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Os médicos do hospital publico podiam ser bons, mas os programas de TV brasileira eram tão ruins como os de qualquer outra parte do mundo, e Eduard tinha pouco o que fazer. Maria aparecia cada vez menos no hospital — talvez tivesse encontrado outro companheiro para ir com ela até as montanhas de cristais.
Contrastando com o estranho comportamento de sua namorada, o embaixador e sua mulher iam diariamente visita-lo, mas recusavam-se a trazer os livros em português que ele tinha em casa, alegando que em breve seriam transferidos, e não havia necessidade de aprender uma língua que nunca mais teria necessidade de usar. Assim sendo, Eduard contentava-se em conversar com outros doentes, discutir futebol com os enfermeiros, e ler uma ou outra revista que lhe caía em mãos.
Até que um dia, um dos enfermeiros trouxe-lhe um livro que acabara de ganhar, mas que achava «muito grosso para ser lido». E foi neste momento que a vida de Eduard começou a coloca-lo um caminho estranho, que o conduziria a Villete, à ausência da realidade, e ao distanciamento completo das coisas que outros rapazes de sua idade iriam fazer nos anos que se seguiram.
O livro era sobre os visionários que abalaram o mundo -gente que tinha sua própria ideia do paraíso terrestre, e dedicara dedicado a sua vida para dividi-la com os outros. Ali estava Jesus Cristo, mas também estavam Darwin, com sua teoria de que homem descendia dos macacos; Freud, afirmando que os sonhos tinham importância; Colombo, empenhando as jóias da rainha para procurar um novo continente; Marx, com a ideia de que todos mereciam a mesma chance.
E ali estavam santos, como Inácio de Loyola, um vasco que dormira com todas as mulheres que podia dormir, matara vários inimigos num sem número de batalhas, até ser ferido em Pamplona, e entender o universo numa cama onde convalescia. Teresa d'Ávila, que queria de todas as maneiras encontrar o caminho de Deus, e só conseguiu quando sem querer passeava por um corredor e parou
diante de um quadro. António, um homem cansado da vida que levava, que resolveu exilar-se no deserto e passou a conviver com demónios por dez anos, experimentando todo tipo de tentação.Francisco de Assis, um rapaz como ele, determinado a conversar com os pássaros e a deixar para trás tudo o que os seus pais tinham programado para a sua vida.
Começou a ler naquela mesma tarde o tal «livro grosso», porque não tinha nada melhor para se distrair. No meio da noite, uma enfermeira entrou, perguntando se precisava de ajuda, já que era o único quarto ainda com a luz acesa. Eduard dispensou-a com um simples aceno de mão, sem desgrudar os olhos do livro.
Os homens e mulheres que abalaram o mundo. Homens e mulheres comuns, como ele, seu pai, ou a namorada que sabia estar perdendo, cheios das mesmas dúvidas e inquietações que todos os seres humanos tinham nos seus cotidianos programados. Gente que não tinha um interesse especial por religião, Deus, expansão de mente ou nova consciência, até que um dia — bem, um dia tinham decidido mudar tudo. O livro era mais interessante porque contava que, em cada uma daquelas vidas, havia um momento mágico, que os fizera partir em busca da sua própria visão do Paraiso.
Gente que não deixou a vida passar em branco, e que, para conseguir o que queria, tinha pedido esmolas ou cortejado reis; rasgado códigos ou enfrentado a ira dos poderosos da época; usado diplomacia ou força, mas nunca desistindo, sempre sendo capaz de vencer cada dificuldade que se apresentava como uma vantagem.
No dia seguinte, Eduard entregou seu relógio de ouro para o enfermeiro que lhe dera o livro, pediu que o vendesse, e que comprasse todos os livros sobre o tema. Não havia mais nenhum. Tentou ler a biografia de algum deles, mas sempre descreviam o homem ou a mulher como se fosse um escolhido, um inspirado — e não uma pessoa comum, que devia lutar como qualquer outra para afirmar o que pensava.
Eduard ficou tão impressionado com o que lera, que considerou seriamente a possibilidade de tornar-se um santo, aproveitando o acidente para mudar sua vida de rumo. Mas estava com as pernas quebradas, não tivera nenhuma visão no hospital, não passara diante de um quadro que lhe sacudira a alma, não tinha amigos para construir uma capela no interior do planalto brasileiro, e os desertos estavam muito longe, cheios de problemas políticos. Mas ainda assim, podia fazer algo: aprender pintura, e tentar mostrar ao mundo as visões que aqueles homens e mulheres tiveram.
Quanto tiraram o gesso, e voltou para a Embaixada -cercado de cuidados, mimos, e todo tipo de atenção que um filho de embaixador recebe dos outros diplomatas, pediu a sua mãe que o inscrevesse numa curso de pintura.
A mãe disse que ele já tinha perdido muitas aulas no Colégio Americano, e que era hora de recuperar o tempo perdido. Eduard recusou-se: não tinha a menor vontade de continuar aprendendo geografia e ciências.
Queria ser pintor. Num momento de distração, explicou o motivo:
— Preciso pintar as visões do Paraiso.
A mãe não disse nada, e prometeu conversar com suas amigas, para ver qual o melhor curso de pintura da cidade.
Quando o Embaixador voltou do trabalho, aquela tarde, encontrou-a chorando em seu quarto.
— Nosso filho está louco — dizia, com as lágrimas correndo. — O acidente afetou o seu cérebro.
— Impossível! — respondeu, indignado, o embaixador. Os médicos, indicados pelos americanos, o examinaram.
