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Todos sabiam que esta noite Veronika estava lá. Os que eram realmente insanos logo esqueceram que — durante aquela semana — o sanatório tivera mais um hóspede, que as vezes perturbava o sono de todo mundo com o piano. Alguns poucos, enquanto a noticia corria, sentiram uma certa tristeza, principalmente as enfermeiras que estiveram com Veronika durante as suas noites na UTI; mas os funcionários tinham sido treinados para não criar laços muito fortes com os doentes, já que uns saiam, outros morriam, e a grande maioria ia piorando cada vez mais. A tristeza desses durou um pouco mais, e logo também passou.
A grande maioria dos internos, porém, soube da noticia, fingiu espanto, tristeza, mas ficou aliviada. Porque, mais uma vez o Anjo Exterminador havia passado por Villete, e eles tinham sido poupados.
Quando a Fraternidade se reuniu após do jantar, um membro do grupo deu o recado; Mari não tinha ido ao cinema -partira para não voltar mais, e deixara um bilhete com ele.
Ninguém pareceu dar muita importância: ela sempre parecera diferente, louca demais, incapaz de adaptar-se a situação ideal em que todos ali viviam.
— Mari nunca entendeu como somos felizes— disse um deles. — Temos amigos com afinidades comuns, seguimos uma rotina, de vez enquanto salmos juntos para um programa, convidamos conferencistas para falar de assuntos importantes, debatemos suas ideias. Nossa vida chegou ao perfeito equilíbrio, coisa que tanta gente lá fora adoraria ter.
— Sem contar o fato de que, em Villete, estamos protegidos contra o desemprego, as consequências da guerra na Bósnia, os problemas económicos, a violência — comentou outro. — Encontramos a harmonia.
— Mari me confiou um bilhete — disse aquele que tinha dado a noticia, mostrando um envelope fechado. — Pediu que o lesse em voz alta, como se quisesse se despedir de todos nós.
O mais velho de todos abriu o envelope e fez o que Mari pedira. Quis parar no meio, mas já era tarde demais, e foi até o final.
«Quando eu ainda era jovem e advogada, li certa vez um poeta inglês, e uma frase dele me marcou muito: «seja como a fonte que transborda, e não como o tanque, que sempre contem a mesma água.» Sempre achei que ele estava errado: era perigoso transbordar, porque podemos terminar inundando áreas onde vivem pessoas queridas, e afoga-las com nosso amor e nosso entusiasmo.Então, procurei me comportar a vida inteira como um tanque, nunca indo além dos limites das minhas paredes interiores.
«Acontece que, por alguma razão que nunca entenderei, tive a Síndrome do Pânico. Transformei-me exatamente naquilo que lutara tanto para evitar: numa fonte que transbordou e inundou tudo ao meu redor. O resultado disso foi a internação em Villete.
«Depois de curada, voltei para o tanque, e conheci vocês. Obrigado pela amizade, pelo carinho, e por tantos momentos felizes. Vivemos juntos como peixes num aquário, felizes porque alguém jogava comida na hora certa, e nós podíamos, sempre que desejávamos, ver o mundo do lado de fora, através do vidro.
«Mas ontem, por causa de um piano e de uma mulher que deve já estar morta hoje, eu descobri algo muito importante: a vida aqui dentro era exatamente igual à vida lá fora. Tanto lá como aqui, as pessoas se reúnem em grupos, criam suas muralhas, e não deixam que nada de estranho possa perturbar suas medíocres existências. Fazem coisas porque estão acostumadas a fazer, estudam assuntos inúteis, divertem-se porque são obrigadas a se divertirem, e que o resto do mundo se dane, se resolva por si mesmo. No máximo, assistem — como nós assistimos tantas vezes juntos — o noticiário da televisão, só para terem certeza do quanto são felizes, num mundo cheio de problemas e injustiças.
«Ou seja: a vida da Fraternidade é exatamente igual à vida de quase todo mundo lá fora — todos evitando saber o que se encontra além das paredes de vidro do aquário. Durante muito tempo isso foi reconfortante e útil. Mas a gente muda, e agora eu estou em busca de aventura — mesmo já tendo 65 anos, e sabendo as muitas limitações que esta idade me trás. Vou para a Bósnia: há gente que me espera ali, embora ainda não me conheça, e eu tampouco as conheço. Mas sei que sou útil, e que o risco de uma aventura vale mil dias de bem-estar e conforto.»
Quando acabou a leitura do bilhete, os membros da
Fraternidade sairam para os seus quartos e enfermarias, dizendo a si mesmos que ela tinha definitivamente enlouquecido.
