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CAPÍTULO VII

A tarde caía, quando cheguei a Washington. Os monumentos aos presidentes, generais, juízes, etc, todo o ambíguo panteão dórico-americano, estavam envoltos numa suave neblina crepuscular. Scranton parecia estar noutra zona climática, noutro país, numa civilização distante. As ruas estavam quase vazias, e as poucas pessoas que por elas passavam caminhavam lenta e calmamente. Jeremy Hale disse que Washington era melhor nos fins de semana, quando as máquinas do governo paravam. Na capital, de sexta-feira à tarde até segunda de manhã, era possível acreditar no valor e no decoro da democracia. Imaginei o que a mulher loura, cujo táxi eu tinha compartilhado, estaria fazendo naquele fim de semana.

Não havia nenhum recado para mim na portaria do hotel, e assim que entrei no meu quarto liguei para a casa de Hale. Uma criança atendeu, com voz pura e cristalina, e por um momento senti uma inveja inesperada por não ter um filho que atendesse para mim e me dissesse, com amor não complicado: "Papai, é para você".

– Como é? O jogo continua de pé? – perguntei a Hale.

– Que bom que você voltou – disse Hale. – Passo por aí às oito.

Eram só cinco horas e veio-me à cabeça ligar para o apartamento de Evelyn Coates e ver qual das duas estava em casa. Mas o que é que eu diria? "Escute, tenho duas horas livres." Eu não era esse tipo de homem, nunca seria. Pior para mim.

Fiz a barba e tomei um bom banho quente. Deitado na banheira, fiz uma lista de minhas bênçãos, que não eram pequenas.

– Um ninho de magafagafos, com cinco magafagafinhos – disse, em voz alta. Havia cinco dias e cinco noites que não gaguejava. De certa maneira, era como largar as muletas e sair andando, em Lourdes. Havia também o dinheiro no cofre, em Nova York. De vez em quando, eu pensava nele, nas pilhas de notas dentro da caixa-forte, carregadas de promessas infinitas. Os vinte e cinco mil dólares que eu ia dar a meu irmão eram um pequeno preço a pagar por me libertar do sentimento de culpa que sempre sentira em relação a Hank e que durante tantos anos jazera no meu subconsciente. E Evelyn Coates… "Velhinho", pensei, lembrando-me do corpo flácido caído no corredor, "você não morreu em vão."

Saí do banho sentindo-me bem-disposto e descansado, vesti roupa limpa, desci e jantei sozinho, sem pedir nenhuma bebida alcoólica. Álcool nunca antes de um jogo de pôquer.

Tive o cuidado de pôr o dólar de prata no bolso, quando Hale veio apanhar-me. Nunca conheci um jogador, morto ou vivo, que não fosse supersticioso.

Com ou sem dólar de prata, Hale quase nos matou a caminho do hotel em Georgetown, onde todas as semanas tinha lugar o jogo dos sábados à noite. Avançou um sinal fechado sem olhar e ouviu-se uma freada brusca de um Pontiac, ao mesmo tempo que alguém gritava, incompreensivelmente:

– Malditos negros!

Nos tempos da faculdade, Hale guiava cuidadosamente.

– Desculpe – disse ele. – Sábado à noite, as pessoas guiam como loucas. – "Se o jogo tivesse esse efeito sobre mim", pensei, "não jogaria." Mas não disse nada.

Havia uma grande mesa redonda coberta por um pano verde numa das pequenas salas de jantar particulares do hotel, e no canto um carrinho cheio de garrafas, copos e gelo, tudo sob uma luz forte. Tudo muito profissional. A noitada prometia. Já havia três homens na sala e uma mulher, de pé e de costas para a porta, preparando um drinque. Hale apresentou-me primeiro aos homens. Mais tarde, descobri que um deles era um conhecido colunista, outro, um deputado pelo Estado de Nova York, parecido com Warren Gamaliel Harding, cabelos brancos e um ar benévolo, falsamente presidencial. O terceiro jogador era um jovem advogado chamado Benson, que trabalhava no Departamento de Defesa. Era a primeira vez que me apresentavam a um colunista ou a um deputado. Eu estaria subindo ou descendo na escala social?

Quando a mulher se virou para nos cumprimentar, vi que era Evelyn Coates. O fato não me surpreendeu.

– Já conheço o Sr. Grimes – disse ela sem sorrir, quando Hale começou a nos apresentar. – Acho que nos conhecemos no coquetel em sua casa, Jerry.

– Isso mesmo! – disse Hale. – Acho que estou ficando louco. – E, realmente, parecia esquisito. Reparei que não parava de esfregar o queixo com a palma da mão, como se tivesse uma coceira qualquer. Apostei comigo mesmo como ele perderia, essa noite.

Evelyn Coates vestia uma calça azul-escura, não muito justa, e um suéter bege, solto. Roupas de trabalho, pensei. Provavelmente, quando adolescente, tinha jogado futebol com os garotos do bairro. Fiquei pensando se a sua colega de apartamento lhe teria falado a meu respeito.

Ela era a única, na sala, com um drinque na mão quando nos sentamos à mesa e começamos a contar as fichas. Com mãos compridas e ágeis, de dedos pálidos e unhas pintadas de claro, começou a empilhar as fichas.

