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— O que você quer? — disse um senhor idoso, que
parecia ser o lider da Fraternidade (se é que tal grupo realmente existia, e Zedka não era mais louca do que aparentava).
— Nada, Só estava passando.
Todos se entreolharam, e fizeram alguns gestos
demenciais com a cabeça. Um comentou com o outro: «ela só estava passando!» Outro repetiu, em voz mais alta, e — em pouco tempo -todos começaram a gritar a mesma frase.
Veronika não sabia o que fazer, e ficou paralisada de medo. Um enfermeiro, forte e mal encarado, veio saber o que estava acontecendo.
— Nada — respondeu um do grupo. — Ela só estava passando. Está parada ai, mas vai continuar a passar!
O grupo inteiro caiu na gargalhada. Veronika assumiu um ar irónico, sorriu, deu meia-volta e afastou-se, para que ninguém notasse que seus olhos se enchiam de lágrimas. Saiu direto para o jardim, sem agasalho. Um enfermeiro tentou convence-la a voltar, mas logo apareceu outro, que sussurrou algo — e os dois a deixaram em paz, no frio. Não adiantava cuidar da saúde de uma pessoa condenada.
Estava confusa, tensa, irritada consigo mesma. Jamais se deixara levar por provocações; aprendera desde cedo que era preciso manter o ar frio, distante, sempre que uma nova situação que se apresentasse. Aqueles loucos, entretanto, tinham conseguido fazer com que tivesse vergonha, medo, raiva, vontade de mata-los, de feri-los com palavras que não ousara dizer.
Talvez os comprimidos — ou o tratamento para tira-la da coma — a tivessem transformado numa mulher frágil, incapaz de reagir por si mesma. Já enfrentara situações muito piores na sua adolescência, e, pela primeira vez, não conseguira controlar o choro! Precisava voltar a ser quem era, saber reagir com ironia, fingir que as ofensas nunca a atingiam, pois era superior a todos. Quem, daquele grupo, tivera coragem de desejar a morte? Quais daquelas pessoas podia querer lhe ensinar sobre a vida, se estavam todos escondidos atrás dos muros de Villete? Nunca iria depender da ajuda deles para nada — mesmo que tivesse que esperar cinco ou seis dias para morrer.
«Um dia já passou. Sobram apenas quatro ou cinco».
Andou um pouco, deixando que o frio abaixo de zero
entrasse por seu corpo e acalmasse o sangue que corria depressa, o coração que batia rápido demais.
«Muito bem, aqui estou eu, com as horas literalmente contadas, e dando importância para os comentários de gente que nunca vi, e que em breve nunca mais verei. E eu sofro, me irrito, quero atacar e defender. Para que perder tempo com isso? «
A realidade, porém, é que estava gastando o pouco tempo que lhe sobrava, para lutar por seu espaço num ambiente estranho, onde era preciso resistir, ou os outros impunham suas regras.
«Não é possível. Eu nunca fui assim. Eu nunca lutei por bobagens. «
Parou no meio do jardim gelado. Justamente porque achava que tudo era bobagem, ela terminara aceitando o que a vida lhe tinha naturalmente imposto. Na adolescência, achava que era cedo demais para escolher; agora, na juventude, se convencera que era tarde demais para mudar.
E onde gastara toda a sua energia, até o momento? Tentando fazer com que tudo em sua vida continuasse o mesmo. Sacrificara muitos de seus desejos, para que seus pais a continuassem amando como a amavam quando criança, embora sabendo que o verdadeiro amor se modifica com o tempo, e cresce, e descobre novas maneiras de se expressar. Certo dia, quando escutara a mãe — aos prantos — lhe dizer que o casamento havia acabado, Veronika fora em busca do pai, chorara, ameaçara, e finalmente arrancara a promessa de que ele não sairia de casa -sem imaginar o preço alto que os dois deviam estar pagando por causa disso.
Quando resolveu arranjar um emprego, deixou de lado uma proposta tentadora numa companhia que acabava de se instalar em seu recem-criado pais, para aceitar o trabalho na biblioteca pública, onde o dinheiro era pouco, mas era seguro. Ia trabalhar todos os dias, no mesmo horário, sempre deixando claro aos seus chefes de que não a vissem como uma ameaça, ela estava satisfeita, não pretendia lutar para crescer: tudo que desejava era o salário no final do mês.
Alugou o quarto no convento porque as freiras exigiam que todas as inquilinas voltassem em determinada hora, e depois passavam a chave na porta: quem ficasse do lado de fora, tinha que dormir na rua. Ela sempre podia dar uma desculpa verdadeira aos namorados, para não ser obrigada a passar a noite em hotéis ou leitos estranhos.
