.

– Desta vez é diferente. Talvez vá embora por muito tempo. Talvez vá primeiro à Europa.

– Arrumou emprego na Europa?

– Não é bem isso.

– Não tem emprego?

– Por favor, Hank, não faça perguntas – disse eu. – Vou-me embora, mais nada. Não sei quando poderei voltar a vê-lo. Talvez nunca. Quis voltar às raízes antes de ir embora. E quero agradecer-lhe por tudo o que fez por mim. Quero que você saiba que lhe estou muito grato. Antes, eu era um garoto e achava que a gratidão era coisa de mulheres ou degradante, pouco britânica, sei lá que outra idiotice do gênero.

– Ora, Doug! – disse Henry. – Esqueça isso, está bem?

– Não, nunca vou esquecer. Outra coisa. Papai morreu quando eu tinha treze anos e…

– Ele deixou um bom seguro – completou Henry. – Sim, senhor, um bom seguro. A gente nunca poderia esperar… um homem que trabalhava como capataz numa loja de máquinas. Um homem que trabalhava com as mãos. Sempre pensou na família. Que seria de nós, hoje, se ele não tivesse deixado aquele seguro…?

– Não estou falando nisso.

– Pois deve falar. É bom falar com um contador, quando o assunto é morte e seguro de vida.

– Você tem alguma lembrança dele? Era disso que eu queria falar. Eu era um garotinho, pouco me lembro dele; papai era uma pessoa que vinha almoçar e jantar, pouco mais do que isso. Ainda sonho com ele, mas não consigo lembrar-me do seu rosto. Você, porém, já tinha vinte anos…

– O rosto dele… – repetiu Henry. – O rosto dele era o de um homem rude e honesto, que nunca duvidou de si mesmo. O rosto de um outro século. O dever e a honra estavam inscritos nele. – Henry estava caçoando de si mesmo, caçoando da memória do nosso pai. – E ele me deu um mau conselho – disse Henry, de repente quase sóbrio. – Também de um outro século. Disse-me: "Case cedo, meu filho". Você sabe como ele estava sempre lendo a Bíblia e nos fazendo ir à igreja. "É preferível casar a arder", dizia ele. Casei-me cedo, mas não concordo com papai: seguro ou não, arder é melhor.

– Pelo amor de Deus, quer parar de falar no seguro?

– Como quiser. Você é quem vai pagar a conta… ou não vai?

– Claro que vou.

– Esqueça-se de papai. Ele morreu. Esqueça-se de mamãe. Ela morreu também. Mataram-se trabalhando e passaram muitas noites sem dormir para criar os filhos: um deles é um notório homossexual, locutor de rádio em San Diego, o outro é um contador bêbado que vive em Scranton e se mata de trabalhar para criar as filhas, que por sua vez vão se matar de trabalhar para criar os seus filhos. Papai tinha a religião. Clara tem um iate. Bert tem os seus amiguinhos. Eu tenho a minha garrafa. – Sorriu perversamente. – E você, o que tem, mano?

– Ainda não sei bem – respondi.

– Ainda não sabe bem? – repetiu Henry, inclinando a cabeça pálida para o lado e fazendo uma careta. – Quantos anos você tem… trinta e dois, trinta e três? E ainda não sabe? Você é que é feliz! Ainda tem o futuro pela frente. Pois eu tenho mais uma coisa, além da garrafa. Tenho um par de olhos que não prestam para nada e estão cada vez piores.

– O quê?

– Isso mesmo. Já ouviu falar de um contador cego? Dentro de cinco anos, estarei no meio da rua, chutado.

– Meu Deus! – exclamei, chocado com a coincidência. – Foi por isso que eu parei de voar. Minha visão começou a falhar!

– Ah! – disse Henry. – Pensei que você tinha batido com um avião numa montanha ou dormido com a mulher do patrão.

– Não. Foi… só um pequeno defeito da retina. Pouca coisa – disse eu, com amargura. – Mas o bastante.