– Evelyn – disse Benson, quando o deputado começou a jogar as cartas para o primeiro ás -, esta noite você precisa ser misericordiosa.

– Sem medo ou favor – replicou ela.

Reparei que o advogado parecia gozar de um relacionamento especial com ela. Procurei tirar aquilo da cabeça. Não gostava da voz dele, redonda e satisfeita. Mas que tinha eu com isso? Estava ali para jogar pôquer.

Todo mundo levava o jogo muito a sério e quase ninguém conversava, exceto as costumeiras lamentações entre as rodadas. Hale tinha me dito que o jogo ia ser moderado. Ninguém jamais perdia acima de mil dólares, acrescentara. Se ele não estivesse casado com uma mulher rica, duvido que achasse isso moderado.

Evelyn Coates era uma parceira perigosa e imprevisível. Ganhou a segunda maior bolada da noite com um par de oitos. Se os tempos fossem outros, dir-se-ia que ela jogava como um homem. Sua expressão era a mesma, ganhasse ou perdesse: fria e calma. Ao vê-la em frente a mim, era-me difícil recordar que eu tinha dormido com ela.

Ganhei a maior bolada da noite num low straight. Nunca tivera tanto dinheiro para me garantir num jogo, mas, fora disso, joguei como sempre jogara. Minha recente fortuna não se refletia em minhas apostas.

O colunista e o deputado eram os eternos inocentes de que Hale falara. Jogavam com esperança e otimismo, mais nada. Inevitavelmente, isso me fez duvidar da sua visão em outros campos. Sabia que, dali por diante, leria o colunista com grandes reservas, e esperava que o deputado não tomasse parte em importantes decisões legislativas.

O jogo era amistoso e os perdedores não perderam o bom humor, apesar da má sorte. Quanto a mim, era um prazer voltar a jogar pôquer, após um hiato de três anos. Teria gostado ainda mais se Evelyn Coates não estivesse presente. Esperava um piscar de olhos, um sorriso conspirador… que nada! Não pude deixar de me sentir menosprezado. Não permiti que isso afetasse meu jogo, mas fiquei muito satisfeito quando ganhei dela.

Ela e eu éramos os únicos ganhadores às duas da manhã, quando demos o jogo por encerrado. Enquanto o deputado, na qualidade de banqueiro, fazia as contas, eu tocava no dólar de prata em meu bolso.

Um garçom trouxera alguns sanduíches e atiramo-nos a eles enquanto o deputado fazia as contas. Fiquei pensando em como aquilo tudo era agradável, um jogo todos os sábados, na mesma sala, com os mesmos amigos, todo mundo se conhecendo. Com quem estaria eu na semana seguinte, para quem ousaria telefonar, com quem estaria jogando? Por um momento, tive a tentação de dizer que contassem comigo no próximo jogo, para lhes dar uma chance de ganhar o seu dinheiro de volta. De enraizar-me num jogo de cartas, no seio do governo. Tinha tanta pressa assim de fugir? Se Evelyn Coates me tivesse socorrido, acho que teria proposto isso. Mas ela nem sequer olhou em minha direção.

Para lhe dar a oportunidade de falar comigo sem que os outros ouvissem, dirigi-me a uma janela na extremidade da sala e abri-a, fingindo sentir calor e estar incomodado com a fumaça dos cigarros, mas nem assim ela fez um gesto em minha direção, como se não tivesse reparado em mim.

"Bruxa", pensei, "não lhe darei o prazer de lhe telefonar quando voltar ao meu hotel." Imaginei-a no seu apartamento com o jovem advogado e o telefone tocando e ela dizendo: "Ora, deixe tocar!", sabendo que era eu e sorrindo secretamente para si mesma. Eu não estava acostumado a mulheres duras. A nenhuma espécie de mulher, para ser sincero. "Uma coisa que vou fazer", decidi, enquanto fechava a janela, "é aprender a lidar com as mulheres."

O colunista e o advogado iniciaram uma longa discussão sobre o que estava acontecendo em Washington. O colunista acusava o presidente de procurar destruir a imprensa americana, aumentando as tarifas postais para levar jornais e revistas à falência, metendo repórteres na prisão por não revelarem suas fontes, ameaçando tirar os canais das estações de televisão que mostravam coisas desagradáveis para o governo, tudo repetição do que eu já lera nas suas colunas. Mesmo eu, que quase não lia jornais, exceto o Jornal do Jóquei, especializado em corridas de cavalos, ficava exposto a todas as opiniões possíveis. Não entendia como as demais pessoas naquela sala, confrontadas por todos os lados com argumentos, conseguiam votar sim ou não sobre qualquer assunto. O deputado, ocupado com as contas, a testa suada pelo esforço, nem sequer levantava a cabeça. Mostrara-se um homem amável durante o jogo e eu imaginei que votaria segundo lhe mandassem, sua atenção sempre atenta às instruções do partido e às próximas eleições. Nada dissera que indicasse se era republicano, democrata ou partidário de Mao.

Quando Evelyn Coates trouxe à baila o escândalo Watergate e disse que ele ainda traria graves problemas para o presidente, o colunista retrucou:

– Bobagem. Ele é demasiado esperto para isso. Tudo vai ser abafado. Guardem minhas palavras. Daqui a alguns meses, todo mundo vai dizer: "Watergate? Que vem a ser isso?" Podem ter certeza – acrescentou o colunista, num tom de voz e numa maneira de falar de quem está acostumado a que lhe dêem sempre atenção – de que estamos assistindo aos primeiros passos na direção do fascismo.