Quando sonhava em casar, imaginava-se sempre num pequeno chalé fora de Lubljana, com um homem que fosse diferente do seu pai, que ganhasse apenas o suficiente para sustentar a familia, que ficasse contente com o fato de que os dois estavam juntos numa casa com a lareira acesa, olhando as montanhas cobertas de neve.
Educara a si mesmo para dar aos homens uma quantia exata de prazer — nem mais, nem menos, apenas o necessário. Não sentia raiva de ninguém, porque isso significava ter que reagir, combater um inimigo — e depois ter que aguentar consequências imprevisíveis, como vingança.
Quando conseguiu quase tudo o que desejava na vida, chegou a conclusão que a sua existência não tinha sentido, porque todos os dias eram iguais. E decidira morrer.
Veronika tornou a entrar, e foi direto ao grupo reunido em um dos cantos da sala. As pessoas conversavam, animadas, mas silenciaram assim que ela chegou.
Foi direto até o homem mais idoso, que parecia ser o chefe. Antes que alguém pudesse dete-la, deu-lhe um sonoro tapa no rosto.
— Vai reagir? — perguntou alto, para que todos na sala ouvissem. — Vai fazer alguma coisa?
— Não. — O homem passou a mão no rosto. Um pequeno filete de sangue escorreu do seu nariz. — Você não vai nos perturbar por muito tempo.
Ela deixou a sala de estar e caminhou para a sua
enfermaria, com ar triunfante. Tinha feito algo que jamais fizera em sua vida.
Três dias se passaram deste o incidente com o grupo que Zedka chamava de «A Fraternidade». Arrependera-se do tapa — não por medo da reação do homem, mas porque fizera algo diferente. Em breve, podia terminar convencida de que a vida valia a pena, um sofrimento inútil — já que teria que partir deste mundo de qualquer maneira.
Sua única saida foi afastar-se de tudo e de todos, tentar de todas as maneiras ser como era antes, obedecer as ordens e regulamentos de Villete. Adaptou-se a rotina imposta pela casa de saúde: acordar cedo, café da manhã, passeio no jardim, almoço, sala de estar, novo passeio no jardim, ceia, televisão, e cama.
Antes de dormir, uma enfermeira sempre aparecia com medicamentos. Todas as outras mulheres tomavam comprimidos, ela era a única a quem aplicavam uma injeção. Nunca reclamou; apenas quis saber porque lhe davam tanto calmante, já que nunca tivera problemas para dormir. Explicaram que a injeção não era um sonifero, mas um remédio para o seu coração.
E assim, obedecendo a rotina, os dias do hospício
começaram a ficar iguais. Quando ficam iguais, passam mais rápido: mais dois ou três dias, e não seria necessário escovar os dentes ou pentear o cabelo. Veronika percebia o seu coração enfraquecendo rapidamente: perdia o fôlego com facilidade, sentia dores no peito, não tinha apetite, e ficava tonta cada vez que fazia qualquer esforço.
Depois do incidente com a Fraternidade, chegara a pensar algumas vezes: «se eu tivesse uma escolha, se tivesse compreendido antes que meus dias eram iguais porque eu assim os desejava, talvez...»
Mas a resposta era sempre a mesma: «não há talvez, porque não há escolha». E a paz interior voltava, porque tudo estava determinado.
Neste periodo, desenvolveu uma relação (não uma amizade, porque amizade exige uma longa convivência, e isso seria impossível) com Zedka. Jogavam baralho — o que ajuda o tempo a passar mais rápido — e as vezes caminhavam juntas, em silêncio, pelo jardim.
Na manhã daquele dia, logo depois do café, todos sairam para o «banho de sol» — conforme exigia o regulamento. Um enfermeiro, porém, pediu que Zedka voltasse a enfermaria, pois era o dia do «tratamento».
Veronika estava tomando café com ela, e escutou o comentário.
— O que é «tratamento»?
— É um processo antigo, da década dos sessenta, mas os médicos acham que pode acelerar a recuperação. Você quer ver?
— Você disse que tinha depressão. Não basta tomar o remédio para repor a tal substancia que falta?
— Você quer ver? — insistiu Zedka.
Ia sair da rotina, pensou Veronika. Ia descobrir novas coisas, quando não precisava aprender mais nada — apenas ter paciência. Mas sua curiosidade foi mais forte, e ela fez que sim com a cabeça.
— Isto não é uma exibição — reclamou o enfermeiro.
— Ela vai morrer. E não viveu nada. Deixa que venha conosco.
Veronika assistiu a mulher ser amarrada na cama, sempre com um sorriso nos lábios.
— Conta o que está acontecendo — disse Zedka para o enfermeiro. — Ou ela vai ficar assustada.
Ele virou-se e mostrou uma injeção. Parecia feliz de ser tratado como um médico, que explica aos estagiários os procedimentos corretos e os tratamentos adequados.