– Nós nunca vimos claro, acho eu – falou Henry, rindo bobamente. – A grande falha dos Grimes. – Tirou os óculos e limpou os olhos, que estavam chorando. As marcas da armação pareciam pequenas feridas profundas em seu nariz. Sem os óculos, seus olhos quase não tinham vida. – Mas você disse que ia viajar, que ia à Europa. Que foi que você arrumou… uma mulher rica?

– Não.

– Siga o meu conselho: procure uma. – Henry voltou a pôr os óculos, que se encaixaram automaticamente nos vincos de cada lado de seu nariz. – Não acredite em romance. Essa foi outra coisa que aprendi. Tenho uma mulher que me despreza.

– Ora, por favor, Hank! – Na foto, Madge não me parecera uma mulher que desprezasse ninguém e, nas poucas vezes em que eu tinha estado com ela, me parecera sempre bem-humorada, de bom gênio, preocupada com o bem-estar do marido.

– Não me venha com isso – falou Henry. – Você não sabe de nada. Eu é que sei. Ela me despreza. E sabe por quê? Porque, pelos seus elevados padrões americanos, eu sou um fracasso. Ela não pode comprar vestidos novos quando as amigas compram. Não posso pagar um psiquiatra para a garota mais velha e botá-la num colégio particular, e Madge tem medo de que os negros do colégio estadual a violem no intervalo das aulas. Há dez anos que nossa casa não é pintada. Estamos atrasados nas prestações do aparelho de televisão. Nosso carro tem seis anos. Eu ainda não sou sócio da firma, fico só mexendo no dinheiro dos outros. Sabe qual é a pior coisa deste mundo? O dinheiro dos outros. Eu…

– Chega, Hank! – Não podia suportar a onda de auto-desprezo, embora não houvesse ninguém perto para ouvir.

– Deixe-me continuar, mano – disse Henry. – Meus dentes estão cariados e meu hálito fede, diz ela, porque não tenho dinheiro para ir ao dentista. E isso porque as três meninas vão toda semana ao dentista ajustar seus aparelhos, para parecerem artistas de cinema quando crescerem. E ela me despreza porque há cinco anos que não trepamos.

– Por que não?

– Porque eu sou impotente – disse Henry, com um sorriso de louco. – Tenho todas as razões para ser impotente e sou. Lembra-se de um sábado à tarde, quando você chegou a casa e me encontrou na cama com aquela garota… como era mesmo o nome dela?

– Cynthia.

– Isso mesmo… Cynthia. A dos seios grandes. Ela soltou um grito quando viu você. E me esbofeteou porque eu ri. O que é que você pensou do seu irmão?

– Não pensei nada. Não sabia o que vocês estavam fazendo.

– Mas agora sabe, não é?

– Claro.

– Naquele tempo eu não era impotente, era?

– Como diabo eu posso saber?

– Acredite no seu irmão. Feliz por ter voltado a Scranton, Doug?

– Preste atenção, Hank. – Agarrei-lhe ambas as mãos e apertei-as com força. – Você está suficientemente sóbrio para entender o que vou dizer?

– Mais ou menos, garoto, mais ou menos. – Henry riu, mas logo depois franziu a testa. – Devolva-me as mãos.

Soltei-lhe as mãos. Tirei a carteira e contei dez notas.

– Aqui estão mil dólares, Hank – falei, inclinando-me e enfiando-os no bolso de sua camisa. – Não vá esquecer-se de onde eu as pus.

Henry soprou ruidosamente. Levou a mão ao bolso, tirou para fora as notas e alisou-as sobre a mesa.

– Dinheiro alheio – falou, parecendo curado da bebedeira.

– E há mais, muito mais – disse eu, assentindo. – Amanhã, vou-me embora. Para fora do país. Não lhe vou dizer para onde, mas de tempos em tempos você vai ter notícias minhas e, se precisar de mais dinheiro, pode contar com ele… entende?

Henry dobrou lentamente as notas e colocou-as na carteira. Depois, começou a chorar, as lágrimas rolando-lhe em silêncio pelas faces pálidas, por baixo dos óculos.

– Pelo amor de Deus, Hank, não chore! – supliquei.