Enquanto falava, ia mastigando um sanduíche de carne assada, acompanhado de uma dose de uísque.

– Os milicos estão preparando o terreno. Não ficarei surpreso se eles forem chamados a dirigir o país. Qualquer manhã, quando a gente acordar, os tanques estarão avançando pela Pennsylvania Avenue e as metralhadoras dominarão todos os telhados. – Isso eu não lera em sua coluna. Era preciso estar em Washington para se saber das coisas em primeira mão e sem rebuços.

O advogado não parecia absolutamente preocupado. Tinha a imperturbabilidade bem-humorada típica do representante de grandes empresas.

– Talvez não fosse má idéia – declarou. – A imprensa é irresponsável. Perdeu a guerra na Ásia para nós. Põe o povo contra o presidente, contra o vice-presidente, faz com que se desprezem as autoridades, torna cada vez mais impossível governar o país. Talvez colocar os milicos, como você os chama, no poder durante alguns anos seja a melhor coisa para o país desde Alf Landon.

– Oh, Jack – interveio a Sra. Coates. – Você parece a voz do Pentágono!

– Se você visse o que passa pela minha mesa dia após dia – retrucou o advogado -, não diria isso.

– Sr. Grimes… – Ela voltou-se para mim, um sorrisinho frio nos lábios. – O senhor não está metido na sujeira aqui de Washington. Representa, esta noite, o puro e imaculado povo americano. Ouçamos o ponto de vista simples das massas…

– Evelyn – admoestou Hale. Esperava ouvi-lo dizer: "Lembre-se de que ele é nosso hóspede". Mas não, ele apenas disse: "Evelyn".

Olhei para a mulher, aborrecido por ela me provocar, sentindo que me estava testando por algum motivo secreto e não tão inocente.

– O puro e imaculado representante do povo americano -: respondi – acha que tudo isso é bobagem. – Lembrei-me do que ela me dissera, nua, um copo de uísque na mão, sentada na beira da grande cama, no quarto às escuras, sobre o fato de todo mundo em Washington ser ator. – Vocês não falam a sério – continuei. – Para vocês, é tudo uma brincadeira. Mas para mim, o puro, imaculado etc, não é; significa vida, morte, impostos e outras coisinhas mais, ao passo que para vocês é apenas um jogo. Vocês dependem uns dos outros para terem opiniões diferentes, da mesma maneira que os times de beisebol dependem dos outros para terem uniformes de cores diferentes. De outra forma, ninguém saberia quem estava ganhando. No fim, porém, vocês são todos parceiros do mesmo jogo. – Eu estava espantado comigo mesmo. Nem sequer sabia que pensava assim. – Se forem vendidos para outro clube, é só mudar de uniforme.

– Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, Grimes – falou o advogado, afavelmente. – Você votou, nas últimas eleições?

– Votei – respondi. – E fui enganado. Os jornais publicaram as notícias esportivas nas páginas dos editoriais. Não pretendo votar de novo. Acho que é uma ocupação indigna de um homem adulto. – Não lhes disse onde esperava estar quando das próximas eleições, que não teria chance de poder votar.

– Desculpem-me, amigos – disse Evelyn Coates. – Não sabia que tinha introduzido no nosso meio um filósofo político.

– Não sou absolutamente contra o que ele disse – afirmou o advogado. – Não sei o que há de errado em ser leal ao nosso time. Desde que o time esteja ganhando, naturalmente. – Riu, comedidamente, da própria piada.

O deputado levantou a cabeça das contas. Se tinha ouvido uma só palavra da discussão, ou qualquer discussão nos últimos dez anos, não o demonstrava.

– Ok – disse ele. – Evelyn, você ganhou trezentos e cinqüenta e cinco dólares e cinqüenta centavos. Sr. Grimes, ganhou mil duzentos e sete dólares. Os demais, queiram apanhar os seus talões de cheques.

Enquanto os perdedores faziam as contas de quanto deviam, houve as habituais piadas, dirigidas a Hale, pelo fato de ter trazido um bamba, eu, para jogar. Evelyn Coates não soltou nenhuma piada. Pelo modo de os outros falarem, ninguém desconfiaria de que uma discussão acabava de ter lugar.

Procurei fingir desinteresse, enquanto guardava os cheques na carteira. Felizmente, eram todos contra o banco em que Hale tinha conta, em Washington. Ele os endossou para mim, para que eu não tivesse dificuldade em sacá-los.

Saímos todos juntos e todos se despediram ruidosamente. O deputado e o colunista entraram juntos num táxi. O advogado pegou no braço de Evelyn, dizendo:

– Você fica no meu caminho, Evelyn.Vou deixá-la em casa.

Hale estava tirando um maço de cigarros de uma máquina e eu fiquei um momento sozinho, vendo o advogado caminhar com Evelyn Coates na direção do estacionamento. Ouvi-a rir baixo de algo que ele dissera, enquanto desapareciam na escuridão.

Hale dirigiu por algum tempo em silêncio.

– Quanto tempo você está pensando em ficar na cidade? – perguntou, quando paramos num sinal.