A mulher contou o que ouvira.
— É rebeldia normal da juventude. Espere e verá que tudo volta ao normal.
Desta vez, a espera não resultou em nada, porque Eduard tinha pressa em começar a viver. Dois dias depois, cansado de aguardar uma decisão das amigas de sua mãe, resolveu matricular-se num curso de pintura. Começou a aprender o escala de cores e perspectiva, mas começou também a conviver com gente que nunca falava de marca de ténis ou modelos de carro.
— Ele está convivendo com artistas! — dizia a mãe, chorosa, ao embaixador.
— Deixe o menino — respondia o Embaixador. — Vai enjoar logo, como enjoou da namorada, dos cristais, das pirâmides, incenso, da marijuana.
Mas o tempo passava, o quarto de Eduard se transformava num ateliê improvisado, com pinturas não faziam o menor sentido para seus pais: eram círculos, combinações exóticas de cores, símbolos primitivos misturados com gente em posição de prece.
Eduard, o antigo rapaz solitário que em dois anos de Brasília nunca aparecera em casa com amigos, agora enchia sua casa com pessoas estranhas, todos eles mal-vestidos, com cabelos desarrumados, escutando discos horríveis em volume máximo, bebendo e fumando sem qualquer limite, demonstrando total ignorância dos
protocolos de bom comportamento. Certo dia, a diretora do Colégio Americano chamou a embaixatriz para uma conversa.
— Seu filho deve estar envolvido em drogas — disse. — O rendimento escolar dele está abaixo do normal, e se continuar assim não poderemos renovar sua matricula.
A mulher foi direto para o escritório do Embaixador, e contou o que acabara de ouvir.
— Você vive dizendo que o tempo ia fazer tudo voltar ao normal! — gritava, histérica. — Seu filho drogado, louco, com algum problema cerebral gravíssimo, enquanto você se preocupa com coquetéis e reuniões sociais!
— Fale baixo — pediu ele.
— Não falo mais baixo, nunca mais na vida, enquanto você não tomar uma atitude! Este menino precisa de ajuda, está entendendo? Ajuda médica! Vá e faça alguma coisa.
Preocupado que o escândalo de sua mulher pudesse prejudica-lo junto aos seus funcionários, e já desconfiado que o interesse de Eduard pela pintura estava durando mais tempo do que o esperado, o embaixador — um homem prático, que sabia todos os movimentos corretos — estabeleceu uma estratégia de ataque ao problema.
Primeiro, telefonou para o seu colega, o Embaixador Americano, e pediu a gentileza de permitir o uso dos aparelhos de exame da Embaixada. O pedido foi aceito.
Procurou de novo os médicos credenciados, explicou a situação e solicitou que fosse feita uma revisão de todos os exames da época. Os médicos, temerosos que aquilo pudesse lhes render um processo, fizeram exatamente o que lhes foi pedido — e concluíram que os exames não apresentavam nada de anormal. Antes do embaixador sair, exigiram que firmasse um documento, dizendo que, a partir daquela data, eximia a Embaixada Americana da responsabilidade de ter indicado seus nomes.
Em seguida, o Embaixador foi ao hospital onde Eduard estivera internado. Conversou com o diretor, explicou o problema do filho, e solicitou que — a pretexto de um check-up de rotina — fizessem um exame de sangue para detectar a presença de drogas no organismo do rapaz.
Assim foi feito. E nenhuma droga foi encontrada.
Restava a terceira e última etapa da estratégia: conversar com o próprio Eduard, e saber o que estava acontecendo. Só de posse de todas as informações, poderia tomar uma decisão que lhe parecesse correta.
Pai e filho sentaram-se na sala de estar.
— Você tem preocupado sua mãe — disse o embaixador. -Suas notas diminuíram, e há risco de que sua matricula não seja renovada.
— Minhas notas no curso de pintura aumentaram, meu pai.
— Acho muito gratificante seu interesse pela arte, mas você tem uma vida pela frente para fazer isto. No momento, é preciso terminar o curso secundário, para que eu possa encaminha-lo na carreira diplomática. Eduard pensou muito antes de dizer qualquer coisa. Reviu o acidente, o livro sobre os visionários -que afinal fora apenas um pretexto para encontrar sua verdadeira vocação — pensou em Maria, de quem nunca mais havia escutado falar. Hesitou muito, mas afinal respondeu.
— Papai, eu não quero ser diplomata. Eu quero ser pintor.
O pai já estava preparado para esta resposta, e sabia como contorna-la.
— Você será pintor, mas antes termine seus estudos. Arranjaremos exposições em Belgrado, Zagreb, Lubljana, Sarajevo. Com a influencia que tenho, posso ajuda-lo muito, mas preciso que termine seus estudos.
— Se eu fizer isso, vou escolher o caminho mais fácil, papai. Vou entrar para qualquer faculdade, me formar em algo que não me interessa, mas que me dará dinheiro. Então a pintura ficará para segundo plano, e eu terminarei esquecendo minha vocação. Preciso aprender a ganhar dinheiro com pintura.
O embaixador começou a irritar-se.
— Você tem tudo, meu filho: uma familia que o ama, casa, dinheiro, posição social. Mas você sabe, nosso pais está vivendo um periodo complicado, há rumores de guerra civil; pode ser que amanhã eu já não esteja mais aqui para ajuda-lo.
— Eu saberei me ajudar, meu pai. Confie em mim. Um dia eu pintarei uma série chamada «As Visões do Paraiso». Será a história visual daquilo que homens e mulheres apenas experimentaram em seus corações.