Eduard e Veronika escolheram o restaurante mais caro de Lubljana, pediram os melhores pratos, embriagaram-se com três garrafas de vinho da safra de 88, uma das melhores do século. Durante o jantar não tocaram de uma só vez em Villete, do passado, do futuro.
— Gostei da história da serpente — dizia ele, tornando a encher o copo pela milésima vez. — Mas sua avó era muito velha, não sabia interpretar a história..
— Respeite minha avó! — gritava Veronika, já bêbada, fazendo com que todos no restaurante se virassem.
— Um brinde a avó desta moça! — disse Eduard,
levantando-se. — Um brinde a avó desta louca aqui na minha frente, que deve ter fugido de Villete!
As pessoas voltaram a prestar atenção nos seus pratos, fingindo que nada daquilo estava acontecendo.
— Um brinde a minha avó! — insistiu Veronika, também embriagada.
O dono do restaurante veio até a mesa.
— Por favor, comportem-se.
Eles ficaram mais calmos por alguns instantes, mas logo voltaram a falar alto, dizer coisas sem sentido, agir de maneira inconveniente. O dono do restaurante tornou a voltar a mesa, disse que não precisavam pagar a conta, mas que tinham que sair naquele minuto.
— Vamos economizar o dinheiro gasto com estes vinhos caríssimos! — brindou Eduard. — É hora de sair daqui, antes que este homem mude de ideia!
Mas o homem não ia mudar de ideia. Já estava puxando a cadeira de Veronika, num gesto aparentemente cortes, mas cujo verdadeiro sentido era ajuda-la a levantar-se o mais rápido possível.
Foram para o meio da pequena praça, no centro da cidade. Veronika olhou seu quarto do convento, e a embriaguez passou por um instante. Tornou a lembrar-se que ia morrer logo.
— Compre mais vinho! — pediu a Eduard.
Havia um bar ali perto. Eduard trouxe duas garrafas, os dois sentaram, e continuaram a beber.
— O que há de errado com a interpretação da minha avó? -disse Veronika.
Eduard estava tão bêbado, que foi preciso um grande esforço para lembrar-se do que dissera no restaurante. Mas conseguiu.
— Sua avó disse que a mulher estava pisando aquela cobra porque o amor tem que dominar o Bem e o Mal. É uma bonita e romântica interpretação, mas não é nada disso: porque eu já vi esta imagem, ela é uma das Visões do Paraiso que eu imaginava pintar. Eu já tinha me perguntado porque sempre retratavam a Virgem desta maneira.
— Por que?
— Porque a Virgem, a energia feminina, é a grande dominadora da serpente, que significa sabedoria. Se você reparar no anel de médico do Dr. Igor, verá que ele tem o simbolo dos médicos: duas serpentes enroladas num bastão. O amor está acima da sabedoria, como a Virgem está sobre a serpente. Para ela, tudo é Inspiração. Ela não fica julgando o bem e o mal.
— Sabe mais o que? — disse Veronika, — A Virgem nunca ligou para o que os outros estavam pensando. Imagine, ter que explicar a todo mundo a história do Espirito Santo! Ela não explicou nada, só disse: «aconteceu assim.» Sabe o que os outros devem ter dito?
— Claro que sei. Que ela estava louca! Os dois riram. Veronika levantou o copo.
— Parabéns. Você devia pintar estas Visões do Paraiso, ao invés de ficar falando.
— Começarei por você — respondeu Eduard.
Ao lado da pequena praça, existe um pequeno monte. Em cima do pequeno monte, existe um pequeno castelo. Veronika e Eduard subiram o caminho inclinado, blasfemando e rindo, escorregando no gelo e reclamando do cansaço.
Ao lado do castelo, existe uma grua gigantesca, amarela. Para quem vai a Lubljana pela primeira vez, aquela grua dá a impressão de que estão reformando o castelo, e que em breve ele será completamente restaurado. Os habitantes de Lubljana, porém, sabem que ela grua está ali há muitos anos — embora ninguém saiba a verdadeira razão. Veronika contou a Eduard que, quando se pede as crianças do jardim de infância para desenhar o castelo de Lubljana, eles sempre incluíam a grua no desenho.
— Aliás, a grua está sempre mais bem conservada que o castelo.
Eduard riu.
— Você devia estar morta — comentou, ainda sob o efeito do álcool, mas com a voz mostrando um certo medo. — Seu coração não devia ter aguentado esta subida.
Veronika deu-lhe um demorado beijo.
— Olhe bem para o meu rosto — disse ela. — Guarde-o com os olhos de sua alma, para que possa reproduzi-lo um dia. Se quiser, comece por ele, mas volte a pintar. Este é o meu último pedido. Você acredita eu Deus?
— Acredito.
— Então você vai jurar, pelo Deus que você acredita, que irá me pintar.
— Eu juro.