– Só até conseguir o passaporte. Segunda, terça-feira…

– E depois?

– Depois, vou olhar o mapa e viajar para algum lugar da Europa.

Assim que o sinal mudou, ele arrancou..

– Puxa, como eu gostaria de ir com você! Para qualquer lugar. – A intensidade do seu tom de voz era impressionante.

Parecia um prisioneiro falando com um homem que ia ser libertado na manhã seguinte. – Esta cidade – disse ele – é uma perfeita cloaca. – Dobrou abruptamente uma esquina, pneus guinchando. – Esse canalha do Benson, com sua fala mansa… Ainda bem que você não trabalha para o governo…

– De que é que você está falando? – perguntei, sinceramente intrigado.

– Se trabalhasse, segunda-feira à noite, alguém no seu departamento… acima de você, claro… ouviria umas coisinhas a seu respeito.

– Por causa daquilo que eu disse sobre votar e mudar de uniforme? – Procurei não me mostrar incrédulo, como se realmente eu o estivesse levando a sério. – Na verdade, eu estava brincando… ou quase.

– Nesta cidade, a gente não brinca, amigo – disse Hale, sombriamente. – Pelo menos diante de caras como ele. Há seis meses que estamos tentando livrar-nos dele, mas ninguém tem coragem para isso. Nem eu. Você talvez estivesse brincando, mas ele não estava.

– A certa altura – disse eu – estive tentado a dizer que ficaria aqui até o próximo sábado.

– Ainda bem que não disse. Vá-se embora o mais depressa possível. Oxalá eu também pudesse ir.

– Não sei como as coisas funcionam no seu departamento – falei -, mas você não pode pedir para ser transferido para outro lugar?

– Posso pedir – respondeu Hale. – Mas só isso. – Acendeu um cigarro. – Sou tido como um funcionário que não merece confiança, e querem ficar de olho em mim vinte e quatro horas por dia…

– Você? Não merece confiança? – Era a última coisa que qualquer pessoa pensaria a respeito dele.

– Estive dois anos na Tailândia. Escrevi-lhe uma carta, lembra-se?

– Não a recebi. Também não tenho estado parado…

– Escrevi dois relatórios que não foram despachados pelos canais competentes. – Riu com amargura. – Canais! Esgotos, isso sim! Bem, eles me chamaram… e me deram um gabinete com uma linda secretária e um aumento e alguns memorandos para assinar que podiam ser usados para empapelar as paredes. A única razão por que estão sendo tão amáveis comigo é por causa do diabo do meu sogro. Mas o recado foi muito claro: "Fique bonzinho ou…" – Riu de novo, um, riso rouco, nervoso. – Quando penso que comemorei, ao saber que tinha passado nos exames para o corpo diplomático! E foi tudo tão sem sentido… esses relatórios que eu escrevi… Achei que merecia parabéns… o intrépido descobridor das verdades, o bravo proclamador das verdades! Meu Deus, não havia nada naquelas folhas que desde então não tenha sido divulgado por todos os jornais do país. – Sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro do painel. – Vivemos na era dos Benson, dos furtivos instiladores de veneno, que desde o berço sabem que a subida é pelos esgotos. Vou dizer-lhe algo muito estranho… um fenômeno fisiológico, que deveria ser relatado num jornal médico… há dias em que sinto gosto de merda na boca. Escovo os dentes, gargarejo, peço à minha secretária para pôr um jarro com narcisos na minha mesa, mas não adianta…

– Meu Deus! – exclamei. – Pensei que você estava indo muito bem.

– Eu represento bem – disse Hale, desanimado. – Tenho de representar. Sou um bom mentiroso. É um governo de mentirosos, de modo que adquirimos muita prática. Sou um feliz funcionário público, um marido, um genro e um par feliz… Puxa, mas por que estou lhe contando tudo isto? Imagino que você também tenha problemas de sobra.

– Não no momento – falei. – Se a coisa é assim tão má, por que você não pede demissão? Faça outra coisa!

– Fazer o quê? – retrucou ele. – Vender gravatas?

– Algo apareceria. – Não lhe disse que talvez houvesse um lugar como recepcionista noturno em Nova York. – Peça uns meses de licença, procure e…

– Com que dinheiro? – Riu ele. – Não tenho um tostão. Você viu como eu vivo. Meu ordenado cobre apenas a metade. Meu venerando sogro entra com o resto. Quase teve um ataque quando me mandaram voltar da Ásia. Poria fogo à casa, comigo dentro, se eu lhe dissesse que ia pedir demissão. Dois meses depois, minha mulher e as crianças estariam morando com ele… Ora, esqueça, esqueça, não sei por que, de repente, fui falar em tudo isso. Foi aquele canalha do Benson. Vejo-o multiplicado por mil cada vez que vou trabalhar, de manhã. Que diabo… não preciso continuar a jogar pôquer aos sábados. Pelo menos, com um Benson não precisarei mais falar. – Riu baixinho. – Se eu tivesse ganho esta noite, talvez agora estivesse lhe dizendo que boa vida a gente leva aqui em Washington.

Ele guiava cada vez mais devagar, como se não quisesse ficar sozinho ou ter de ir para casa e enfrentar os fatos concretos de que tinha mulher, filhos, carreira e sogro. Eu também não estava com pressa de voltar ao meu quarto de hotel. Não queria olhar para o telefone na mesa-de-cabeceira e lutar contra a tentação de pedir para a telefonista ligar para o número de Evelyn Coates.

