40400.fb2 Veronika decide morrer - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 27

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O embaixador elogiou a determinação do filho, terminou a conversa com um sorriso, e resolveu dar mais um mês de prazo -afinal, a diplomacia é a arte de adiar as decisões até que elas se resolvam por si mesmas.

Um mes passou. E Eduard continuou dedicando todo seu tempo a pintura, aos amigos estranhos, as músicas que deviam provocar algum desequilíbrio psicológico. Para agravar o quadro, tinha sido expulso do Colégio Americano, por discutir com a professora sobre a existência de santos.

Numa última tentativa, já que não dava mais para adiar qualquer decisão, o Embaixador tornou a chamar o filho para uma conversa entre homens.

— Eduard, você já está em idade de assumir a responsabilidade de sua vida. Nós aguentamos enquanto foi possivel, mas é hora de acabar com esta tolice de querer ser pintor, e dar um rumo a sua carreira.

— Meu pai, ser pintor é dar um rumo à minha carreira.

— Você está ignorando o nosso amor, os nossos esforços para dar-lhe uma boa educação. Como você nunca foi assim, só posso atribuir o que está acontecendo a uma consequência do acidente.

— Entenda que eu os amo, e os amo mais do que qualquer outra pessoa ou coisa em minha vida.

O embaixador pigarreou. Não estava acostumado a manifestações tão diretas de carinho.

— Então, em nome do amor que você tem por nós, por favor, faça o que sua mãe deseja. Deixe por algum tempo esta história de pintura, arranje amigos que pertençam ao seu nivel social, e volte aos estudos.

— Você me ama, meu pai. Não pode me pedir isso, porque sempre me deu um bom exemplo, lutando pelas coisas que queria. Não pode querer que eu seja um homem sem vontade própria.

— Eu disse: em nome do amor. E eu nunca disse isso antes, meu filho, mas estou pedindo agora. Pelo amor que você tem a nós, pelo amor que nós temos a você, volte ao lar — não apenas no sentido fisico, mas no sentido real. Você está se enganando, fugindo da realidade.

«Desde que você nasceu, nós alimentamos os maiores sonhos de nossas vidas. Você é tudo para nós: o nosso futuro, e o nosso passado. Seus avós eram funcionários públicos, e eu precisei lutar como um touro para entrar e crescer nesta carreira diplomática. Tudo isto apenas para abrir espaço para você, tornar as coisas mais fáceis. Tenho ainda a caneta com que assinei o meu primeiro documento como embaixador, e guardei-a com todo carinho, para passar a você no dia em que fizer o mesmo.

«Não nos desaponte, meu filho. Nós não vamos viver muito, queremos morrer tranquilos, sabendo que você foi bem encaminhado na vida.»

«Se você nos ama realmente, faça o que estou pedindo. Se você não nos ama, continue com seu comportamento.»

Eduard ficou muitas horas olhando o céu de Brasília, vendo as nuvens que passeavam pelo azul — belas, mas sem uma gota de chuva para derramar na terra seca do planalto central brasileiro. Estava vazio como elas.

Se continuasse com sua escolha, sua mãe terminaria definhando de sofrimento, seu pai ia perder o entusiasmo pela carreira, ambos iam se culpar por falharem na educação do filho querido. Se desistisse da pintura, as visões do Paraiso nunca veriam a luz do dia, e nada mais neste mundo seria capaz de lhe dar entusiasmo e prazer.

Olhou a sua volta, viu seus quadros, relembrou o amor e o sentido de cada pincelada, e achou-os todos medíocres. Ele era

uma fraude; estava querendo ser uma coisa para a qual nunca tinha sido escolhido, e cujo preço seria a decepção de seus pais.

As visões do paraiso era para os homens eleitos, que apareciam nos livros como heróis e mártires da fé no que acreditavam. Gente que já sabia desde criança que o mundo precisava deles — o que estava escrito no livro era invenção de romancista.

Na hora do jantar, disse aos seus pais que eles tinham razão: aquilo era sonho de juventude, e seu entusiasmo pela pintura também já havia passado. Os pais ficaram contentes, a mãe chorou de alegria e abraçou o filho; tudo havia voltado ao normal.

De noite, o embaixador comemorou secretamente sua vitória, abrindo uma garrafa de champanhe — que bebeu sozinho. Quando foi para o quarto, sua mulher — pela primeira vez em muitos meses — já estava dormindo, tranquila.

No dia seguinte, encontraram o quarto de Eduard destruído, as pinturas destroçadas por um objeto cortante, e o rapaz sentado num canto, olhando o céu. A mãe abraçou-o, disse quanto o amava, mas Eduard não respondeu.

