40400.fb2 Veronika decide morrer - читать онлайн бесплатно полную версию книги . Страница 8

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E Zedka se perguntava: eu insisti o suficiente? Deveria ter aceito o papel da amante, ao invés de querer que as coisas andassem segundo minhas próprias expectativas? Lutei por meu primeiro amor com a mesma garra com que lutei por meu povo?

Zedka convenceu-se que sim, mas a tristeza não passava. O que antes lhe parecia o paraiso — a casa perto do rio, o marido a quem amava, os filhos comendo pipoca diante da televisão -começou a transformar-se num inferno.

Hoje, depois de muitas viagens astrais e muitos

encontros com espíritos desenvolvidos, Zedka sabia que tudo aquilo era bobagem. Usara o seu Amor Impossível como uma desculpa, um pretexto para romper os laços com a vida que levava, e que estava longe de ser aquilo que verdadeiramente esperava de si mesma.

Mas, doze meses atrás, a situação era outra: ela começou a procurar freneticamente o homem distante, gastara fortunas com chamadas internacionais, mas ele já não morava na mesma cidade, e foi impossível localiza-lo.. Mandou cartas por correio expresso, que acabavam sendo devolvidas. Ligou para todas as amigas e amigos que o conheciam, e ninguém tinha a menor ideia do que lhe acontecera.

Seu marido não sabia de nada, e isto a levava a loucura — porque ele devia pelo menos suspeitar de algo, fazer uma cena, queixar-se, ameaçar deixa-la no meio da rua. Passou a ter certeza de que as telefonistas internacionais, os correios, as amigas tinham sido subornadas por ele — que fingia indiferença. Vendeu as jóias que ganhara de casamento e comprou uma passagem para o outro lado do oceano, até que alguém a convenceu que as Américas eram muito grandes, e não adiantava ir sem ter certeza de onde chegar.

Certa tarde ela deitou-se, sofrendo por amor como nunca sofrera antes — nem mesmo quando tivera que voltar para o aborrecido cotidiano de Lubljana. Passou aquela noite, e todo o dia seguinte no quarto. E mais outro. No terceiro, seu marido chamou um médico — como era bondoso! Quanta preocupação por ela! Será que este homem não entendia que Zedka estava tentando me encontrar com outro, cometer adultério, trocar sua vida de mulher respeitada pela de uma simples amante escondida, deixar Lubljana, sua casa, seus filhos, para sempre?

O médico chegou, ela teve um ataque nervoso, fechou a porta com a chave — e só tornou a abri-la quando ele foi embora. Uma semana depois, não tinha vontade nem de ir no banheiro, e passou a fazer suas necessidades fisiológicas na cama. Já não pensava mais, a cabeça estava completamente tomada pelos fragmentos de memória do homem que — estava convencida — também a buscava sem conseguir encontra-la.

O marido — irritantemente generoso — trocava os lençóis, passava a mão na sua cabeça, dizia que tudo ia terminar bem. Os filhos não entravam no quarto desde que ela esbofeteara um deles sem nenhum motivo — e depois ajoelhara-se, beijara seus pés implorando desculpas, rasgando camisola em pedaços para mostrar seu desespero e arrependimento.

Depois de outra semana — onde cuspira a comida que lhe era oferecida, entrara e sairá desta realidade várias vezes, passara noites inteiras em claro e dias inteiros dormindo, dois

homens entraram no seu quarto sem bater . Um deles segurou-a, outro aplicou uma injeção, e ela acordara em Villete.

«Depressão», ela escutara o médico dizer ao seu marido. «As vezes provocada pelos motivos mais banais. Falta um elemento quimico, a serotonina, em seu organismo».

Do teto da enfermaria, Zedka viu o enfermeiro chegar com uma seringa na mão. A garota continuava ali, parada, tentando conversar com seu corpo, desesperada com seu olhar vazio. Por alguns momentos, Zedka considerou a possibilidade de contar para ela tudo o que estava acontecendo, mas depois mudou de ideia; as pessoas nunca aprendem nada que lhes é contado, precisam descobrir por si mesmas.

O enfermeiro colocou a agulha no seu braço, e injetou glicose. Como se tivesse sido puxado por um enorme braço, seu espirito saiu do teto da enfermaria, passou em alta velocidade por um túnel negro, e retornou ao corpo.

— Olá, Veronika.

A menina tinha um ar apavorado.

— Você está bem?

— Estou. Felizmente consegui escapar deste perigoso tratamento, mas isso não irá se repetir mais.

— Como você sabe? Aqui, não respeitam ninguém. Zedka sabia porque fora, em corpo astral, até o escritório do Dr. Igor.

— Eu sei, mas não tenho como explicar. Lembra-se da primeira pergunta que lhe fiz?

— «O que é a loucura?»