– Será que você me faz um favor, Doug? – disse ele, quando já estávamos próximos do hotel.

– Claro – respondi, mas logo me arrependi. Depois da conversa no carro, não tinha a menor vontade de me imiscuir, mais do que fosse absolutamente necessário, na vida e nos problemas do meu ex-colega Jeremy Hale.

– Venha jantar conosco amanhã à noite – disse ele – e dê um jeito de dizer que está pensando em esquiar em Vermont nas duas primeiras semanas do mês que vem e gostaria que eu fosse com você.

– Acho que já não vou estar no país – retruquei.

– Não faz diferença – disse ele, calmamente. – Só lhe peço para dizer isso, de modo a que minha mulher possa ouvir. Vou ter duas semanas livres e quero aproveitar para sair.

– Vai me dizer que precisa arranjar pretextos para sair…?

– Não é bem isso – disse ele, suspirando. – É bem mais complicado. Há uma moça no meio…

– Oh!

– Pois é – disse ele, rindo forçadamente. – Também não parece coisa minha, não? – perguntou em tom desafiante, como se me estivesse acusando de algo.

– Para dizer a verdade, não – concordei.

– E não, mesmo. É a primeira vez, desde que me casei… Nunca pensei que isto aconteceria. Mas aconteceu e está me pondo maluco. Só nos encontramos algumas vezes… alguns minutos, uma hora, aqui e ali, sempre nos escondendo. Está dando cabo dos dois. Numa cidade como esta, com gente sempre espionando os outros. Precisamos de algum tempo para estar juntos. Deus sabe o que minha mulher faria se alguém lhe contasse! Eu não queria que isso acontecesse, juro por Deus, mas aconteceu. Sinto como se minha cabeça fosse explodir. Não posso falar com ninguém nesta cidade. É como se eu estivesse vivendo com uma pedra em cima do peito, dia após dia. Nunca pensei que seria capaz de me sentir assim por causa de uma mulher… Acho que não há mal em lhe dizer quem é…

Esperei, com o terrível pressentimento de que ele fosse dizer o nome de Evelyn Coates.

– É aquela moça que trabalha no meu escritório – murmurou ele. – Srta. Schwartz. Melanie Schwartz. Meu Deus, que nome!

– Apesar do nome – falei -, posso entender. Ela é linda.

– É bem mais do que isso – afirmou ele. – Vou dizer-lhe uma coisa, Doug… se as coisas continuarem assim como estão, não sei o que vou acabar fazendo. Temos de sair juntos desta cidade… por uma semana, uma quinzena, uma noite… mas temos… Não quero o divórcio. Estou casado há dez anos, não quero… Ora, não sei por que cargas-d'água estou lhe contando tudo isto.

– Vou jantar com vocês amanhã à noite – prometi.

Hale não disse nada. Parou em frente do hotel.

– Espero você por volta das sete – disse calmamente, enquanto eu saía do carro.

No elevador, a caminho do meu andar, pensei: "Afinal de contas, Scranton não fica assim tão longe de Washington".

Enquanto me aprontava para ir para a cama, evitei aproximar-me do telefone. Demorei muito tempo para dormir. Acho que estava esperando que o telefone tocasse. Mas não tocou.

Não saberia dizer se o telefone me tinha acordado ou se eu tinha aberto os olhos pouco antes de ele começar a tocar. Tinha tido um pesadelo estranho, no qual eu me escondia e fugia de perseguidores invisíveis e desconhecidos, através de florestas escuras, para de repente me ver ao sol, entre fileiras de casas em ruínas. Fiquei, feliz por ter acordado e estendi com gratidão a mão para o telefone. Era Hale.

– Não o acordei, não? – perguntou ele.

– Não.

– Escute – disse ele. – Acho que vamos ter que cancelar o jantar de hoje à noite. Minha mulher diz que fomos convidados para jantar fora. – Seu tom de voz era displicente e despreocupado.

– Não faz mal – falei, procurando não mostrar o alívio que sentia.

– Além disso – continuou ele -, falei com a moça… – O resto da frase foi abafado por um barulho em crescendo.

– Que barulho é esse? – perguntei, lembrando-me do que ele me dissera sobre os telefonemas serem gravados em Washington.

– É um leão rugindo – respondeu ele. – Estou no Jardim Zoológico com meus filhos. Quer vir se encontrar conosco?

– Fica para outra vez, Jerry – disse eu. – Ainda estou na cama. – Após a confissão no carro, depois do jogo de pôquer, não me agradava a idéia de o ver desempenhar o papel do pai exemplar, dedicando a manhã de domingo aos filhos. Nunca gostara de cumplicidades e repugnava-me ser utilizado para enganar crianças.

– Espero por você amanhã no escritório – disse ele. – Não se esqueça de trazer a certidão de nascimento.

– Não vou me esquecer – prometi.

O leão estava rugindo quando desliguei.

Eu estava no chuveiro quando o telefone voltou a tocar. Pingando e ensaboado, enrolei-me numa toalha e atendi.