– Você está em apuros – disse Henry.

– Talvez – retruquei. – Seja como for, preciso ir embora. Se alguém vier procurá-lo e lhe perguntar para onde fui, você diz que não sabe, entende?

– Entendo – disse Henry. – Mas deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Doug. – De repente, toda a bebedeira lhe tinha passado. – Vale a pena, isso que você está fazendo?

– Ainda não sei. Digo-lhe quando descobrir. Acho que podemos dispensar o café, você não acha?

– Claro. Posso tomar café no meu lar, doce lar, feito pela minha doce esposa.

Levantamo-nos e eu ajudei Henry a vestir o sobretudo. Paguei a conta e saímos juntos. Henry caminhando em linha reta, curvado, envelhecido. Quando eu já estava abrindo a porta, ele estacou.

– Antes de papai morrer, sabe o que ele me disse? Disse-me que, dentre todos os filhos, gostava mais de você. Disse que você era o mais puro de nós todos. – Sua voz era petulante, quase infantil. – Ora, por que haveria um homem, no seu leito de morte, de dizer ao filho mais velho uma coisa dessas? – Recomeçou a andar e eu abri a porta para nós, pensando: "Sou um abridor de portas".

Lá fora fazia frio, com o vento da noite soprando forte. Henry estremeceu, levantando a gola do sobretudo.

– Maravilhosa Scranton, onde vivo e morro! – exclamou.

Beijei-o no rosto, abracei-o, senti a umidade de suas lágrimas. Depois, coloquei-o num táxi. Mas, antes que o motorista arrancasse, Henry bateu-lhe no ombro e baixou o vidro da porta Jo meu lado.

– Ei, Doug – disse ele. – Agora me dou conta! Notei algo de estranho em você durante o jantar, mas não sabia o que era. Você já não gagueja!

– Não – concordei.

– Como foi isso?

– Fui a um especialista da fala – respondi. Era uma explicação tão boa quanto qualquer outra.

– Que maravilha! Você deve sentir-se muito feliz.

– É – falei. – Sinto-me realmente feliz. Boa noite, Hank.

Ele tornou a levantar o vidro, e o táxi partiu, levando dentro o irmão que, segundo minha mãe, era o único que tinha nascido para ser rico e bem-sucedido.

Respirei profundamente o ar gélido da noite e estremeci, recordando as cálidas camas de Washington. Depois, entrei, tomei o elevador para o meu quarto e fiquei horas vendo televisão, comerciais anunciando objetos que eu jamais compraria.

Nessa noite, dormi mal, perseguido por visões fugidias de mulheres e funerais.

O telefone, tocando na mesinha-de-cabeceira, acabou com meus pesadelos. Olhei para o relógio. Eram apenas sete e meia da manhã.

– Doug… – Quem estava falando era Henry. Não poderia ser outra pessoa. Ninguém mais sabia onde eu estava. – Doug… preciso falar com você.

Suspirei. Sentia que tínhamos esgotado todos os assuntos na noite anterior, que podíamos passar outros cinco anos sem nos vermos.

– Onde é que você está? – perguntei.

– Aqui embaixo, no hall. Você já tomou o café da manhã?

– Não.

– Vou esperar por você no restaurante. – E desligou antes que eu pudesse responder.

Ele estava tomando uma xícara de café preto, sozinho no restaurante iluminado a neon. Lá fora ainda estava escuro. Henry sempre fora madrugador. Era outra das virtudes que meus pais sempre elogiavam.

– Desculpe se o acordei – disse ele, mal me sentei. – Precisava falar-lhe antes que você fosse embora.

– Não faz mal – falei, lembrando-me vagamente dos pesadelos que tinha tido. – Não dormi muito bem.

A garçonete aproximou-se e eu pedi que me trouxesse o desjejum. Henry pediu apenas uma segunda xícara de café.

– Escute, Doug – disse ele, assim que a garçonete se afastou. – Ontem à noite, você disse algo quando… quando me deu todo aquele dinheiro. Não vá pensar que não estou grato…

– Esqueça. – Fiz um gesto impaciente com a mão. – Não vamos falar nisso.