— Exatamente. Desta vez vou lhe responder sem fábulas: a loucura é a incapacidade de comunicar suas ideias. Como se você estivesse num pais estrangeiro — vendo tudo, entendendo o que se passa a sua volta, mas incapaz de se explicar e de ser ajudada, porque não entende a lingua que falam ali.

— Todos nós já sentimos isso.

— Todos nós, de um jeito ou de outro, somos loucos.

Do lado de fora da janela gradeada, o céu estava coberto de estrelas, com uma lua em quarto crescente subindo por detrás das montanhas. Os poetas gostavam da lua cheia, escreviam milhares de versos sobre ela, mas Veronika era apaixonada por aquela meia-lua, porque ainda havia espaço para aumentar, expandir-se, preencher de luz toda a sua superfície, antes da inevitável decadência.

Teve vontade de ir até o piano na sala de estar, e celebrar aquela noite com uma linda sonata que aprendera no colégio; olhando o céu, tinha uma indescritível sensação de bem-estar, como se o infinito do Universo mostrasse também sua própria eternidade. Mas estava separada de seu desejo por uma porta de aço, e uma mulher que nunca terminava de ler o seu livro. Além do mais, ninguém tocava piano àquela hora da noite — terminaria acordando a vizinhança inteira.

Veronika riu. A «vizinhança» eram as enfermarias repletas de loucos, estes loucos, por sua vez, repletos de remédios para dormir.

A sensação de bem-estar, entretanto, continuava. Levantou-se o foi até o leito de Zedka, mas ela estava dormindo profundamente, talvez para recuperar-se da horrível experiência pela qual passara.

— Volte para a cama — disse a enfermeira. — Meninas boas estão sonhando com os anjinhos ou os namorados.

— Não me trate como criança. Não sou uma louca mansa, que tem medo de tudo. Sou furiosa, tenho ataques histéricos, não respeito nem minha vida, nem a vida dos outros. Hoje, então, estou atacada. Olhei a lua, e quero conversar com alguém.

A enfermeira olhou-a, surpresa com a reação

— Você tem medo de mim? — insistiu Veronika. — Faltam um ou dois dias para a minha morte, o que tenho a perder?

— Por que você não vai dar uma passeio, mocinha, e me deixa terminar o livro?

— Porque existe uma prisão, e uma carcereira, que finge ler um livro, apenas para mostrar aos outros que é uma mulher inteligente. Na verdade, porém, ela está atenta a cada movimento dentro da enfermaria, e guarda as chaves da porta como se fosse um tesouro. O regulamento deve dizer isso, e ela obedece, porque assim pode mostrar a autoridade que não tem em sua vida diária, com seu marido e filhos.

Veronika tremia, sem entender direito porque.

— Chaves? — perguntou a enfermeira. — A porta está sempre aberta. Imagine se vou ficar aqui dentro, trancada com um bando de doentes mentais!

«Como a porta está aberta? Há alguns dias eu quis sair daqui, e esta mulher foi até o banheiro me vigiar. O que ela está dizendo? «

— Não me leve a sério — continuou a enfermeira. — O fato é que não precisamos de muito controle, por causa dos comprimidos para dormir. Você está tremendo de frio?

— Não sei. Acho que deve ser coisa do meu coração.

— Se quiser, vá dar o seu passeio.

— Na verdade, o que eu gostaria mesmo era tocar piano.

— A sala de estar é isolada, e seu piano não perturbaria ninguém. Faça o que tiver vontade.

O tremor de Veronika transformou-se em soluços baixos, timidos, contidos. Ela ajoelhou-se, e colocou a cabeça no colo da mulher, chorando sem parar.

A enfermeira deixou o livro, acariciou seus cabelos, deixando que a onda de tristeza e pranto fosse embora naturalmente. Ali ficaram as duas, por quase meia-hora: uma que chorava sem dizer por que, outra que consolava sem saber o motivo.

Os soluços finalmente terminaram. A enfermeira levantou-a, pegou-a pelo braço, e conduziu-a até a porta.

— Tenho uma filha da sua idade. Quando você chegou aqui, cheia de soros e tubos, fiquei imaginando por que uma moça bonita, jovem, que tem a vida pela frente, resolve matar-se.

« Logo começaram a correr histórias: a carta que deixou — e que nunca acreditei ser o real motivo — e os dias contados por causa de um problema incurável no coração. A imagem da minha filha não saia de minha cabeça: e se ela resolve fazer alguma coisa igual? Por que certas pessoas tentam ir contra a ordem natural da vida — que é lutar para sobreviver de qualquer maneira?»

— Por isso eu estava chorando — disse Veronika. — Quando tomei os comprimidos, eu queria matar alguém que detestava. Não sabia que existia, dentro de mim, outras Veronikas que eu saberia amar.

— O que faz uma pessoa detestar a si mesma?

— Talvez a covardia. Ou o eterno medo de estar errada, de não fazer o que os outros esperam. Há alguns minutos estava alegre, esqueci minha sentença de morte; quando voltei a entender a situação em que me encontro, fiquei assustada.