– Alô! – disse a voz. – Esperei o máximo que pude. – Era Evelyn Coates. No telefone, sua voz era uma oitava mais grave. – Tenho de sair de casa. Pensei que você talvez estivesse tentado a me ligar ontem à noite, depois do jogo. Ou hoje de manhã. – Sua autoconfiança era irritante.

– Não – disse eu, inclinando-me para trás, procurando evitar que a água pingasse na cama. – Não me ocorreu – menti. – Aliás, você parecia algo preocupada.

– O que você vai fazer hoje? – perguntou ela, ignorando a queixa.

– No momento, estou tomando um banho de chuveiro. – Sentia-me em desvantagem, tentando retrucar àquela voz grave e provocante, com a água escorrendo-me, fria, pelas costas abaixo e os olhos começando a lacrimejar por causa da espuma de sabonete que entrara.

– Como você é gentil! – exclamou ela, rindo. – Saiu do chuveiro para atender o telefone. Sabia que era eu, não sabia?

– Acho que me passou pela cabeça.

– Posso convidá-lo para almoçar?

Hesitei, mas não por muito tempo. Afinal, não tinha nada de melhor a fazer naquela tarde em Washington.

– Seria uma boa idéia – disse.

– Encontro-o no Trader Vic's – disse ela. – É um restaurante polinésio, no Mayflower. Agradável e escuro, para você não poder ver as minhas olheiras. À uma hora?

– À uma hora – confirmei.

Espirrei e ela riu.

– Volte para o chuveiro e depois se enxugue bem. Não queremos que você espalhe germes de resfriado entre os republicanos.

Espirrei de novo, após desligar, e voltei tateando para o banheiro, os olhos ardendo do sabonete. Um restaurante escuro também me convinha, porque tinha certeza de que meus olhos ficariam vermelhos toda a tarde. Estava começando a sentir que tinha de estar no máximo da minha forma física e mental, sempre que fosse encontrar-me com Evelyn Coates.

– Grimes – disse ela, quando terminávamos de almoçar e o garçom chinês, ou malaio ou taitiano, derramava rum flambé no nosso café. – Você me dá a impressão de ser um homem com algo a esconder.

Aquilo me pegou inteiramente de surpresa. Até então, nossa conversa fora quase que absolutamente impessoal… a respeito da comida, das bebidas (ela tomara três enormes drinques à base de rum, sem qualquer efeito aparente), sobre o jogo de pôquer da noite anterior (ela me dera os parabéns e eu Os retribuíra), sobre os vários níveis sociais de Washington e a quais deles os parceiros da noite anterior pertenciam, sobre o tipo de conversa frívola e polida usado por uma mulher sofisticada e cortês para preencher uma hora com um visitante de fora, enviado por algum amigo mútuo. Estava vestida de maneira simples e encantadora, com um tailleur de tweed e uma blusa azul, de gola alta, e puxara o cabelo louro-escuro para trás, amarrando-o com uma fita azul, num penteado juvenil. Eu falara pouco e, embora estivesse pensando por que razão ela me havia telefonado, não o demonstrara. Ela não tinha mencionado a noite que passáramos juntos e eu resolvi não ser o primeiro a trazê-la à baila.

– Algo a esconder – repetiu ela. As perguntas que eu lhe fizera na noite em que nos conhecêramos não tinham, portanto, sido esquecidas. Haviam sido arquivadas na sua mente desconfiada, alerta, para utilização futura.

– Não sei do que você está falando – disse eu, fugindo ao olhar dela.

– Claro que sabe! – retrucou. Esperou que o garçom terminasse de colocar as canecas cheias de café fervente, cheirando a rum e a canela, diante de nós. – Esta é a terceira vez que estamos juntos e veja o que ainda não sei a seu respeito: de onde você vem, para onde está indo, o que está fazendo aqui, qual a sua ocupação, por que razão você não telefonou para mim. – Bebeu um gole de café, sorrindo para mim sobre a caneca. – Qualquer outro homem que eu visse três vezes numa semana me contemplaria com sua biografia completa… como o pai não se comunicava com ele, como era importante, que ações tinha comprado, quais as pessoas influentes que conhecia, os problemas que tinha com a mulher…

– Não sou casado.

– Bravo! – exclamou ela. – Já consegui saber um fato. Preste atenção, não estou querendo que você me dê informações a seu respeito. Não sou assim tão curiosa nem você me interessa tanto. Apenas me ocorreu, de repente, que você deve estar escondendo alguma coisa. Por favor, não me diga o que é. – E levantou a mão, como para evitar que eu falasse. – Posso achar que você é muito menos interessante do que parece. Há só uma coisa que eu gostaria de lhe perguntar, se não se incomoda.

– Não me incomodo. – Era o mínimo que eu podia dizer.

– Você vai ficar aqui em Washington?

– Não.

– Segundo Jeremy Hale, você vai viajar.

– Eventualmente – falei.

– O que quer dizer com isso?

– Em breve. Talvez dentro de uma semana.

– Por acaso você vai a Roma?

– Acho que sim.

– E será que me faz um favor?

– Se eu puder.

Ela olhou para mim como quem considera, batendo distraidamente com uma unha na superfície da mesa. Pareceu chegar a uma decisão.