– Você disse… e eu não posso esquecer… você disse que, se eu precisasse, havia mais dinheiro.

– Isso mesmo.

– Você falou a sério?

– Claro que falei.

– Mesmo que fossem vinte e cinco mil dólares?. – perguntou ele, corando, como se o fato de fazer essa pergunta tivesse exigido um esforço enorme.

Hesitei apenas um momento.

– Se é disso que você precisa…

– Não quer que eu lhe diga o que vou fazer com o dinheiro?

– Só se você quiser dizer-me – respondi. Arrependia-me de não ter ido embora na noite anterior.

– Quero dizer-lhe. Não é só para mim, é para nós dois… – começou, mas logo parou, vendo a garçonete se aproximar com o meu suco e o café com torradas. Quando ela terminou de servir e se afastou, ele bebeu o café fervente de um só trago. Reparei que estava suando.

– O negócio é o seguinte – disse ele. – Estou encarregado, lá no escritório, de fazer a contabilidade de uma firma nova, formada por dois caras jovens, muito inteligentes. A firma tem futuro, pode crescer muito. Eles têm uma patente para registrar, um novo sistema de miniaturização para todos os tipos de sistemas eletrônicos. Só precisam é de uns vinte e cinco mil dólares. Já estiveram nos bancos, mas não conseguiram nada. Estou por dentro da situação porque lido com os livros deles. Já falei inclusive com eles. Por vinte e cinco mil dólares, eu podia ficar com um terço das ações e continuar como tesoureiro da firma, para proteger os nossos interesses. Tão logo eles começassem a produzir, entrariam para o quadro da Amex…

– Que é isso? – perguntei.

– American Exchange – disse ele, olhando para mim com espanto. – Onde diabo você tem andado todos esses anos?

– Por aí – falei.

– As ações subiriam vertiginosamente. Eu ficaria com um terço dos trinta e três por cento e você ficaria com dois terços. Acha bom? – perguntou, ansioso.

– Acho. – Eu já tinha dito adeus aos vinte e cinco mil, embora na verdade nada daquilo fosse real para mim. Apenas pilhas de papel num cofre.

– Você é uma alma nobre, Doug! – A voz de Henry tremia de emoção.

– Ora, Hank, deixe disso! – falei. Não me sentia nada nobre. – Será que você pode estar em Nova York na quarta-feira?

– Claro!

– Vou ter o dinheiro para lhe dar… não em cheque, em dinheiro mesmo. Terça-feira ligo para o seu escritório e lhe digo onde me encontrar.

– Em dinheiro? – Henry parecia intrigado. – E por que não em cheque? Detesto andar com tanto dinheiro.

– Você vai ter que carregá-lo – retruquei. – Não gosto de cheques. – Li as reações em seu rosto. Ele desejava aquele dinheiro… desejava-o terrivelmente, mas era um homem honesto e não era bobo: não tinha dúvidas de que aquele dinheiro não era honesto.

– Doug – disse ele -, não quero que você se meta em apuros por minha causa. Se, por minha causa… – Estava fazendo um esforço e eu bem via o que lhe custava. – Bem, eu prefiro passar sem o dinheiro.

– Deixe os meus problemas por minha conta – atalhei. – Você resolve os seus. Não se esqueça de estar no escritório terça-feira de manhã, esperando meu telefonema.

Henry suspirou, um suspiro de velho resignado, para quem a honestidade é coisa muito difícil de manter.

– Mano! – foi tudo o que ele disse.

Foi com alívio que saí de Scranton e peguei de novo a estrada gelada para Washington. Ao volante, pensei no jogo de pôquer marcado para aquela noite e apalpei o dólar de prata em meu bolso.

Fui detido por excesso de velocidade em Maryland, onde o gelo já derretera, e subornei o guarda com uma nota de cinqüenta dólares. O Sr. Ferris, fosse esse ou não o seu nome verdadeiro, estava espalhando o seu dinheiro por toda a economia norte-americana.