Não queria mais saber de amor: estava farto desta história. Pensava que podia desistir e seguir os conselhos do pai, mas tinha ido longe demais no seu trabalho — atravessara o abismo que separa um homem do seu sonho, e agora não podia mais voltar.

Não podia ir nem para frente, nem para trás. Então, era mais simples sair de cena.

Eduard ainda ficou mais cinco meses no Brasil, sendo cuidado por especialistas, que diagnosticaram um tipo raro de esquizofrenia, talvez resultante de um acidente de bicicleta. Logo a guerra civil na Yugoslávia estourou, o embaixador foi chamado as pressas, os problemas se acumularam demais para que a familia pudesse cuidar dele, e a única saida fora deixa-lo no recém-aberto sanatório de Villete.

Quando Eduard acabou de contar a sua história já era noite, e os dois tremiam de frio.

— Vamos entrar — disse ele. — Já estão servindo o jantar.

— Na minha infância, sempre que ia visitar minha avó, ficava contemplando um quadro em sua parede. Era uma mulher -Nossa Senhora, como dizem os católicos — em cima do mundo, com as mãos abertas para a Terra, de onde desciam raios.

«O que mais me intrigava neste quadro é que aquela senhora estava pisando uma serpente viva. Então eu perguntei a minha avó: «ela não tem medo da serpente? Não acha que vai morder-lhe o pé, e mata-la com seu veneno?»

«Minha avó disse: a serpente trouxe o Bem e o Mal à Terra, como diz a Biblia. E ela controla o Bem e o Mal com seu amor. «

— O que isso tem a ver com a minha história?

— Como eu lhe conheci há uma semana, seria muito cedo para dizer: eu te amo. Como não devo passar desta noite, seria também muito tarde para dizer-lhe isso. Mas a grande loucura do homem e da mulher é exatamente esta: o amor.

«Você me contou uma história de amor. Acredito que, sinceramente, os seus pais queriam o melhor para você e foi este amor que quase destruiu sua vida. Se a Senhora, no quadro da minha avó, estava pisando a serpente, isto significava que este amor tinha duas faces.»

— Entendo o que você está falando — disse Eduard. — Eu provoquei o choque elétrico, porque você me deixa confuso. Não sei o que sinto, e o amor já me destruiu uma vez.

— Não tenha medo. Hoje, eu tinha pedido ao Dr. Igor para sair daqui, escolher o lugar onde queria fechar meus olhos para sempre. Entretanto, quando o vi sendo agarrado pelos enfermeiros, entendi qual a imagem que eu queria estar contemplando quando partisse deste mundo: o seu rosto. E decidi que não ia mais embora.

«Enquanto você estava dormindo pelo efeito do choque, eu tive mais um ataque, e achei que havia chegado a minha hora. Olhei seu rosto, tentei adivinhar sua história, e me preparei para morrer feliz. Mas a morte não veio — meu coração aguentou mais uma vez, talvez porque sou jovem.

Ele abaixou a cabeça.

— Não se envergonhe de ser amado. Não estou pedindo nada, apenas que me deixe gostar de você, tocar piano mais uma noite — se ainda tiver forças para isso.

«Em troca, só lhe peço uma coisa: se você ouvir alguém dizendo que estou morrendo, vá até a enfermaria. Deixe-me realizar meu desejo.

Eduard ficou em silêncio por um longo tempo, e Veronika achou que ele havia retornado ao seu mundo, para não voltar tão cedo.

Finalmente, olhou as montanhas além dos muros de Villete, e disse:

— Se você quiser sair, eu a levo lá para fora. Dê-me apenas tempo de pegar os casacos, e algum dinheiro. Em seguida, nós dois vamos embora.

— Não vai durar muito, Eduard. Você sabe disso. Eduard não respondeu. Entrou e voltou em seguida com os

casacos.

— Vai durar uma eternidade, Veronika. Mais do que todos os dias e noites iguais que passei aqui, tentando sempre esquecer as Visões do Paraiso. Quase as esqueci, mas parece que estão voltando.

«Vamos embora. Loucos fazem loucuras.»

Naquela noite, quando se reuniram para jantar, os internos sentiram falta de quatro pessoas.

Zedka, que todos sabiam ter sido liberada após um longo tratamento. Mari, que devia ter ido ao cinema, como costumava fazer com frequência. Eduard, que talvez ainda não tivesse se recuperado do eletrochoque — e ao pensar nisso, todos os internos ficaram com medo, e iniciaram a refeição em silencio.

Finalmente, faltava a moça de olhos verdes e cabelos castanhos. Aquela que todos sabiam que não devia chegar viva até o final da semana.

Ninguém falava abertamente de morte em Villete. Mas as ausências eram notadas, embora todos procurassem se comportar como se nada tivesse acontecido.