– No decurso de meus deveres – disse ela – deparei com certos memorandos particulares de considerável interesse. Tomei a liberdade de mandar tirar xerox deles. O xerox é a arma secreta de Washington. Ninguém está seguro, se houver um xerox em seu escritório. Acontece que tenho uns relatórios de delicadas negociações que algum dia me poderão ser muito úteis. E também para um amigo… um grande amigo meu. Trabalhou comigo e gostaria de protegê-lo. Está lotado na Embaixada americana em Roma. Quero fazer chegar a ele uns papéis, muito importantes para mim e para meu amigo, sem que se percam. Não confio nas malas diplomáticas daqui e nem nas de Roma. Meu amigo me contou que suspeita de que sua correspondência esteja sendo aberta, tanto na Embaixada como em sua casa. Não fique tão espantado. Se você conhecesse esta cidade como eu… – Não acabou a frase. – Não há ninguém aqui em quem eu realmente confie. As pessoas falam sem parar, pressões são exercidas, a correspondência é aberta, os telefonemas são gravados… imagino que seu amigo Jeremy Hale lhe tenha dito a mesma coisa.

– Falou. E você acha que pode confiar em mim?

– Acho. – Sua voz era dura, quase ameaçadora. – Para começar, você não vai estar em Washington. E, se estiver escondendo qualquer coisa importante, como eu acredito que esteja… Vai negar?

– Prefiro não responder – retruquei. – Por ora.

– Por ora – repetiu ela, sorrindo. – Como eu ia dizendo, se você estiver escondendo algo de importante, por que razão não iria fazer um pequeno favor secreto para uma amiga? Algo que não lhe levasse mais de meia hora? – Enfiou a mão na grande bolsa de couro que pousara no chão, debaixo da mesa, e dela tirou um grande e grosso envelope, fechado com fita gomada. Colocou-o na mesa, entre nós dois. – Como vê, não ocupa muito espaço.

– Não sei quando vou a Roma – disse eu. – Talvez só daqui a meses.

– Não há pressa – falou ela. Empurrou o envelope na minha direção com a ponta do dedo. Era uma dessas mulheres às quais é muito difícil dizer não. – Desde que seja antes de maio.

Não havia nome ou endereço no envelope. Ela tirou uma lapiseira dourada e um caderninho da bolsa.

– Eis o endereço e o telefone do meu amigo – disse. – Telefone para a casa dele. Preferiria que você não entregasse isto na Embaixada. Tenho certeza de que você vai gostar dele. Conhece todo mundo em Roma, e você poderá conhecer pessoas interessantes por seu intermédio. Gostaria que você me escrevesse, depois de ter estado com ele, para eu saber que a encomenda foi entregue.

– Escreverei – prometi.

– Isso é que é um bom menino. – Empurrou o envelope ainda mais na minha direção. – Pelo jeito, você gostaria de me ver de vez em quando, não?

– Gostaria.

– Quem sabe? – disse ela. – Se eu soubesse onde você estaria e tivesse umas semanas de férias, bem poderia aparecer…

Era pura chantagem e ambos sabíamos disso. Mas era outra coisa, também. Eu ia para o estrangeiro com a intenção de me perder. Tinha dito a Hank que de vez em quando lhe escreveria, mas isso era diferente. Ele nunca saberia onde eu estaria. Olhando para aquela mulher desejável à minha frente, compreendi que não me queria perder completamente, cortar todos os laços que me prendiam aos Estados Unidos, não ter ninguém no meu país que pudesse, in extremis, mandar-me um bilhete, mesmo que fosse só "Feliz aniversário" ou "Será que você pode me emprestar cem dólares?"

– Se se sentir tentado a abrir isto… – ela tocou o envelope – e ler o que está aí dentro, faça-o, Naturalmente, eu preferiria que você não o fizesse. Mas lhe asseguro que não há nada aí que possa prejudicá-lo.

Peguei o envelope e coloquei-o no bolso de dentro do paletó. Estava ligado a ela, mesmo que apenas pela recordação de uma única noite, e ela sabia disso. Se se sentia ligada a mim, era outra história. – Não vou abri-lo.

– Tinha certeza de que podia contar com você, Grimes – retrucou ela.

– Da próxima vez em que nos encontrarmos – falei -, por favor, trate-me pelo meu primeiro nome.

– Combinado – disse ela. Olhou para o relógio. – Se você já terminou o café – acrescentou -, pago e podemos ir. Tenho um encontro na Virgínia.

– Oh! – exclamei, procurando não parecer muito desapontado. – Pensei que poderíamos passar a tarde juntos.

– Acho que vai ter que ficar para outra vez – disse ela.

– Se não quiser passar a tarde só, acho que Brenda, minha colega de apartamento, está com a tarde livre. Ela achou você muito simpático. Por que não lhe telefona?

– Talvez – disse eu, grato pelo fato de o restaurante estar na penumbra. Tinha certeza de que corara. Mas a sugestão dela irritou-me. – Seus amantes são sempre compartilhados?

Ela olhou firme para mim, absolutamente calma.

– Acho que já lhe disse uma vez que você não era meu amante. – E chamou o garçom para lhe trazer a conta.

Não telefonei para a colega de Evelyn. Resolvi não lhe dar essa satisfação. Passei a tarde passeando por Washington. Agora que sabia, pelo menos por alto, o que havia por trás daquelas imponentes colunas, dos longos corredores, daquelas cópias de templos gregos, não me sentia impressionado. Roma, pensei, pouco antes da invasão dos godos. Ocorreu-me que talvez nunca mais eu voltasse, embora a idéia não me entristecesse. Mas, pela primeira vez em três anos, senti-me horrivelmente só.

Ao entrar no hotel, ao anoitecer, decidi sair de Washington naquela mesma noite. Quanto mais cedo eu saísse do país, melhor. Arrumando as malas, lembrei-me do clube de esqui de George Wales. Qual era mesmo o nome? O Christie Ski Club. Não era preciso preocupar-se com excesso de bagagem, nem com a alfândega suíça, e a bordo, se podia tomar, grátis, tudo quanto era bebida. Não tinha a intenção de chegar economicamente bêbado e pisar em solo europeu, trocando as pernas, mas, com a bagagem que eu ia levar, passar pela alfândega suíça com um sorriso de boas-vindas tinha as suas atrações. Além disso, se alguém estivesse procurando o funcionário que tinha fugido do Hotel St. Augustine com cem mil dólares em notas de cem, o último lugar em que se lembrariam de procurar seria o balcão onde trezentos e cinqüenta gárrulos suburbanos estariam embarcando para uma temporada de neve na Suíça, da qual retornariam em massa dali a três semanas para os Estados Unidos.

Ia fechar a segunda mala, quando o telefone tocou. Não estava com vontade de falar com ninguém, de modo que deixei tocar. Mas tocou tanto, que acabei atendendo.

– Sei que você está aí… – Era a voz de Evelyn Coates. – Estou aqui no bali e perguntei na portaria se você estava no hotel.

– Que tal a Virgínia? – perguntei, secamente.

– Digo-lhe quando subir. Posso subir, não posso? – perguntou ela, hesitante.

– Acho que sim – respondi.

Ela riu, risinho triste.

– Não brigue comigo – falou. E desligou.

Abotoei o colarinho de minha camisa, endireitei a gravata e vesti o paletó, pronto para todas as formalidades.

– Horrível! – exclamou ela, mal entrou no quarto e olhou em volta. – A era do cromado.

Ajudei-a a tirar o casaco, porque ela ficou de pé, com os braços abertos, como se estivesse à espera.

– Não pretendo passar o resto da minha vida aqui – falei.

– Estou vendo – retrucou ela, olhando para a mala fechada, sobre a cama. – Já está indo embora?

– Estava.

– Pretérito imperfeito.

– É. – Estávamos de pé, um diante do outro.

– E agora?

– Não estou assim com tanta pressa. – Não fiz o menor esforço para pô-la à vontade. – Pensei que você havia dito que tinha um encontro, hoje à tarde… na Virgínia.

– E tive – disse ela. – Mas durante a tarde ocorreu-me que havia uma pessoa que eu tinha uma vontade louca de ver e que essa pessoa estava em Washington. Por isso é que estou aqui. – Sorriu hesitantemente. – Espero não estar incomodando.

– Ora! – falei.

– Não vai me convidar para sentar?

– Desculpe – falei. – Claro.

Ela sentou-se, com graça feminil, cruzando os tornozelos. Devia ter andado no frio da Virgínia, porque tinha as faces rosadas.

– Que mais lhe ocorreu? – perguntei, ainda de pé, mas a boa distância dela.

– Algumas coisas mais – respondeu ela. Estava usando luvas de dirigir marrons e descalçou-as, deixando-as cair no regaço. Seus longos dedos, ágeis com as cartas, hábeis com os homens, brilhavam à luz do abajur sobre a mesa ao lado dela. – Não gostei da maneira como lhe falei, ao almoço.

– Já ouvi coisas piores – comentei.

– Tudo no mais puro e cínico washingtonês. – Meneou a cabeça. – É preciso defender-se a todo momento. Deformação profissional da maneira de falar. Mas não precisava me defender de você. Desculpe.

Aproximei-me e beijei-lhe o alto da cabeça. O cabelo dela cheirava a campo no inverno.

– Não tem de que pedir desculpa. Não sou assim tão frágil.

– Talvez eu ache – disse ela. – Naturalmente, você não ligou para Brenda.

– Lógico que não.

– Que coisa estúpida eu fui dizer! – Suspirou. – Nos fins de semana, preciso aprender a deixar a armadura em casa. – Sorriu para mim, seu rosto suave e jovem à luz do abajur.

– Esqueça o que eu lhe disse, está bem?

– Se você quiser. Que mais lhe ocorreu, lá na Virgínia?

– Que a única vez em que tínhamos dormido juntos tínhamos ambos bebido demais.

– Sem dúvida.

– Pensei que seria ótimo nos amarmos sem ter bebido. Você bebeu alguma coisa depois do almoço?

– Não.

– Eu também não – disse ela, levantando-se e abraçando-me.

Dessa vez, permitiu que eu a despisse. No meio da noite, ela murmurou:

– Você deve ir embora logo de manhã. Se ficar mais um dia, talvez eu não o deixe ir. E isso não é possível, não?

Quando acordei, de manhã, ela já se fora. Deixara um bilhete em cima da mesa, escrito na sua letra oblíqua e ousada.

"O fim de semana acabou. Já é segunda-feira. Por favor, não leve a sério nada do que eu disse. E."

Vestira a armadura para mais uma semana de trabalho. Amassei o bilhete e joguei-o na cesta de lixo.